Noites Brancas no Píer (Paul Vecchiali, 2014)

Por Fernando Mendonça

“Meus olhos têm um brilho totalmente diverso.
Receio que eles façam buracos no céu.”
Nietzsche

Já não é tão fácil encontrar a solidão. Há quem pense ser a sociedade do séc. XXI prioritariamente solitária, preenchida por indivíduos que se perdem alheios ao movimento do próximo, que restringem seus atos aos desejos mais imediatos, como virtualidades e distopias ocupadas em contorcer o espaço, abandonando suas identidades a uma condição de real obtusa, simulada. Mas é questionável a verdadeira qualidade deste estar só, num mundo que já não ‘progride’ sem a perpétua distração dos sentidos, sem multiplicar os anseios de um Eu que se perceba presente e seja alguém numa multidão de máscaras. Já não conseguimos tão fácil a fuga destas distrações, a apreciação de se satisfazer com ausências, com faltas que também importam para que existamos completos. Roubam-nos de nós mesmos. Distraem-nos do que vai na alma.

Até que um filme como Noites Brancas no Píer surge, revolvendo o espírito de um tempo, escavando a procura de uma dimensão que supere a aparência das formas, que restitua o prazer e a saúde do bom isolamento. Obra que não tem medo de se erguer sozinha num cenário que pouco tem a oferecer além do desamparo, pois bem sabe que nesta coragem encontrará seus pares e igualmente ecoará outros possíveis perdidos, outros estranhos não encaixados. Solidão é coisa que melhor se vive a dois, que na força de uma conversa sincera esvazia os resíduos de uma civilização.

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É impossível não considerar a companhia que Paul Vecchiali vem prestar aquele que talvez seja o cineasta mais solitário da atualidade. Ao Jean-Marie Straub de Diálogo de Sombras (2013), as novas Noites contrapõem a mais bela troca de confidências que dois artistas travaram nos últimos anos, claramente, através da expressão que conosco também partilham. Eis aí dois filmes que se correspondem com a intimidade de amigos, que juntos provocam uma plenitude pouco encontrada, acentuando a maneira como se isolam do cinema restante. Pois são eles que restam. Na extrema contramão, são eles que nos prestam o favor de recordar a essência.

Respondem-se como num jogo: Straub filma o dia para nos dar as sombras, Vecchiali filma a noite para nos dar a luz. Se desde L’Étrangleur (1970), a condição noturna não importava tão visceralmente para o seu universo, em Noites Brancas no Píer vemos a inauguração de uma nova ordem temporal para Vecchiali. O que não surpreende nada, já que tratamos aqui de um artista que parece recomeçar suas pesquisas do zero a cada nova experiência, desafiando a capacidade rasteira de observação a que nos acostumamos, especialmente diante de carreira longas, profícuas. Outro exemplo: não é porque Noites Brancas alicerça boa parte de seus efeitos no uso da palavra, que poderemos evocar as inesquecíveis verborragias de Femmes Femmes (1974) ou Le Café des Jules (1989). Naqueles casos, digladiavam-se personagens que para falar, existiam; hoje, nos deparamos com seres que para existir, falam.

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No domínio da palavra, justamente, é que se aliançam Vecchiali e Straub. O espanto é o mesmo nos dois filmes: diálogos que aproximam as vozes pela certeza da separação, verbos que constroem pontes sobre abismos intransponíveis, ou seja, verbos falhos, falidos em seu intento nobre (daí ter a palavra um tratamento diverso de outros realizadores importantes que também a estão operando com ênfase – Bressane, Linklater, Green –, aqui, a palavra cresce pela sua impotência, pelo que não pode consumar e a torna, com toda intensidade, um elemento humano, finito). Num e noutro, casais que só podem ser uma carne por aquilo que dizem, que confessam, seja pela lembrança ou pela invenção (toda memória é criada).

Ao luto que recobre o filme de 2013, Vecchiali responde com vozes que também não podem ser mais do que fantasmas. Píer que é teatro, mas também cemitério, eis o cenário perfeito de uma fronteira: entre o céu, a terra e as águas, eclodem as forças de toda tragédia. Aos cortes que Straub assina como mecanismos de singularidade, pois são eles que definem os limites de um corpo-plano, Vecchiali contrasta o forjar da iluminação, a farsa que somente o ângulo exato de um holofote pode narrar. Assim que, na conversa de seu casal, são as luzes que convidam as palavras para o baile, clareando ou obscurecendo a sonoridade, definindo o alcance de cada sentimento. E se Godard já foi um dos que fizeram questão de confirmar Vecchiali como herdeiro direto de Minnelli, agora não há dúvidas de que toda boa música também é uma questão de luz.

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Não adianta falar muito sobre esta cena rompante de Noites Brancas, o momento mais Fred Astaire que o cinema deste século poderia gerar. A pausa que os atores fazem nas vozes para que o diálogo prossiga dentro da inquietante coreografia-surpresa é o que nos permite sentir mais totalmente a melancolia que até ali tínhamos por sugestão de texto. Por incrível que pareça, esta é a sequência que melhor representa a origem literária de Dostoievski, um dos escritores que da maneira mais refinada nos ensinou a desconfiar do verbo, a entender que as vozes também se manifestam no pormenor das entrelinhas, que elas também nos revelam por aquilo que escolhem calar.

Se pela palavra o casal de Noites Brancas, livro e filme, pode se irmanar e almejar a esperança de um amor concreto, também é por aquilo que não cabe no discurso que vemos se construir a tristeza de uma abstração. Dançamos quando já não temos outro meio de sentir o outro na pele, quando não temos mais confiança nos minutos seguintes e entendemos que tudo consiste em manter a presença, em perdurar o que já nasce como um fim. Balé mais solitário que se poderia traçar, Vecchiali encerra com esta cena a sua leitura de um desencontro humano, como num rito fúnebre, pois toda música e toda palavra (e por que não a imagem) só pode terminar em silêncio.

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Uma carta ao Manoel

Por Fernando Mendonça

Era tão menino. Espantava-me pensar um século de vida, ouvir e ler das coisas que tanto fizera, que fundo marcara no espírito humano dos anos 1900. Sabia de tua importância, benfazeja posição numa arte que tanto me ajudou a entender-me este menino. Pois foi também através de ti que eu me entendi, Manoel, e que passei a melhor lidar com as imagens de minha formação, já neste outro século, bem depois do ano 2000, quando tardiamente (dizem as aparências) descobri tua luz. Mas a descoberta foi plena, dando-me a consciência de que nenhuma luz é tardia, de que não há atraso para os bons sentimentos e, assim, eu já não poderia imputar-me culpa de coisas que são maiores e estão mais alto do que posso alcançar. Disseste-me naquela primeira sessão que participei de um filme teu (Os Canibais), como se sussurrasse aos meus olhos diante daquela louca alegria de obra, que as coisas não seriam tão fáceis, em nenhum sentido: fosse para mergulhar em teu mundo oblíquo, fosse para dele sair na respiração de outros mundos e cinemas que já não me bastariam ou completariam pela superficialidade, fosse para me assumir como homem de um mundo que também não facilitava os teus caminhos, o teu olhar. Pois, ao mesmo tempo em que me diziam da necessidade em celebrar teu nome e teus muitos anos, roubavam de mim a chance de acessá-lo, de conhecê-lo como gostaria, assim, na intimidade de uma correspondência. Ver teus filmes sempre me exigiu garimpo, do lado de cá do oceano, e tantos me chegaram em qualidade duvidosa que ainda não sei se pude vê-los como de fato são. Talvez por isso ainda não tenha visto todos, nem mesmo muitos dos que cá existem, pois sinto que preciso sempre tocar em ti com alguma calma, alguma percepção distinta da que vivo cotidianamente, cinefilamente, para melhor esclarecer. Cada palavra tua nas sessões seguintes, cada piscadela partilhada ao término dos filmes que desde então apreciei, também me ajudou a situar esta qualidade de cinefilia não como um algo a parte, um impulso destacado da sociedade, dos que me cercam, pois tua lição foi me fazer partícipe direto da realidade. Deste-me a luz para que entendesse as sombras, deste-me o tempo para que vivesse o que há de mais concreto em meu corpo e nas relações que a partir dele posso estabelecer. E o maior de todos os aprendizados neste crescimento, nesta educação que até hoje insistes em me guiar, foi o de compreender que não preciso deixar a meninice para ser homem, pelo contrário, pois agora sei que devo manter o crédito do deslumbramento, da imensidão que pode haver nas cores de uma flor ou numa palavra bem dita. Teus ensinamentos me deram um melhor trato do verbo, ainda que dele me valendo, como aqui, não possa articular a total expressão do que gostaria de dizer-te. Melhor trato porque nele inclusa veio a consciência de que toda tentativa de fala se finaliza no silêncio, e que nisto está o mais efetivo registro da humanidade. Mais do que gastar meu dizer, em ti aprendo o calar, o valor da pausa, dos espaços em branco que permeiam a vida, a arte, o amor. Teu cinema é este justo espaço que me faz menino, Manoel, é o intervalo que une e separa aquele meu plano favorito dentre os que já vi teus, em Viagem ao Princípio do Mundo; aquele quadro, em que a mão de Marcello (tua mão, minha mão) tenta alcançar a flor no alto da árvore. Teu cinema é aquele abismo de poucos e eternos centímetros, aquela ausência cheia de sentido e esperança, que não mais desaparece ou conhece término. E se arrisco minha gratidão, entre tudo que de ti recebo, numa única sentença, ei-la: obrigado por morrer menino. É tua juventude que não me deixa chorar, dando-me o luto mais branco que já provei, prosseguindo tudo o que acompanhei de teus últimos anos, na felicidade do que realizava e não cansava de planejar para o futuro. Tua partida não encerra nada disso, eu sei. E sei que me incumbes, a mim e aos de minha geração, a continuar diminuindo o espaço entre a mão e a flor. O futuro ainda está em ti, Manoel, em teus filmes e tudo o que fizeste, em tudo o que ainda despertará no coração de tantos. Tranquiliza-te aí, como é teu hábito, pois de cá estamos seguindo teus passos, retraçando os caminhos que iluminaste para que encontrássemos os nossos. Minha palavra de apreço, meu sentimento de saudade, meu coração que é teu. Até breve.

