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Cosmópolis (David Cronenberg, 2012)

Por Fernanda Canofre

Uma limusine circula pelas ruas de Nova York. Dentro dela, Shiner (Jay Baruchel), corretor que trabalha para um bilionário de 28 anos, diz ao patrão: “Às vezes, você não se sente perdido quanto ao que fazer?”. O assunto era o tempo (e a vida) que se gasta correndo atrás de coisas que, no fim, parecem não ter sentido nenhum. A cena inicial de Cosmópolis¸ filme de David Cronenberg baseado no livro homônimo de Don DeLillo, dá o tom para a odisseia de um bilionário de Wall Street em busca de um corte de cabelo. O problema é que esse não é o melhor dia para atravessar a cidade por causa de um horário no barbeiro. Para começar, o esquema de segurança e os movimentos de protesto causados pela visita do presidente dos Estados Unidos à cidade transformaram o trânsito em um caos. O funeral de um famoso rapper muçulmano só piora a situação. Definitivamente, não é um bom dia para quem quer chegar a algum lugar a bordo de um carro de 9 metros de comprimento. O bilionário em questão, Eric Packer (Robert Pattinson), não quer perder tempo. A caminho do barbeiro, ele tenta jogar com todos os assuntos a serem resolvidos em sua vida. Entre eles, está o seu casamento com a herdeira de um império bilionário (Sarah Gadon), que, apesar de recente, já vive em crise. Packer desembarca do carro algumas vezes para ir atrás da frígida esposa. Em um dos encontros, ela nota pela primeira vez que os olhos do marido são azuis; em outro, ele descobre que ela fuma. Ambos não se conhecem, e Packer está sempre tentando desesperadamente criar uma conexão com a mulher. O sexo que ele não tem com a esposa, consegue através de mulheres que estão em sua folha de pagamento. Uma delas é sua consultora de arte (Juliette Binoche), que além de conselhos sobre leilões de obras de arte para aumentar a coleção do bilionário, entrega-lhe pequenas pérolas de filosofia barata. Uma mulher que passou dos quarenta anos, ela se sente tão perdida quanto o jovem corretor do início e diagnostica seu problema: “A vida é muito contemporânea”. A outra ligação sexual de Packer é sua personal trainer, com quem ele resume a série de exercícios a uma cama de hotel. Dos encontros em seu carro, há tempo reservado para um exame de próstata (que ocorre enquanto ele trata da crise da moeda japonesa com uma funcionária) e uma discussão ideológica com uma filósofa (Samantha Morton) que, embora tenha toda a questão socioeconômica do mundo teorizada, não tem ideia do que fazer com sua teoria e parece entediada com quem parte para ação.

O Capital e outras coisas

Quando DeLillo escreveu Cosmópolis, a crise financeira mundial, que se iniciou com o colapso da bolha imobiliária americana, ainda não havia ocorrido e movimentos sociais da geração 2.0, como Occupy Wall Street e os Indignados europeus, não existiam nem no coração do mais utópico pensador político. Talvez por isso, o filme de Cronenberg, situado em um futuro próximo, tenha sido prematuramente classificado como “ficção científica”. Se fosse ficção científica, Cosmópolis estaria na categoria das obras proféticas, como 1984, de George Orwell, com uma ressalva: se a obra de Orwell levou algumas décadas para ter um correspondente real, a de DeLillo caiu em alguma dobra temporal que acelerou o processo. O fim de uma era da sociedade como a conhecemos e do homem pertencente a esta é o nosso agora, basta abrir as páginas de qualquer jornal. Mais interessante ainda é o fato de o filme ter como produtora uma empresa portuguesa, pertencente a um dos países que mais sofre com a crise da Europa. A produção do longa foi o primeiro projeto milionário da Alfama, de Paulo Branco. Eric Packer é parte do 1% da população privilegiada, e vive em torno do capital virtual (“cibercapital”) e sua movimentação pelas bolsas financeiras de todo o planeta. O 1% que os membros dos 99% (de Wall Street e das praças ocupadas na Europa em crise) acusavam pelo colapso da sociedade em seus cartazes de protesto. Cronenberg soube incorporar os elementos contemporâneos ao filme de uma forma que nos deixa sem ter certeza se Packer está mesmo a viver em um tempo diferente do nosso. E toda a mudança, todo o esforço que ele aplica para evitar a evasão de sua fortuna, continua sem dar resposta alguma a sua vida. O jovem bilionário continua em busca de algo que nem ele sabe nomear o que é. Na conversa com sua consultora de arte, Packer insiste que quer comprar uma capela criada por um famoso artista europeu. A consultora avisa que a capela não está à venda, que não foi criada com propósito comercial. Ela foi pensada para estar aberta a visitação pública e não para uso restrito de apenas uma pessoa. O bilionário insiste, diz que paga o que for, mas que quer a capela inteira em sua cobertura. Packer não é religioso, mas a capela parece guardar em seu altar algo que ele ainda não conseguiu conhecer na vida. Se pela experiência ele não consegue ter acesso a essa emoção, está disposto a usar a única via que conhece para consegui-la: o dinheiro. Packer entende os mecanismos por onde circula o dinheiro, as estruturas do que sustenta o poder em seu mundo, no entanto, nenhum conhecimento é capaz de ligá-lo a algo que tenha sentido. A cena do presidente do FMI sendo assassinado ao vivo na televisão japonesa (puro Cronenberg!) não o choca, o protesto de um homem que ateia fogo a si mesmo, desperta apenas sua curiosidade, sobre como deve ser ficar ali, queimando e sentindo toda a dor até o fim. O único momento que traz um abalo emocional é a morte do rapper Brother Fez. Packer diz estar triste porque ouvia as músicas dele em seu elevador particular, mas sua tristeza parece vir de outra raiz, também ligada ao vazio que ele busca em vão preencher. Fez morreu de causas naturais, devido a um problema de coração que ele tratava há alguns anos. Não foi uma ideologia, uma luta, um protesto que o levou. Morreu como morrem a maioria dos investidores de Wall Street e das pessoas que batem cartão de ponto em escritórios comuns mundo afora.

Cronenberg sobre Cronenberg

No livro Cronenberg on Cronenberg, o diretor revelou que sempre teve preocupação de encontrar coesão para sua obra. Disse que ao olhar para a filmografia de diretores que eram reconhecidos como autores, desejava ter aquilo que eles tinham: uma marca que legitimasse sua autoria nas produções. No entanto, quando alcançou este status, ele reconheceu ter passado a conviver com a apreensão de corresponder às expectativas do público quanto ao próximo filme, de manter a continuidade desta “autoria”. Coisa que ele consegue em Cosmópolis. A representação da violência subjetiva praticada pela imprensa, os detalhes de um cenário futurista que leva ao suspense, o sexo como forma de encontrar legitimidade com o mundo concreto, o ligação de um indivíduo com os outros seres humanos através dos fatores sensoriais (aqui, a referência constante ao cheiro), todas são marcas autênticas do cinema de Cronenberg que voltamos a encontrar em Cosmópolis. No entanto, a apreensão confessada por ele também repercute de alguma forma aqui. Ao contrário do que disse a crítica francesa, Cosmópolis não pode ser acusado de verborrágico ou maçante. Mesmo assim, guarda em seu roteiro pontos desnecessários, que parecem dispositivo de segurança para garantir que a mensagem será corretamente recebida pelo espectador. Na cena do exame de próstata, por exemplo, a funcionária de Packer espreme uma garrafa d’água com as mãos, excitada com as expressões dele. Não demora muito para que surja no diálogo entre os dois uma fala do bilionário perguntando o que ela está fazendo e jogando literalmente: “Isso é tensão sexual”. Às vezes, o excesso transforma em artigo barato algo que poderia ser fino, se tratado apenas através da representação visual. Afinal, não é esse um dos grandes trunfos do cinema? A atuação de Robert Pattinson, mais que estereotipado pelo vampiro sem caninos da saga Crepúsculo, deixa margem para uma crítica ambígua. Nas cenas de Packer dentro da limusine, Pattinson parece não saber direito quem é Eric Packer. Somado a isso, alguns enquadramentos onde ele aparece no banco da limusine parecem colocá-lo em um caixão, e aí não tem jeito: é impossível escapar da associação com a imagem de um “vampiro”. No entanto, nas cenas fora da limusine, o ator consegue encarnar uma melancolia cínica e de alguma forma encontra o personagem que havia perdido dentro do carro.

No fim, entre mortos e feridos, excessos e abscessos, Cosmópolis é um belo tratado sobre a época atual. A filósofa assessora de Packer diz que há uma inversão nos valores do mundo. Para ela, o tempo virou elemento corporativo e, se antes tempo era dinheiro, agora dinheiro é tempo. E do tempo que não temos, fica só um consolo para quem vaga perdidamente pela nova época: “a vida é muito contemporânea”.

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Um Método Perigoso (David Cronenberg, 2011)

Por Luis Henrique Boaventura

A narrativa segundo David Cronenberg, embora envolta sempre desse classicismo anacrônico, transpira vez ou outra com o desconcerto, um solavanco gráfico ou rítmico — ecos do horror setentista americano, velha escola dessa geração — que desvia e constrange sua harmonia. Cronenberg desenvolveu durante muitos anos uma habilidade narrativa tão incomum, de filmar o choque e o absurdo com tão bem fingida indiferença, que seu cinema, aos olhares mais cansados ou impacientes, beira o inorgânico. Seus filmes mais recentes são mecanismos inexoráveis cuja precisão reclama o desarranjo, ordens forjadas para um arremate de distúrbio. Há, é claro, uma gradação no processo. Os terrores de início de carreira eram pensados não com vias a alcançar esse pico de desordem, mas a partir dele — o estado de caos que se devia solapar com uma intervenção pelo rearranjo, pela reparação. Calafrios e Enraivecida na Fúria do Sexo incursionavam logo numa vereda de gênero (terror, sci-fi) e procuravam ao longo da narrativa reencontrar um equilíbrio perdido antes mesmo de seu início, enquanto que em Videodrome e A Hora da Zona Morta essa perda de sanidade já era plenamente comportada pelo filme. A Mosca, por exemplo, desenvolve-se num insuspeito acorde de estabilidade para só então corromper-se com notas do cinema de horror e do sci-fi. Se Gêmeos talvez represente melhor o balanço dessas duas esferas de Cronenberg, sempre em fricção para mais tarde acomodarem-se numa única ideia de cinema, o princípio dessa virada seria pela primeira vez experimentado em M. Butterfly, filme despojado dessa necessidade do discurso para disparatar de repente e ruir o crescendo rímico da narrativa, deixando para si o prazer de largar-se no decurso da história. É M. Butterfly que aponta o caminho trilhado em definitivo a partir de Spider, filme de 2002, onde as quebras vorazes de rumo de suas obras anteriores definham-se em alvoroços passageiros, perturbando a vigência da ordem não mais para arrombar sua evolução, mas para trazer à superfície um atrito qualquer já previsto na cadeia dos seus movimentos.

Que Um Método Perigoso apareça neste momento, sucedendo Marcas da Violência e Senhores do Crime, é simplesmente poético. Marcas, ainda mais que Senhores do Crime, decompõe claramente a lógica do cinema de Cronenberg na última década: o tronco inconteste da trama atravessado de repente por um rompante de fúria. E essa calmaria da narrativa, que antes seguia seu curso sem distúrbio aparente até encontrar o evento-motor que a dobrasse sem quebrá-la (dois bandidos na lanchonete em Marcas da Violência, o recém-nascido em Senhores do Crime), assombra Um Método Perigoso em toda sua extensão, sem escape e sem respiro. A crítica mais recorrente a este novo filme tem sido a falta, exatamente, dessa tal (imaginária) centelha cronenbergniana que o deveria incendiar sem prévio aviso. Note-se que o cinema de Cronenberg, embora a respeito do qual muito se tenha dito quanto à paridade com o americano clássico, jamais poderia remontar à Old Hollywood enquanto conservasse estes raptos de razão (ainda que cada vez mais discretos, diegetizados). Um Método Perigoso, com tão evidenciada veia biográfica, por vezes documental em alguns subterfúgios (no voice-over, na força das elipses), jamais resiste (como corre o risco de parecer) ao impulso de tornar-se novo objeto de travessura auterista. A diferença talvez esteja numa minoração de frequência, na preferência pela implosão em detrimento do voraz rebentar de Crash, A Mosca e Gêmeos, do voo furtivo de Spider, Marcas e Senhores do Crime, porque Um Método Perigoso não é de modo algum um filme de exceção na carreira do diretor: Cronenberg continua sendo todo a respeito da matéria e das coisas do corpo.

Em Um Método Perigoso, Cronenberg declina de qualquer hermetismo gráfico (sempre apressadamente destacado quando analisam seus filmes) devolvendo a senda criativa à ordem da palavra — prensa seminal do mundo e da história — e à minúcia do corpo, do gesto, do poro. Há uma enorme crença na expressão pelo verbo e pelo corpo antes mesmo do que pela intervenção da câmera, o que é lindamente apropriado a uma narração que fia das relações (e da “talking cure”, afinal de contas) a urdidura de sua linguagem. A câmera em Um Método Perigoso não se furta nunca da ação, não usa o espaço do quadro para expressar uma mudança de lugar assim como não arrisca o movimento (ou mesmo a captação de um) como signo relevante. Mesmo a histeria de Sabina é reprimida a um mesmo quadrante da tela. Em vez do deslocamento de objetos há uma imobilidade e um preenchimento de espaços, uma cuidadosa disposição dos corpos pelo quadro — e mais especificamente de uma porção desses corpos. Um zelo à postura, à proporção, aos membros visíveis neste momento e exclusos no seguinte. Os rostos e os gestos em Um Método Perigoso servem de moldura à palavra, que por sua vez serve de moldura ao corpo. knightley, Fassbender e Mortensen (e Cassel, em menor proporção) raramente são pegos sozinhos pela câmera, em um momento de trânsito ou de silêncio. Os capítulos que as grandes elipses recortam são sempre de uma intensa interação entre eles, seja frente a frente, seja através das muitas cartas lidas em off. Há dois momentos capitais resolvidos inteiramente com a leitura de cartas em cena (como se, aos que reclamam de uma sobriedade incompatível com Cronenberg neste filme, ler em cena não fosse radical o suficiente), e isto porque é sempre a palavra que dirige a erosão das relações, que nos transfere de Viena a Zurique num corte e reposiciona os personagens em tempo/espaço, que os introduz e os varre do filme (como ocorre com o Otto Gross de Cassel). É a palavra que resgata prazeres trancados nos porões da memória para distorcer com eles a concórdia do corpo, reencarnando a milenar dicotomia corpo/mente em corpo/verbo (elemento de evocação, roda de materializar fantasmas).

Cronenberg trata da eclosão dos objetos do corpo e da porosidade dessa matéria disforme vazada sempre por uma pulsão mais cava do desejo, do sexo, do sonho, da lembrança — tudo chamado à tona pela fala. A vitória do impulso sobre a pele, como quis Freud, pano luzidio em que se projetam, furtivas, errantes na distração dos olhos, as aspirações de um velho trauma. Por isso Um Método Perigoso é o grande filme de atores na carreira de Cronenberg; não pela economia da mise-en-scène, mas pela densa assimilação que esta faz das faces distribuídas pelo plano. Como o brilho no olhar de Fassbender, revelado por um súbito ângulo oposto, quando Sabina fala da sua excitação para com as surras de seu pai na infância, e o retorno imediato da câmera ao corpo oblíquo dela, visto de costas desta vez, torto, feio, como uma criatura assim sem forma imediatamente apreensível. Ou o distúrbio no olhar de Mortensen quando Jung diz que se separaria dele ali pois ficaria na primeira classe do navio, e a pequena vingança de Freud ao negar dividir seu sonho com o pupilo para não pôr em risco sua “autoridade”. A todo momento é a palavra puxando coisas que o corpo, feito culpado de um crime, esforça-se em disfarçar.

