Crônica de uma Criança Solitária: A balada de Leonardo Favio

Por Daniel Dalpizzolo

Entre cigarros, bofetadas e castigos, um grupo de garotos atravessa os dias em um reformatório na Argentina. Não sabemos quem são ou o que passaram até chegarem ali, mas as cenas introdutórias revelam um núcleo de personagens ao mesmo tempo homogêneo e singular. Embora eleja entre os garotos um protagonista para acompanhar no restante da narrativa (Polín), o olhar lançado por Leonardo Favio para aquele ambiente é preciso ao estabelecer seu contexto, instaurando, por meio de poucos e elaborados planos, um cenário sombrio habitado por múltiplas almas solitárias, moleques errantes cujas trajetórias de vida os levaram para trás das mesmas grades e muros, de onde expressam sua inquietação provocando brigas no banheiro, jogando, contrabandeando fumo ou curtindo o alvorecer da sexualidade ao redor de uma foto da Monica Vitti.

As sequências iniciais inserem Crônica de uma Criança Solitária entre as grandes obras que exploram a juventude em conflito com os limites da ordem social, a exemplo de clássicos europeus como Zero de Conduta, de Jean Vigo, e Os Incompreendidos, de François Truffaut. Entretanto, se existem óbvios pontos de conexão temática entre essas obras, todas elas debruçadas sobre um mesmo recorte de final da infância de seus personagens, o que imediatamente salta aos olhos na estreia de Favio são os elementos que exaltam suas singularidades: os ambientes decrépitos do reformatório, com iluminação escassa, vidros quebrados e paredes descascadas; os brinquedos singelos ou imaginários; as fardas militares; os olhares duplamente tristes dos garotos; as sombras preponderantes no quadro; o ritmo singular das cenas, que parecem suspensas no fluxo de um pesadelo.

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Estamos, enfim, na América Latina dos regimes fascistas, na qual, entre golpes militares e governos provisórios, crescia uma juventude periférica apartada dos principais avanços da modernidade. Se os jovens de Truffaut rebelavam-se contra as autoridades matando aula para frequentarem casas de jogos e salas de cinema parisienses, aos de Favio resta a crua dimensão da realidade das ruas, percorrendo becos das periferias argentinas, espiando atentamente sobre o ombro antes de virarem a esquina para desviarem de desafetos ou da polícia. Celebrado como uma das mais importantes vozes da geração do cinema argentino que despontou na década dos Cinemas Novos, Favio aproxima sua obra do que Glauber Rocha nomearia como Estética da Fome, filmando em diálogo com mestres do cinema europeu, porém dando forma a uma estética que assimilava a realidade latino-americana e a representava em tela por meio de uma assinatura urgente, autoral e singular.

A assimilação dessas influências torna o trabalho de Favio ainda mais notável. É possível pensar em Vigo e Truffaut, mas também em Robert Bresson, Jean-Luc Godard, Jean Renoir, Roberto Rossellini, Michelangelo Antonioni e Ingmar Bergman, com os quais a relação se constrói às vezes simultaneamente, em uma mesma cena, na transição de um plano para outro. Cineastas formalmente muito distintos, mas que compartilhavam um mesmo anseio por materializar em suas imagens as inquietações existenciais e sociais da Europa pós-guerras, e que aqui tornam-se somente um ponto de partida para estabelecer um conjunto de referências que serão ressignificadas pelo modo como Favio articula a ação com o cenário filmado. Por essa perspectiva, é possível pensar que trata-se de um dos trabalhos mais complexos e ricos realizados na América Latina durante a década de 1960, a década em que, até então, com maior atenção se olhou para a história do cinema, propondo a partir dessa autoconsciência a construção de um novo marco revolucionário na cinematografia mundial.

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Como os filmes anteriormente mencionados, Crônica de uma Criança Solitária retrata uma juventude em revolta com o meio que habita. Mas a revolta, aqui, possui uma dimensão de tristeza e desconsolo. Relembro o filme com uma frase na cabeça: “A revolta é uma forma de impotência diante de uma situação de desespero”. A sentença é verbalizada por uma presa política recém libertada da prisão, durante uma conversa documentada por Pere Portabella em El Sopar, e revela uma perspectiva possível para dar conta das experiências representadas por Favio (por sinal, autobiográficas). Os garotos de Favio não escolhem a errância, são escolhidos por ela em razão da realidade que os circunda. Jovens desamparados, perseguidos pelo mesmo Estado que ignora sua existência enquanto não se tornam assunto das páginas policiais, mantendo esses garotos em um looping infinito entre delegacias, reformatórios e a incerteza das ruas.

Por esse contexto é que a fuga da prisão, o ímpeto que materializa a revolta de Polín logo no primeiro terço da obra, é das mais tristes cenas de fuga já filmadas, lembrando uma versão ainda mais desolada do bressoniano Um Condenado à Morte Escapou. Ambos os registros compartilham um interesse pelo silêncio e pelo tempo dilatado da ação, que transcorre vagarosamente e acompanha com esmero os movimentos empreendidos pelo fugitivo – aqui, ao longo de mais de 10 minutos de um silêncio absoluto e ensurdecedor. Entretanto, enquanto em Bresson a fuga é o apogeu da narrativa, culminando no triunfo da ação prometido pelo título da obra (o condenado à morte escapa, afinal), em Favio a fuga de Polín é um recurso com o qual o diretor convoca o espectador não a desfrutar da sensação de liberdade com seu protagonista, mas sim a conhecer, ao seu lado, a dura realidade do meio em que sobrevive, a respirar o mesmo ar e mergulhar na mesma água condenada.

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O filme se divide entre o dentro e o fora da prisão. Entretanto, as sensações provocadas pelas imagens, seja em cenários abertos ou fechados, podem coexistir em um único plano. Estão no dentro e no fora os mesmos ambientes decrépitos, com iluminação escassa, vidros quebrados e paredes velhas e descascadas; os mesmos brinquedos singelos ou imaginários; as mesmas fardas militares habitando cada esquina; os mesmos olhares duplamente tristes dos garotos; as mesmas sombras preponderantes no quadro; o mesmo ritmo singular das cenas, que parecem suspensas no decurso de um pesadelo, mesmo quando ambientadas à luz do dia, mesmo quando parecem romper a regra à beira de um rio, numa tarde ensolarada de verão; uma tarde de liberdade que culmina na violação do corpo, no choro, grito, dor, silêncio, desespero, o desespero de lidar com a impotência que convoca à revolta.