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BNSF (James Benning, 2013)

Por Fernando Mendonça

Um dos realizadores de maior influência para o cinema contemporâneo, pelo que experimentou e rompeu no audiovisual, a partir dos anos 1970, James Benning continua sendo uma pedra de toque para os atuais desdobramentos de vanguarda e os caminhos auto reflexivos da imagem, num sentido prático de criação. Foram necessárias três décadas para que a obra do autor ecoasse com relevância nos pensamentos teóricos e acadêmicos, pois, por muito tempo, foi mais comum vê-lo mencionado por outros cineastas e artistas do que por críticos e curadores. O recente impacto no reconhecimento e retomada de suas questões, em compilações impressas e coberturas eletrônicas, é valorizado ainda mais pela contínua produção que Benning apresenta, não apenas em cinemas e festivais, mas em diversos ambientes e contextos de projeção.

Um de seus experimentos mais recentes, BNSF (2013), filme primeiramente realizado em formato de instalação, em 2008, posteriormente ampliado e estendido para a exibição em salas coletivas, consiste num longo e único plano de quase 200 minutos, capturado digitalmente sobre uma paisagem desértica americana. O quadro é atravessado na diametral pelos trilhos de uma linha da rede ferroviária BNSF, por onde passam trens, em esporádicos intervalos, no decorrer do longa-metragem. Trata-se, claramente, de um exercício que desafia os parâmetros de expectativa do público, seja pelo tempo de exposição da imagem, como pelo esvaziamento que seu conteúdo problematiza.

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A relação Cinema e Deserto encontra aqui um curioso exemplo para impulsionar ramificações deste diálogo. Pois BNSF aproxima as qualidades de sua imagem às da areia – sempre movediça e centrípeta, dinâmica e irrepetível – ao mesmo tempo em que tece provocações aos limites do próprio cinema enquanto linguagem, realocando sua primeira condição fotográfica e, principalmente, pictórica, enquanto encenação do mundo. A tela de Benning, em diversos de seus filmes, é herdeira direta da série que Monet concebeu para avaliar a gradação de cores na Catedral de Rouen. O autêntico movimento buscado pelo diretor não é somente o mecânico, do trem, mas o que emana das formas e das sombras, nas pedras, no relevo do horizonte, na árida vegetação, que brota na consciência diante do correr das horas, o lapidar do tempo.

Por toda a sua carreira, o realizador tem sido constantemente associado ao imaginário dos irmãos Lumière, pela maneira como lida com o acaso, a angulação dos planos e o raro equilíbrio documental de subjetivar formas fixas e históricas dentro de um universo próprio, numa linguagem que se assume em processo de descoberta. BNSF tem lugar dentro deste repertório, nutrindo pontos de interseção com os pré-cinemas pela maneira como estes veiculam um caráter de movimento ainda coerente para o séc. XXI. A dilatação da imagem-tempo, que Benning empresta das experiências mais radicais de Andy Warhol, amplia a dimensão dos limites intrínsecos à sua linguagem, fomentando a rarefação das margens que distinguem o Cinema da Pintura, por exemplo.

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Eis uma compreensão dos novos parâmetros de produção artística que nos parece descrever com precisão aquilo em que consiste um projeto como BNSF: “um dispositivo de inscrição relacionado à materialidade dos meios e à criação de subjetividades”. James Benning é atualmente um dos únicos inscritores de sentimentos em superfícies geográficas que conflitam seu movimento interno na relação com as ‘bordas mortas’ de um quadro. Pois não é uma tela, ou um computador, ou uma sala escura, ou um ambiente de museu, que impõe limites ao mover da vida. Viver não tem margens.

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Terra de Leite e Mel (Pierre Étaix, 1971)

Por Fernando Mendonça

“Humor é a polidez do desespero”.
Bernard Shaw

Nenhuma frase seria mais apropriada do que esta, dita por uma das entrevistadas, já próximo ao desfecho de Pays de Cocagne, para expressar a perspectiva de Pierre Étaix, seja no documentário citado como na obra que ele construiu em sua carreira de cineasta. Pelo que vimos nos trabalhos anteriores do diretor, já ficara muito claro o caráter de refinamento crítico buscado através do riso, este exato polimento de uma sociedade que transborda problemas e entraves pela simples constituição de coletividade que a determina. É possível sentir o desespero de ‘estar no mundo’ e ‘estar com o Outro’ em cada gag ou ação dramática solucionada por seus filmes, sendo Cocagne o acúmulo mais absoluto que Étaix poderia alcançar para amarrar as dobras ficcionais anteriormente propostas.

Estruturado numa espécie de filme-ensaio, o documentário maldito foi responsável por encerrar a carreira de Étaix como diretor, após uma série de processos na Justiça e uma forte repressão da censura francesa. Tudo o que o diretor fizera, após o Maio de 68, foi filmar os franceses em férias, ou em campanhas publicitárias e eleitorais. Porém, muitas das pessoas que permitiram previamente o uso de sua imagem, não concordaram com as ideias difundidas pelo autor, sentindo-se ludibriadas. Problema equilibrado entre a ideologia política e a montagem cinematográfica, percebe-se aí uma confirmação daquilo que Étaix problematiza em seu filme: o estado alienado de uma sociedade que já não consegue se refletir, que não suporta a autocrítica e, por isso, foge. É desta fuga impossível que trata seu cinema, sempre, e por mais que ele tenha entrelaçado ao pensamento sociológico um complexo jogo de questionamentos ao próprio humor e o riso (originando uma nova forma documentária, no mínimo), Étaix não conseguiu driblar as limitações que já sabia existentes, o que não foi exatamente um problema fílmico, já que ele nunca pretendeu fugir.

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Nota pessoal, não posso deixar de registrar o fato desta minha breve reflexão sobre Pays de Cocagne vir à luz, imediatamente, após a conclusão de um livro que também foi decisivo para os franceses da época: As Coisas (Les Choses), publicado em 1965, por Georges Perec. Passei toda a leitura do romance-inventário com Étaix em mente, mas não só ele, como também Tati, Rivette, Godard, Chabrol e cia. Todos estes, em algum momento, tocaram no mesmo e delicado ponto da sociedade manipulada, engessada e oprimida por rotinas que se impunham a despeito de qualquer lógica ou vontade própria de seus indivíduos. Os excessos do consumo, da publicidade e do capital, foram todos vértices de artistas inconformados, não somente com os rumos da conduta humana, mas da linguagem que usavam em suas artes, igualmente corrompida e aprisionada pela maior parte do público. A descrição de Perec para seu casal de protagonistas é mais do que aplicável ao estado social de Cocagne: “O inimigo era invisível. Ou melhor, estava dentro deles, os tinha apodrecido, gangrenado, estragado. Cabia-lhes pagar o pato. Pequenas criaturas dóceis, fiéis reflexos de um mundo que zombava deles. Estavam enfiados até o pescoço num bolo do qual nunca teriam mais que as migalhas.”

O mais doloroso, no fim, é constatar que os males apontados naquela década, longe de serem resolvidos, apenas se intensificaram, e rareiam as vozes dispostas a discuti-los. O exercício de montagem desafiado por Étaix, de concepção tão simples e elementar ao cinema, é cada vez menos prosseguido ou desdobrado em seus efeitos, sendo o esvaziamento do mesmo, a pior das censuras que lhe poderia caber. Possivelmente, a chave de conscientização para as novas gerações bem poderia se localizar na preciosa abertura deste Cocagne, dois minutos dos melhores que se pode conseguir no cinema: neles, o próprio Étaix é entrevistado a respeito da realização do novo longa, aparecendo mergulhado em quilômetros de negativos, película acumulada na sala de montagem para o corte do filme; ele menciona sentir-se atacado pelo infinito material e, numa inspiração à Méliès, vemos os metros e mais metros de filme ganhar vida e se movimentar monstruosamente, não cabendo mais na sala e enrolando por completo as pessoas em cena. Nada mais sintomático para uma contemporaneidade que já não tem o controle de suas imagens e que as multiplica desordenadamente e sem o tempo para sua depuração. Fica aí o recado de alguém que sentiu na pele as consequências e os riscos de uma filmagem, ou melhor, de um pensamento que se faz ouvir pelo que é filmável. Para que as próprias imagens de nosso tempo não ‘apodreçam, gangrenem e estraguem’, ainda há muito a se descobrir com Pierre Étaix.