É claro que a roda de acontecimentos dá razão a Freud, provando sua (assim chamada por Jung) “obsessão” pelo corpo e pelo sexo estar absolutamente correta. Jung não percebe que sua tendência pelo misticismo e sua noção de que a psicanálise deveria permitir ao ser humano mudar e reinventar-se é o que o leva a terminar se despedindo do grande amor de sua vida (em suas palavras) ali na beira daquele mesmo lago aonde viria a morrer 50 anos depois. A ilusão de Jung de um maravilhoso “território inexplorado” é a mesma que concebeu ser possível conciliar o desejo que a palavra flagrou com a negação ao que o corpo exigiu. A matéria tem demandas que a mente não consegue entender. E é quando Sabina o deixa que a câmera desfaz-se de sua posição ocupada durante o filme inteiro e avança num travelling violento, de uma tristeza com textura e com peso, na direção de um olhar preso à tranquilidade do lago. Com tudo já dito, a fala cessa finalmente, e tudo mais no mundo é o silêncio de quem espera.

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Além das Nuvens (Michelangelo Antonioni & Wim Wenders, 1995)

Por Fernando Mendonça

“Quando se copia um quadro de um grande artista, existe uma chance de repetir aí o ato desse artista e talvez de reencontrar, mesmo por acaso, o movimento exato.”

Uma revisão crítica de Além das Nuvens pode encontrar como ponto de partida um interminável número de questionamentos e opiniões presentes no filme e distribuídos entre suas quatro breves histórias, todas elas interligadas junto ao processo criativo vivido pelo personagem-cineasta de John Malkovich, alter ego explícito do próprio Antonioni; decidimos aqui um olhar mais atento apenas a um entreato destes enredos, independente de qualquer vinculação narrativa com as referidas histórias.

A frase acima citada faz parte de um diálogo que Marcello Mastroianni trava com Jeanne Moreau enquanto pinta uma paisagem da natureza. A aparição do casal em cena pode ser quase considerada figurante, sem nenhuma contextualização de personagem, sem retorno ou sequer menção no decorrer do filme em questão, ignorando apresentações, explicações ou qualquer tentativa de iluminação simbólica. Fugaz como um pensamento é sua participação, mas tão profunda como o mesmo é sua importância. Na verdade, a reflexão mencionada se dá após uma irônica observação feita por Moreau, quando esta indaga o porquê de a sociedade precisar de cópias das coisas, não apenas no caso da pintura, mas referindo-se a todo o leque de objetos de consumo em circulação. Ao abordar a ideia da cópia como um princípio do ato criativo, Mastroianni problematiza uma linha de pensamento que pode nos conduzir a compreensão de não apenas os objetos de consumo serem capazes de aprisionar a sociedade, mas de o objeto da arte em si, ser igualmente um aprisionador do artista, por seu enfoque tão modernamente capitalista, massificador.

Mas as intenções de Antonioni com esta seqüência parecem ir muito além de uma crítica ao sistema econômico vigente no mundo globalizado. O quadro que Mastroianni pinta não é produto comercial. Sua última frase já diz: “…Eu compreendo ser engraçado senhora, não vou vender de qualquer jeito…” Ele é mais. Transcende as necessidades financeiras e a realidade da natureza tendo como principal significado e objetivo proporcionar a satisfação de seu criador. Criador que é homem, que é essência. Criador que é Deus. É notável a necessidade do artista aí exposta. Encontrar o movimento do artista original, criador da vida natural e sensível, é o objetivo confessado por Mastroianni para o gênio repetido, possuidor do não mais exclusivo dom, que já pode ser encontrado num simples pintor a copiar o quadro da vida.

Imediatamente após esse diálogo-reflexão retornamos ao personagem de John Malkovich e sua significação relativamente direta com a voz de Antonioni. Agora, ele se encontra no saguão de um hotel, vagando entre um cômodo e outro como sem nada para fazer. Admira uma pintura de paisagem que sugestivamente poderia ter sido feita por Mastroianni, até que se depara com um quadro que retrata um homem triste. Tenta imitar a posição do homem do quadro e acaba chamando a atenção de uma senhora que estava lendo, sentada. Ela o ajuda em seu objetivo, o de imitar o homem do quadro, com recomendações que direcionam: “…o outro braço por baixo… incline a cabeça pra direita… um pouco mais triste… assim.” A senhora é novamente Jeanne Moreau.

‘É’Jeanne Moreau, pois a essência do personagem para a narrativa total de Além das Nuvens é tão insignificante como aquele encarnado por Mastroianni, não possuindo dependência com os enredos (estes filmes de gaveta), nome ou funcionalidade na trama. Dessa forma, por Moreau e Mastroianni terem sido importantes atores na carreira de Antonioni, eles revestem essa obra com seus corpos e nomes, pois o mito que se tornaram os constitui personagens fictícios, ampliando e intensificando a introspecção o filme propõe. Como Mastroianni alcançou um diálogo sublime por sua simplicidade, Moreau representa em aproximados trinta segundos de cena um dos papéis metafísicos mais questionadores do cinema de Antonioni.

Ora, se o simulacro já é a cópia da cópia, ou seja, aquele quadro do homem triste que Malkovich observa, do que pode ser chamado o ato de cópia que Malkovich executa? O quadro é o terceiro nível do mundo platônico, mas em que nível se encaixa a imitação de Malkovich? A intensidade dessas indagações aumenta quando Jeanne Moreau entra em cena e se desvencilha do mundo em que estava, o da leitura (arte), para conduzir Malkovich ao mais próximo da verdade copiada. Qual o papel de Moreau?  Artista? Certamente não. A impossibilidade na contagem dos níveis platônicos torna-se mais perceptível se for levado em conta que todo este círculo de imitações é exposto no universo diegético do filme de Antonioni, produto, em si, já pertencente a um nível distanciado da verdade. Mas onde está a verdade?

O percurso pelas histórias do filme é marcado por um elo muito tênue, por vezes não compreendido. Mas não entender a inexistente explicação para esse conjunto de ficções é sentir a sombra da urgência criativa. De um processo que, em Além das Nuvens, não se consuma. O alter ego de Antonioni não realiza nenhum filme, apenas se deixa consumir pela necessidade que antecede a criação, necessidade de um gesto, de um simples movimento que sempre insiste em fugir. Se nos perguntamos em dado momento ‘qual o papel de Moreau?’ sem encontrar resposta, é porque talvez ele esteja em nós. Cabe a nós completar o que se iniciou em arte. É de nós que o movimento sai e é para nós que ele retorna, resultando dessa troca o cinema enquanto intermediário entre a verdade e a vida.

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Valente (Mark Andrews, Brenda Chapman e Steve Purcell, 2012)

Por Filipe Chamy

A primeira coisa que parece digna de observação em Valente é como ele é muito mais um filme da Disney que da Pixar.

Dialogando com décadas de uma tradição (quase) irretocável, Valente a todo instante lembra os longas animados disneyanos: o cabelo da simpática protagonista Merida é vermelho e ondulante como o de Ariel, a pequena sereia; o rei expansivo e boêmio faz recordar os alegres monarcas de A bela adormecida; há certos elementos de ambientes e personagens que recriam Irmão urso etc.

É claro que a Pixar pertence à Disney. E mesmo quando não o era seus projetos eram feitos em parceria com a Disney, que possui um aparato de divulgação e distribuição bem mais poderoso. Mas é curioso que justo agora, que John Lasseter é o chefe da animação Disney, a Pixar tenha procurado se voltar para esse lado. Porque Valente parece prenunciar alguma tendência de mudança no modo Pixar de se fazer um filme, e não só por ter colocado pela primeira vez o foco das atenções em uma garota: Carros 2, o longa anterior da empresa, soava muito mais como um veículo (sem trocadilho) de promoção de bonequinhos, roupas e todo tipo de tralhas do que uma obra de expressão autoral, e nesse sentido Valente é que aparentemente demonstra com mais segurança o que vem preocupando e inspirando os artistas pixarianos.

Portanto, Merida já pode muito bem figurar como uma legítima princesa Disney. E é nítida também a evolução das jovens reinantes: da totalmente ingênua Branca de Neve à reprimida Rapunzel, todas elas haviam demonstrado uma evolução no retrato do agir feminino, deixando aos poucos a submissão imposta por seculares tradições e procurando elas mesmas redefinirem seus caminhos em suas vidas. Se Branca de Neve, Cinderela e Aurora (a bela adormecida) dependiam em seus destinos da conjunção entre a sorte mágica do acaso e a boa vontade e coragem de um príncipe encantado, Ariel, a rebelde, começou a se distanciar desse pedestal e contrariou os desígnios do rei seu pai; Belle, a decidida, modifica com seu caráter e inteligência toda uma situação de maldição e desesperança; Jasmine, a voluntariosa, reescreve as leis de uma sociedade arcaica e instaura o feminismo de igualdade de escolhas. Essas princesas deram a tônica para mudanças que refletem certos anseios sociais, étnicos e humanos “lato sensu”, com mais abrangência racial, menos estereótipos de gênero, maior ambição narrativa ao deixar de usar clichês de princesas literárias como muletas para a estrutura dos filmes seguintes.

Merida dá a sua contribuição e pela primeira vez vemos uma princesa Disney que não só discorda dos pais (no caso, a mãe) como ainda faz das suas para literalmente mudá-los. De Branca de Neve a ela, foi adicionado um caminhão de força, de decisão, de maturidade.

Valente tem bons coadjuvantes, boa cenografia, encenação, figurino, bons diálogos e direção, bons planos, boa música e boa concepção e roteiro. Mas se nele há algo de ótimo é a garota dos cabelos ruivos revoltos, a figura que quando os esconde sob os trajes de costume é uma menina e quando rasga o aperto da roupa e os liberta é mulher. É Merida, uma figura bastante crível e que afinal a encontramos em uma idealização, um sonho. É preciso aceitar que o cinema de animação pode apresentar gente muito real também.

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A Mulher de Longe (Luiz Carlos Lacerda, 2012) e Dino Cazzola – Uma Filmografia de Brasília (Andréa Prates e Cleisson Vidal, 2012)

Por Daniel Dalpizzolo

O diálogo sobre preservação da memória do audiovisual brasileiro foi o carro-chefe da Mostra de Cinema de Ouro Preto, que aconteceu de 20 a 25 de junho na cidade histórica de Minas Gerais. Nada mais natural então que, além dos seminários para discussão de políticas públicas e técnicas de preservação, decorridos ao longo do evento, também sejam apresentados em sua programação resultados já conquistados na área, com duas obras cinematográficas montadas a partir do desejo de resgate de imagens de arquivos pessoais: A Mulher de Longe, de Luiz Carlos Lacerda, e Dino Cazzola – Uma Filmografia de Brasília, de Andréa Prates e Cleisson Vidal. Filmes que, se nem sempre bem resolvidos, nascem fundamentais por trazerem imagens jamais vistas anteriormente, salvando os materiais do desgaste do tempo e devolvendo-os ao local para o qual foram originalmente produzidos: o projetor de cinema.

Em seus aproximados 70 minutos, A Mulher de Longe apresenta uma reconstituição narrativa com pretensões líricas sobre a restauração de um filme perdido e inacabado do escritor mineiro Lúcio Cardoso, autor de importantes obras da literatura nacional, como Crônica de uma Casa Assassinada, adaptada para o cinema por Paulo Cesar Saraceni – com quem também contribuíra com outros roteiros, como Porto das Caixas -, e também parceiro de Lacerda, diretor do longa, em filmes como O Enfeitiçado e Mãos Vazias. Filmado em 1949, este seria o primeiro e único trabalho de Cardoso como cineasta, mas foi interrompido por falta de dinheiro, sem jamais ser retomado. O material estava arquivado junto à Cinemateca Brasileira e foi recentemente descoberto, motivando Lacerda a, mesmo sem o roteiro original e munido apenas de fragmentos imagéticos, tentar montá-lo à sua maneira.

Há uma relação direta entre o cineasta e o escritor que dá a este A Mulher de Longe uma atmosfera de admiração passional. Além das imagens originais, Lacerda filma tomadas complementares – com um trabalho de câmera muito distante da proeza dos registros de Cardoso – e distribui pelo filme cenas do processo de restauração das películas originais e também de outros trabalhos roteirizados por ele. O desejo aparente é de fazer uma grande reverência ao escritor, que apesar de não concluir seu único projeto de cinema também canalizou sua expressividade artística na pintura. No ano em que completaria seu centenário de vida, o lançamento do filme presta uma homenagem a Lúcio Cardoso – apesar de a oportunidade de conferir as imagens registradas por ele ser bem mais interessante do que o filme de uma forma geral.

Já em Dino Cazzola – Uma Filmografia de Brasília, as imagens resgatadas pertencem ao cinegrafista italiano Dino Cazzola, que acompanhou a construção e os primeiros anos de Brasília. É o segundo filme da programação da Mostra a abordar a conturbada construção da capital nacional e suas cidades satélite – sendo o outro A Cidade é uma só?, com o qual o filme rende paralelos interessantes. Uma Filmografia de Brasília nasce a partir do delicado processo de restauração dos arquivos de Dino – as imagens iniciais em que latas dos filmes são abertas e vemos a maior parte do material completamente podre e inutilizável são particularmente fortes, mais ainda dentro de um contexto como o deste festival – e apresenta imagens também inéditas, guardadas há anos na casa do cinegrafista, e que mostram um recorte deste período fundamental da história recente brasileira.

O documentário intercala a história do próprio Dino com imagens de Brasília, sua construção e primeiros anos, todas elas sob a perspectiva do cineasta – apesar de alguns fatos serem trazidos ao filme através de materiais da imprensa da época, especialmente para contextualizar a ascensão da ditadura militar, sob a qual Dino operaria a partir de 1964. O trabalho de Andréa Prates e Cleisson Vidal possui um mesmo tom de veneração e contemplação também presente em A Mulher de Longe, fazendo um documentário limpo, com uma narrativa preocupada essencialmente com a prestação de serviço de resgate – o que de certa forma pode limitar a discussão daquelas imagens tão emblemáticas, tornando o filme mais importante como acesso a estes registros históricos do que como princípio para um debate político sobre a cidade e o período retratados. A restauração, porém, está feita.

Visto na 7a Mostra de Cinema de Ouro Preto

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Cidade Ameaçada (Roberto Farias, 1960)

Por Daniel Dalpizzolo

Há uma linha de filmes de crime toda desenhada sobre uma tradição melancólica herdada, principalmente, de obras como Crime e Castigo, de Fiodór Dostoiévski, livro dos mais representativos sobre as consequências da execução de um crime, e de uma forte concepção moral imanente a uma sociedade que se sente apta a julgar pessoas e envolve-las com rótulos marginalizantes. Uma vez que se cometa um ato condenado por lei você se torna um criminoso, e é esta pecha que o diferenciará eternamente dos “homens comuns”. Não existe ex-criminoso assim como não existe até então um ex-aidético, porque a crença geral aponta para uma incapacidade de correção que se constroi tal qual um impasse físico ou de saúde, e sua história permanecerá escrita nos arquivos policiais e judiciais e depoerá contra você tão logo for possível. Na mesma medida, o desejo de tocar a vida após o crime, como já abordaria Dostoiévski, choca-se muitas vezes com um peso moral inquebrantável, uma necessidade de esquecimento e de superação incapaz de ser desviada até que se espere a punição da justiça.

