Little Dieter Needs to Fly (Werner Herzog, 1998)

Por Kênia Freitas

Little Dieter Needs to Fly poderia ser resumido como um documentário sobre o sonho americano de um garoto alemão. Mas apesar da pequena ironia do título, o filme de Herzog é muito mais cúmplice do que carrasco com o seu herói-quase-por-um-acaso. Assim, o diretor conta entre depoimentos, reencenações e imagens de arquivo a história do desejo do pequeno Dieter de voar, desejo que acaba o tornando um piloto da força aérea americana no Vietnam e um prisioneiro sobrevivente dessa guerra. De um pobre menino alemão que passou uma infância de fome em um país devastado pela derrota na Segunda Guerra Mundial, Dieter Dengler cumpre uma espécie de profecia bélica entre os dois grandes acontecimentos.

A infância de Dieter se confunde em vários aspectos com a do diretor Werner Herzog, também um alemão filho imediato do nazismo. Por isso, não é de se estranhar que o diretor e seu personagem dividam a voz narrativa do filme. Uma operação de dupla fabulação em que o personagem real se apodera do documentário sobre si, mas também em que o diretor torna-se esse personagem. Dessa forma, temos duas instâncias de enunciação no filme: a voz em off ou em depoimento presencial de Dieter e a voz over do diretor, que contextualiza os fatos – ao mesmo tempo que não perde a dimensão crítica tão comum ao cineasta em seus documentários.

Nessa dupla fabulação, o filme se constrói como uma memória recriada. Memória evocada não apenas pela narração dos fatos, mas também pela reencenação in loco de alguns acontecimentos. Herzog leva Dieter de volta a sua cidade natal na Alemanha e aos locais em foi prisioneiro no Vietnam. Mais do que isso, faz o personagem reviver toda a sua penosa saga entre a captura, a prisão, a fuga e o resgate. Em uma recriação bastante incomum pelo constrangimento dos envolvidos, figurantes vietnamitas interpretam os carrascos de Dieter. Mas essas imagens nunca conseguem atingir a potência da narrativa que revivem. A guerra como uma experiência não pode ser recriada em uma guerra como imagem.

No outro sentido, imagens de arquivo logo após o resgate do personagem e um filme da época de instrução para soldados são as munições das quais o diretor se serve para fazer sentir a diferença entre essas duas dimensões da guerra (como uma imagem e experienciada). Se a primeira é capaz de mover afetos e criar sonhos americanos, a segunda parece evidenciar as falácias da primeira como uma máquina de desejos que se realizam apenas no objetivo de se autoalimentar. Uma operação didática, é verdade. Mas tratando-se de uma pedagogia herzoguiana, estamos ao abrigo de qualquer senso comum.

FacebookTwitter