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Coração de Cristal (Werner Herzog, 1976)

Por Fernando Mendonça

Fluem
as águas, densa neblina,
da cadente luz o irromper
do sol ou das formas
terrestres, com os bichos, ruídos da vida,
abismo que atrai para si
atenção a pulsar, escorrer, evanescer entre
rochas, fendas, aberturas de finita superfície.
Prefigurações do fim.
Destruição que é começo, princípio das coisas,
novos céus e terra
pelo olhar lapidados, reformados, corrigidos
em suas imperfeições. Plenos.
Eis a dimensão do universo,
retratação de um cosmo oculto
sob a umidade do ar, a levar consigo
o tempo. A conosco
fluir.

Beira a leviandade pretender qualquer lógica do verbo diante de uma obra como Coração de Cristal. Recebê-la em palavras é igualmente obrigar-se à criação, determinar o raciocínio não pela organização de conceitos, mas num articular de sensações que ultrapassem o logos para contaminar todo um estado instintivo de percepção.

Perpetuar o que Werner Herzog aqui poetiza é lidar com o caos, com as formas não organizadas de vida que, em si, já respiram, deglutem, piscam, ordenam um novo parâmetro de visibilidade. Experiência incomparável de imagens, sons e poesia, Herzog elabora um de seus mais viscerais e arrebatadores trabalhos, sendo vã a tentativa de esgotar adjetivos para o que ele realiza.

Basta dizer que Coração de Cristal é filme que mal cabe no cinema. Seu rigoroso corpo de luz e sombra, de silêncio e voz, é material humano dos mais densos, potência que vislumbra os fundamentos do mundo, recuperando a gênese de toda uma dimensão física a nível que mal se permite comprovar como enxergado, por mais que o vejamos.

Situado numa aldeia da Bavária, século XVIII, seu enredo desenvolve-se sobre um pequeno apocalipse que os habitantes do local enfrentam ao saber da morte de um velho vidraceiro, negociante responsável pela sobrevivência econômica da região e único conhecedor da fórmula para o famoso Vidro rubi, principal e misteriosa fonte de renda, agora perdida, enterrada com seu criador.

Do luto sofrido pela comunidade, um reflexo do agonizante mundo natural, de um planeta que ainda não se sabe redondo, da esperança que se debate a beira da morte. É o profeta da região quem nos alerta do fim, Hias (Josef Bierbichler), eremita que atravessa toda a duração do filme prevendo as configurações de uma catástrofe. Concretizando o trágico pelo corpo de sua voz.

É o profeta quem enxerga todas as coisas. Quem dá forma inclusive ao que não se pode ver. Seu duelo com o invisível urso selvagem, cena nuclear dentro de tudo o que Herzog já concebeu, sinaliza o estado absoluto contido em Coração de Cristal de representar o irrepresentável, de ofertar aos sentidos aquilo que, platonicamente, nunca se afastou de um mundo ideal. É como se Herzog rompesse as estruturas do universo, alterando as composições físicas não somente dos corpos ou superfícies naturais, mas dilatando-as na própria dimensão do tempo. Pois em sua escatologia até mesmo o que não se pode ver ganha a atenção de uma câmera, torna-se imagem. A violenta luta do profeta Hias contra a criatura transparente reconfigura um embate primitivo do próprio cinema contra a transparência em si, contra o que não se filma, mas ainda assim sobrevive na tela. Violação do olhar, do que recobre todas as formas numa frágil materialidade, epiderme do caos. Pois não importa o que antecede a imagem, é nela que a criação se completa.

Igualmente exemplar a encenação conseguida dentro da fábrica de vidros, entre simples trabalhadores (únicos no elenco do filme, junto a Bierbichler, a não trabalharem sob o efeito de hipnose, pois sim, Herzog fez questão de extrair de seus atores qualquer naturalismo ou entorno dramático) que lapidam a matéria incandescente e no vidro concretizam as mais variadas formas imaginárias. E talvez seja na cena em que vemos um dos operários esculpir um cavalo de vidro que finalmente cheguemos ao motivo de Herzog não apenas diante deste filme, mas de toda sua vida criativa junto ao cinema. Cena direta, de mise en scène fixa, invariável; dar a ver inquestionável de uma ontologia que brota pela imagem e que nela arremata todos os sentidos possíveis da criação; ainda que inserida num painel ficcional dos mais complexos, nela Herzog confirma o exceder da ilusão, seu ultrapassar, um preocupar-se com a realidade concreta ou, pelo menos, com o que é possível concretizar de real dentro do cinema. Do foco de luz que emana do centro para as bordas do quadro, do vidro para o espaço e sua decorrente cristalização, testemunhamos imagens do fôlego em eterna presença, da vida que, seja na criação ou no fim do mundo, permanece alvo de todo movimento expressivo. Em Coração de Cristal fluem os ecos de um testamento da humanidade, contornos da existência, lugar em que Herzog confirmou a ambição das ambições: cabe ao cinema não apenas espelhar a vida, mas fazê-la nascer, dela ser fonte. Eis a luz.

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Rir é o Melhor Remédio (Pierre Étaix, 1966)

Por Fernando Mendonça

Quatro curtas compõem essa pequena antologia de Pierre Étaix, tesouro que também guarda um quinto e substancial momento de brilho já em sua introdução, na criativa abertura de créditos sustentada como uma espécie de filme autônomo, de iluminação para os seguintes episódios, assim como para tudo o que o diretor refletiu em sua produção de curtas. Nos dois minutos que abrem Tant Qu’on a la Santé, um reflexo imediato do espetáculo, com grandes cortinas se abrindo para a projeção dos créditos, numa tela que não esconde o artifício da pintura e ganha novas dimensões com a camada sonora que desdobra: o que ouvimos são os sons exatos de uma sala cheia, à espera da representação, pessoas conversando, pedindo silêncio, alterando-se no humor, como se digladiassem num pequeno inferno em que é quase impossível o necessário e solitário gesto da concentração. Perfeito o descortinar da sessão, que contará com filmes a respeito disso mesmo, de infernos causados pela relação com o Outro, em variados níveis de contato humano, dos mais íntimos aos que publicamente se contornam, não importam os espaços ou as intenções em jogo.

Já no primeiro episódio, Insomnie, também a estreia de um trabalho colorido do diretor — que sinaliza uma sensibilidade refinadíssima para texturas e contrastes, diversificando a paleta em tons inteligentes e narrativos —, vemos sob uma perspectiva bem humorada, o tormento noturno de um leitor que, ao lado da adormecida esposa, envolve-se nas páginas de um livro sobre vampiros. Realidades confundidas, suores imprevistos, parágrafos vencidos, trata-se não somente de uma das mais inventivas reflexões sobre as teorias literárias da recepção, dentro da linguagem fílmica, mas de uma amostra desse confronto de gêneros pretendido pelo cinema de Étaix, como se na própria superfície narrativa já se pressagiasse o inferno. Humor e horror dão as mãos para indicar que as crises levantadas pelo autor (que também interpreta o leitor), podem até começar no recôndito de uma mente, nos anseios individuais de alguém que sofre pela incerteza do futuro (a próxima página, a possibilidade do sono), mas sempre terminam por romper as distâncias da realidade, alcançando as pessoas próximas e nelas revelando uma espécie de fonte dos medos, de origem do mal. Não por acaso, o desfecho fantástico em que a esposa ao lado vem se tornar uma manifestação concreta do vampirismo, ansiosa pelo vulnerável pescoço que adormeceu, ao fim da leitura.

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Do ambiente doméstico ao coletivo, entramos no filme seguinte, Le Cinématographe, uma das mais ácidas críticas já feitas ao espaço das imagens em movimento, seja num sentido físico ou ideológico. No primeiro momento, a comédia se instala pela infernal procura de um espectador (sempre o próprio Étaix) por um lugar na sala lotada de cinema. Filme iniciado (um western!), luzes apagadas, a jornada é penosa, e em poucos minutos, já não sabemos se rimos ou choramos com a situação do personagem. Lidar com a má educação do público, a exploração dos funcionários e a péssima arquitetura da sala, que não permite uma boa visão da tela em diversos pontos erroneamente ocupados por poltronas, despe a potência da sessão de qualquer contorno romântico: ver um filme, como indicava o som dos créditos iniciais, pode ser uma experiência trágica, em que o conflito da coletividade anula os efeitos do espetáculo, e em que se torna impossível uma devida postura do olhar, qualquer risco de introspecção.

O filme prossegue, não aquele que o espectador não viu, mas o que continuamos acompanhando, do lado de cá. E o nível de autorreflexão aprofunda na medida em que notamos uma inadequada utilização, não apenas do espaço cinematográfico, mas daquele que é propriamente fílmico, ou seja, o espaço da película, daquilo que se projeta na tela e deixa de se preocupar com qualquer princípio estético. A propaganda que preenche os intervalos da sessão no cinema acompanha o espectador mesmo fora da sala. Nas ruas, nas casas, entre os amigos, a ordem dominante é publicitária, consumista, à beira do ditatorial. São gestos extremos e patéticos que Étaix usa para mais uma vez questionar os rumos da imagem, a validade do que se pode fazer com as câmeras e o domínio da representação. Um inferno que brota das telas, contaminando de forma massiva e desproporcional todas as camadas da sociedade. Afinal, o cinema também é o Outro.