Cidade Ameaçada, de Roberto Farias, veste-se do que há de melhor destas histórias no cinema. Filmado em 1960, no período pré-cinema novo brasileiro, o filme acompanha Passarinho e sua quadrilha, bando que realizou diversos crimes na cidade de São Paulo e tornou-se implacável alvo da polícia e da imprensa. A estética agressiva, de fortes imagens em um preto-e-branco contrastado, rasgante, cheio de luzes e sombras e planos ágeis e bastante movimentados, dá ao filme uma dinâmica semelhante à das grandes histórias policiais da década de 30, como Scarface, de Howard Hawks, que narra a ascensão e o declínio de um gângster e traficante de bebidas. Já o peso moral atrelado à narrativa a partir do arrependimento de Passarinho e sua paixão pela personagem de Ewa Vilma, que o leva a tentar largar a quadrilha para constituir uma família e viver a vida dos sonhos, lembra também obras como os filmes norte-americanos de Fritz Lang, cuja discussão moral em torno do crime é ainda hoje uma das mais contundentes do cinema.

Neste que o próprio diretor considera seu primeiro filme “sério” (antes dele havia feito duas chanchadas, à época ainda desprezadas enquanto cinema), Roberto Farias monta uma narrativa  que mistura linguagem dos populares folhetins da época com uma estrutura narrativa clássica dos filmes policiais — gênero ao qual o autor retornaria outras vezes, como em Assalto ao Trem Pagador. O peso da história de crime e castigo de Passarinho é bastante intenso, e compõe um personagem (interpretado por Reginaldo Faria, irmão e constante parceiro do diretor) que possibilita um diálogo preciso com estas questões morais e existenciais tão caras aos filmes de crime. Da violência ao amor, do arrependimento à culpa, da necessidade de superação à pressão social e midiática que não permitem a Passarinho, depois de tantas capas de jornal, voltar a ser um “homem comum”: Cidade Ameaçada é uma ficção construída a partir de uma história real para colocar o espectador na pele do “criminoso” e sensibilizá-lo com seu drama opressor e angustiante, inerte diante de uma sociedade obcecada pela condenação.

Visto na 7ª Mostra de Cinema de Ouro Preto

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Entrevista com Adirley Queirós

Rever A Cidade é uma Só?, do Adirley Queirós, a céu aberto, na Praça Tiradentes de Ouro Preto, durante a 7ª CineOP, é uma experiência particularmente fascinante. Já havia visto o filme na 15ª Mostra de Cinema de Tiradentes, em janeiro, e revê-lo não só faz a admiração crescer ainda mais, mas reforça a certeza de que é um dos filmes brasileiros mais fundamentais dos últimos anos. Tive a oportunidade de conversar com o Adirley sobre o filme e outros assuntos que surgem através dele, e reproduzo o bate-papo aqui na íntegra, com pequenos cortes de palavras, frases ou ideias repetidas e algumas correções de fala, mas preservando a totalidade da conversa.

D: A Cidade é uma Só? se constroi basicamente como um documentário de invenção, com uma criação de personagens farsescos que se chocam com a realidade. A ideia era essa desde o princípio?

A: Esse filme surgiu de um edital sobre os 50 anos de Brasília. Quando a gente o escreveu para o edital, pensávamos em um documentário tradicional, mas já com algumas intervenções para quebrar com este real. Na concepção original tinha essa pegada. Mas quando a gente foi fazer o filme notou que só aquilo que tínhamos proposto enquanto tema do documentário não daria um bom filme, então começamos a colocar intervenções com atores. Os atores, na verdade, são os caras do nosso grupo de cinema, e a partir do momento em que a gente começa a gravar e sentir que talvez o filme estava com um formato mais quadrado, chamamos duas pessoas e começamos a propor a elas situações, uma tentativa maior de intervenção.

Foi pensada então uma forma de construir uma ficção para dialogar com esta realidade que vocês queriam filmar?

É. O filme passa por uma farsa. A forma como a gente queria contar a história teria que passar por essa possibilidade de uma pessoa estar se dispondo a encenar aquilo. São personagens que são quase vilões na história. Um é um personagem que vende lotes, é um grileiro de terras, mas um grileiro de terras pobre, um cara na correria do dia-a-dia, e o outro um cara que não consegue mais estar no meio da política, esta política que está no poder. A única forma de chegarmos a estes pontos dessa forma seria inventando, ou melhor, propondo a estas pessoas que não fossem elas, mas que jogassem todas as ansiedades delas dentro do filme.

Até porque a ficção muitas vezes é uma forma ainda mais eficaz de discutir a realidade, de atingir o discurso que você propõe. Estes personagens possibilitam a você fazer alguns choques dentro do filme que me interessam bastante, como a cena final do Dildu, quando o cinema que você está inventando se encontra dum jeito impressionante com um acontecimento real. Você acha que assim consegue propor uma discussão maior do que conseguiria com o documentário?

É engraçado, porque no filme nós temos três personagens principais: dois personagens de intervenção, que são enfim atores, e uma personagem que é real. Mas esta personagem “real”, eu sinto que ela, obviamente pelas negociações feitas para o filme, porque ela sabe o que tá acontecendo no filme, mas quando ela chega para atuar a história real dela, ela acaba fazendo tudo no nível da interpretação mesmo, classicamente falando. Ela tem noção da luz, da claquete, da ação do filme. E os caras que a gente propõe para representar, talvez pela nossa amizade, porque todo mundo estava muito dentro do filme, eles estão expostos ao filme, e o sentido de interpretação vai embora. Eles acreditam que aquilo é uma história real. E isso entra numa esfera política muito rapidamente. Fazer filme em Brasília, ou melhor, fazer filme fora de Brasília, em uma cidade satélite, já é uma conquista política. À medida que a gente coloca que o espaço político de Brasília vai muito além do planejamento do plano piloto, a gente já propõe uma discussão política. A gente queria realmente que houvesse uma discussão política no filme, queria intervir politicamente.

O próprio fato de vocês criarem esses personagens com um intuito de fazer esta discussão também já é uma posição política. 

Sim, estamos tomando uma posição política e histórica da cidade. A cidade que a gente vive, a Ceilândia, é uma cidade de 600 mil habitantes, que historicamente é a primeira favela de Brasília. Campanha de erradicação de invasões. Ela já nasce esquematizada como uma grande favela. Então eu cresci tendo a cidade como uma referência negativa sempre. Quando a gente constrói estes personagens, um personagem que cria um partido político e um personagem que vende lotes, já se cria um estranhamento. E o filme foi sendo pensado assim, no final, através destas situações. Aquela cena final que ele encontra a carreata do PT, toda ela foi esquematizada. A gente sabia que haveria uma passeata, conhecemos a cidade de cor e salteado. A gente sabe horário de sol, horário de limpo. Vimos mais ou menos como seria o trajeto e propusemos à equipe e ao personagem que encontrassem a carreata naquele exato momento. Com aquela luz e aquele plano aberto, porque sabíamos que ali eles chegariam como se fosse uma nave espacial, porque a campanha é assim: ela atravessa campos de futebol, atravessa as praças, passa por cima de todo mundo. E ele, no decorrer do filme, é um cara que faz uma campanha quase solitária…

Há um choque muito grande nisso, o Dildu largando o carro sem gasolina, tendo que seguir a pé, deixando santinhos pelas casas sozinho…. e de repente topa em uma esquina com aquela carreata monstruosa. É praticamente Davi x Golias.

Justamente. E eu vejo a grande questão política do filme bem nesse sentido. Os atores não sabiam daquela cena. Aquele carro é meu, aquele Santana. É o carro que eu ando no cotidiano, e aparece em todos os filmes inclusive. E ele não marca gasolina. Então eu coloquei pouca gasolina, os caras não sabiam quando iria acabar, mas estavam alertados de que em algum momento iria acabar. A equipe estava a postos para que, se acabasse, ela mantivesse a relação de mise-en-scène. Continuamos gravando. Os atores até olham para a câmera, porque quando acaba a gasolina eles ficam de fato agoniados porque acabou a gasolina, mas quando eles veem que a equipe também ainda está filmando eles percebem que é um jogo, mas eles internalizam tudo aquilo. A gente põe os personagens pra sentir o ambiente, pra sentir o estranhamento, a agonia que é estar na cidade e ter que pegar um ônibus de manhã. Aquela cena de Brasília a gente saiu 6 da manhã no carro e ficamos rodando até 2 da manhã do outro dia. A gente encheu dois tanques de gasolina e ficamos rodando em Brasília igual louco. Tomando pouca água, comendo pouca comida, pegando engarrafamento, pegando aquelas pistas grandes…E isso começou a trazer para os personagens uma agonia muito grande. Todo dia a gente convive com aquilo, mas quando a gente se propõe a fazer uma aventura pela cidade a gente sente que ela é opressora.

O filme acaba então se tornando assim um documentário sobre a sua própria realização, o caráter documental se vê principalmente ali. É criado, mas não é encenado…

Não, não tem essa de decupagem… a mise-en-scène é justamente a possibilidade de interpretação desses personagens… O que a gente propõe é assim: a partir deste momento, você é fulano. Internaliza fulano. Pesquisa fulano. Você é fulano a partir deste momento pra mim. Então o que você faz, como você faz, como você reage com a câmera, ou como você reage com as situações que a direção e a equipe propõem, é outra coisa. Eu dava pra eles os motes e eles reagiam. A agonia surgia nesse sentido. A gente propunha situações, a gente cercava as situações, mas não tinha texto pra eles falarem. Era muito livre o texto. A gente tinha uma câmera, com dois lapelas, e dentro do carro eu fazia o som, porque não tinha espaço pra duas pessoas, era eu e o cara da câmera. O cara da câmera com uma 5D, atento com tudo. Todo filme foi assim. Eles tinham muita liberdade pra puxar as coisas. Obviamente que eu intervia o tempo todo pra falar “fala sobre isso, comenta aquilo, entra aqui…”, porque eu sabia que se entrasse à direita ou à esquerda ele entraria em uma rua mais esburacada, ou uma rua mais extensa… e deixava o personagem reagir àquilo. Mas não tinha texto ensaiado.

A criação das situações então acontecia por você, pelos atores… era um processo coletivo e com liberdade.

Era coletivo mesmo. O personagem do candidato a deputado, por exemplo, tem um discurso muito ferrenho. Tem uma cena que não usamos que é uma sequência que eu quero montar um dia, porque é uma cena muito forte, é a coisa mais linda que tem. O personagem tá caminhando e a câmera caminhando com ele por uma feira da Ceilândia, chamada Feira do Rolo. É uma feira tensa, no sentido de que a polícia dá muito em cima. Mas é uma feira muito popular. E aí a gente faz um discurso, e as pessoas começam a acreditar, e aquilo vira um cortejo. Só que a gente não conseguiu montar, porque ela era muito forte e roubava o filme. Depois disso não tinha como existir mais nada. Nem no final caberia, porque o final não poderia acabar tão over assim. E nessa cena, por exemplo, havia também obviamente as pessoas que se revoltavam com o discurso dele. E as pessoas entravam pra briga. Tem uma cena que é assim, o cara querendo brigar com ele e eu entrando no meio e tudo isso sendo gravado. A gente também brigava pelo personagem, tava de fato acreditando nele. Inclusive tudo o que o Dildu fala ali eu também acredito. O corpo a corpo no filme é esse mesmo. Existia uma relação de hierarquia obviamente, por conta da direção, mas a gente mesmo dava segurança ao próprio filme. A gente tomava as dores do personagem. O personagem do Dildu é um personagem muito forte, um personagem que se expõe muito, que é muito marcante. As pessoas não chamam mais o cara (o ator) de Dilmar, chamam ele de Dildu agora. E isso também é foda pra ele, eu acho. Ele quer seguir a carreira de ator. Ele tá comigo no meu próximo projeto também.

Provavelmente por ser um documentário as pessoas acabam guardando mesmo que é ele, que é o Dildu. Foi uma incorporação tão forte que acabou se firmando o personagem na realidade…

É! Dildu é Dilmar Duraes, 77-2-23 é o ano de nascimento dele. Ano, mês e dia do nascimento dele. Ele criou uma relação de tudo que tava ao redor dele, mas não é ele, obviamente. Mas ele traz tudo pro filme. Ele sempre traz pro filme, por exemplo, a questão racial. Ele sempre traz pro filme a agonia com os poderosos, ele tem muita dificuldade de se relacionar com o poder. E tudo isso tá no filme. E eu acho que isso é um documentário, sabe. Como nossa equipe se relaciona com o poder. Como a gente pensa o poder. Isso tudo está ali.

E é um filme que aborda não apenas os temas que se discute através dos personagens, do candidato político se largando sozinho na campanha, mas também durante isso muitas questões presentes nas grandes cidades. O problema da habitação, a segregação social, essa separação entre a periferia e os grandes centros.

Justamente. O filme vai além da gente, da nossa leitura, da pretensão de dominar o filme. A gente não domina um filme. A gente solta um filme. E ele às vezes engole a gente também. Esse filme, por exemplo, sempre que eu vejo ele eu vejo um monte de símbolos que estão ali…. ele passa na Ceilândia. E as pessoas falavam coisas que eu não imaginava que elas iam falar. O X do personagem, ele andava com a camisa que tinha um X, que é relacionado com a história que a Nancy conta. Quando teve a campanha de erradicação de invasões de Brasília, era assim: os caras iam na tua casa e marcavam um X na porta. Então esse cara tinha que sair voado, se não saísse o governo derrubava. Então as casas que tinham um X eram as casas condenadas, ou, em uma outra perspectiva, tinham sido “escolhidas” para sair da cidade. Quando a gente teve um debate com pessoas mais velhas, elas se emocionavam muito com o X, porque, minha interpretação, o símbolo era muito forte ainda. Esses símbolos que tão além da gente são muito fortes no filme. Tem muitas coisas que podem passar batido pro público comum, mas pra aquele perímetro da cidade são muito fortes.

O filme se passa na Ceilândia. Vocês têm um grupo de cinema lá, é isso? Todo mundo que fez o filme é de lá. Então existe uma leitura do espaço em que vocês inserem os personagens que é muito forte. Talvez vocês até nem tenham a intenção direta disso, mas por terem vivido lá dentro, saberem o preconceito que é ser de lá e viver em Brasília. Você acha que isso dá uma amplitude fundamental ao filme?

O meu ambiente seguro é a Ceilândia. Eu sempre vivi lá e vivo lá até hoje. Eu caminho muito pela cidade. E ela é muito contraditória, é uma cidade muito grande. Tão dizendo que em 2012 ela vai ter 1 milhão de habitantes. Então a cidade cresce muito, porque é uma cidade que, apesar de ser uma cidade de quebrada, as pessoas focam muito nela, então ela tem alguns benefícios. E ela começa a ter uma contradição agora, porque ela começa a verticalizar, então ela vai virar uma grande favela, com grandes prédios, com essa coisa da expeculação imobiliária, da explosão imobiliária. Então vai criar na cidade um novo apartheid. Aquelas pessoas que construíram a cidade, que lutaram pra cidade ficasse aquilo que é, elas não conseguem mais segurar a especulação. Porque chega um cara por exemplo com 500 mil reais e compra a tua casa. Daí você vai pra outra favela, que é Águas Lindas. Então o processo continua.