A estética de Favio, que sustenta essa angústia pelos breves 75 minutos, é construída com um trabalho fascinante na condução da câmera, desde os inúmeros movimentos aos jump cuts da montagem, criando imagens ambivalentes e misteriosas, que flertam com o testemunhal, com a crueza do registro realista, ao mesmo tempo em que compartilham uma dimensão quase onírica. Uma explicação possível para o estilo elaborado de Favio talvez seja sua relação com a música, ofício que exercia ao lado de suas aventuras no cinema (onde, além de cineasta, também era ator). A impressão é de que Favio extrai musicalidade de suas imagens, as encadeia e as monta como quem combina notas e acordes para a composição de uma canção – cujos tons variam ao longo de sua obra, do dedilhado solitário de um violão em Crônica de uma Criança Solitária até chegar ao psicodelismo de um Nazareno Cruz e Lobo.

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Como uma balada tocada em repeat, o garoto solitário de Favio transita entre delegacias, reformatórios e a incerteza das ruas, idas e vindas para dentro e fora das grades, numa canção cujos versos conduzem sempre a um mesmo e melancólico refrão. O semblante desolado testemunhado em Polín ao longo do filme, a farda e as mãos autoritárias que sempre o espreitam, retornam mais uma vez à imagem final da obra, mas agora não somos somente nós que olhamos Polín. Polín também nos olha. O choro, a dor, o silêncio, o desespero, a revolta. Na última nota tocada, a criança desaparece na penumbra do quadro enquanto, com a quebra da quarta parede, nos convida a segui-la, para quem sabe, junto dela, atravessar os dias em uma cela, uma delegacia, um reformatório na Argentina, entre cigarros contrabandeados, bofetadas e castigos, provocando brigas no banheiro, jogando, contrabandeando fumo ou gozando o alvorecer da sexualidade ao redor de uma foto da Monica Vitti, até que a balada recomece mais uma vez.

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Festival do Rio 2015 – Comentários (Parte I)

Por Virgílio Souza

Em breve passagem pelo Festival do Rio, que segue até esta quarta-feira (14), deixamos impressões a respeito de filmes vistos no festival.

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Right Now, Wrong Then (2015), de Hong Sang-soo

Sang-soo é um artesão da forma a serviço do olhar e da imprevisibilidade narrativa que parte de esquemas muito simples. Aqui, ele não se vale da mesma manipulação temporal de Hill of Freedom, um filme muito mais entrecortado, mas trabalha diferentes perspectivas sobre o mesmo conjunto de eventos — ou ao menos o mesmo evento central, o encontro de um cineasta e uma aprendiz de pintora na cidade de Suwon, que ele visita pela primeira vez na carreira. Alterando a ordem das cenas, até repetindo uma porção delas, o filme produz sentidos diferentes, compilados em dois títulos, Right Then, Wrong Now e Right Now, Wrong Then. A forma como as distintas perspectivas são abordadas, porém, não estabelece um embate claro entre elas, apenas a ideia de que a mesma encenação pode indicar múltiplos olhares. É ainda interessante como o diretor segue enquadrando e reenquadrando planos na própria câmera, que se aproxima dos atores pelo zoom e sem cortes, não por capricho, mas porque se trata de uma forma de aproximar a lente, literal e figurativamente. A figura masculina, um sujeito beberrão e sem muitos filtros sociais, adepto fiel e incorrigível da sinceridade ilimitada, talvez seja o melhor sinal de que Sang-soo segue trabalhando os mesmos temas, explorando novas possibilidades estruturais. O naturalismo das interpretações e a relação construída entre o casal de personagens, neste contexto formal e de extremo apuro estético, é o que aproxima o filme da realidade, mas parece evitar tocá-la.

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11 Minutos (2015), de Jerzy Skolimowski

É inevitável pensar que o título poderia muito bem ser a duração do filme — e que ainda assim a fonte de tédio não se esgotaria. Como se buscasse criar uma versão mais cafona da trilogia de Iñárritu (Amores Brutos, 21 Gramas e Babel), Skolimowski aposta na não-linearidade de roteiro e na mão pesada que controla a câmera para narrar, em fragmentos, as histórias de pessoas conectadas pelo acaso (ou por qualquer outra coisa do tipo). Trata-se de um exercício fútil, sustentado em truques como repetir o som escandaloso da passagem de um avião para pontuar o tempo, decisões absurdas e injustificáveis como adotar o ponto de vista de um cachorro, e caricaturas como o cineasta que grava suas relações com potenciais atrizes e que prefere ser chamado de “Dick”. A tensão é enganosa, sobretudo porque o desfecho catastrófico, explosivo e inexplicável é completamente deslocado do restante do filme, que se leva tão a sério.

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Maravilhoso Boccaccio (2015), de Paolo e Vittorio Taviani

A adaptação livre dos irmãos Taviani parte de um interesse bastante específico no registro oral de histórias. O refúgio de um grupo de amigos e casais em um casarão às margens de uma Florença tomada pela peste é o espaço para que sejam apresentados pequenos contos, relacionados ou não com a realidade vivida pelos contadores. Contudo, o filme se perde no limbo entre a literatura originária, a teatralidade das performances dos atores e seus aspectos cinematográficos. O que há de cinema, para além da estilização dos figurinos e cenários, é a música impositiva, que tenta guiar sensações pela via do humor leve, mais do que pela sexualização ou o romance, frequentes em outras versões da obra de Boccaccio. Ainda, o elo que liga os relatos parece desimportante e gera a sensação de que uma estrutura estritamente episódica poderia ser mais frutífera do que a tentativa de amarrar tantas partes em uma só linha.

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Em Jackson Heights (2015), de Frederick Wiseman

É curioso o movimento de Wiseman cada vez mais em direção à ideia de Anders Petersen, que vê a câmera como instrumento para que se chegue ao que interessa: pessoas e coisas. Em um panorama cheio de cineastas que abraçam a fotografia como último e único recurso e que sofrem aversão a museus, ele havia realizado National Gallery e Em Berkeley, um par de filmes sem medo de (outra) arte e da academia. Agora, seu olhar se volta para o multiculturalismo de uma das áreas mais diversas do planeta. O leque amplo gera trechos mais e menos interessantes, mas o retrato completo depende também desses últimos, porque o diretor é capaz de registrar tudo com admiração por aquelas lutas diárias sem jamais evitar o conflito.

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Mon Roi
(2015), de Maïween

O filme parte de uma boa ideia, fundamentada no acidente sofrido pela personagem de Emmanuelle Bercot, que a leva a uma lesão grave no joelho. Em recuperação, ela escuta de uma psicóloga que aquela é uma parte do corpo que só se movimenta para trás, sugerindo uma relação entre o problema físico e questões emocionais e transportando o espectador a uma segunda linha do tempo, focada no exaustivo drama de casal que a levou a tais complicações. De algum modo, é como se Maïween tivesse em mãos uma premissa razoável, mas que é interessante por si só, não como ponto de partida para o que aqui concentra as atenções. Das duas tramas, uma ascendente, de recuperação, outra de declínio em queda livre, apenas a primeira possui impacto — e a segunda, que deveria erguê-la, funciona mais como âncora. A diretora também não possui qualquer retração, pintando tudo com cores muito fortes, tentando extrair drama de absolutamente todo plano. As presenças da protagonista e de Vincent Cassel até levam a trama adiante, mas os recursos da diretora parecem muito limitados. O joelho se recupera e a personagem principal volta à vida. O caso do filme parece ser mais sério.