E, finalmente, o encerramento da antologia com dois curtas que se espelham, um na cidade e outro no campo, dando prova de que não há lugar privilegiado ou livre de ameaças, no caso, isento dos mórbidos risos insistidos por Étaix. Tant Qu’on a la Santé e Nous N’Irons Plus Aux Bois, fecham a sessão e se completam como se fossem a luz e a sombra originalmente pretendidas, aqui. Neles, infiltram-se crises que nasceram desde Heureux Anniversaire (1962), na terrível lapidação de um tempo que é insuficiente para qualquer ponto de vista, pois Étaix faz questão de explorar suas ações como num prisma cubista: médico e pacientes, homens do campo ou da cidade, todas as possibilidades são levadas em conta para concluir o acertado título que ganhamos do filme em português. Neste cinema, o riso se estabelece de fato como único remédio, derradeiro antídoto para situações de que não se pode escapar. Não se trata de fuga, de alheamento, mas de um corajoso embate contra o estabelecido e aceito. Pierre Étaix nos recorda, cena após cena, de que todo inferno depende de um céu para existir.

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Terra Prometida (Gus Van Sant, 2012)

Por Fernando Mendonça

A primeira imagem: sob as águas, nos aproximamos de uma superfície que espelha o rosto de Matt Damon, capturado de forma quase abstrata e irreconhecível, dado o movimento de agitação no líquido que o ator usa para se lavar.

A última imagem: num afastamento panorâmico, nos distanciamos de uma pequena cidade rural, ao som de uma trilha (Danny Elfman) que destoa levemente do desfecho, causando um estranhamento na atmosfera até então sustentada.

Uma e outra, são estas as imagens que parecem realmente carregar a marca de Gus Van Sant, diretor que não viu problema algum em assinar friamente um projeto encomendado pelo amigo Matt Damon, ator/roteirista que já lhe fora parceiro em dois momentos importantíssimos da carreira (Gênio Indomável, um dos títulos que aliou respeito e popularidade ao seu nome, nos anos 90, e Gerry, a experiência que alavancou a sua fase mais expressiva de realização, nos anos 2000). A bem da verdade, não é incomum a prática desta ‘brodagem’ dentro da produção cinematográfica, nem mesmo no âmbito de Hollywood; por toda a história vemos bons realizadores abrindo mão de sua perspectiva autoral para favorecer algum amigo intérprete (Hitchcock, Wyler, Ford, nem mesmo os gigantes escaparam disso), então não é surpresa, e nem se esperou o contrário, de que o novo Van Sant não fosse exatamente novo, nem exatamente Van Sant. De forma bem calculada, Gus cumpre todos os requisitos pedidos pelo roteiro do amigo, abrindo uma espécie de hiato, entre a primeira e última imagem de Terra Prometida, sem deixar de, com estas cenas, dar a piscada de olho que, aí sim, se espera de um diretor como Van Sant.

Vejamos bem quão significativa é esta abertura, no sentido da fragmentação que ela confere aos contornos do rosto, justamente, daquele que é a razão de ser do filme. Se Van Sant não se importa em elevar a presença de Matt, em alça-lo como núcleo central de sua filmagem, ele também só cumpre esta função depois de ‘borrar’ e desconstruir toda a força de um close (ângulo retomado exaustivamente no decorrer da projeção). É o tipo de cena que diz: “fica aqui o meu ponto de vista para entrar o seu”, dando margem a toda uma provocação do diretor que, ainda posteriormente diluída, não deixa de nos lembrar dos confrontos típicos já proporcionados justamente a partir do rosto e corpo de Matt Damon, na carreira de Van Sant. Mesmo tipo de crise sugerida pela última imagem do filme, marcada por um significativo distanciamento do espaço, um conceito tão caro à Gus e tão esquecido em Terra Prometida; novamente, uma cena que diz: “fica aqui o seu ponto de vista, para que eu retome o meu”, em algum próximo trabalho, inspiração ou mesmo encomenda (pois não é este um problema a priori de encenação, mas a maneira como ele é resolvido).

No mais, ainda que possamos, com relativo esforço, encontrar outros ‘momentos Van Sant’ em seu próprio filme — como na imagem de uma ave sobre a fiação de postes, interrompendo sem prejuízos uma ação dos protagonistas, ou o vertiginoso giro de câmera sobre o corpo de Matt na cena em que ele tenta interpelar o oponente (John Krasinski) pela primeira vez — as imagens que realmente importam ao realizador, dentro de uma perspectiva autoral, só podem ser estas que emolduram toda a extrema transparência de Terra Prometida e, de alguma forma (e com alguma torcida nossa), indicam a autoconsciência devida a um cinema que não se entrega em definitivo à diluição. Como na imagem de abertura, é tudo uma questão de se reencontrar o foco certo, sob as condições adequadas.

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Yoyo (Pierre Étaix, 1965)

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Por Fernando Mendonça

É um dos primeiros gestos do milionário Pierre, ainda na abertura de Yoyo (1965): olhar desconsolado para um porta-retratos, num gesto de saudade e impotência, após esconder-se de seus criados e dos barulhos mundanos. Na fotografia, a imagem da amada, perdida no tempo, lembrando-o de que nem tudo pode ser comprado com uma fortuna, que nem todos os desejos podem ser satisfeitos. Cena-repetição nascida desde o primeiro curta-metragem de Étaix, Rupture (1961), obra-prima que brindava seu protagonista com o recebimento de uma carta trazendo-lhe o próprio retrato, rasgado ao meio pela namorada que bruscamente findava a relação. Tais momentos pausam o bom humor destes filmes e perfazem a exata lembrança de que o riso é um contraponto, um movimento de resistência ao que se pode viver de doloroso, sentimental ou historicamente. Se os primeiros trabalhos de Étaix já bastavam para comprovar um conhecimento absoluto do mecanismo narrativo e da história guardada pelo cinematógrafo — é notável como algumas de suas gags concentram meio século de cinema, reagrupando e recodificando diversas camadas da imagem e do som —, com Yoyo, o realizador confirma a rara maestria de saber representar uma emoção ou estado de espírito através de um cuidadoso pormenor de linguagem, uma questão de mise en scène.

Vertiginosa a recorrência dos retratos. E o garoto Yoyo, filho que será descoberto pelo mesmo milionário após reencontrar sua paixão de outrora num espetáculo circense, também terá o seu: uma fotografia da mansão em que vivia seu pai, antes da falência, antes da paternidade em si mesma. Pois o rico homem só retomará seus amores após perder todas as posses no período da Segunda Guerra. Só se ganha com a perda, só se ri com a dor. E na fotografia do lar não habitado, da espantosa arquitetura que lhe fora roubada na infância, o garoto (Philippe Dionnet) também ecoa a saudade pelo que não viveu. Vemos o seu carinho pela imagem, guardando-a entre as partituras que usa nos ensaios de violino, o lugar mais certo para nos fazer entender que são estas memórias perdidas a verdadeira melodia do cinema de Pierre Étaix. Não é somente para disputar com La Strada, o Fellini citado em seu longa mais assumidamente felliniano, que Étaix busca uma melodia simples e certeira para centralizar as dores da nova família mambembe. O caráter de homenagem, típico em toda sua carreira, adquire identidade por justamente não se esquivar das referências. Ao tocar uma música própria, Yoyo também nos toca a memória num ponto quase impossível de largar — não há como encerrar a sessão sem cantarolar as tristes notas, sem perceber-se tão genuinamente equilibrado entre o riso e a lágrima.

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Já sabíamos que o interesse pela sonoridade é uma das tônicas que obceca Étaix. Desde seus curtas, o imaginário do cinema mudo dominava as dimensões de cada personagem ou situação, o que se exacerba na magistral apresentação do protagonista em seu primeiro longa, Le Soupirant (1962), personagem interpretado, como sempre, pelo próprio diretor, numa cena em que veda os ouvidos com tampões para não se perder em seus afazeres, deixando de escutar tudo o que se passa dentro de casa e nos conduzindo ao mais pleno silêncio — deslocado pelo que vemos sem poder ouvir, pela ciência do som, mas não a sua percepção. Se ali tínhamos a sonoridade explorada com todos os requintes de experimentação formal possíveis para o cinema falado, em Yoyo esta mesma marca aprofunda a tessitura da diegese, tornando-se um dos principais temas, ou melhor, o carro chefe de todos os temas que circundam as peripécias do roteiro. Justamente por tratar-se de um filme sobre a perda (das riquezas, das memórias, das inocências e certezas), aí o mais acertado enredo que poderia haver para se refletir as perdas do próprio cinema. Afinal, o que mais perdeu essa arte ao se despedir do silêncio? Qual foi o nível de negociação, quais os novos elementos realmente envolvidos, em quê a materialidade da representação se transubstanciou?

Numa das incontáveis gags do longa, Pierre Étaix comete a trapalhada de depositar um relógio sobre um pequeno forno com as chamas acesas. O objeto derrete sem que ele perceba, entretido com a leitura da nova carta dos pais (perdido entre as memórias, como no início). Há muito que deduzir com esta sequência, e a conclusão é certa: o cinema de Pierre Étaix é, acima de tudo, o registro de uma ferida que jamais cicatrizou, a incômoda lembrança de uma dor que não amorteceu. Um cinema sobre o cinema interrompido, sobre as necessidades de uma atualização que pouca novidade traz.