A própria periferia começa a sofrer esse processo de verticalização e criar patamares de poder e segmentação dentro de si…

Na cidade agora o que é mais clássico são os condomínios fechados. Aí tu imagina, um condomínio fechado com apartamento que vale R$ 200 mil. Aí começa, na minha leitura, a criar esses guetos e a cidade começa a ficar mais tensa. Porque é os moleque doido fora dos condomínios e os condomínios com as pessoas da classe média.

É uma leitura das cidades modernas que o Fritz Lang fazia lá em 1926 ou 27 com o Metropolis, com os poderosos habitando os andares mais altos e a classe trabalhadora lá embaixo. Isso é uma consequência da própria estrutura do poder, não é?

É verdade. E como a gente queria falar sobre isso… a gente não queria falar de uma forma didática. Queria falar com isso na pretensão do cinema. Cinema é fotografia, é som, é ritmo… Então a gente queria fazer isso com muitos planos abertos, numa perspectiva quase de filme de faroeste, de filme de bang-bang, que são os filmes que estão no nosso imaginário de adolescente da cidade. Então a gente usa muito esses planos abertões e [lente] grande angular, que dá uma tensão… e a cidade sempre presente. O filme que a gente tá fazendo agora, é um documentário mas também é uma ficção científica. Estamos filmando por trás da cidade. Porque a Ceilândia é assim, a gente sempre tem uma perspectiva de frente, porque as vias só passam em frente. Então mesmo as quebradas em frente é tudo muito arrumadinho, mas por trás dela é quebrada de favela mesmo. O que a gente faz, na verdade, é filmar a cidade lá por trás dela, nessa perspectiva  de ficção científica. A cidade fica muito mais tensa, mais opressora, grandiosa. E eles queriam que [em A Cidade é uma Só?] a gente contasse essa história da redenção, a história do governo. A cidade é legal, a cidade é isso e é aquilo. A gente conta a história da cidade pela história dos caras da correria. Não são os caras que são servidores públicos, são os caras do corre. Então isso dentro da cidade às vezes causa estranhamento. Às vezes falam “pô, você conta a história da cidade, por esses caras que não construíram a cidade” — na cabeça deles. Como não construíram a cidade? Eles queriam que a gente contasse uma história edificante. “Ah, fulano de tal chegou em tal ano, foi um lutador….”. E foi mesmo. Só que hoje eles, na minha leitura, representam certo atraso. Assim como eu daqui cinco anos provavelmente vou ser um reaça também. Acho que a idade com o tempo joga a gente nessa coisa do reaça. São caras fantásticos, são meus amigos, mas eu não quero mais contar a história através da perspectiva deles.  Eles narram a história de maneira que parece que a cidade se resolveu. Mas ela não se resolveu, não resolveu nada. De repente se resolveu pra mim, que tô podendo fazer um filme, tô viajando… mas pra maioria das pessoas não se resolveu, cara. Não dá pra ser cínico de tal maneira. Na minha modesta leitura o documentário tradicional caminha pra esse lado.

Os documentários mais tradicionais geralmente são montados através das lembranças dos personagens, e as pessoas naturalmente costumam lembrar das coisas duma perspectiva positiva. Ninguém quer lembrar do que é ruim.

E a gente queria fazer o filme duma forma mais dinâmica. Que a gente se representando consegue colocar assim… “Tá vendo como o diretor é filho da puta? Tá vendo como o diretor também é cínico? Como o diretor também fala merda?” E é isso… tô falando merda no filme porque eu falo merda mesmo. Não tô encenando falar merda. Porque no set de filmagem é assim, e eu sempre faço isso.

Vocês trabalham de um jeito bastante extrovertido, né? O filme dá essa sensação de que vocês estão se divertindo muito fazendo cinema. E isso contamina o filme. É acima de tudo um filme muito divertido, que faz rir muito, que propõe esse debate político através duma forma que conquista as pessoas. Isso é uma consequência também do próprio jeito que vocês encaram o cinema?

Sim, acima de tudo, pra gente cinema é diversão. A gente vai pro set e fica rindo. A gente fala muito que se não tá rindo tem alguma coisa de errado. Porque o cinema é alegria, né. É uma profissão, e a gente encara como uma profissão, que a gente vai se divertir, vai curtir e vai dizer o que a gente quer da forma mais honesta possível. Pode tá equivocado, mas é o que a gente pensa. Tem que ter verdade. Se é drama, tem que ter verdade. Se é horror, tem que ter verdade. A gente tem que falar bem assim “não, cara, isso podia acontecer. É um filme, mas pode acontecer”. A gente parte dessa premissa: o cinema tem que construir uma verdade. E essa mise en scène que a gente vai construir tem que estar lá. Pra que de repente a gente se aprimorar de técnica, de equipamento, se empoderar… porque é isso, se você faz um filme e você é reconhecido, você se empodera.. . mas pode ser problema também…

Você pode acabar se tornando reaça também…

É, justamente, o grande problema é isso: se tornar reaça e criar uma presunção. No Brasil, por exemplo, tem tanto curtametragista bom, tanto de cara bom, então fazer um longa é um privilégio. Não é porque você é pior ou é melhor. Não é igual no futebol, que você tá nos juniores e vai pro profissional. É consequência. Tem tanto cara bom aí que poderia fazer filmes melhores do que a gente faz, e a gente pode citar, como os caras da Filmes de Plástico… enfim, tem um monte de cara que tem uma puta ideia de cinema e ainda não fez o seu longa. Hoje o grande problema é cair nessa presunção de que há um patamar diferenciado entre curta e longa. Porque na essência a produção é a mesma, o que vai diferenciar é a grana, porque pra um é maior e outro menor…

Você falou que fez o filme com uma 5D. Hoje em dia a facilidade de acesso a câmeras de vídeo digitais tem proporcionado que, por exemplo, uma pessoa da Ceilândia tenha uma câmera de vídeo e possa fazer um filme de lá, não com uma equipe de produção levando seus equipamentos pra favela, fazendo um filme sobre a favela com a imagem que já tinham lá de fora. Uma coisa em comum entre o seu filme e os filmes da galera da Filmes de Plástico é que eles nascem ali no coração da periferia. Vocês tão filmando vocês mesmos.

Os filmes que eu mais me identifico hoje são os filmes da Filmes de Plástico. Não só por essa questão territorial, mas pra mim Contagem é igual à Ceilândia, tem muito a cara. Além dessa identificação territorial os filmes dos caras tem isso, a narrativa dos caras é muito rápida, é gostosa de ver. Você vê um filme como Fantasmas, é uma coisa fantástica… você ouvir o som dos caras, o diálogo deles. E isso é proporcionado também por essa capacidadede gravação, de captação. Tem o áudio e tem uma camerazinha de longe gravando as coisas. Mas é um puta cinema, um cinema fantástico. Eu acho que é importante se apropriar dessas coisas, tem que se apropriar de todos esses elementos do digital, mas não pode ficar só nisso. É outra questão que pra gente é muito complicado. Porque você ter acesso ao que há de melhor na produção é político. Se você quer fazer um filme em película, tem que tentar fazer em película. Hoje nem tanto, mas há cinco anos atrás pra você entrar em um festival grande você tinha que entrar em película. E isso é político. Hoje a gente consegue entrar com digital, mas mesmo entrando com digital você tem que pensar que o digital também tem N possibilidades. Você pode ter uma câmera mais cara, não é problema ter uma câmera mais cara.

Não se pode transformar o digital barato numa posição política de trabalho.

É, senão acaba virando uma questão que vai depor contra a gente, dos caras falarem bem assim “ah, dá R$ 15 mil pros caras da favela que eles fazem com R$ 15 mil”. Mas tem R$ 1 milhão ainda pra eles fazerem filme.

E enfim, vocês têm uma equipe pra pagar, têm custos pra bancar… O cinema é algo caro naturalmente, porque trata de encenação. A técnica de cinema é cara. Isso não é algo que vai mudar…

E como que você pode fazer um grupo se o grupo não consegue sobreviver disso? Imagina assim, até quando a gente vai ter energia pra fazer cinema como hobby? Cinema não é só hobby, cinema é intervenção política pra gente. A gente sabe que quando faz um filme a gente tá comprando briga pra sempre. Toda vez que a gente passa um filme em Brasília a gente tem uma discussão, tem uma briga, tem uma pontuada. A gente passa muito filme em universidade. E é engraçado como os caras da universidade querem encarar a gente com a perspectiva do pobre. Eles não conseguem imaginar como que a gente quer tirar onda com o Niemeyer. Tiro onda mesmo, porque o Niemeyer pra gente não quer dizer nada. Ele tem toda a história dele, tem a construção de Brasília… mas eles têm que entender que Brasília pra gente não é mãe, é madrasta. A gente não tem que ser feliz com o pai da madrasta. Não é meu avô, não tem porra nenhuma de avô, o Niemeyer. Brasília pra gente não é imaculada. Não tem que ser imaculada, tem que botar fogo naquela porra. O primeiro plano do filme é pegando fogo o mapa de Brasília. Tudo isso a gente pensou, a gente tá aqui pra agredir Brasília. Porque ao mesmo tempo que a gente odeia Brasilia, no sentido de que a gente cria um discurso pra odiar Brasilia, a gente só existe por causa dela. A gente só tem essa possibilidade fílmica política porque tá perto de Brasília. Então ao mesmo tempo em que a gente nega Brasília, a gente tá reafirmando Brasília.

Ela faz parte de vocês, vocês fazem parte dela, e não dá pra negar isso. Mas vocês também não têm que se privar de dar o ponto de vista de vocês sobre ela.

Se você olhar o conjunto de Brasília, ele é extremamente reacionário. É burocrática, cheia de servidor público. É racista. Se você olhar o número de negros  que tem em Brasília… negro que trabalha em Brasília é garçom. E isso inflaciona todo o déficit. Se você mora em quebrada você ainda assim vive uma vida muito difícil. Tem toda essa dinâmica que influencia no nosso olhar sobre Brasília.

Isso acaba atraindo o olhar não apenas de pessoas de Brasília, mas de quem está fora de Brasília e vê o filme. “Ah, Brasília é uma cidade muito bonita, Niemeyer e tal….”. Mas existem todos esses problemas e geralmente isso tá muito maquiado, as pessoas de longe não percebem.

É, e mesmo assim existe muitos caras massa em Brasília, tem muitos caras que a gente respeita lá… Mas eles querem que a gente construa algo pra se agregar a Brasília… “Eles são um pessoal massa, da quebrada, eles tão construindo alguma coisa…”. Parece que a gente tá construindo alguma coisa pra morar em Brasília, pra ser agregado.

Como se isso fosse uma espécie de evolução, vocês estarem passando de moradores da Ceilândia pra moradores de Brasília.

Exatamente. E não é evolução pra gente. No próximo filme nosso um homem vem do futuro investigar um crime na Ceilândia. O filme é uma espécie de ficção científica. Pra você atravessar a fronteira pra Brasília, tem que ter passaporte. E isso é algo que está estabelecido. A gente transforma a segmentação sutil que existe em uma segmentação física. Pra você passar pra Brasília você tem que ter passaporte. Brasília é uma cidade kafkiana. Você não vai a Brasília e anda em Brasília. Uma vez eu saí e bebi muito, enchi a cara, e o carro quebrou. O pneu furou. Eu precisava encontrar alguém que me emprestasse uma roda de pneu. As pessoas corriam de mim. Eu entrei num daqueles prédios e não tinha ninguém, porra. Não tinha ninguém embaixo. Obviamente que era todo habitado, mas não tinha ninguém embaixo. Os filmes que a gente faz tem muito isso, de tentar dialogar com o estranhamento que a cidade causa.

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Pra Frente, Brasil (Roberto Farias, 1982)

Por Daniel Dalpizzolo

É possível hoje, com um distanciamento histórico confortável, pensar a ditadura militar brasileira pós-golpe de 64 como ambiente inspirador para a sustentação do cinema de gênero, especialmente o thriller. Há o clima de paranoia instalado naturalmente pelo embate de uma força política totalitária versus a contraforça que se forma em silenciosa oposição, velada e submundana, porém prestes a explodir a qualquer momento. Há também a possibilidade da violência, das torturas físicas e psicológicas, das perseguições e cenas de ação que emergiam deste conflito ideológico, símbolos de um cinema narrativo popular alicerçados com preceitos básicos do suspense e da ação. Em Pra Frente, Brasil encontramos, em um momento quase póstumo do período (poucos anos antes da eleição de Tancredo Neves, primeiro civil a assumir a presidência nacional desde 1964), um ponto histórico interessante do cinema brasileiro, em que as feridas da ditadura são expostas sob uma perspectiva até então pouco usual, e proporcionam um diálogo aberto entre estes códigos do cinema narrativo e uma realidade ainda não superada — uma coragem necessária e intrínseca ao espetáculo, mas por vezes também incompreendida ou coagida pelo discurso moralizante que costuma proteger estas memórias. O filme, embora produzido em 1982, foi liberado da sua interdição apenas no ano seguinte, em mais uma vitória da arte sobre a censura.

Se é nessa operação de assimilação da ditadura através do filme de gênero e na abordagem direta realizada do período que encontram-se os grandes atrativos deste trabalho de Roberto Farias, sua encenação insuficiente impossibilita ao filme transmitir-se hoje com a mesma eficiência que, presume-se, teve no período do lançamento, quando, mais que um resultado final enquanto cinema, via-se um golpe cinematográfico de importância factual. Os elementos mencionados estão todos ali, porém esvaziados de força narrativa. Na indefinição de um ponto de vista, sabemos que Jofre, o homem sequestrado e torturado por engano sob acusação de subversão  (não pelo Estado, mas por um grupo financiado por empresários) está vivo, embora os verdadeiros protagonistas sejam Miguel, seu irmão, e Marta, sua mulher (Jofre some do filme na maior parte do tempo, aparecendo brevemente para fazer reafirmações sobre sua condição apolítica e sobre a injustiça da situação). As cenas em que seus familiares mergulham na paranoia, são perseguidos ou estão sob ameaça da polícia ou dos grupos, duram muito menos que o necessário para que se estabeleça uma mínima relação de tensão. A construção da sensação representativa da paranoia necessária para o funcionamento do thriller político é praticamente ignorada, e boa parte da primeira hora é preenchida por diálogos e situações frágeis e pouco interessantes, cuja leitura não ultrapassa o superficial (há também as insistentes e banais associações entre a Copa do Mundo de 1970, ano em que se passa a história, e a violência censurada da mídia).

É nos minutos finais, ao partir do suspense para a ação, que estão as melhores cenas de Pra Frente, Brasil — funcionando, enfim, independente da sua relação com a ditadura e com o contexto de produção, e, guardadas proporções, lembrando a potência de um clímax como o de Bastardos Inglórios, filme em que Tarantino também opera sobre um delicado tema histórico e explorado raramente com tamanha subversão — embora haja diferenças determinantes, pois se a subversão em Pra Frente, Brasil é gerada pelo golpe de produção dentro de um sistema ainda contaminado pela própria postura política que critica, em Bastardos há um grande distanciamento de sua produção com a Segunda Guerra e um desejo de fazer do cinema um campo para  vingar a história, e não para retratá-la/reproduzi-la. Ao final de Pra Frente, Brasil, Roberto Farias incorpora elementos de western e road movies para construir um grande e espetaculoso clímax, que inicia com o cercamento da casa na qual estão refugiados os familiares de Jofre, composta por tomadas tradicionais de faroestes, e termina em uma violenta perseguição de carro na autoestrada — culminando finalmente em uma explosão de slow motions, num conjunto de planos que a habilidade de Farias para o registro da ação sustenta muito bem, e que não encontra precedentes no restante do filme.