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Fantasmas de Marte (John Carpenter, 2001)

 Por Daniel Dalpizzolo

Embora seja um grande estudioso do classicismo cinematográfico, é bem verdade que as narrativas de John Carpenter são estruturas das mais hardcores que podemos encontrar no cinema narrativo contemporâneo — seu mais recente filme, Aterrorizada, está aí e não me deixa mentir sozinho. Exemplos não faltam: o jogo de ponto-de-vista subjetivo da câmera de Halloween, ou toda uma noção de mundo ruíndo agressivamente aos olhos do espectador em Eles Vivem, ou a releitura surtada da história de nosso século XX feita em Fuga de Los Angeles, ou então o ambiente tipicamente urbano e norte-americanizado sendo sugado pelo poder da mitologia oriental em Os Aventureiros do Bairro Proibido — enfim, praticamente todos os seus projetos guardam fragmentos de uma ousada visão de cinema que, se mal interpretada, pode despertar reações equivocadas aos filmes em questão.

É provável que nenhum de seus filmes tenha sofrido tanto com isso quanto Fantasmas de Marte, seja pela inevitável comparação com trabalhos melhores do diretor (afinal não se trata de um filme do nível de O Enigma de Outro Mundo ou Fuga de Nova York, pra citar duas obras-primas) ou pela mera dificuldade que se tem de aceitar uma proposta tão radical — dificuldade que é ironizada pelo próprio filme em um de seus momentos finais, quando com aquele sarcasmo típico de Carpenter certa personagem reage ao desfecho do relato da Tenente Melanie, nossa narradora, com algo parecido com “e vamos justificar o que aconteceu dizendo que existem fantasmas em Marte, é isso?”.

Se já não bastasse a história fantasiosa, sobre membros de uma expedição por uma cidade devastada de Marte lutando contra nativos ensandecidos e fantasmas desencavados, a narrativa construída por Carpenter resvala no próprio conceito de bom roteiro que se tem por aí, e que é amparado pela noção de “bom gosto” da apreciação cinematográfica mais rasteira. A começar pelo respeito absoluto que Fantasmas de Marte mantém com o ponto de vista que veste narrativamente, através do qual, em um longo flashback, assume-se como um resgate das memórias de Melanie sobre os fatos ocorridos e trazidos pelo filme, sem se esforçar em momento algum em buscar a compreensão desses fatos para além daquilo que ela conhece.

Ao agarrar-se à sua personagem, uma proposta de retorno ao passado se abre em diversos sentidos. Na história, diegeticamente, desbravamos as memórias de Melanie e fazemos junto dela uma releitura de um mistério pouco crível e aparentemente insolucionável, uma história onde pouca coisa parece realmente parece fazer sentido fora da fantasia da qual o filme se mune para existir — o que, em se tratando de cinema, não poderia ser mais coerente. Já em sua acepção artística, Fantasmas de Marte vai ao futuro para reviver o passado cinematográfico e histórico, utilizando-se de um uma série de características reunidas por Carpenter dos mais diversos filmes de faroeste que viu durante sua longa vida cinéfila.

Seria este, portanto, um western futurista vivido através das memórias de uma mulher e passado em Marte, com fantasmas, nativos doidos que fazem um cemitério a céu aberto com cabeças cravadas em estacas, gente quebrando tudo e o Ice Cube indo de vilão a herói por mera necessidade de uma narrativa que, a partir de certo ponto, abdica de qualquer outra possibilidade pelo simples prazer da ação boçal — um conceito, diga-se, também remetente à antiguidade do cinema e de seu preceito básico de entretenimento, onde o extra-campo perde valor para amplificar e tornar pleno aquilo que existe na imagem, pura e simplesmente, uma postura que nos dias de hoje certamente não deve funcionar com cineastas ruins, mas que com Carpenter ou com James Cameron pode virar ouro.

A viagem de Fantasmas de Marte é encerrada com muita porrada, sangue e violência gráfica rechaçando na tela em cenas belissimamente filmadas, e termina praticamente no momento em que seu filme inicia. Ao final de tudo, e ao contrário do que habitualmente se vê, não encontramos respostas (nem mesmo a intenção delas) para muitas coisas — com exceção de alguns elementos básicos e essenciais para a própria existência de um filme ali. Carpenter preserva grande parte do mistério e desvia da possibilidade de construir soluções “cabeçudas” para dar a seu filme uma proposta, um conceito narrativo — que vai além de meramente contar uma história com início, meio e fim, ou de buscar surpreender e agradar o espectador. Inegavelmente, é pra quem tem colhões.

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A Hipótese do Quadro Roubado (Raoul Ruíz, 1979)

Por Daniel Dalpizzolo

Em A Hipótese do Quadro Roubado, semelhante ao que fez Orson Welles em Verdades e Mentiras, Raoul Ruíz parte de uma análise aparentemente técnica sobre a manifestação artística para, através dela, desafiar seu filme – e consequentemente a nós, espectadores – por uma aventura que ultrapassa os limites da narrativa e da encenação cinematográficas – num elegante jogo metalinguístico barroco e fantasioso. Se Welles, em seu filme de 1973, questionava a verdade na imagem através de um suposto documentário que a cada passo dado se mostrava mais e mais falso (talvez seja o filme definitivo sobre a encenação), aqui Ruiz vai além dessa problemática para adentrar possibilidades complementares, especialmente a relação que os signos utilizados para a composição destes quadros (seja um quadro de cinema ou um quadro de pintura, como os que dão sustentação às observações do personagem), e posteriormente seu resultado final enquanto imagem, mantêm com o receptor de arte após seu contato primário com o olhar – aquilo que se converte em assimilação – e, finalmente, chegando à forma como nós, receptores, reagimos a eles, numa busca inevitável por sua compreensão.

O personagem central de A Hipótese do Quadro Roubado, que conhecemos apenas como O Colecionador, se propõe, na companhia de um narrador oculto, a compreender a relação entre seis polêmicos quadros de um pintor impressionista do final do século XVIII – seriam sete caso um deles não tivesse sumido misteriosamente. O cenário deste jogo é a mansão em que reside o Colecionador, que se torna palco de uma viagem viva pela arte do artista que o obceca – o que de imediato também faz lembrar de Arca Russa, de Alexandr Sokurov, que utiliza-se de um dispositivo semelhante. A câmera de Ruíz transita pelo pátio coberto por névoa, pelas salas imensas e por demais cômodos da casa, que parecem ganhar vida apenas quando preenchidos pelos fragmentos imagéticos dos quadros (ou por eles em sua integridade), que por sua vez passam a fazer parte dos cenários pelos quais transita nosso personagem para que, a partir de algumas características particulares de cada um, ele construa sua teoria de correlação entre as pinturas, que justificaria a reação agressiva tida a elas à sua época – através de pequenos elementos que ligariam-nas a um escândalo.