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O crescimento do menino Yoyo e sua interpretação retomada pelo próprio Étaix, que também encarnara seu pai, enfatiza este eterno retorno da arte, a necessidade de duplicações, de reescritas, de abismais reflexos como estes que dão forma a todo legado do realizador. É o mesmo homem dando corpo ao pai e ao filho, são as mesmas notas da música se repetindo, a mesma história das artes, em sua ascensão e queda, buscando os meios de se perpetuar. O menino cresce, segue a carreira de palhaço, esbarra com o sucesso e, num golpe do destino, enriquece e reassume os espaços paternos, a mesma mansão da fotografia escondida. Mas se o tempo se foi, se o passado não mais retorna, não adianta fingir a identificação. O reencontro com os pais, que renegam as escolhas do filho e nos negam a própria imagem — não mais os vemos, mesmo no cortante último diálogo que travam —, é dos mais tristes episódios que o cinema já concebeu sobre a diluição de um afeto. Já não há o reconhecimento do sangue, do sobrenome, dos espaços que um dia foram lar. Yoyo tem seu desfecho entre ruínas, ainda que maquiadas e ornamentadas pelo esnobe luxo das celebridades, como se espelhasse a desgraça de uma linguagem que se resumiu à indústria, assentando as últimas notas críticas contra seu próprio sistema.

Não poderíamos viver em melhores dias para se entender e sentir cada uma das alfinetadas que Étaix desferiu contra seu tempo. Pois mais tempo se foi, maiores são as perdas, ao ponto de hoje redescobrirmos num filme dessa grandeza, que em pouco mais de 90 minutos atravessa gerações e nos faz íntimos de cada detalhe que deu vida a um século com o cinema, uma qualidade quase totalmente perdida dentro da comédia, de tornar o riso um dos maiores atos políticos que se possa realizar, para não dizer um princípio de filosofia. Se a última cena do filme resiste ao tom trágico (Yoyo montado num elefante, afundando no lago de seu próprio terreno, como numa sombra de Mizoguchi), isto ocorre porque qualquer possibilidade de lágrima, em Étaix, precisa secar antes que o sorriso se forme no rosto. E, numa simples fusão, o lago se converte em picadeiro, o suicídio em ressurreição. Eis a esperança da imagem, sobreposta sobre si mesma, o derradeiro resgate da memória, pois, no círculo do picadeiro lembrado, reencontra-se o círculo/ciclo da vida, jamais fechado. Pierre Étaix sabe que, para se salvar uma imagem, somente outra. Nada mais adequado que nossos dias façam destes filmes, o seu picadeiro.

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Além das Nuvens (Michelangelo Antonioni & Wim Wenders, 1995)

Por Fernando Mendonça

“Quando se copia um quadro de um grande artista, existe uma chance de repetir aí o ato desse artista e talvez de reencontrar, mesmo por acaso, o movimento exato.”

Uma revisão crítica de Além das Nuvens pode encontrar como ponto de partida um interminável número de questionamentos e opiniões presentes no filme e distribuídos entre suas quatro breves histórias, todas elas interligadas junto ao processo criativo vivido pelo personagem-cineasta de John Malkovich, alter ego explícito do próprio Antonioni; decidimos aqui um olhar mais atento apenas a um entreato destes enredos, independente de qualquer vinculação narrativa com as referidas histórias.

A frase acima citada faz parte de um diálogo que Marcello Mastroianni trava com Jeanne Moreau enquanto pinta uma paisagem da natureza. A aparição do casal em cena pode ser quase considerada figurante, sem nenhuma contextualização de personagem, sem retorno ou sequer menção no decorrer do filme em questão, ignorando apresentações, explicações ou qualquer tentativa de iluminação simbólica. Fugaz como um pensamento é sua participação, mas tão profunda como o mesmo é sua importância. Na verdade, a reflexão mencionada se dá após uma irônica observação feita por Moreau, quando esta indaga o porquê de a sociedade precisar de cópias das coisas, não apenas no caso da pintura, mas referindo-se a todo o leque de objetos de consumo em circulação. Ao abordar a ideia da cópia como um princípio do ato criativo, Mastroianni problematiza uma linha de pensamento que pode nos conduzir a compreensão de não apenas os objetos de consumo serem capazes de aprisionar a sociedade, mas de o objeto da arte em si, ser igualmente um aprisionador do artista, por seu enfoque tão modernamente capitalista, massificador.

Mas as intenções de Antonioni com esta seqüência parecem ir muito além de uma crítica ao sistema econômico vigente no mundo globalizado. O quadro que Mastroianni pinta não é produto comercial. Sua última frase já diz: “…Eu compreendo ser engraçado senhora, não vou vender de qualquer jeito…” Ele é mais. Transcende as necessidades financeiras e a realidade da natureza tendo como principal significado e objetivo proporcionar a satisfação de seu criador. Criador que é homem, que é essência. Criador que é Deus. É notável a necessidade do artista aí exposta. Encontrar o movimento do artista original, criador da vida natural e sensível, é o objetivo confessado por Mastroianni para o gênio repetido, possuidor do não mais exclusivo dom, que já pode ser encontrado num simples pintor a copiar o quadro da vida.

Imediatamente após esse diálogo-reflexão retornamos ao personagem de John Malkovich e sua significação relativamente direta com a voz de Antonioni. Agora, ele se encontra no saguão de um hotel, vagando entre um cômodo e outro como sem nada para fazer. Admira uma pintura de paisagem que sugestivamente poderia ter sido feita por Mastroianni, até que se depara com um quadro que retrata um homem triste. Tenta imitar a posição do homem do quadro e acaba chamando a atenção de uma senhora que estava lendo, sentada. Ela o ajuda em seu objetivo, o de imitar o homem do quadro, com recomendações que direcionam: “…o outro braço por baixo… incline a cabeça pra direita… um pouco mais triste… assim.” A senhora é novamente Jeanne Moreau.

‘É’Jeanne Moreau, pois a essência do personagem para a narrativa total de Além das Nuvens é tão insignificante como aquele encarnado por Mastroianni, não possuindo dependência com os enredos (estes filmes de gaveta), nome ou funcionalidade na trama. Dessa forma, por Moreau e Mastroianni terem sido importantes atores na carreira de Antonioni, eles revestem essa obra com seus corpos e nomes, pois o mito que se tornaram os constitui personagens fictícios, ampliando e intensificando a introspecção o filme propõe. Como Mastroianni alcançou um diálogo sublime por sua simplicidade, Moreau representa em aproximados trinta segundos de cena um dos papéis metafísicos mais questionadores do cinema de Antonioni.

Ora, se o simulacro já é a cópia da cópia, ou seja, aquele quadro do homem triste que Malkovich observa, do que pode ser chamado o ato de cópia que Malkovich executa? O quadro é o terceiro nível do mundo platônico, mas em que nível se encaixa a imitação de Malkovich? A intensidade dessas indagações aumenta quando Jeanne Moreau entra em cena e se desvencilha do mundo em que estava, o da leitura (arte), para conduzir Malkovich ao mais próximo da verdade copiada. Qual o papel de Moreau?  Artista? Certamente não. A impossibilidade na contagem dos níveis platônicos torna-se mais perceptível se for levado em conta que todo este círculo de imitações é exposto no universo diegético do filme de Antonioni, produto, em si, já pertencente a um nível distanciado da verdade. Mas onde está a verdade?

O percurso pelas histórias do filme é marcado por um elo muito tênue, por vezes não compreendido. Mas não entender a inexistente explicação para esse conjunto de ficções é sentir a sombra da urgência criativa. De um processo que, em Além das Nuvens, não se consuma. O alter ego de Antonioni não realiza nenhum filme, apenas se deixa consumir pela necessidade que antecede a criação, necessidade de um gesto, de um simples movimento que sempre insiste em fugir. Se nos perguntamos em dado momento ‘qual o papel de Moreau?’ sem encontrar resposta, é porque talvez ele esteja em nós. Cabe a nós completar o que se iniciou em arte. É de nós que o movimento sai e é para nós que ele retorna, resultando dessa troca o cinema enquanto intermediário entre a verdade e a vida.

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O martírio de Werner Herzog

Por Fernando Mendonça

“Um velho caminha sobre a ponte, sem se notar observado. Vai devagarinho e com dificuldade, sempre descansando depois de uns poucos passos hesitantes. É a morte que caminha com ele.” O registro feito por Werner Herzog no domingo, dia 01.12.1974, serve de contraponto ao excêntrico método de observação empreendido por ele naqueles dias, durante sua caminhada de Munique a Paris. Muito mais do que um exercício voyeur, com esta experiência Herzog colocou-se a si mesmo como ponto a ser observado, primeiramente pela sua própria consciência — pois nada como uma dolorosa caminhada para despertar os sentidos até o limite —, e posteriormente por todos que aceitassem a aventura de ler Caminhando no Gelo, publicação do diário que o cineasta escreveu durante os vinte e dois dias de jornada que percorreu para encontrar sua amiga Lotte Eisner, à beira da morte.

A motivação do sacrifício, este inominável ato de fé empreendido por Herzog, foi a enfermidade de Eisner, historiadora do cinema expressionista alemão que representava toda uma geração estética já perdida. Entusiasta do novo cinema, ela fora uma das primeiras a perceber Herzog, desde Sinais de Vida (1968), como um dos responsáveis pelo renascimento da linguagem em sua nação, convidada para narrar Fata Morgana (1971) e daí por diante sempre próxima do diretor num declarado vínculo afetivo, que se intensifica após sua doença. Ao descobrir o estado terminal da amiga, Herzog encarou tal finitude como um reflexo a ser sofrido pelo próprio cinema, ou seja, por sua própria existência. Vê-la morrer seria enterrar toda uma perspectiva de arte, toda uma herança imperiosa para os que então resgatavam o movimento dentro de novos e necessários valores. Daí a promessa, o propósito espiritual de, como num martírio, lançar-se a uma jornada expiatória pela sobrevivência de Eisner.