* Visto na 7ª Mostra de Cinema de Ouro Preto  

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Violeta Foi para o Céu (Andrés Wood, 2011)

Por Fernanda Canofre

“Escribe como quieras, usa los ritmos que te salgan, prueba instrumentosdiversos, siéntate en el piano , destruye la métrica, grita en vez de cantar, sopla la guitarra y tañe la corneta. Odia las matemáticas y ama los remolinos. La creación es un pájaro sin plan de vuelo, que jamás volará en línea recta.”

(Violeta Parra)

Quem nunca ouviu falar da chilena Violeta Parra, pode começar por aqui. Uma tela preta. Uma voz de mulher avisando Carmen Luísa que ela deve se apressar porque logo as pessoas vão começar a chegar. No quadro seguinte, a tela preta dá lugar a um plano fechado de um olho verde cansado. Ele não olha para a câmera, olha para milhas além do que está ali. Entra então a imagem de uma galinha solitária em uma mata coberta de neblina. A galinha parece não saber se sai à procura de algo ou se fica à espera de alguém que a encontre. Na mesma mata, uma mulher de saias longas, cor de violeta, vem caminhando. Esta é a forma de Andrés Wood, diretor do aclamado Machuca (2004), iniciar a sua versão da biografia de um dos maiores símbolos da música e da cultura chilena. Como um pássaro, metáfora explorada na película tanto visualmente quanto nos diálogos, Violeta migra muitas vezes de endereço, mas migra também de vida. Em uma entrevista, Wood conta que no imaginário popular existem muitas Violetas, e que cada fã, cada pessoa que conheceu sua história e/ou seu trabalho, sabia a representação que queria ver na tela. A representação de personagens que são lendas vivas no imaginário popular é uma das tarefas hercúleas do cinema, e na maioria das vezes se transforma em caricatura barata do personagem. O curto tempo para contar uma vida, a caracterização, a escolha de elenco, tudo é armadilha que parece cair na condenação desse tipo de projeto. O acaso da consagração é como sorte nas cartas. Mexer em um “corpo” do qual todo o povo se sente dono é arriscar a cada frame. E a direção de Wood parece consciente disso. Com Violeta Foi para o Céu, roteiro baseado no livro do filho da artista, Angél Parra, e escrito em parceria com o mesmo, o diretor encontra uma maneira de ter todos os fragmentos de Violeta Parra e, ao mesmo tempo, tê-la por inteiro em menos de duas horas de filme. Como em uma das tapeçarias de La Parra, o diretor borda em película a Violeta mãe, cantora, folclorista, pintora, artista engajada, chilena, mulher, costurando todas elas em um ritmo que prende o interesse do espectador pelo destino dos olhos verdes cansados.

Nos primeiros dois minutos de filme, já temos uma narrativa fragmentada em quatro tempos, formando a estrutura na qual se apoia a história.  Temos o tempo do olho verde em close; Violeta em uma entrevista para a televisão chilena; Violeta adulta, viajando com o filho e um gravador, registrando músicas populares do Chile (quase uma versão dos Irmãos Grimm da Cordilheira andina); e a Violeta criança. Dessa última, aprendemos no olhar o que a Violeta adulta, que cruza o país em uma trupe de shows com a irmã Hilda, vai verbalizar: “a vida não é uma festa”. Nas cenas da infância de Violeta, Wood estabelece a cumplicidade com aquele que seria a relação mais duradoura de sua vida: o violão. Junto com os irmãos, acompanhando o pai em apresentações nos botecos, que parecem servir apenas para pagar a conta das bebidas consumidas por ele, Violeta, sem falar, encontra no violão a forma de se comunicar e de se impor ao mundo. Quando o pai flerta com uma mulher, ela agarra as cordas e para a música. Quando ele imita um macaco para a diversão dos presentes, como um bobo da corte, é batendo o violão contra o piano que Violeta calada interrompe a humilhação. O instrumento, que ela aprendeu a tocar apenas observando os outros foi primeiro seu companheiro, depois sua forma de se expressar. Como uma menina que carrega uma boneca, Violeta aparece-nos a carregar o violão, arrastando-o no chão, “sentando-o” ao seu lado, só aos poucos, quase ao acaso, descobre que daquelas cordas seus dedos podem fazer sair um som. Durante a entrevista, a artista Violeta Parra, já reconhecida em seu país, responde ao entrevistador que pergunta: “O que seu pai lhe deixou?”. Violeta: “A mim? Nada”. Ele insiste: “Nada?” Ela confirma: “Nada. Bom, me deixou um velho violão”. O entrevistador continua: “Apenas um violão?”. Violeta explica: “Sim, ele perdeu tudo jogando cartas. Não me deixou nem terra, animais ou propriedades. Nem nada de nada”. O entrevistador, que parece não ter conseguido a resposta que queria, tenta outra vez: “Mas seu pai era professor. Algo mais ele tem que ter deixado!”. Violeta devolve: “Para que, se o violão que ele me deixou veio cheio do canto dos pássaros?”.

Os pássaros, a metáfora visual das aves, tecem a essência de Violeta no filme. Como a cena do início, mencionada anteriormente. A cena da galinha perdida na mata ecoa na lembrança versos do poema “Tecendo a manhã”, de João Cabral de Melo Neto: “Um galo sozinho não tece uma manhã: ele precisará sempre de outros galos. De um que apanhe esse grito que ele e o lance a outro; de um outro galo que apanhe o grito de um galo antes e o lance a outro; e de outros galos que com muitos outros galos se cruzem os fios de sol de seus gritos de galo, para que a manhã, desde uma teia tênue, se vá tecendo, entre todos os galos”. A vida de Violeta Parra foi essa de coletar e repassar o canto para outros galos, em busca de tecer um amanhecer para o povo de onde saiu. Era sua forma de mudar a realidade social que a incomodava, mas também de buscar algo pessoal que a vida ainda não havia lhe deixado encontrar. Tornou-se uma das fundadoras do movimento Nueva Canción chileno, que teria papel importante na campanha de Salvador Allende e seria reprimido mais tarde por Pinochet, depois do golpe de 1973. Um movimento que teve versões próprias em vizinhos latino-americanos e na Península Ibérica, nas pátrias que viviam sob regimes de ditaduras. Mas isso só aconteceria após a morte de La Parra, em estações que ela não viveu para ver. A vida da índia mestiça, nascida no ano da Revolução Bolchevique, foi o toque de tambor para o que ainda estava por vir. Como o galo de Cabral de Melo Neto, que tem a missão de ouvir e repassar o canto, Violeta viajou pelos recantos do Chile atrás de “galos” perdidos, coletando composições populares que ajudassem a revelar a identidade chilena, e que, sem registros, poderiam acabar por se perder no tempo e na extinção de seus autores. De violão em braço, caderno nas mãos e o gravador carregado pelo filho, Violeta queria registrar as alegrias e as dores do povo ao qual também ela pertencia. Coisas que ela mesma sentiu nos quarenta e nove anos que a repartiram em muitas Violetas.

Andrés Wood, ajudado pela atuação da atriz Francisca Gavillán, encontra uma harmonia rara de se obter em cinebiografias. Não há um traço dominante em sua Violeta. Se a vemos determinada, enquanto artista, encabeçando as performances musicais de Las Hermanas Parra, batalhadora com os filhos a tiracolo, a vemos também vulnerável e sem forças em outros momentos. Nas cenas do relacionamento com o musicólogo suíço, Gilbert Favre, por exemplo, encontramos uma Violeta possessiva e agressiva. Porém, em outras, conhecemos seu humor peculiar, que ajudava a expressar sua verdade mesmo em situações adversas. Como em um dos trechos da entrevista na televisão, no qual Wood toca na visão política da artista. O entrevistador pergunta para a cantora se ela aceitou o convite para se apresentar na Polônia. Quando ela afirma que sim, ele, freando uma reação indignada, solta: “Você sabia que este é um país comunista?”. Violeta prontamente responde: “Exatamente por isso eu aceitei”. O entrevistador então questiona: “Você é comunista?”. Violeta dispara: “Não, por nada! Quem te disse isso? Eu sou tão comunista que se me acertarem um tiro, meu sangue sai vermelho!”. O entrevistar, já se entregando ao riso, segue: “A mim também o sangue sairia vermelho!”. E Violeta devolve: “Que bom companheiro!”, apertando a mão em um cumprimento. Porém, o grande trunfo de Violeta Foi para o Céu é conseguir manter a sensibilidade, sem cair em fórmulas velhas de dramalhão. A morte, tratada sem afetação, não é um tabu, é apenas parte natural da vida. Quem se depara com ela sofre, porém a própria vida se encarrega de lembrar que o tempo não para com os pulmões de um galo apenas. Andrés Wood consegue inclusive resistir à tentação de utilizar Gracias a la vida, um dos grandes clássicos de Parra, composto apenas um ano antes de sua morte, que é visto como um hino de despedida.

Violeta Foi para o Céu é um relicário da identidade latino-americana. Coprodução chilena, argentina e brasileira, recorda o legado de Violeta Parra em uma época que o Chile volta a ver movimentos estudantis e de contestação em suas ruas, e que o mundo vê o retorno de protestos daqueles que não aceitam mais estar de fora do sistema. Porém, mais do que isso, o filme apresenta a obra de uma das grandes folcloristas da América Latina para uma nova geração. Angél, acompanhando a mãe, caminhando por um deserto, atrás de uma dona Miguelina que pode ensiná-la a cantar, pergunta o que vai acontecer se não a encontrarem. Violeta, apesar de ter certeza que a encontrará, responde ao filho: “vai ser uma pena, porque ninguém se lembrará dela”. A velha verdade de que ao serem esquecidos, os mortos morrem uma segunda vez. Coisa com que La Parra, que se foi há 45 anos, não precisa se preocupar. Aqui, em um filme, Violeta Parra está mais viva do que nunca.

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As Hiper Mulheres (Carlos Fausto, Leonardo Sette, Takumã Kuikuro, 2011)

Por Kênia Freitas e Geo Abreu

Se podemos pensar o documentário como um campo é justamente porque ele não cessa de fazer uma dobra dentro do universo cinematográfico como um todo. Meta-cinema por natureza — sem necessariamente cair no terreno da metalinguagem e da autorreferencialidade. E é nesse sentido que podemos pensar a experiência de assistir As Hiper Mulheres.

De partida, o filme já se coloca no terreno do entre: o longa-metragem produzido pelo projeto Vídeo nas Aldeias é uma co-realização entre diretores indígenas e não indígenas. Temos curto-circuitada, assim, a relação de quem filma com quem é filmado, e também o próprio local do espectador diante do filme. Na primeira instância, percebemos um filme híbrido, que mistura momentos de pura observação silenciosa — em que impressiona a transparência e a entrega dos corpos filmados —, com outros em que a presença da câmera se faz sentir pela performance dos corpos diante dela.

Essa dubiedade (proximidade/distanciamento) na construção da narrativa vai refletir diretamente na experiência espectatorial do filme: quem fala? Sobre o que? E para quem? Não há pressa em responder estas questões. Cabe ao espectador procurar posicionar-se diante das imagens a que assiste, caberá à sua relação exterior/interior/intermediária captar as nuances da narrativa. O local do “outro” – fetiche do documentário e da etnografia – não é um ponto de referência. Esse deslocamento se dá não por uma auto-etnografia e sim pela experiência partilhada, pela indiscernebilidade dos sujeitos, objetos e estratégias narrativas como princípio.

É assim, aos poucos, que nos enrendamos a trama do filme. Ele inicia-se com o pedido de um tio ao seu sobrinho para que realize o Jamurikumalu, maior ritual feminino do Alto Xingu (MT). O velho justifica o seu pedido pela possibilidade próxima da morte da esposa idosa, uma das poucas mulheres do grupo que sabe os cantos do ritual. Para complicar a missão, a outra mulher que conhece as canções encontra-se gravemente doente. Assim, enquanto acompanhamos os preparativos e ensaios para o evento, inquietamo-nos também com a sua própria possibilidade de realização.

Nesse sentido, ainda que As Hiper Mulheres seja um filme essencialmente sobre os corpos de seus personagens — da sua transfiguração, da passagem do cotidiano para o ritual -, é pela oralidade das narrativas e na sua transmissão geracional que começamos a adentrar a sua cosmologia. Até porque memória e experiência se confundem, nesse caso. Assim, vemos o ensinamento dos cantos que se dá pela audição e repetição constante por parte dos aprendizes: porque é necessário não decorar, mas incorporar a melodia — é preciso acordar de madrugada pensando naquele ritmo, como explica uma das anciãs. Como uma coreografia, ou um ritmo, é necessário que as palavras tornem-se experiência em ato. Os cantos e o próprio ritual só existem como ação, constantemente rememorados, transmitidos e reinventados como fabulação ou, até mesmo, como farsa — como entrega um dos entrevistados ao falar sobre apresentações fabricadas para branco ver.

Mito Música Tradução

Hiper-, “posição superior, excesso”, do indo-europeu *uper-, “sobre”, usado como intensificação de super: representa, modernamente, um nível quantificador acima.

É via imaginário pop, com seus heróis a três por quatro, que termos como ‘super’ ou ‘mega’ se veem autorizados para uso comum. De acordo com isso, esses prefixos costumam indicar uma condição sobrehumana, caracterizada por forças imensuráveis e condutas morais ilibadas, acompanhando assim ações muito nobres e heróicas, como é de se supor.

No caso das mulheres Kuikuro, a hipercisação de sua condição feminina não vem acompanhada por nenhum poder sobrenatural, ainda que seja possível ouvir dos homens da aldeia, sentados na platéia do Jamurikumalu, que sentenciam estarem diante de espíritos vestidos de hiper mulheres. Em pleno trabalho comunicativo, ativado através do adornamento do corpo e da cadência dos cantos, o transe as empodera de algo muito distante, delas e de nós: o contato com os antigos; a busca do equilíbrio entre vida e morte; a celebração de uma vida inteira em comunidade que agora pede licença pra se retirar.

À medida que nos aproximamos do cotidiano da aldeia, a representação das primeiras cenas dá lugar à naturalização das relações. Seja entre pais e filhos, irmãs, esposas e maridos, o que vemos é uma liberdade muito familiar. Do pai que diz que a filha canta mal à esposa que diz ao marido que mesmo doente precisará cuidar do bebê porque ela foi chamada a cantar pela presumida morte da anciã; e isso é coisa que não se nega. A naturalidade nos apresenta também outra maneira de lidar com a morte. A própria senhora pela qual a comunidade se mobiliza, ao perceber que está esquecendo as canções, se põe consciente da sua situação iminente. Sob a observação, ela segue com seus delays, ao passo em que todos se conscientizam com doçura e galhardia de que a festa se faz urgente e necessária.