As intenções de Ruíz, porém, se distanciam gradativamente dos quadros e de seus significados, objetivo específico de seu personagem e por nós recebido meramente por suposições. O que há de mais brilhante em A Hipótese do Quadro Roubado é como o cineasta vai se utilizando desta obsessão para compôr um filme no qual todas as informações recebidas parecem filtradas unicamente pelo olhar de seu personagem, um homem praticamente isolado de todos os fatores externos à obra do pintor, e que, sugado pelo mistério que elas propõem, vive uma busca indelével e desgastante por sua compreensão – uma diluição feita através de sua precisa perícia técnica e que é bem sucedida desde suas escolhas mais primárias, como a opção pela fotografia em preto e branco, que com sua textura inexpressiva acaba acachapando tanto as pinturas quanto suas reproduções tridimensionais em uma mesma realidade, uma realidade possível somente no cinema ou na mente, jamais na vida.

Ao mesmo tempo também parece haver algo de muito irônico e bastante verdadeiro na forma com que Ruíz encerra este breve período que passamos com seu personagem fictício: suas teorias sobre a obra do pintor vão de ideias pertinentes a outras relações aparentemente absurdas, mas acabam fazendo com que ele, por fim, deposite suas esperanças de compreensão plena das intenções do artista no famigerado quadro roubado, como se fosse ele a chave para o enigma de sua arte. O que possibilita algumas reflexões interessantes sobre o consumo e também sobre a própria existência da arte, que é intrinsecamente dependente do mistério, dos segredos da expressão de seu artista, que muitas vezes podem permanecer ocultos por detrás de outros elementos de sua misé en scène. Diante do isolamento do mundo construído por esta necessidade de compreensão plena, o Colecionador acaba enfim soando como uma representação da resposta para uma questão bem mais abrangente: de que a arte, para existir, necessitará eternamente do mistério – e, em contraponto, a obsessão excessiva pela compreensão íntegra de todos os seus signos, não obstante, pode tornar-se o equivalente intelectual a uma prisão.

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Filmografia Comentada – David Cronenberg

Aproveitamos o lançamento de Cosmópolis no Brasil, adiado tantas vezes pela distribuidora nacional que ainda conseguimos nos antecipar a ele apesar do atraso de dois meses na atualização, para novamente nos reunirmos em um artigo coletivo sobre a obra de um cineasta (como fizemos com Nicholas Ray, à época da comemoração do seu centenário). O resultado é este passeio pela filmografia completa do canadense David Cronenberg, em que analisamos desde Stereo, sua estreia no cinema em 1969, até Senhores do Crime, lançado em 2006 — Um Método Perigoso e Cosmópolis, seus dois filmes mais recentes, possuem críticas à parte no site, que podem ser acessadas na home page.

Stereo (1969)

Ângulos, sombras, vozes, arquiteturas, sexos, futuros, solidões… A densa matéria que dá forma a Stereo, trabalho profético de um cinema, de uma ciência e filosofia, de um tempo humano ainda não encerrado, não esconde a relação obsessiva de David Cronenberg para com certos temas e procedimentos. Dos mais notáveis exercícios de estreia já vistos numa tela, esta primeira obra guarda paralelos com absolutamente todos os filmes a serem assinados pelo autor a partir de então. Impossível esgotar as interseções, os ecos e repetições dispersos pela filmografia em jogo. Por isso um inusitado interesse junto aos elementos que aqui ganham único tom: o preto e branco, o áudio em off, o frescor que emana da montagem principiante, por mais rígida que ela seja. Escapamos dos limites de orçamento abrindo um horizonte de encenação como raras vezes veremos no Cronenberg subsequente, mérito de um destemor típico dos primeiros passos, estes que são dados sob a incerteza de talvez serem os últimos. Stereo não poupa uma só convicção, abala toda uma estrutura lógica a partir de racionalidade própria, de confiança somente naquilo que tem em mãos: o movimento que extrai dos corpos e que origina a partir deles. Deste novo mundo aqui traçado, em que a carne e o desejo são confrontados pela insuficiência do toque, emana uma dolorosa esperança de um porvir que extinga a intransigência de opostos. Não se trata de utopia, mas de possíveis que não se excluem, de um cinema que aliança as distâncias — morais, estéticas, políticas — para favorecer uma harmonia perdida e fazer dela mais do que mera ficção. (Fernando Mendonça)

Crimes do Futuro (1970)

Filme independente filmado, escrito e dirigido por Cronenberg, o segundo de sua carreira. Neste seguimos Adrian Tripod, ex-diretor de uma clínica dermatológica, na procura pelo seu mentor, Antoine Rouge. O sumiço de Rouge está ligado de forma enigmática a uma doença infecciosa provocada por produtos cosméticos – infecção que parece ter sido a culpada pelo extermínio da população feminina sexualmente desenvolvida. Nesse mundo pós-apocaliptico, temos a vitória das instituições (que se mantém com toda a sua pompa burocrática e protocolar) sobre os indivíduos (que vagam errantes, morrem ou adoecem sem grandes explicações). Os homens seguem cumprindo procedimentos científicos e perpetuando racionalizações acadêmicas, ainda que essas atividades não pareçam ter qualquer efeito transformador sobre a realidade, além do descritivo. Para piorar, os únicos grupos que demonstram algum interesse em revitalizar a existência da espécie humana são círculos obscuros de conspiração de pedófilos, que objetivam criar por meio de outra forma de sexualidade uma espécie substituta para a humanidade. Dito assim, o filme soa muito mais repugnante do que ele de fato é. Mas, assim como seus homens indiferentes da pós-catástrofe, é na frieza das imagens e na anti-fruição narrativa em que o diretor se fia. Os contatos humanos são estranhos, o ambiente é hostil e esses seres sorumbáticos perambulam através de uma arquitetura opressora. O roteiro quase surrealista se arrasta  pelo vagar ilógico das ações. A narração em voz over e a intervenção de ruídos diversos e pouco agradáveis (o som do filme é todo indireto e de pós-produção) só aumentam o distanciamento do espectador. Se o filme beira o insuportável, resta o consolo de que ele foi construído para isso. (Kênia Freitas)

Calafrios (1975)