Importava sofrer, compartilhar a dor de habitar um corpo finito, experimentar a proximidade da morte, como na visão daquele velho, observado no início de dezembro. Toda sua trajetória, anotada diariamente em páginas que levariam mais de quatro anos para se decidirem publicáveis, identifica um Herzog agora inserido corporalmente no universo a que sempre condicionou os personagens de seus filmes. Foi como se reinventar, colocar-se nos roteiros do destino e assim verificar a mortalidade que permanece nos ossos, nas formas do mundo, mas que numa natural resistência insistimos em ignorar. Assim como em seu cinema já foram identificados seres e tipos do excesso, movidos por ações concebidas na grandeza de seus meios (Deleuze), aqui Herzog espelha toda uma condição base de suas criações, fazendo de si mesmo um contraste do impossível, daquilo que não parece provável ou, em termos ficcionais, sustenta-se apenas pelo que poderia ser verdade. “…tomar uma condução? Antes levar a insensatez, se é insensatez, até as últimas consequências”, é a meta do Herzog homem, ser que abandona as câmeras e, com papéis e caneta, propõe um dos mais inusitados exercícios criativos de sua vida.

Não custamos a crer nos insanos atos de Herzog porque todos eles tornam-se palpáveis através das palavras. Sua escrita, tão moderna quanto seu cinema, embrenha-se pelo monólogo interior, pelo jogo de repetições e inflexões que terminam por acentuar o caráter imaginativo de seus intoleráveis dias. Não é de espantar a força poética da linguagem; tendo a literatura e a história como formação acadêmica, Herzog sabia com o que estava lidando, por mais que suas pretensões fossem outras e todas dependessem de uma mediação cinematográfica para credibilidade (“Só acreditaria nisso tudo se fosse um filme”). Diante do que ele vive em Caminhando no Gelo, acreditar não é mais um ponto de partida, mas sim uma consequência de tudo que o atravessa.

Impossível descrer num corpo com “princípio de bolhas nos dois calcanhares”, em que as “coxas soltam vapor como um cavalo”, em que “a dor sobe da virilha, a cada passo” e “a saliva fica pegajosa, grossa e branca como a neve”. Esta percepção em estado bruto, este lamento que emana de cada articulação e parte do corpo são o que impedem Herzog (e também o conduzem) ao enlouquecer. Ele sabe que precisa continuar em frente, como num filme que urge ser finalizado, um projeto que não pode ser abandonado. Por isso sua resistência em permanecer humano, em não se desgarrar das formas que o contornam — por diversas vezes ele se vê obrigado a “verificar no espelho se ainda tinha aparência humana”. É assim que a referência a alguns filmes torna-se uma espécie de âncora, de porto futuro a se chegar, garantia de um amanhã.

Misturados a lembranças do passado, Coração de Cristal (1976) e Stroszek (1977), seus próximos projetos com o cinema, são citados como fantasmas vistos por olhos não mais confiáveis, pois enganados pela própria sombra (“Minha sombra me espreitava… agachou-se e rodeou minhas pernas”). Daí a constatação de o próprio Herzog não se encontrar mais na pura realidade ou na extrema ficção. Seus dias e noites, cada movimento de seu corpo, tudo aquilo que apreende dos espaços percorridos, das variações climáticas que o assolam, são projeções de um ato que não poderia se distanciar do literário, do anseio que a letra moderna assume ao confrontar-se com um mundo fragmentado, habitação da morte. Daí ser o esfacelamento de seu livro, todo demarcado e dividido pelas datas entre 23.11 e 14.12.1974, um convite a uma temporalidade própria, particular de sua experiência pessoal, devaneio da cronologia.

Dando continuidade a um projeto nascido desde o séx. XIX — em específico, desde que Strindberg propôs o registro de “uma folha que cai” como o “nível mais real da realidade” —, Herzog ilumina com este diário todos os mundos que seu cinema ainda formará. São as folhas que caem, os animais que cruzam, são os declives da terra, as águas que fluem, fragmentos de cenas dispersas em sua filmografia; universos que não passam, como ele diz, de “bocejos do vazio”. Abandonar-se sozinho numa caminhada, encontrar em tudo a vastidão do nada, foi a maneira mais dolorosa de prosseguir o que iniciara desde seu primeiro contato com as regiões desérticas da Terra: “O tempo que passei no deserto é parte de uma busca que para mim ainda não terminou.” Assim, o sacrifício ofertado pela vida de Eisner, também alcança o milagre desejado por Herzog para si, de continuar sua busca sem a interrupção do êxtase. Pois não há como evitar a associação de seu gesto peregrino ao caráter estático diretamente evocado por tantos de seus filmes.

Movimento de religiosidade, é curioso ler as confissões de Herzog (o que daria um belo subtítulo para seu livro) e saber que, no meio da paixão, da via crúcis solitariamente empreendida, ele não pôde evitar um breve desvio no caminho para visitar a casa onde nasceu Joana D’Arc, em Domrémy. Como numa identificação possível somente aos mártires, aos que especialmente foram tocados pelo que não se pode descrever, este breve episódio de Caminhando no Gelo concentra a fé que Herzog não professou, tudo o que ele calou do registro literário — pois o material publicado foi suprimido de algumas passagens muito íntimas, segundo sua própria nota. Entre D’Arc e Eisner, uma estreita ponte de esperança, uma provação a ser inscrita por dedos quase congelados, permanentemente movidos pela confiança no amanhã, no que o sol traria em seus futuros nascimentos.

Se a dilacerante experiência literária de Herzog pode guardar elos com o que outro expoente alemão faria a partir de mais um cinema à beira da morte (Wim Wenders e seu Nick’s Movie), a sua singularidade se dá pela confirmação do milagre. Após a visita do amigo, Lotte Eisner aguardará mais uma década antes de seu último suspiro. E por mais que a sua sobrevivência não decorra cientificamente do voto feito por Herzog, hoje sabemos que toda aquela experiência serviu para pelo menos uma manifestação do impossível, registrada na última frase do livro: “há alguns dias aprendi a voar”. Muito difícil encerrar Caminhando no Gelo e deixar-se levar pela inocência de uma figura de linguagem. Não duvidamos: Herzog voou.

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Meu Filho, Olha o Que Fizeste! (Werner Herzog, 2009)

Por Fernando Mendonça

Não adiantou o nome de David Lynch na produção, não adiantou o rebuliço causado com a sessão surpresa em Veneza, Meu Filho, Olha o Que Fizeste! é filme sombreado por um tipo de maldição que acompanha desde as primeiras inspirações; mal que se apresenta, invariavelmente, nas grandes obras incompreendidas pelo tempo. Enorme tolice acusar um trabalho como este de restrito aos iniciados em Herzog, seu diretor, se na verdade é título que não exige mais do que sensibilidade, filme que pede a chance de identificar não apenas um evidente processo rumo a insanidade, mas de encontrar nos caminhos da loucura um reflexo de tormentos que assolam o homem desde tempos ancestrais.

Projetado na mente de Herzog em 1995, a partir de um crime verídico, o roteiro de Meu Filho… esperou mais de uma década para encontrar qualquer chance de concretização. É possível imaginar o temor de investidores diante de um simplório enredo policial, situado em terras americanas, que precisasse contar com cenas no coração do Peru, especificamente no Rio Urubamba. E por mais que reconheçamos ser esta necessidade uma espécie de fetiche para o autor de Aguirre (1972) e Fitzcarraldo (1982), filmes que contaram com a mesma locação, o estranhamento imposto pelo roteiro na relação dos espaços é pedra angular da dramaturgia aqui implicada.

É por causa do que nosso protagonista (Michael Shannon, numa interpretação que beira o expressionismo) experimenta na distinta região, do que ele vive tão profundamente a ponto de afirmar que naquele local conseguiu ouvir a voz de Deus[1], que toda a motivação de Meu Filho… será revelada e justificada. Há no contato de seu corpo com o ambiente natural — as pedras, as águas, o verde, a terra, elementos onipresentes em Herzog — uma espécie de invocação que não pode ser compartilhada ou filmada, mas que sombriamente habita toda a projeção do longa metragem. Vem deste embate das naturezas o desejo do crime, a inócua justificativa do personagem para o assassinato cometido contra a própria mãe, ato que também não nos é dado o ver. E é no matricídio que os anseios culminam, nesse instinto de eliminação que, de fato, acompanha a carreira do diretor desde seus primeiros gestos com as câmeras.

Muito adequada a explícita referência ao Orestes, interpretado pelo mesmo ator numa peça dentro do filme, jogo de espelhos, acentuação no caráter labiríntico da loucura, desta diluição/desintegração interior que o jovem filho atravessa. Mais do que um exercício de mise en scène, o que vemos nas belas sequências negras, literalmente mergulhadas em escuridão, do teatro, é um complexo desenvolvimento de mise en abyme, como raras vezes Herzog terá tão claramente explorado. Apropriar-se da tragédia grega, como ele aqui o faz, instaura um abismo que nos permite uma compreensão não só das angústias sofridas por suas personas — emoções e reações míticas, originadas num estado primitivo do humano e que para sempre serão universais —, mas que também ilumina um aspecto de seu trabalho enquanto filmografia, enquanto conjunto de filmes que orientam-se sob uma espécie de ‘política do trágico’.