Aqui é possível um link com a carta-documentário exibida em abertura à sessão de As Hiper Mulheres na programação da Rio+20: A Carta Kĩsêdjê para a Rio+20 conta basicamente com depoimentos femininos sobre a atuação desordenada dos ‘brancos’ sobre o Rio Xingu, ecossistema de extremo signifcado para a tribo. Ao término de desabafos acalorados, uma simples constatação toma forma de desafio: ao dizer aos brancos que tudo bem que eles queiram destruir tudo que tocam, a mulher Kisêdjê lança um “morramos todos juntos então!”. Ou seja, destruam tudo, mas cuidem de lidar com suas paranóias sobre a morte, pois nós já encontramos um caminho lúdico e comunal para lidar com isso. See you in another life, brother!

O corpo

A tradução do termo kuikuro, que se aproxima da ideia de hiper mulheres, não pode ser contestado aqui por pura inabilidade, por falta de conhecimento sobre o idioma. Assim também a legendagem nos aproxima daquele universo, preocupando-se em marcar alguns limites, mantendo saudáveis lacunas em detrimento de explicações fáceis. Os cantos não são traduzidos ipsi leteris, sem com isso prejudicar o entendimento do ritual, que é muito mais corporal do que linguístico, ainda que o corpo inscreva o ato comunicativo dichavando pra nós um espectro da linguagem que é uma das principais incógnitas filosóficas atuais: o corpo inscrevendo a teoria e a prática ao mesmo tempo.

Corpo transformado e transfigurado das mulheres heroínas: com colares coloridos, tornozeleira ritmadas, e pinturas sobre rostos, coxas, barrigas. Na recriação do mito original como ritual, não é mais preciso buscar os superpoderes aumentando o clitóris com a mordida de formigas. Em uma fila interminável de mulheres de diversas idades cantando e dançando, a tranformação se atualiza como pura potência dos corpos.

Assim, a hiperforça dessas mulheres pode ser assinalada em suas posturas corporais, demonstradas em seu modo de navegação pela tribo e arredores, na assertividade sexual, e no bom humor envolvendo questões muito mal trabalhadas entre nós, os tais brancos. No episódio em que as mulheres se lançam sobre os homens, que dormem plácidos em suas redes, ou na contação do mito fundador do Jamurikumalu em que alguns homens se esquivam dos detalhes mais quentes: às hiper mulheres nada escapa; tudo é naturalizado: elas não gostam de pênis pequeno e dizem isso sem pudor.

Da beleza de um trato com a vida que nos ultrapassa em muitos passos, a cadência dos cantos emociona. Lição de vida e de cinema. Como diria Cassavetes, temos apenas duas horas para mudar a vida das pessoas. Os Kuikuro entenderam isso muito bem.

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Editorial #2

Por Daniel Dalpizzolo

Eu queria estar sozinho no mundo. Apenas eu, Steiner, e mais nenhuma coisa viva. Nenhum sol, nenhuma cultura. Eu, nu sobre uma pedra alta… E então não sentiria mais medo”.

O depoimento apresentado na cartela final de O Grande Êxtase do Escultor Steiner é atribuído a Walter Steiner, um empenhado atleta de sky jumping que o documentário acompanha durante uma competição do esporte. A frase, entretanto, jamais foi dita pelo verdadeiro Steiner, mas forjada por Werner Herzog para alimentar a idiossincrasia do mito que seu filme se dedica a construir – afinal, lembrando a clássica fala de O Homem Que Matou o Facínora, de John Ford, “quando a lenda é mais interessante que a verdade, imprime-se a lenda”. Se o recurso, como tantos outros truques existentes nos documentários de Herzog, pode ser questionado sob o prisma da ética documental, é preciso observar também que o cinema de Herzog jamais respeitou a dicotomia tradicional entre documentário e ficção — compreendendo-a como um impasse à liberdade de criação preservada à arte. Sua ficção é, acima de tudo, um intenso documento de produção, retrato fidedigno de um processo – e do espaço em que este processo ocorre -; seus documentários, quase sempre partindo da própria presença de Herzog e sua relação com os personagens e ambientes que investiga, representam acima de tudo um olhar muito particular pertencente ao diretor, preenchido por recortes talhados por ele para fazer, através do cinema, uma reflexão permanente e metamórfica sobre a vida, numa antologia de imagens que somente poderia existir em sua obra.

O texto atribuído a Steiner condensa uma síntese notável de Herzog. Em seu cinema, a relação dos homens com a terra está, enfim, à beira de um colapso. A atmosfera é de preparação para o apocalipse, num clima de contagem regressiva para o fim do mundo. Após séculos de exploração e desbravamento, o homem, no ápice da sua presunção, crê no domínio da natureza a partir da ciência e da ocupação territorial, auxiliado pelos avanços tecnológicos do mundo pós-revolução industrial — mas, parece-nos alertar Herzog, a natureza pode ser tão hostil quanto estes agentes que tentam domesticá-la, e guarda mistérios que jamais estarão ao alcance da compreensão plena dos homens. O cinema de Herzog nos conduz ao que há de mais incipiente na exploração da terra — desde o simples ato de viajar até o desbravamento e a extração de recursos naturais, como mostra, por exemplo, Fitzcarraldo, ou as expedições colonizadoras de Aguirre, A Cólera dos Deuses — até chegar às consequências mais urgentes deste processo contínuo de desenvolvimento civilizatório — a ambição por domínio; a disputa por hegemonia e poder; a depredação ambiental; as guerras e conflitos cuja agressividade influencia tanto aos próprios homens quanto ao mundo que ocupam; questões, enfim, que não poderiam ser mais próprias de nosso tempo.

Se também é intrínseca ao cinema, como às demais artes, a função de servir aos homens como meio de expressão e de organização da sua relação física e sensorial com o mundo — um princípio da arte que o próprio Herzog discute em um de seus mais recentes filmes, A Caverna dos Sonhos Esquecidos —, podemos afirmar que Herzog é um dos autores que melhor souberam aproveitar esta especificidade do meio cinematográfico para transpor às suas imagens uma reflexão sobre a realidade em que vive — usando o cinema a seu bel-prazer para chegar aos fins desejados. Neste contexto, percebe-se que a obra de Herzog se constroi sobre algumas linhas paralelas e essenciais que se repetem constantemente, levando-nos, porém, sempre a novos e surpreendentes caminhos: em uma delas, traçando justamente um panorama desolador e não raramente apocalíptico da civilização contemporânea e seu conflito com o mundo; em outra, mais intimista e autorreflexiva, promovendo uma busca incansável, seja através de personagens reais ou ficcionais, por homens que, assim como ele, alienam-se dos padrões tradicionais da nossa sociedade, homens cuja obstinação se constroi sob uma intrigante solução entre sonho e insanidade, às vezes desafiando a própria morte; numa terceira linha, também se nota um olhar devoto à natureza ao mesmo tempo bela e ameaçadora da terra, um desejo místico de explorá-la e de eternizar seu contato com ela através do cinema (como reforça a frase forjada para Steiner, Herzog parece temer menos um vulcão prestes a explodir sua fúria à superfície da terra que os homens com quem cruza na rua).

Dar conta de uma obra tão rica e emblemática, evidentemente, jamais seria possível. Grande parte da expressividade e das questões que emanam do cinema de Herzog se detém à experiência particular de cada espectador com os filmes. Mas acreditamos que, organizando esta análise geral da sua filmografia, torna-se possível não apenas discutirmos um pouco da essência deste autor transgressor e único, mas nos integrarmos à reflexão proposta por ele a respeito de nós mesmos, do mundo e dos desvios percorridos e traçados nele pela civilização que o habita, o explora e o afronta — ou seja, deste embate eterno entre homem e natureza, entidades que mantém entre si um indissipável conflito ao qual o cinema de Herzog constantemente nos convida a retornar. Pensar sua obra e situá-la no tempo em que ela se cria e sobre o qual ela comunica nos permite observar que, para além do seu imensurável valor como cineasta, encontramos em Herzog um homem de grande convicção no uso das formas de expressão artística próprias ao seu tempo — falando especificamente do cinema, arte nascida e firmada dentro de nosso caráter industrial, e, também por força dele e das demais artes visuais, de cada vez mais amplo conhecimento imagético do mundo — para imantar à história sua passagem pela vida e sua relação conturbada com este planeta que ele observa com tanto fascínio. Nossa segunda edição, portanto, presta uma homenagem a este artista que não nos cansa de impressionar com seu cinema — para finalmente utilizar estas duas palavrinhas — louco e genial.

Maio de 2012.

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Índice

Editorial, por Daniel Dalpizzolo

Werner Herzog e o Novo Cinema Alemão, por Vlademir Lazo

“Onde está o quadro?”, por Luis Henrique Boaventura

O martírio de Werner Herzog, por Fernando Mendonça

Curtas-metragens (1962-2001), por Daniel Dalpizzolo, Robson Galluci e Vlademir Lazo

Sinais de Vida (1968), por Fernando Mendonça

The Flying Doctors of East Africa (1969), por Robson Galluci

Também os Anões Começaram Pequenos (1970), por Vlademir Lazo

Handicapped Future (1971), por Fernando Mendonça

Fata Morgana (1971), por Daniel Dalpizzolo

Terra do Silêncio e da Escuridão (1971), por Kênia Freitas

Aguirre, a Cólera dos Deuses (1972), por Kênia Freitas

O Grande Êxtase do Escultor Steiner (1974), por Daniel Dalpizzolo

O Enigma de Kaspar Hauser (1974), por Kênia Freitas

Coração de Cristal (1976), por Fernando Mendonça

Stroszek (1977), por Vlademir Lazo

How Much Wood Would a Woodchuck Chuck (1978), por Fernanda Canofre

Nosferatu: O Vampiro da Noite (1979), por Murilo Lopes

Woyzeck (1979), por Vlademir Lazo

Fitzcarraldo (1982), por Luis Henrique Boaventura

O Sermão de Huie (1983), por Fernando Mendonça

God’s Angry Man (1983), por Fernando Mendonça

Onde Sonham as Formigas Verdes (1984), por Fernando Mendonça

Ballad of the Little Soldier (1984), por Daniel Dalpizzolo

The Dark Glow of the Mountains (1985), por Murilo Lopes

Cobra Verde (1987), por Luis Henrique Boaventura

Giovanna D’Arco (1989), por Fernando Mendonça

Ecos de um Império Sombrio (1990), por Fernanda Canofre

Jag Mandir (1991), por Filipe Chamy

No Coração da Montanha (1991), por Filipe Chamy

Lições das Trevas (1992), por Robson Galluci

Sinos do Abismo: Fé e Superstição na Rússia (1993), por Fernando Mendonça

Death for Five Voices (1995), por Fernanda Canofre

The Transformation of the World into Music (1996), por Luis Henrique Boaventura

Little Dieter Needs to Fly (1998), por Kênia Freitas

Christ and Demons in New Spain (1999), por Luis Henrique Boaventura

Meu Melhor Inimigo (1999), por Vlademir Lazo

Wings of Hope (2000), por Fernanda Canofre

Invencível (2001), por Luis Henrique Boaventura

Wheel of Time (2003), por Luis Henrique Boaventura

O Diamante Branco (2004), por Robson Galluci

O Homem Urso (2005), por Filipe Chamy

Além do Azul Selvagem (2005), por Robson Galluci

O Sobrevivente (2006), por Filipe Chamy

Encontros no Fim do Mundo (2007), por Robson Galluci

Vício Frenético (2009), por Kênia Freitas

Meu Filho, Olha o Que Fizeste! (2009), por Fernando Mendonça

Caverna dos Sonhos Esquecidos (2010), por Daniel Dalpizzolo

Ao Abismo (2011), por Filipe Chamy

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Werner Herzog e o Novo Cinema Alemão

Por Vlademir Lazo

Hoje em dia já não faz tanto sentido, mas se quisermos compreender as origens do surgimento de Werner Herzog, devemos localizá-lo dentro do chamado Novo Cinema alemão que apareceu nos anos 60 e tomaria força na década seguinte. Quem averiguar muito rapidamente a historiografia oficial do cinema na Alemanha perceberá que entre o celebrado movimento Expressionista nos anos 20 (e de uma produção muito forte durante o período nazista antes da eclosão da Segunda Guerra) e o tal Novo Cinema existe um hiato de quase trinta anos marcado pela estagnação quase que total.

O ressurgimento com grande força da cinematografia no país pegou carona com os cinemas novos de todo o mundo na época, dos quais sofreria profunda influência, como um equivalente ao que a Nova Hollywood seria para a América quase nesse mesmo período. Em sua Introdução a uma Verdadeira História do Cinema, Jean-Luc Godard comenta que em relação a sétima arte as coisas se dão quando um grupo se reúne e fazem as coisas acontecerem, citando sua própria experiência dentre os membros da Nouvelle Vague, além dos americanos da Nova Hollywood, os integrantes do Novo Cinema alemão… Godard completa que depois de um tempo esses grupos costumam se separar e as coisas de certa forma desandam em torno de suas filmografias. Em parte ele pode ter razão.

No cinema alemão da época, apesar do Manifesto de Oberhausen assinado por 26 jovens cineastas em 1962 (dentre os quais bem poucos seguiriam uma carreira bastante notabilizada, um deles sendo Alexander Kluge), mais que uma tentativa de formação de um movimento, ocorreu que um determinado número de cineastas foi surgindo aqui e ali aproveitando certas facilidades da época (baixos custos de produção, trabalho com câmera na mão e equipe reduzida, filmagens fora dos estúdios, etc − algo similar a uma certa revolução do cinema digital que ainda se espera que dê frutos nesse começo de século XXI), e que depois de um tempo se encontraram, e juntos, formaram uma cinematografia de respeito. Nomes como o próprio Kluge, Edgar Reitz, Wim Wenders, Volker Schlöndorff, Hans-Jürgen Syberberg, Werner Schroeter e Rainer Werner Fassbinder, entre outros. Auxiliados também pelo surgimento de escolas superiores de cinema e salas de exibição, além de publicações mais séries sobre cinema e a consolidação do cinema como uma arte importante na consciência de um público interessado por cultura, fatores todos que fomentaram à produção cinematográfica do país.

Dentre as influências todas pelo mundo absorvidas por esses jovens diretores, houve quem chamasse o Novo Cinema alemão de descendente direto do Cinema Novo brasileiro (pensar aqui na maioria dos filmes brasileiros dos anos 60 quase como um todo, sem as cisões que não são muito conhecidas lá fora). De fato havia um certo interesse dos alemães pelos nossos filmes naquele momento. Fassbinder deu o título de um de seus primeiros filmes (Rio das Mortes) em homenagem a Antonio das Mortes (o título internacional de O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, de Glauber Rocha), e o titulo original de O Enigma de Kaspar Hauser é tirado de uma frase de Macunaíma (Cada um por si e Deus contra todos). Em seu livro de memórias, o recém falecido Paulo Cesar Saraceni em relação à curiosidade dos alemães em conhecer o cinema do Brasil, escreveu: “Mandaram equipes e críticos, estudaram tudo, não só os filmes mas como se bebia e comia, como se jogava futebol, tudo. Filmavam tudo. Onde quer que você fosse, havia um Peter Schuman te filmando, te entrevistando”.