Como obra de seu período inicial, Calafrios ainda é um pouco imatura frente a outros filmes de Cronenberg; daí sua aparência “trash”, seu inegável flerte com a estética barata de produções de low budget, algumas imperfeições que a tornam única dentro da carreira de seu realizador e também como peça profética: tanto para o cinema, pois antecipa Alien e seus monstros de infiltração gosmenta, como para a discussão de grandes chagas (não apenas físicas) contemporâneas, como a ganância extrema que faz cientistas criarem em laboratório ameaças para a vida humana, visando à glória de ser reconhecido na luta contra o perigo artificialmente fabricado. Não é um pouco o que dizem ter havido com a AIDS? Aí Calafrios deixa de ser tão futilmente fantasioso (como se a imaginação fosse por si algo vulgar, descartável) se o consideramos nesse contexto, e de qualquer modo o terror sempre presente nunca se faz ridículo ou fora do tom, pois Cronenberg sabe como segurá-lo na sua cadência, que faz todo o sentido ao se impor no cotidiano das personagens. Ao se manifestarem de maneira explícita, os Calafrios percorrem também a espinha de seu público. E de repente talvez percebamos que a questão moral proposta por Cronenberg não se esgota no extermínio das criaturas macabras vistas neste filme, mas numa mudança de postura e mentalidade. (Filipe Chamy)

Enraivecida na Fúria do Sexo (1977)

Imprevista atualização de mítica vampiresca, Rabid é o filme que conecta uma primeira fase de Cronenberg — de poucos recursos, quase artesanal — ao estilo que caracteriza todo o restante de sua carreira. Da dialética Corpo X Ciência, eis um reflexo exponencial dos traumas que este conflito moderno origina dentro daqueles que se submetem, ou são submetidos, a modificações de sua natureza para sobrevivência. É para não morrer que a protagonista suga a vida e o sangue (e o sexo) de todos que se aproximam; para continuar em seu corpo que, incontrolável e inconscientemente, ela espalha uma peste, a Raiva do título original, entre a população local. Os princípios de uma antropofagia espelhados pelo próprio cinema, pelo referencial de gênero em que Cronenberg adentra e pelo que ele lega e compartilha com autores de seu tempo (Romero, Craven, Rollin), cinemas feitos com os restos da humanidade. Neste corpo neutralizado a que se restringe o contorno da mulher atriz (Marilyn Chambers, advinda do mundo pornô e por isso com a única experiência legítima ao universo de Rabid, um filme a que só importam os resquícios dos corpos e de suas ações mecânicas), Cronenberg encontra a carnalidade devida e necessária ao seu projeto de imagem; é o que sua última cena confirma, no caminhão de lixo que tritura o cadáver esquecido, que se afasta dentro de uma rotina apocalíptica sem o menor pudor ou impressão nostálgica. Constatação de um tempo em que já não cabe a saudade, de um espaço que não alivia a mortalidade do mundo. Em Rabid um cinema que volta ao pó, que se rende ao finito, uma lembrança de que já não importa a ficção se tudo é frágil, ilusório, enfermo. (Fernando Mendonça)

Fast Company (1979)

Fast Company carrega o velho e bom discurso bufão de liberdade “hit the road” anos 70, concepção residual da semifalida contracultura sessentista e da agonizante transição, no cinema, do douradíssimo Monument Valley pralgum triste pedaço de asfalto entre o Novo México e a Louisiana — radiografia translúcida do jovem cinema americano tirada por um filme B de Alberta, Canadá. Embora pareça estranho ver um carsploitation entre filmes de horror na filmografia de Cronenberg, Fast Company guarda, ainda que sob as ressalvas de uma produção precária, indícios da mise-en-scène minimalista vista mais claramente a partir da década seguinte. A câmera é erradia e os cortes são rudes (especialmente naquele campo-contracampo frenético das cenas de corrida), mas acabam sempre por recompor a cadência de um outro cinema. No macro, Cronenberg é mesmo afeito ao escândalo, ao absurdo; mas na minutiae dos seus filmes sempre se instalou aquele olhar kafkiano que narra o desconcerto como banal, que faz da loucura a mais anêmica trivialidade. Para além do filme em si, que não despertaria mesmo um interesse genuíno (nem dentro do seu sub-gênero), há este semiclassicismo prematuro em Fast Company, de adotar a insurgência lisérgica exportada pela Nova Hollywood com preceitos do cinema clássico guardados no bolso. (Luis Henrique Boaventura)

Filhos do Medo (1979)

 

Nem o espectador nem os personagens que circundam Nola Cavendish — o médico trambiqueiro cujo tratamento se revela mais eficiente do que deveria; o marido que vai de um lado a outro em busca de uma explicação para os eventos cada vez mais inexplicáveis que ocorrem à sua volta — sabem, até as cenas finais de Os Filhos do Medo, se ela tem consciência ou não da existência de sua “ninhada” e de como as atitudes dos “filhos” refletem seus estados emocionais. A revelação é adiada por Cronenberg pelo maior tempo possível; a narrativa nos despista inúmeras vezes, empurrando Nola para uma posição de vítima indefesa de Oliver Reed; e tudo isso carrega a hora da reviravolta de expectativa, porque, embora sejamos levados a pensar que temos uma noção bastante boa do que está de fato acontecendo, o filme toma o cuidado de não nos deixar cristalizar uma certeza nunca. Assim, o momento em que Frank entra naquela quarto é valorizado, e é logo depois que estaremos diante da (apenas) segunda irrupção explícita, em todo o filme, do horror cronenberguiano como tomou forma na primeira fase da carreira do diretor, o das anomalias e deformações corporais; o que pode parecer estranho num filme com temática tão convidativa à imagem frontal do corpo padecendo de um mal físico ou psicológico que Cronenberg cultivou durante toda a sua carreira. Os Filhos do Medo tem essa postura porque aqui não importa tanto a mutação particular que vemos, mas sim o fato de que Nola não só a aceita como a celebra: e a mise en scène é sua cúmplice nesse aspecto, na forma como esconde de nossa vista, pela sua elegância, pela cadência da narrativa, muito mais próxima de um suspense clássico que um Scanners, a verdadeira natureza dos eventos. Nos filmes anteriores não existia olhar simpático algum para o que acontecia; mas de Os Filhos do Medo em diante a câmera de Cronenberg sempre enquadrará a anomalia (física ou mental) num misto de horror e fascinação. (Robson Galluci)

Scanners — Sua Mente Pode Destruir (1981)

 

Uma ficção-científica de terror, Scanners, com seu clima pesado, não deixa de trazer algumas questões caras ao cinema de Cronenberg: tecnologia e coerção social controlando e moldando os corpos dos indivíduos, que resistem como podem. No filme, um grupo de pessoas adquiriu a capacidade de ler e controlar mentes, devido a um experimento científico malsucedido. Com o fracasso das experiências, esses scanners (leitores de mentes) tornaram-se páreas na sociedade, incapazes de adaptarem essa aptidão a uma vida ordinária. A situação só muda quando um scanner decide reunir todos esses enjeitados em um plano de dominar o mundo. E apenas um outro scanner será capaz de acabar com essa revolução violenta. É essa guerra telecinética que filma Cronenberg. Se pela temática poderíamos supor uma abordagem mais psicológica, o que interessa ao diretor é o embate físico desses corpos. Os olhos se esbugalham, as veias saltam, o rosto se deforma. Como de costume no seu cinema, é essa metamorfose corporal que interessa a Cronenberg: o que se passa na tela como uma pele. O poder mental dos scanners se materializa como a carne e o sangue nas imagens, às vezes tão densos que as cabeças até explodem. (Kênia Freitas)