É bem verdade que as preocupações de Herzog no cinema, especialmente estas que encontram no mundo físico um contraste para o realce do sublime, são constantemente motivadas dentro de um princípio muito próximo ao da tragédia: exploração subjetiva de indivíduos que agem no mundo e se transformam independente de sua vontade. Se Meu Filho… estampa direta e frontalmente tal especularidade, o faz não de maneira leviana, como para truncar gratuitamente a estrutura do enredo; pelo contrário, encontra aí uma iluminação de questões que até aqui (em sua carreira) poderiam estar carentes de embasamento. É porque Herzog assume o trágico que seus filmes permanecem cristalizados, enigmas que não se rompem ao mero desfecho ou clímax, e nesse sentido, Meu Filho… torna-se exemplo máximo de uma concepção muito particular dentro da narrativa contemporânea.

Do longo trem que divide a tela ao meio, logo nos créditos de abertura, aos efeitos de algumas cenas que mais parecem fotografias, dada a imobilidade e pose dos atores, Meu Filho… é filme que desarticula não só uma lógica de Hollywood — a exemplo do que bem faz seu irmão, Vício Frenético (2009) —,  mas reorienta todo um procedimento do olhar no cinema de gênero. Por mais que se fale dele ou se tente explicá-lo, eis um filme que sempre manterá o surpreendente das formas, equilibrado numa fina teia de significados, pois concentrado em seus efeitos. Filme que atesta Herzog como um alguém sempre disposto a se enfrentar, seja voltando às águas de um rio, seja colocando seu trabalho diante do espelho, afinal, assim como as águas nunca são as mesmas, também um espelho jamais reflete uma mesma imagem de si.

 


[1] A voz de Deus que também ouvimos já no título original do filme: My Son My Son, What Have Ye Done, como em resposta ao célebre questionamento de Cristo ao morrer: Eli Eli, Lama Sabactani (Deus meu, Por que me Desamparaste?). Título que resgata na sonoridade e rima a retórica bíblica, como se Herzog desse voz ao Deus que se calou e matou seu filho, espelhando-o agora num homem que rejeita o ventre, que aniquila a presença materna como única hipótese de sobrevivência e redenção.

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Sinos do Abismo (Werner Herzog, 1993)

Por Fernando Mendonça

No primeiro plano do filme Sinos do Abismo, vemos dois homens rastejando sobre um lago de gelo, peregrinos siberianos que acreditam no mito da cidade perdida de Kitezh, um lugar colocado por Deus no fundo das águas como livramento contra o ataque de mongóis e que, ainda hoje, ecoa o soar dos sinos de sua igreja. A cena, apresentada de maneira direta e sem intermediações, dá a ver somente a presença dos corpos, a composição do espaço e a forte impressão de um anseio metafísico. O suficiente para instaurar no espectador toda a premissa do que a hora seguinte trará. O que a cena não diz (pois o filme só revelará adiante) é a explicação para o movimento dos peregrinos; ainda desconhecemos o mito, as crenças locais, ainda não ouvimos os sinos. O que o filme não diz (pois Herzog só o revelará em entrevistas) é que os dois homens filmados são, na verdade, bêbados contratados para interpretar aquilo que o diretor lhes pede; simulacros de uma realidade que, para se materializar em cinema, silenciaram a encenação natural do mundo, instaurando a sua, tão fiel e factual como qualquer outra.

Conhecer as circunstâncias de uma filmagem, a rigor, não altera o material resultante dela, mas neste caso específico, encontramos uma disposição muito típica de Werner Herzog, realizador que sempre se equilibrou entre a ficcionalização dos fatos e a documentação das ficções. Manipular a cena muitas vezes é a única forma de encontrar nela a verdade, daí não podermos negar serem os bêbados daquelas imagens verdadeiros peregrinos, homens de fé. O que a ‘atuação’ deles proporciona é uma confirmação das evidências que todos os demais elementos da imagem revelam: existe o mito, existe o lago, existe algo que não podemos ver sob a camada de gelo. Se Herzog foi obrigado a forjar uma situação — durante as filmagens a equipe não encontrou um peregrino real, pois o inverno estava muito rigoroso —, não quer dizer que ele tenha incorrido numa falsificação do mundo que ora documentava. Como denota o subtítulo do filme, Fé e Superstição na Rússia, Herzog recorreu inclusive nos procedimentos técnicos a uma credibilidade que não deixa de ser objeto de toda encenação fílmica: é preciso crer para ver.

Verdadeiro catálogo do imaginário místico e religioso da Rússia e da Sibéria após a dissolução da União Soviética, Sinos do Abismo contextualiza eventos originados nas mais diversas raízes da cultura popular russa. Herzog se aproxima de nômades, curandeiros, exorcistas, gurus esotéricos e toda uma casta de seres que orientam suas vidas a partir de convicções espirituais. Não pretende a análise, o julgamento daquilo que elenca, mas sim a captura de um estado emotivo particular à nação e ao povo que enfoca. Fugindo da concepção etnográfica previsível ao que abraça por tema, Herzog declarou que preferia ver o seu filme sendo recebido e experimentado como num poema de Hölderlin, associação pertinente não só pela lógica da montagem que ele trabalha (uma lógica de poesia, de sensações e sinestesias), mas adequada pela própria referência ao poeta lírico alemão, homem que de fato acreditava nos deuses e compreendia a estética como uma via de acesso entre o homem e o divino, um contato de identidade entre os espíritos.

Aquilo que encontramos inicialmente na imagem dos peregrinos sobre o gelo e veremos repetir-se inúmeras vezes no decorrer do filme — homens e mulheres que rastejam, engatinham, anciãos que curvam-se à gravidade para tocar nas águas, na terra e sua vegetação —, também pode representar mais uma dimensão do que conecta o homem à natureza dentro do imaginário primeiro de Herzog. A integração entre a humanidade e o mundo físico que a cerca, constante temática do diretor, é concebida em Sinos do Abismo como numa perspectiva cósmica, ontológica. Os indivíduos que atravessam a tela, a imensidão de tomadas que contrastam o horizonte e fazem dos corpos, pontos no espaço, o enquadramento de árvores que verticalizam a imagem e conectam o chão aos céus, são todos elementos de um olhar que também confessa sua maneira de crer. O que Herzog alcança com seu filme não é somente um painel de credos e práticas, sua compilação dá forma e contorno a uma busca que é do homem e consequentemente de seus meios de expressão, no caso, do próprio cinema. Concretizar o impossível, dar a ver o invisível, anseios de Herzog a cada filme, cena ou plano realizados, necessidades da alma.

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Giovanna D’Arco (Werner Herzog, 1989)

Por Fernando Mendonça

Pouco se comenta da relação que Werner Herzog nutre com a ópera dentro de sua carreira. Desde 1986, ele iniciou uma espécie de jornada paralela àquela mantida com o cinema, envolvendo-se na realização de inúmeros operísticos (o mais recente, de 2008, já conta seu 26º trabalho), que, apesar de não estarem relacionados diretamente com sua perspectiva no audiovisual, contribuem para uma compreensão dos valores por ele mantidos em seus interesses estéticos.

Como ele mesmo declara, a ópera é um universo em si, um mundo completo, um cosmos transformado pela música. Estes mesmos princípios, de maneira evidente, também estão presentes nos filmes que Herzog dirigiu, de exemplos mais óbvios como Fitzcarraldo (1982) a praticamente qualquer um de seus títulos, cada um deles dotado de cosmogonia autônoma. Se uma das características do cinema de Herzog é determinada proximidade – ou anseio por ela – ao conceito de obra de arte total, aquele mesmo de Goethe e dos românticos, nada mais natural que ele venha ser motivado pela experiência criativa na qual se funda o caráter da ópera, das manifestações humanas a que mais longe foi (e o tempo é passado porque o cinema surgiu) na direção de originar novos universos.

Se Herzog faz questão de acentuar a diferença entre os meios de uma e outra arte, comparando cinema e ópera a cães e gatos que nunca serão apaziguados, é porque cada uma tem a sua especificidade diante do mundo, não importa a semelhança coletiva de representação que as compõe. Segundo ele, a ópera se destaca por trabalhar as emoções de forma extremamente concentrada, num rigor quase matemático; e assim, se as emoções fluem de maneira diferente nela, obrigatoriamente o tempo também precisa ser alterado em sua dimensão. É por transformar o mundo em música que a ópera libera os fatos de sua veracidade a um nível ainda mais profundo, onde tudo se torna repentinamente possível, onde a abstração surge como o mais fidedigno reflexo da realidade.

É curioso que, dentre tantos trabalhos do diretor nesse viés de representação, o único que tenha vencido o caráter efêmero da performance (justamente pelo registro em audiovisual) seja Giovanna D’Arco, variação de uma personagem (Joanna D’Arc) já íntima do meio cinematográfico, presente no imaginário de cineastas muito admirados por Herzog. A produção televisiva que ele aqui co-dirige, sétima ópera de Giuseppe Verdi com libreto de Temistocle Solera (catastrófico, segundo o próprio Herzog) seria mais uma vez encenada sob o seu olhar no ano de 2001, o que indica tratar-se de um trabalho significativo para sua sensibilidade.