Fruto de uma visão cosmopolita de mundo, do empenho de saciar uma curiosidade e interesse por todos os lugares, o que se encontra ao longo de toda a filmografia de um diretor como Werner Herzog. Nascido com o nome de Werner H. Stipetic, filho de pais croatas, seu pai abandonou a família logo após voltar de um campo de prisioneiros de guerra depois da Segunda Guerra. Estudou história e literatura em sua Munique natal, e aos quinze anos escreveu seu primeiro roteiro. Mas pensava que a única maneira de aprender cinema era de fato fazendo, então aos quinze anos roubou uma câmera 35 mm da Munich Film School, e no começo dos anos 60 chegou a trabalhar como metalúrgico numa fábrica de aço como forma de obter um auxilio para realizar seu primeiro filme, o curta Herakles (1962), seguidos ao longo da década por A Defesa Sem Precedentes Do Forte Deutschkretz (1967) e A Última Palavra (1968), além de um outro jamais lançado ou exibido publicamente, Spiel im Sand (1964), cujas descrições que nos chegaram conta de quatro crianças tripudiando com um galo numa caixa de papelão, que parece prenunciar um pouco de Também Os Anões Começaram Pequenos (1970), o mais bizarro de seus filmes. O primeiro longa, entretanto, seria Sinais de Vida (1968), sobre o drama de três soldados alemães perdidos na Grécia, e que embora cresça muito com a tensão no final, é bem pouco expressivo visto atualmente.

Na mesma época, começa a rodar seus primeiros documentários, a principio como encomenda para amigos, mas não demorou a se tornar uma vertente importante em sua carreira, vertente essa que jamais abandonaria e que inclusive se imbrica em seus trabalhos de ficção. Esses rumos seriam tomados a partir de Terra Do Silêncio E Da Escuridão (1971) e do excepcional Fata Morgana (1971), feito simultaneamente a Também Os Anões Começaram Pequenos (ambos rodados na África), e em que importantes questões são levadas num cinema de fluxos, de amplos momentos sensoriais e poéticos, como baladas progressivas que arrastam as imagens para um terreno especulativo que se completa e toma forma em nossa mente ao som dos temas de Leonard Cohen e Mozart. O melhor do cinema de toda a filmografia de Herzog já pode ser entrevisto em Fata Morgana, que de acordo com o próprio diretor, é um filme de ficção cientifica, com suas imagens como que filmadas por alienígenas que tivessem vindos a Terra. O reconhecimento internacional viria com Aguirre, a Cólera dos Deuses (1972), filmado na América do Sul, um dos mais populares de seus filmes, e em que encontra o que se tornou o seu ator-emblemático Klaus Kinski. Juntos, rodaram ainda Woyzec (1978), Nosferatu, o Vampiro da Noite (1979), Fitzcarraldo (1982) e Cobra Verde (1987).

À esta altura Herzog já havia assumido uma posição de respeito no cinema mundial. Basta observar certas semelhanças de Aguirre com um filme como Apocalypse Now (a cena do barco subindo o rio, o militar enlouquecido se rebelando e se assumindo como um Deus perante um exército particular sob seu comando entre selvagens numa floresta, etc.). A carreira do diretor alemão prossegue entre seus documentários e filmes de ficção com maior repercussão, como os que fez com Bruno S. (O Enigma de Kaspar Hauser e Strozsec) e o elogiado Coração de Cristal (1976). Em Onde Sonham as Formigas Verdes (1983) faz uma tomada de defesa dos aborígines da Austrália contra as companhias de mineração. Não é um grande filme (nem mesmo para a maioria dos fãs de Herzog), mas algumas imagens com os aborígenes impressionam. A passagem dos anos 70 para os 80, entretanto, seria difícil para todo o cinema autoral, e na Alemanha não foi diferente: Fassbinder nos deixou precocemente, Wenders atingiu seu apogeu para logo depois decair sem nunca mais se reerguer, enquanto que outros dos melhores diretores alemães continuariam suas carreiras subterrâneas (Kluge, Syberberg,  Schroeter). O fracasso em todos os sentidos de Cobra Verde fez com que Herzog se decidisse a não filmar mais com Kinski e largar os filmes de ficção para se dedicar exclusivamente aos documentários, o que se prolongou por exatos vinte anos.

Lições da Escuridão (1992) é um exemplo que ilustra muito bem a veia do Herzog documentarista, com seu olhar contemplativo em torno de uma sinfonia poética de imagens e sons, sem cair no didatismo ou redundâncias explicativas. O que nem sempre acontece em todos os seus documentários: um dos mais recentes, A Caverna dos Sonhos Esquecidos (2011), sua primeira incursão na tecnologia do 3-D, é excelente quando se lança diretamente nas imagens da caverna em questão, porém sofre com um excesso de depoimentos e entrevistas que o aproxima de algum History Channel qualquer. Mas a reputação de Herzog como documentarista há muito está firmada e garantida, tendo sido ainda mais valorizada com títulos de grande visibilidade como Meu Melhor Inimigo (1999) − em que refaz suas experiências de trabalho e de vida com o amigo-inimigo Klaus Kinski − O Diamante Branco (2004) e O Homem Urso (2005). A volta aos trabalhos de ficção se deu com sua ida para Hollywood, onde fez fitas de guerra (O Sobrevivente) e policial urbano (Vicio Frenético) que dividiram a crítica entre a desconfiança e a franca rejeição ou o entusiasmo amplo e absoluto. Sem esquecer o um pouco subestimado Meu Filho Olha O Que Fizeste! (2009), que começa como um filme de cerco para progressivamente ir se tornando menos um filme sobre uma situação policial do que o progressivo desencadeamento de um processo de loucura a partir da paranóia de um protagonista que passa a misturar realidade com ficção. Nesse ano de 2012 em que completa setenta anos de idade (em 5 de setembro), Herzog prossegue como um dos mais prolíficos entre os veteranos em atividade: recentemente tem sido exibido pelo mundo o seu documentário Ao Abismo (2011), que gira em torno de conversas com um condenado a morte(e com aquele afetados por seus crimes), e em março último foi lançado nos Estados Unidos um outro, On Death Row (2012), que com suas mais de três horas de duração lança um olhar para dentro de um presídio de segurança máxima no Texas entrevistando os que estão esperando no corredor da morte. Um percurso natural a que chega uma filmografia de cinco décadas como a de Herzog sempre preocupada, no fundo, com o destino dos homens, sejam eles condenados ou sobreviventes.

Filmografia

Hércules [Herakles; Alemanha, 1962]. 12 min.

Game in the Sand [Spiel im Sand; Alemanha, 1964]. 14 min.

A Defesa sem Precedentes do Forte Deutschkreuz [Die beispiellose Verteidigung der Festung Deutschkreuz; Alemanha, 1967]. 14 min.

Últimas Palavras [Letzte Worte; Alemanha, 1968]. 13 min.

Sinais de Vida [Lebenszeichen; Alemanha, 1968]. 91 min.

The Flying Doctors of East Africa [Die fliegenden Ärzte von Ostafrika; Alemanha, 1969]. 45 min. TV.

Precauções contra Fanáticos [Massnahmen gegen Fanatiker; Alemanha, 1969]. 12 min.

Também os Anões Começaram Pequenos [Auch Zwerge haben klein angefangen; Alemanha, 1970]. 96 min.

Handicapped Future [Behinderte Zukunft?; Alemanha, 1971]. 62 min. TV.

Fata Morgana [idem; Alemanha, 1971]. 79 min.

Terra do Silêncio e da Escuridão [Land des Schweigens und der Dunkelheit; Alemanha, 1971]. 85 min.

Aguirre, a Cólera dos Deuses [Aguirre, der Zorn Gottes; Alemanha, 1972]. 93 min.

O Grande Êxtase do Escultor Steiner [Die große Ekstase des Bildschnitzers Steiner; Alemanha, 1974]. 45 min.

O Enigma de Kaspar Hauser [Jeder für sich und Gott gegen alle; Alemanha, 1974]. 110 min.

Ninguém Quer Brincar Comigo [Mit mir will keiner spielen; Alemanha, 1976]. 14 min.

Coração de Cristal [Herz aus Glas; Alemanha, 1976]. 94 min.

Stroszek [idem; Alemanha, 1977]. 115 min.

La Soufrière [La Soufrière — Warten auf eine unausweichliche Katastrophe; Alemanha, 1977]. 30 min.

How Much Wood Would a Woodchuck Chuck [Beobachtungen zu einer neuen Sprache; Alemanha, 1978]. 44 min. TV.

Nosferatu: O Vampiro da Noite [Nosferatu: Phantom der Nacht; Alemanha/França, 1979]. 107 min.

Woyzeck [idem; Alemanha, 1979]. 74 min.

Fitzcarraldo [idem; Alemanha/Peru, 1982]. 158 min.

O Sermão de Huie [Huie’s Predigt; Alemanha, 1983]. 43 min. TV.

God’s Angry Man [Glaube und Währung — Dr. Gene Scott, Fernsehprediger; Alemanha, 1983]. 44 min. TV.

Onde Sonham as Formigas Verdes [Wo die grünen Ameisen träumen; Alemanha/Austrália, 1984]. 100 min.

Ballad of the Little Soldier [Ballade vom kleinen Soldaten; Alemanha, 1984]. 46 min. TV.

The Dark Glow of the Mountains [Gasherbrum — Der leuchtende Berg; Alemanha, 1985]. 45 min. TV.

Portrait Werner Herzog [idem; Alemanha, 1986]. 28 min.

Cobra Verde [idem; Alemanha/Gana, 1987]. 111 min.

Les gauloises [idem; França, 1988]. 13 min. TV [episódio de Les Français vus par].

Giovanna D’Arco [idem; Itália/Reino Unido/Portugal/Finlândia, 1989]. 127 min. TV.

Wodaabe: Herdsmen of the Sun [Wodaabe — Die Hirten der Sonne. Nomaden am Südrand der Sahara; França/Alemanha, 1989]. 43 min. TV.

Ecos de um Império Sombrio [Echos aus einem düsteren Reich; França/Alemanha, 1990]. 91 min.

Jag Mandir [Jag Mandir: Das exzentrische Privattheater des Maharadscha von Udaipur; Áustria/Alemanha, 1991]. 82 min. TV.

No Coração da Montanha [Cerro Torre: Schrei aus Stein; Alemanha/França/Canadá/Itália/Argentina, 1991]. 105 min.

Lições das Trevas [Lektionen in Finsternis; França/Reino Unido/Alemanha, 1992]. 55 min.

Sinos do Abismo: Fé e Superstição na Rússia [Glocken aus der Tiefe — Glaube und Aberglaube in Rußland; Alemanha/EUA, 1993]. 60 min.

Death for Five Voices [Tod für fünf Stimmen; Alemanha, 1995]. 59 min. TV.

The Transformation of the World into Music [Die Verwandlung der Welt in Musik: Bayreuth vor der Premiere; Alemanha, 1996]. 90 min. TV.

Little Dieter Needs to Fly [idem; Alemanha/Reino Unido/França, 1998]. 80 min.

Christ and Demons in New Spain [Gott and die Beladenen; Alemanha, 1999]. 45 min. TV.

Meu Melhor Inimigo [Mein liebster Feind — Klaus Kinski; Alemanha/Reino Unido/Finlândia/EUA, 1999]. 95 min.

Wings of Hope [Julianes Sturz in den Dschungel; Alemanha/Reino Unido, 2000]. 65 min. TV.

Pilgrimage [idem; Reino Unido/Alemanha, 2001]. 18 min.

Invencível [Invincible; Reino Unido/Alemanha/Irlanda/EUA, 2001]. 133 min.

Wheel of Time [idem; Alemanha/Áustria/Itália, 2003]. 81 min.

O Diamante Branco [The White Diamond; Alemanha/Japão/Reino Unido, 2004]. 88 min.

O Homem Urso [Grizzly Man; EUA, 2005]. 103 min.

Além do Azul Selvagem [The Wild Blue Yonder; Alemanha/França/Áustria/Reino Unido, 2005]. 80 min.

O Sobrevivente [Rescue Dawn; EUA, 2006]. 126 min.

Encontros no Fim do Mundo [Encounters at the End of the World; EUA, 2007]. 99 min.

Vício Frenético [The Bad Lieutenant: Port of Call — New Orleans; EUA, 2009]. 122 min.

La bohème [idem; Reino Unido, 2009]. 4 min.

Meu Filho, Olha o Que Fizeste! [My Son, My Son, What Have Ye Done; EUA/Alemanha, 2009]. 91 min.

A Caverna dos Sonhos Esquecidos [Cave of Forgotten Dreams; Canadá/EUA/França/Alemanha/Reino Unido, 2010]. 90 min.

Ode to the Dawn of Man [idem; EUA, 2011]. 39 min.

Ao Abismo [Into the Abyss; EUA/Reino Unido/Alemanha, 2011]. 107 min.

On Death Row [idem; EUA/Reino Unido/Áustria, 2012]. 188 min.

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“Onde está o quadro?”

Por Luis Henrique Boaventura

Em determinada cena de O Homem Urso Timothy Treadwell deixa uma de suas câmeras sozinha sobre um tripé e some no fim de um caminho de terra. Neste momento (algo em torno de dez ou doze segundos) Herzog aproveita-se da ausência do autor das imagens e toma o quadro emprestado para uma breve anotação[1]. Herzog argumenta que, apesar do rigor e da paixão que colocava em suas filmagens, Treadwell parecia não haver notado a beleza espontânea e inconsciente de que se imbui a natureza quando vigiada de posições semissecretas. A marca da ausência humana (o ângulo pelo qual ele desaparece, ponto de fuga da imagem), na perspectiva de Herzog, desprende uma ênfase para outros filamentos da composição (folhas, poeira, uma garoa fosca) que se animam nas fronteiras do quadro (e para fora dele). É uma nota ao poder autofecundo da imagem, prescindível do caractere humano para significar e que a iguala de muitos modos à própria natureza, acusando a débil ilusão humana que concebe a existência da primeira pela gestação do ‘real’ no ventre do olhar. Inevitável (e deliciosa) contradição é que, para indicar essa autonomia da imagem, Herzog, como é recorrente em sua obra, tenha cedido à necessidade de violar os limites do quadro e marcar sua própria presença no filme, revogando tacitamente o que acabara de dizer.

Presencia-se aí o aguardado encontro de Herzog com o automaton que, não em razão da natureza em si, mas de seu recorte físico e temporal operado por um terceiro, cruza muito de seus filmes um pouco abaixo da superfície. Porque não há interstício possível entre os devires do tempo e a desordem que o olho projeta que não a miopia do próprio olho. Do momento em que a câmera é abandonada à absoluta ausência do componente humano — pouco interessa se por dez segundos ou dez anos — a vegetação passa a dotar-se de um arcaico encantamento (nunca estivemos ali, não há câmera, não há interferência: apenas eternidade) e é condenada a repetir-se infinitamente em suas variações invisíveis. Nem do rastro de bota na grama a lente parece dar conta porque as molduras do quadro se desfazem no lemniscate deste simples e assombroso movimento: um caule que se verga ao equilíbrio entre o vento e a gravidade. Se decompusermos esta imagem em fotogramas isolados (no topo da página), e se perfilarmos cada fotograma em relação ao seu subsequente, torna-se muito difícil para o olho humano flagrar diferenças. Pode até notar um espaço vazio de um lado e um subitamente ocupado de outro, mas não será capaz de identificá-las. A natureza não ostenta uma face[2], não há identidade a não ser a concebida pelo homem. Não há um elemento vivo que atravesse o quadro para este olho, preênsil de rostos e de signos, fisgar como seu referente; não há, como numa acepção mais clássica de cinema, o objeto tracejante que viaja de um ponto a outro, da esquerda para a direita, de cima para baixo, de dentro para fora. Não há o deslocamento; mas há, importante notar, o movimento (nada é estático apesar de o próprio quadro o ser). Um movimento que se desprende da paragem dos componentes que o quadro contém (e da própria câmera, acima de tudo) e se acomoda secretamente no verso do olho, sem despertar suspeitas nem sobressaltos, pois trata-se da surda e infinitesimal agitação da natureza: terna, intemporal, assustadora.