Videodrome — A Síndrome do Vídeo (1983)

Mcluhan apontou a tecnologia eletrônica – e posteriormente cibernética – emergente no século XX como uma extensão do corpo humano, o faz dela, deste ponto de vista, um tema natural para o cinema de Cronenebrg. Desde então diversos filmes se aproveitaram da ideia de diluição entre a realidade física e a ilusão virtual para a composição de uma única entidade-mundo – o próprio Cronenberg realizaria anos mais tarde nova investida no tema com eXistenZ -, nenhum deles com a precisão assustadora e visionária de Videodrome. Ao participar de algumas exibições de filmes snuffs – antes mesmo do termo ser cunhado para classificar os vídeos que reproduzem violência física e mortes não encenadas, reais – o personagem de James Woods passa a sofrer alucinações e é de seu ponto de vista distorcido e insano que acompanharemos tudo o que se desenrola na história, sem jamais sabermos quais elementos são reais dentro do conceito de “realidade” proposto para o filme e quais são meras intervenções de seus delírios. O dispositivo central parte de uma forte inversão: enquanto os limites morais da encenação são postos em xeque nos filmes-dentro-do-filme, com a reprodução de mortes reais em vídeo, a vida do personagem é sugada por um imaginário de gênero através do qual é transformada em uma grande ficção, com direito a cenas de ação, perseguição, sexo, assassinato e gore, elementos básicos do códice das ficções oitentistas – e também dos filmes canadenses do cineasta, que faria com Videodrome sua estreia em solo estadunidense. Desta dicotomia nascem momentos emblemáticos como o abdômen de Woods abrindo-se para ser transformado em um vídeo-cassete humano, ou a televisão o engolindo, ou a arma que ele porta se integrando ao seu corpo, fundindo assim máquina e homem em um mesmo ser – imagens que não poderiam refletir com maior precisão sobre nossos tempos. A tecnologia, embora à serviço da civilização do homem, também pode ser sua ruína. Long live the new flesh, diz Cronenberg, e salve-se quem, nesta intempérie de estímulos artificiais, conseguir se manter imune à insanidade. (Daniel Dalpizzolo)

A Hora da Zona Morta (1983)

A sintonia que o original literário de Dead Zone nutre para com o universo de Cronenberg é facilmente identificável pela relação de forças polarizada em torno do corpo humano, da dimensão que escapa à ciência e expande o horizonte de atuação dos entes racionais no mundo em que vivem. Abordagem de um vigoroso romance de Stephen King, este filme converge alguns aspectos que complementam o imaginário de Cronenberg no que tange o seu habitual alargamento dos limites físicos, no caso, uma demolição das barreiras que a mente encontra para exercer poder num domínio exterior à pele, sem a necessidade de qualquer contato com seus agentes de percepção. O protagonista encarnado por Christopher Walken, vítima de um acidente que libera em seu cérebro uma paranormalidade fundamentada na visão de dores e medos sofridos em espaços-tempo descontínuos ao de sua presença, concentra problemas característicos aos tipos que se multiplicam na filmografia do diretor: angústias de pessoas que se encontram num estado de diferença, que se fundem numa alteridade não compreendida e, por isso, são impedidos de uma comunicação social e afetiva com aqueles que já não conseguem enxergar neles mais do que uma memória latente, uma impressão perdida do passado. Apesar de tudo, o foco acentuado por Cronenberg sobre a interrompida vida amorosa/familiar de seu personagem — de um romantismo frustrado como só veríamos novamente em Marcas da Violência — ecoa uma impotência compartilhada pelo próprio resultado final de A Hora da Zona Morta, filme um tanto quanto envelhecido e formalmente dissonante dentro do cinema que ele desenvolveu no século passado. Talvez por isso, seu trabalho que melhor esboce os caminhos que ele trilharia nestes anos mais recentes, maduros o suficiente para assumir um classicismo indiscreto, confrontador. (Fernando Mendonça)

A Mosca (1986)

Precedido por uma reputação cheia de meias verdades, A mosca é tido na conta de refilmagem, de festim “gore” e de ficção-científica absurda e descerebrada. Mas na superfície tudo é raso, e é difícil subestimar este filme de David Cronenberg após assistir a ele com um mínimo de atenção. A Mosca não é um remake caça-níqueis, é uma outra versão do mesmo texto literário (não lembrando em nada o filme de 1958, aliás); também não se refestela nunca na gosma e na sujeira e no podre como uma maneira de chamar a atenção ou estilizar maneirismos estúpidos: é uma jornada de destruição, e claro que na putrefação física os detritos e chagas são abundantes; o rótulo de ficção científica — empregada aqui, pela ala detratora, como atributo pejorativo — também parece inadequado, sendo A Mosca um filme essencialmente romântico e dramático, uma saga de ambição e desespero, incrivelmente trágico, com uma moral encerrada no fundo de sua percepção da megalomania humana, com a eterna vontade que temos de usar a ciência para superar a natureza, sermos um pouco criaturas divinais. A Mosca está portanto longe do oportunismo, do amadorismo e do conservadorismo. É uma obra madura disfarçada sob a aparência de tolo entretenimento, e aí Cronenberg acerta na mosca. (Filipe Chamy)

Gêmeos — Mórbida Semelhança (1988)

Se as deformidades e transformações do corpo eram o leitmotiv da obra de Cronenberg até A Mosca, em Gêmeos — Mórbida Semelhança adentramos numa operação que desfacela esta regra e, por sua necessidade de encenação (fazer de um mesmo corpo, em tela, dois), concede à misè en scène do diretor um status cirúrgico — não sem propósito, é um filme que aproxima a ciência e a arte com certa frequência. Pois a consciência única dividida pelos gêmeos interpretados por Jeremy Irons permite a Cronenberg fazer uso de instrumentos próprios ao cinema (o corte, a angulação da câmera, o campo/contracampo) para nos cercar com um jogo de espelhos, partindo substancialmente de um mesmo e imutável corpo. Enquanto em Shivers, Rabid ou A Mosca as anomalias do corpo eram observadas frontalmente pela câmera, em Gêmeos essa mutação é originada justamente por ela, através de seus truques mais fundamentais, para dar à luz a ilusão da arte — e a arte não fora sempre, em sua gênese, uma grande ilusão? O corpo de Irons vela em si toda transgressão imagética deste filme de narrativa cristalina (como dito com frequência, o princípio do que se convencionou chamar de segunda fase da carreira de Cronenberg, dedicada ao estudo da mente humana e seus desvios), alternando personalidades a cada plano para fundir personagens que vivem alimentando-se uns dos outros — não apenas Bev e Elliot, mas todas as combinações geradas entre eles nas transformações físicas e verbais de Irons, que sustentam uma danação estimulada mutuamente e enlaçada à incompletude da outra metade, entregue a nós sempre com o retardo de um corte. Quando enquadrados frontalmente e imóveis num mesmo plano, com o rigor de uma pintura degenerada, Cronenberg reconduz o espectador à mórbida realidade da vida para lembrar que Bev e Shaw, ao final, não são nada além de matéria morta e inanimada; apenas mais um truque do cinema. Apagam-se as luzes e a ilusão tem fim. (Daniel Dalpizzolo)