Que não se espere de um filme assim a liberdade típica do Herzog cineasta. Compreender seu ponto de vista sobre a relação cinema e ópera é fundamental para perceber que, ainda distante do mero registro, seu trabalho com a câmera submete-se a uma liberdade anterior, que emana do palco, das vozes, dos instrumentos (magistralmente regidos por Riccardo Chailly). Ao mesmo tempo em que Giovanna D’Arco pereniza-se em imagens de um distinto rigor – desde o primeiro plano, sobre os lustres do Teatro Comunale di Bologna, fica evidente um olhar que foge ao ordinário, que procura no contraste de luz e sombra uma motivação que justifique o audiovisual -, em nenhum instante Herzog pretende ofuscar as qualidades intrínsecas ao domínio que obedece.

Se em outros momentos veremos Herzog refletindo a ópera pelo seu avesso, como no exemplo de Die Verwandlung der Welt in Musik (1996), espécie de making off introdutório para uma série de transmissões operísticas da TV alemã, em Giovanna D’Arco temos apenas uma experiência de espelho, reflexo de um movimento cênico que é tratado com a reverência devida. Apenas um registro de humildade. Um ‘apenas’ que é tudo.

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Onde Sonham as Formigas Verdes (Werner Herzog, 1984)

Por Fernando Mendonça

Onde Sonham as Formigas Verdes é, sem margem de dúvida, o trabalho mais improvável a ser realizado por alguém que acabara de conceber a enormidade cinematográfica que fora Fitzcarraldo (1982). Como um profundo respiro após a exaustão, Werner Herzog retoma aqui um ponto de vista mais discreto do mundo, sem romper com o rigoroso ritmo da jornada anterior, mas investindo numa concepção intimista de narrativa, em que desloca a ambição que antes contaminara as noções elementares do ato fílmico para transferi-la a uma preocupação temática que não se retrai diante da ética e daquilo que seu novo enredo apregoa. Pois também há o lirismo da mensagem, a urgência do que não se pode calar.

 A premissa ecológica agora em questão — talvez aquela que norteie toda a carreira de Herzog —, parte de um acontecimento que o próprio diretor presenciou durante sua estadia na Austrália: a resistência de grupos aborígenes contra a exploração industrial de territórios nativos, ou seja, o desejo de seres que lutam por seu tempo no espaço. Para o filme, no intuito de não tornar muito evidente a relação com os recentes fatos verídicos, foram alteradas algumas variáveis da realidade (o nome da indústria e o produto por ela explorado, no caso do filme, o urânio) e acrescentadas boas doses de invenção, a exemplo do que justifica o empenho dos aborígenes em proteger tão zelosamente aquele pedaço de terra: a crença de que o terreno é lar de uma espécie sagrada de insetos, as formigas verdes. Do recurso imaginativo elaborado por Herzog — que fratura o aspecto documental do roteiro —, irrompe aquilo que eleva seu filme a um patamar além do mero discurso ambiental; confirmam-se nas formigas verdes os anseios de um mundo perdido no tempo, de uma humanidade que já não se lembra das coisas que mais importam, do que não se quantifica ou substitui.

As formigas sonhadas por Herzog, como explica o personagem de um maluco pesquisador que só ganha forma para delimitar verdades mais poéticas do que científicas, são de um nicho especial, que, ao afetar o campo magnético da Terra, modifica paisagens completas. E mais: são formigas que também sonham e rememoram os tempos passados, anteriores ao início do mundo. Assim, o que os guardiões da terra tentam proteger é um estado de memória não compreendido pela lógica do capital, daí ser todo o processo de comunicação entre eles e os homens brancos um percurso desintegrado e impossível de completar. O senso de preservação, mais do que relacionado a aspectos geográficos, procura mesmo o anular das fronteiras, um restabelecimento dos homens com seu meio, seu habitat.

No julgamento encenado para discutir o direito de posse das terras, Herzog insere um dos personagens mais impactantes de seu cinema: um aborígene ancião que fora considerado mudo pelos autos do processo porque a sua língua não é compreendida por nenhum outro ser humano. Último descendente de sua tribo, e, portanto, do dialeto perdido, eis um homem que sobrevive morto para a sociedade, que carrega no corpo uma fantasmagoria muito propícia as imagens que Herzog ordena para representar o caos. Pois se há uma impressão que fica diante de Onde Sonham as Formigas Verdes, ela está essencialmente relacionada ao colapso do mundo, ao caráter apocalíptico já multifacetado por inúmeros momentos na carreira do cineasta.

Não é por acaso que a primeira imagem do presente filme seja a de um redemoinho; e que, próximo ao final do mesmo, repita-se a atmosfera de destruição. O importante, é que nenhuma destas cenas permita a menor sombra de catástrofe, pelo contrário, instaurem uma beleza apaziguadora, restauradora de um equilíbrio sensorial. São, de fato, a moldura que define todo o caminho intermediário da narrativa, confirmando ser este filme um sopro de interlúdio para Herzog. É muito possível considerar Onde Sonham as Formigas Verdes como um movimento filho do que fora iniciado desde Fata Morgana (1971) — a destacar-se o travelling lateral de abertura sobre o deserto, em acompanhamento aos créditos, como um reflexo das longas durações daquela obra-prima —, assim como um movimento pai de Lições da Escuridão (1992) — pois nas perfurações pela busca de urânio todo um presságio do que a exploração petrolífera futuramente fará. Em todos estes casos, é a intromissão de uma dimensão ficcional o que liberta os estados de crise apresentados. Seja num travelling, numa narração em off, ou na ilusão das formigas verdes, há sempre um caminho para que a ficção se estabeleça, para que o cinema se cumpra. É nele que as formigas sonham.

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God’s Angry Man (Werner Herzog, 1983)

Por Fernando Mendonça

Enquanto esperava o período de pré-produção transcorrer para as filmagens de Fitzcarraldo no Peru, Werner Herzog não perdeu tempo, investindo na realização de dois filmes irmãos sobre desdobramentos da religiosidade americana. God’s Angry Man e o posterior O Sermão de Huie, ambos de 1980, são frutos de um estado de espírito muito particular dentro do momento vivido pelo diretor em sua carreira, justamente o da realização de seu mais ambicioso projeto artístico, a ser lançado somente dois anos depois sob um véu de obstáculos como raramente o cinema terá enfrentado. Ainda que ambos os médias tenham sido relegados a um patamar próximo ao esquecimento, justificado inclusive pelo barulho que Fitzcarraldo gerou da gestação à estréia, não é possível ignorar a relevância que ambos os trabalhos possuem, mesmo após três décadas, de iluminar alguns dos interesses centrais e correntes no legado de Herzog.

God’s Angry Man, filme sobre a comercialização da fé — e por isso muito próximo ao que atualmente se intensifica no Brasil —, coloca em foco a controversa personalidade de Gene Scott (1929-2005), pastor protestante que, entre os anos 70 e 80, tornou-se um ícone da comunicação através de um programa (Festival da Fé) que liderava a audiência e convencia seu público, por meio de um discurso emotivo e ironicamente raivoso, a ofertar generosas quantias financeiras em nome de Deus. O curioso é que, ao invés de organizar seu material (arquivos found footage do programa, entrevistas exclusivas com Scott, registro de bastidores da TV) em tom de denúncia ou crítica direta aos questionáveis atos de quem observava, Herzog optou por aproximar-se do homem que se escondia atrás da imagem midiática evidenciando uma ambigüidade que ora se compadece, ora abomina, ora simpatiza com aquele que finalmente deixa sua máscara cair.

Ao nos mostrar a rotina de um homem que vive para as câmeras — à época, os programas de Scott duravam entre 6 e 8 horas diárias e ininterruptas — e que, por isso, já diluíra sua identidade num conjunto de expectativas e códigos de conduta indiferentes à sua vontade, Herzog desconstruiu todo um conceito fílmico baseado no desequilíbrio que a realidade e a ficção sempre nele tensionam. O que seu filme faz com Gene Scott é o que nenhuma das incontáveis horas de TV poderiam extrair dele e, em contrapartida, o que ele jamais revelaria para alguém não mediado por uma câmera. Consciente de sobreviver num ‘mundo de celulóide’, de ocultar uma profunda tristeza sob a fachada do estrelato, finalmente Scott encontrará a possibilidade de uma imagem que não se preocupe em vesti-lo de sentidos e significados exteriores, pois ao contrário, vem dela o mais pleno desnudamento, o desejo simples e puro de ser. E se procurarmos identificar o tempo da restituição, aquele momento em que Scott é brevemente devolvido para si mesmo, este não poderá estar em outro movimento senão o do incisivo close-up dedicado por Herzog ao entrevistado, durante vários e longos minutos.

Certamente o mais belo e funcional — sim, Herzog consegue fundir opostos — close já efetuado pelo diretor, eis uma proximidade que recupera todo o caráter trágico (chapliniano) do referido movimento técnico: há uma eterna dor na face que se deixa tocar pela lente, naquilo que da pele pulsa, dos vincos e rugas, de cada contorno. São nestas cenas que God’s Angry Man deixa de ser um filme sobre o mercado da religião para tornar-se um retrato do desamparo humano, do corpo que, abandonado solitariamente num mundo esquecido por Deus, agoniza uma espiritualidade impossível. Parece desnecessário apontar a relação entre Gene Scott e o protagonista de Fitzcarraldo, megalomaníacos que precisaram ultrapassar os limites da razão para sobreviver num domínio simbólico da existência. Desnecessário procurar neles um reflexo de Herzog, que otimizando a espera pelo seu próximo filme, comprovou ser o movimento cinemático uma conseqüência do saber aguardar.

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