A oposição herzoguiana clássica (homem versus natureza) é central em um procedimento muito repetido pelo cineasta: a compulsiva imposição de si mesmo contra esta (em suas palavras) “overwhelming indifference of nature”, contra o “blank stare” que ele olha e que o olha ameaçadoramente de volta (tudo o que é olhado, como sabemos, retorna o olhar), não porque talvez haja uma intenção ou círio antigo de consciência que comande este olhar, pelo contrário, é a desolação que apavora. É aceitar a fortaleza imemorial do mundo onde a vida, tão exuberante em seus edifícios (a floresta amazônica, as montanhas bávaras, as cataratas de Kaieteur), talvez não seja mais do que um reino de insetos, como a casa que, abandonada à ação do tempo, torna-se dócil anfitriã de traças e morcegos.

É interessante Herzog reivindicar uma beleza inerente à natureza ao mesmo tempo em que acusa Treadwell de inocência por acreditar em seu “secret world of the bears”. Se o ponto de vista realmente cria o objeto, então é forçoso aceitar que a “amizade” de Treadwell com os ursos compartilha o mesmo princípio da crença de Herzog num valor intrínseco às coisas, e que o flerte de Treadwell com a morte encontra rara simbiose nas afrontas de Herzog à hostilidade do mundo (Aguirre, La Soufrière, Caminhando no Gelo…), pois é o modo que ambos encontraram para rebelarem-se: o pôr-se/impor-se em cena, o que não significa a procura por um lugar na Terra, mas a afirmação, convicta, de uma posição capaz de alterar a ordem viciada da vida.

A peregrinação narrada por Herzog em Caminhando no Gelo não é nem de longe carta de fé a alguma força superior, assim como a insurreição travessa de La Soufrière não é um sacrilégio; Herzog não acena aos deuses, prefere ir a seu encontro, do contrário, teria rezado por Lotte Eisner ao invés de enfrentar 22 dias de inverno europeu para “salvá-la”, ou teria blasfemado contra os ares à erupção do vulcão caribenho, como faz gente normal, em vez de marchar até o topo da montanha só para mijar no olho da cratera (a estatura do ato não autoriza brandura na linguagem). Nasce nesse prurido por um impacto, nessa volição sagrada para significar a si mesmo perante o caos imanente das coisas, a projeção que Herzog faz de si em seus personagens e, quando isto não for suficiente, o posicionamento em forma de voiceover ou até da própria presença física.

Está nessa imposição um vício inerente, que o define e o dirige, mas também uma virtude absolutamente rara e que o liga, para além da mera figuração autorista, a A Família de Filipe IV (Las Meninas)[3], o quadro assustador e indecifrável de Diego Velázquez. A colocação de si mesmo no quadro chama mais atenção para a figura do próprio observador do que de Velázquez. Seria o quadro todo um espelho, seria o espectador um espelho, ou seria o espelho ao fundo um quadro? Sua fé em suas próprias leis, leitor (ou então nas leis de perspectiva, depende do tipo de pessoa que você é), constituirá sua impressão particular tanto do quadro de Velázquez quanto dos de Herzog. No caso de encarar o quadro como espelho do universo (como se também não o fosse a própria arte), por extensão, é coerente aceitar que a força com que Velázquez coloca-se em sua obra joga ênfase para uma colocação do observador diante do quadro: Velázquez afiança toda sua existência e a de sua arte à suposição (ato de fé) de que haverá para ela um olhar que a reavive. O pintor se alforria de sua posição natural (de frente à cena) e infiltra-se no quadro (pondo-se em cena) não em razão de algum gesto leviano de vaidade, muito pelo contrário: o faz para chamar o espectador a substituí-lo. O mundo pintado pelo artista só passa a existir na tela porque um dia alguém prestou-se a pintá-lo, mas isto não é suficiente, é preciso que alguém se ponha também a observá-lo para que passe a existir realmente. O quadro em si não faz parte do inventário da natureza como faz a vegetação captada em O Homem Urso, portanto o tempo se encarregará de dar fim a ele, assim como aos filmes de Herzog. O que é humano não possui lugar entre os objetos da natureza (dentre eles o próprio corpo, que nos é emprestado). Toda arte, portanto, superada esta patética ilusão de eternidade que nos envaidece (a escritores, principalmente), é nada mais que a velha barganha (do modelo Kübler-Ross): a tentativa vã de avultar-se no relevo de entidades de que falamos muitas vezes (incluindo neste texto), mas que mal compreendemos: o mundo e o tempo.

A disposição de Velázquez entre os objetos do quadro é acima de tudo uma irrupção de si na e contra essa rede de filamentos desconectados que sustém o giro do tempo, um escrivão que reaproveita suas escrituras, que apaga os que um dia inventou anulando sem remorsos seu impacto no mundo. A luta do artista é essa saga contra o irremediável oblívio dos escritos da História. Como no caso de Velázquez, a imposição que Herzog promove, incursionando nas veredas da Terra com um exército de câmeras, luzes e aparatos, é tanto uma colocação de si no universo retratado quanto no âmbito do próprio retrato. Já faz quase uma década que Timothy Treadwell foi devorado por um urso numa reserva ambiental canadense, mas é seguro afirmar que, antes mesmo dele nascer e muito depois de ele ter morrido, os poucos segundos para os quais Herzog chama atenção em O Homem Urso, aqueles em que a natureza revela seu macabro mecanismo de autocorreção (o que outros por ocasião chamam “ciclo da vida”), repetiram-se e continuarão a se repetir indefinidamente sem registrarem qualquer sinal do homem que encantou-se com sua beleza nem daquele que a ignorou. Ao realizar este movimento estranho de digressão (sair da imagem ao caminhar para dentro da imagem), Treadwell representou com raro acerto a trajetória humana na Terra. Eis a imperturbável sincronia entre os caminhos do homem e os sumidouros do mundo.

“Às vezes tenho a sensação de que nada do que acontece acontece, porque nada acontece sem interrupção, nada perdura nem persevera nem se recorda incessantemente, e até a mais monótona e rotineira das existências vai se anulando e negando a si mesma em sua aparente repetição até que nada seja nada e ninguém seja ninguém que tenha sido antes, e a frágil roda do mundo é empurrada por desmemoriados que ouvem e veem e sabem o que não se diz nem sucede nem é cognoscível nem comprovável. […] e por isso estamos cheios de arrependimentos e de ocasiões perdidas, de confirmações e reafirmações e ocasiões aproveitadas, quando o certo é que nada se afirma e tudo se vai perder. Ou talvez não tenha havido nada”.
— Javier Marías, Coração tão branco

 


*”Onde está o quadro?” teria perguntado o escritor francês Théophile Gautier ao ver  “Las Meninas” no Museu do Prado.

[1] In his action movie mode, Treadwell probably did not realize that seemingly empty moments had a strange secret beauty. Sometimes images themselves developed their own life, their own mysterious stardom.

[2] What haunts me is that, in all the faces of all the bears that Treadwell ever filmed, I discover no kinship, no understanding, no mercy. I see only the overwhelming indifference of nature. To me, there is no such thing as a secret world of the bears and this blank stare speaks only of a half-bored interest in food.

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O martírio de Werner Herzog

Por Fernando Mendonça

“Um velho caminha sobre a ponte, sem se notar observado. Vai devagarinho e com dificuldade, sempre descansando depois de uns poucos passos hesitantes. É a morte que caminha com ele.” O registro feito por Werner Herzog no domingo, dia 01.12.1974, serve de contraponto ao excêntrico método de observação empreendido por ele naqueles dias, durante sua caminhada de Munique a Paris. Muito mais do que um exercício voyeur, com esta experiência Herzog colocou-se a si mesmo como ponto a ser observado, primeiramente pela sua própria consciência — pois nada como uma dolorosa caminhada para despertar os sentidos até o limite —, e posteriormente por todos que aceitassem a aventura de ler Caminhando no Gelo, publicação do diário que o cineasta escreveu durante os vinte e dois dias de jornada que percorreu para encontrar sua amiga Lotte Eisner, à beira da morte.

A motivação do sacrifício, este inominável ato de fé empreendido por Herzog, foi a enfermidade de Eisner, historiadora do cinema expressionista alemão que representava toda uma geração estética já perdida. Entusiasta do novo cinema, ela fora uma das primeiras a perceber Herzog, desde Sinais de Vida (1968), como um dos responsáveis pelo renascimento da linguagem em sua nação, convidada para narrar Fata Morgana (1971) e daí por diante sempre próxima do diretor num declarado vínculo afetivo, que se intensifica após sua doença. Ao descobrir o estado terminal da amiga, Herzog encarou tal finitude como um reflexo a ser sofrido pelo próprio cinema, ou seja, por sua própria existência. Vê-la morrer seria enterrar toda uma perspectiva de arte, toda uma herança imperiosa para os que então resgatavam o movimento dentro de novos e necessários valores. Daí a promessa, o propósito espiritual de, como num martírio, lançar-se a uma jornada expiatória pela sobrevivência de Eisner.

Importava sofrer, compartilhar a dor de habitar um corpo finito, experimentar a proximidade da morte, como na visão daquele velho, observado no início de dezembro. Toda sua trajetória, anotada diariamente em páginas que levariam mais de quatro anos para se decidirem publicáveis, identifica um Herzog agora inserido corporalmente no universo a que sempre condicionou os personagens de seus filmes. Foi como se reinventar, colocar-se nos roteiros do destino e assim verificar a mortalidade que permanece nos ossos, nas formas do mundo, mas que numa natural resistência insistimos em ignorar. Assim como em seu cinema já foram identificados seres e tipos do excesso, movidos por ações concebidas na grandeza de seus meios (Deleuze), aqui Herzog espelha toda uma condição base de suas criações, fazendo de si mesmo um contraste do impossível, daquilo que não parece provável ou, em termos ficcionais, sustenta-se apenas pelo que poderia ser verdade. “…tomar uma condução? Antes levar a insensatez, se é insensatez, até as últimas consequências”, é a meta do Herzog homem, ser que abandona as câmeras e, com papéis e caneta, propõe um dos mais inusitados exercícios criativos de sua vida.

Não custamos a crer nos insanos atos de Herzog porque todos eles tornam-se palpáveis através das palavras. Sua escrita, tão moderna quanto seu cinema, embrenha-se pelo monólogo interior, pelo jogo de repetições e inflexões que terminam por acentuar o caráter imaginativo de seus intoleráveis dias. Não é de espantar a força poética da linguagem; tendo a literatura e a história como formação acadêmica, Herzog sabia com o que estava lidando, por mais que suas pretensões fossem outras e todas dependessem de uma mediação cinematográfica para credibilidade (“Só acreditaria nisso tudo se fosse um filme”). Diante do que ele vive em Caminhando no Gelo, acreditar não é mais um ponto de partida, mas sim uma consequência de tudo que o atravessa.

Impossível descrer num corpo com “princípio de bolhas nos dois calcanhares”, em que as “coxas soltam vapor como um cavalo”, em que “a dor sobe da virilha, a cada passo” e “a saliva fica pegajosa, grossa e branca como a neve”. Esta percepção em estado bruto, este lamento que emana de cada articulação e parte do corpo são o que impedem Herzog (e também o conduzem) ao enlouquecer. Ele sabe que precisa continuar em frente, como num filme que urge ser finalizado, um projeto que não pode ser abandonado. Por isso sua resistência em permanecer humano, em não se desgarrar das formas que o contornam — por diversas vezes ele se vê obrigado a “verificar no espelho se ainda tinha aparência humana”. É assim que a referência a alguns filmes torna-se uma espécie de âncora, de porto futuro a se chegar, garantia de um amanhã.

Misturados a lembranças do passado, Coração de Cristal (1976) e Stroszek (1977), seus próximos projetos com o cinema, são citados como fantasmas vistos por olhos não mais confiáveis, pois enganados pela própria sombra (“Minha sombra me espreitava… agachou-se e rodeou minhas pernas”). Daí a constatação de o próprio Herzog não se encontrar mais na pura realidade ou na extrema ficção. Seus dias e noites, cada movimento de seu corpo, tudo aquilo que apreende dos espaços percorridos, das variações climáticas que o assolam, são projeções de um ato que não poderia se distanciar do literário, do anseio que a letra moderna assume ao confrontar-se com um mundo fragmentado, habitação da morte. Daí ser o esfacelamento de seu livro, todo demarcado e dividido pelas datas entre 23.11 e 14.12.1974, um convite a uma temporalidade própria, particular de sua experiência pessoal, devaneio da cronologia.

Dando continuidade a um projeto nascido desde o séx. XIX — em específico, desde que Strindberg propôs o registro de “uma folha que cai” como o “nível mais real da realidade” —, Herzog ilumina com este diário todos os mundos que seu cinema ainda formará. São as folhas que caem, os animais que cruzam, são os declives da terra, as águas que fluem, fragmentos de cenas dispersas em sua filmografia; universos que não passam, como ele diz, de “bocejos do vazio”. Abandonar-se sozinho numa caminhada, encontrar em tudo a vastidão do nada, foi a maneira mais dolorosa de prosseguir o que iniciara desde seu primeiro contato com as regiões desérticas da Terra: “O tempo que passei no deserto é parte de uma busca que para mim ainda não terminou.” Assim, o sacrifício ofertado pela vida de Eisner, também alcança o milagre desejado por Herzog para si, de continuar sua busca sem a interrupção do êxtase. Pois não há como evitar a associação de seu gesto peregrino ao caráter estático diretamente evocado por tantos de seus filmes.

Movimento de religiosidade, é curioso ler as confissões de Herzog (o que daria um belo subtítulo para seu livro) e saber que, no meio da paixão, da via crúcis solitariamente empreendida, ele não pôde evitar um breve desvio no caminho para visitar a casa onde nasceu Joana D’Arc, em Domrémy. Como numa identificação possível somente aos mártires, aos que especialmente foram tocados pelo que não se pode descrever, este breve episódio de Caminhando no Gelo concentra a fé que Herzog não professou, tudo o que ele calou do registro literário — pois o material publicado foi suprimido de algumas passagens muito íntimas, segundo sua própria nota. Entre D’Arc e Eisner, uma estreita ponte de esperança, uma provação a ser inscrita por dedos quase congelados, permanentemente movidos pela confiança no amanhã, no que o sol traria em seus futuros nascimentos.

Se a dilacerante experiência literária de Herzog pode guardar elos com o que outro expoente alemão faria a partir de mais um cinema à beira da morte (Wim Wenders e seu Nick’s Movie), a sua singularidade se dá pela confirmação do milagre. Após a visita do amigo, Lotte Eisner aguardará mais uma década antes de seu último suspiro. E por mais que a sua sobrevivência não decorra cientificamente do voto feito por Herzog, hoje sabemos que toda aquela experiência serviu para pelo menos uma manifestação do impossível, registrada na última frase do livro: “há alguns dias aprendi a voar”. Muito difícil encerrar Caminhando no Gelo e deixar-se levar pela inocência de uma figura de linguagem. Não duvidamos: Herzog voou.

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