Mistérios e Paixões (1991)

 

Cineastas do naipe de canadense David Cronenberg, com tantas obras-primas no currículo, não permitem que se possa aferir ou apontar com certeza absoluta qual trabalho que fizeram seria o melhor de todos. Mas, no caso, posso dizer que meu preferido dentre todos os que ele realizou é este Naked Lunch (o crítico norte-americano Jonathan Rosenbaum é outro que, salvo engano, o têm como favorito, mas curiosamente nunca foi um filme muito querido entre a crítica brasileira). Temos aqui um escritor frustrado que trabalha num emprego de merda, para quem não conhece, trata-se da história de Bill Lee (Peter Weller, de Robocop), um escritor junkie que trabalha como exterminador de baratas para poder pagar as contas. Porém, ele começa a correr grandes riscos de perder o emprego, ao ser acusado de desperdício do seu estoque de inseticida. O que acontece é que sua esposa, Joan (Judy Davis), esgota o material ingerindo-o como uma droga qualquer. Incentivado pela esposa, ele, que também já foi viciado, volta a usar da droga, o que faz com que dialogue com insetos falantes, que o incumbem de matar a mulher, o que ele acaba fazendo acidentalmente. Bill foge para um lugar estranho por onde é levado por suas alucinações, a Interzone, onde, munido de uma máquina de escrever que briga e se transforma em insetos gigantes, ele redige “relatórios” em que narra a seus “superiores” (os insetos) a vida dos nativos dos lugares, entre os quais, outros escritores obcecados por drogas, literatura e homossexualismo. Na verdade, Bill e esses outros escritores são agentes disfarçados que tentam descobrir o gerenciador local no tráfico de lacraias pretas brasileiras gigantes, que dão origem a uma droga de efeito ainda superior as demais. Não é preciso dizer que esse enredo de acontecimentos inacreditáveis e inenarráveis formam um universo surreal cheio de bizarrices, um delírio visual em que se sobressaem os insetos gigantes que mais parecem crustáceos, verdadeiras criaturas que se assemelham às que costumam povoar filmes de terror, mas que aqui fazem parte das “viagens” perpetradas pela mente psicodélica dos personagens quando sob efeito dos alucinógenos. O romance original do escritor beat William Burroughs foi publicado em 1959, e, desde sua estréia, considerado escandaloso. Muitos o julgavam intransponível para o cinema, até David Cronenberg encarar o desafio de levá-lo para as telas e filmá-lo na Inglaterra, Canadá e Japão, em 1991. De fato, a tarefa de transformar esse argumento em filme sem resvalar na mediocridade parecia ser uma tarefa das mais difíceis. Cronenberg superou todas as barreiras da transposição e criou um filme extraordinário. Ainda não li o romance, mas embora digam que Cronenberg tenha atenuado bastante o livro original, pode-se dizer que o canadense nunca levou suas bizarrices até as últimas consequências que nem em Naked Lunch. Em tempo: alguém tem dúvida de que William Burroughs, em seus delírios, escreveu esse livro na sublime companhia espiritual de Franz Kafka? Entre metamorfoses e mutações, a arte se recicla e se renova. Contar uma história dessas sem que o resultado se torne uma bobagem muito grande é mesmo coisa de gênio. (Vlademir Lazo)

M. Butterfly (1993)

M. Butterfly é um filme sobre a superfície da imagem. A ficção do corpo. O corpo é a peça-chave da filosofia misantropa cronenbergueana. O corpo que se transmuta, que se torna oculto, que resiste, disposto a domar a lógica das pulsões à sua volta, seja as violentas ou sexuais. Para quem ainda não viu o filme do diretor canadense, não se trata de uma adaptação da ópera Madame Butterfly, de Giacomo Puccini, mas da relação de Rene Gallimard, o personagem de Jeremy Irons, com uma interprete do papel-título em uma montagem da famosa ópera. A obsessão do primeiro pela imagem de Butterfly, cuja efígie é a materialização dos seus desejos, uma representação de algo próximo de um sonho (ou de um pesadelo), faz com que Gallimard persiga o seu adorado objeto de veneração por todos os lugares. Um grau de encantamento do qual não se quer acordar. Ao mesmo tempo, uma ambígua relação do exótico mundo da cultura chinesa com as perversões da burguesia ocidental (como define a personagem-título), que conduz a jogos políticos e a um intenso romance. Mas a trama aqui já não é mais apenas o que parece, ela revela-se um emaranhado de expressões faciais, de olhares, de gestos, de medos, de desejos, de frustrações, de expectativas. E o próprio Jeremy Irons, que nos acostumamos a ver vestido de modo impecável, com sua postura absolutamente contida e equilibrada, seus movimentos medidos, as palavras utilizadas de forma exata, com toda sua etiqueta aristocrática sendo posta em prática de forma exemplar, ao final não será mais o mesmo, depois de ser amado por uma mulher perfeita e após a visão de damas esbeltas com cheosan e quimonos, que morrem pelo amor de indignos demônios estrangeiros. Um filme sobre aparências, os enganos e a transitoriedade, as falsas percepções e certezas de um personagem inserido dentro de outra noção da realidade, como em tantas outras obras de David Cronenberg. (Vlademir Lazo)

Crash — Estranhos Prazeres (1996)

Antes que um filme sobre perversões sexuais, Crash é uma narrativa sobre valores contemporâneos: é consideravelmente moderna a percepção de que afinal nos mecanizamos cada vez mais, e este filme de Cronenberg trata dessa nova condição com impressionante exposição — os corpos, os movimentos, as penetrações na carne (e da carne) são retratados com brutal transparência, quase um sentido físico extra-tela, uma força mesmo aterrorizante. Mas não tanto quanto a que impulsiona as personagens do longa, que procuram nas cicatrizes, nos hematomas, colisões, sangue e feridas toda sorte de compensação por sua deficiência sentimental; quando as batidas de carros as excitam, é como se as máquinas lhes fossem armaduras com as quais resolvem finalmente entregar-se à luta, ou ao prazer. É portanto uma forma de decepção íntima que as anima a terem o gozo com a dor, pois na alegria é que elas sofrem mais. Então quando dois corpos se abraçam e se penetram, a cópula é antes uma exibição fria de poder e domínio que um ato humano de envolvimento. Se visto apressadamente, Crash parecerá a descrição de uma simples jornada de autodestruição inconsequente e fútil. Mas ainda que talvez seja também isso, há algo de mais profundo e tocante. E tocar nesse nervo doloroso é tarefa cumprida com êxito por Cronenberg, que, como tentam suas criaturas, é incansável manipulador de corpos e mentes. (Filipe Chamy)

eXistenZ (1999)

No final dos anos 90, Cronenberg já abandonara havia muito as mutações e deformações físicas extremas da primeira fase de sua carreira em favor de um universo em que a mente é a origem das atribulações do indivíduo, mas é apenas em eXistenZ que esse ponto de vista se concretiza da maneira mais radical até então. Antes, o personagem cronenberguiano via-se delimitado (em como percebia a si mesmo e se colocava no mundo) pelo seu próprio corpo, e só podia sair de sua passividade, com resultados violentos, via intervenções externas — parasitas, deformações, experimentos científicos malsucedidos —, mais tarde colocadas sob um frágil controle: o homem maquina sua própria mutação. Em eXistenZ, porém, isso tudo desaparece, porque o fora não existe mais. Tudo está no jogo, tudo está na mente. Suspeita-se até mesmo do próprio corpo, talvez apenas outra ficção, como toda a (aparência de) realidade que circunda os personagens. Certos elementos típicos da primeira fase dão as caras, como a bioporta na espinha e o gamepad, porém mais como despiste ou referência irônica ao universo mental do diretor, e preenchendo o papel de alívio cômico mais de uma vez; e deve-se destacar como, fora a própria bioporta, todas as mutações que vemos — o console orgânico vivo, os anfíbios mutantes — não são causadas nos próprios personagens, e sim na realidade/ficção mental pela qual se deslocam. Daqui em diante, o fantástico e a ficção-científica começarão a sumir do cinema de Cronenberg, conforme essa realidade que é criada e deformada obedecendo aos impulsos da mente passa a assumir formas cada vez mais “realistas” (delírios esquizofrênicos, mentiras contadas deliberadamente); e, embora eXistenZ adote uma postura de completa negação de que sequer haja um fora, nos filmes seguintes o mundo externo voltará a dar sinais de vida, apenas para ser ferozmente repelido. Porque a única coisa que pode sacudir os personagens da nova fase de Cronenberg de sua passividade é a mesma que tanto afligiu os anteriores: um assalto inesperado da realidade física. Em retrospecto, diante da situação dos protagonistas de eXistenZ quando o filme acaba, Seth Brundle não terminou, no final das contas, tão mal. (Robson Galluci)

Spider — Desafie Sua Mente (2002)

“Se o hábito faz o monge, quanto menos monge, mas hábito se faz necessário.”
Essa foi a primeira frase sobre Spider que me fez ligá-lo prontamente ao protagonista solitário de O Perfume, de Patrick Suskind. Ambos os personagens manejam com engenho algumas das faculdades mais humanas, ao passo que são absurdamente deficientes em serem propriamente humanos, e é isso que melhor os define. Em Suskind, um perfumista sofre por ter vindo ao mundo sem cheiro próprio. Em Spider, um homem esgota suas últimas forças, num tremendo esforço de memória, para reconstrução de um quebra-cabeça, até chegar a quem escondeu a peça que falta. Na minha trajetória com Cronenberg, Spider parece o monstro mais contido. Aliás, tudo ao redor serve apenas para ilustrar a contrição do personagem, em verdade, certo desmerecimento por tudo que pareça acessório em relação à sua obsessão dramática pela morte da mãe. Sempre me ocorre pensar que os ambientes entre cinza e tons pastéis denotem a falta de sangue (como signo de vida) nestas histórias de personagens que impregnam a cor do filme com a profundidade de suas questões. No jogo de substituição das personagens femininas, confesso, minha atenção perturbada se viu esfregar o olhos. Sofro ao pensar naquele personagem-aranha absorto na criação de sua própria rede mantendo assim as perspectivas turvas ao levantar a atenção de seu projeto. É fácil perder o fio da meada.. Aliás, para Spider não existe fora: tudo que importa/existe está de alguma forma abarcado por algum dos nós que ele foi deixando pelo caminho. Engraçado perceber a dor do protagonista ao não poder sair à rua com um mega novelo, e amarrar a cidade inteira. Acaba contentado em expor seus fluxos no quartinho apertado do sanatório. Complexo de Édipo? Na verdade a obsessão de Spider passa tanto pela morte da mãe, como pela criação da narrativa à qual precisará dar um final. Um homem perturbado que se isola na solidão da paranóia, criando intrincadas relações neurais, teias, para resolução do quebra cabeças. Aquilo que se esconde, ou aquilo que escondemos de nós mesmos? Quem nunca viu esse filme? (Geo Abreu)

Marcas da Violência (2005)

Marcas da Violência profana as escrituras e retifica o mito do assassínio original em página nova, onde Abel mata Caim, ganha o perdão no lugar do exílio e funda sobre seu corpo o edifício da sagrada família, misturando no mesmo barro o sangue inocente com o maligno. Porque há um mal atávico que sopra do Mediterrâneo no ouvido dos homens e contra o qual não vale a composição dos velhos testamentos, por isto Marcas da Violência é menos sobre a história das fundações e as fundações da História do que sobre o papel do perdão na manutenção do mundo; um perdão não ao indivíduo, mas à natureza e seu mistério, interregno rudimentar geradouro do bem e do mal, do pai e do assassino. Como quando Tom, aos pés do seu matador, é salvo por um tiro do filho. Sem saber o que esperar, se a reprimenda do pai ou dois tapas nas costas, ele permanece quieto, assustado, dando conta ainda do estranho quadro que lhe assalta os olhos (três corpos em torno do pai baleado), estes olhos prematuros jamais expostos a um certo mundo que rosna e espreita aos portões da cidadezinha. Tom levanta-se, tira das mãos adolescentes do filho a espingarda e o absolve com um abraço, gesto redentor do patriarca que tem o rosto manchado de sangue. Não importa que seus prodígios se extraviem, a violência acaba sempre por encontrar um caminho de volta, e é natural que se proceda no seio da família a esta esquize elementar: entre o filho puro e o corrompido, entre o pai e o estranho. Daí a beleza da composição de gestos na cena final. Restaurar a casa que tomba sem esquecer que em nossa pedra angular foi imolada uma criança. (Luis Henrique Boaventura)

Senhores do Crime (2007)

O início de Senhores do Crime parece saído de uma história de Dostoiévski. Em quatro minutos de filme, Cronenberg apresenta duas mortes. A primeira, um assassinato praticado por alguém que experimenta pela primeira vez a sensação de matar. A segunda, de uma adolescente grávida que busca socorro em uma farmácia, com o que parece ser uma hemorragia. Levada ao hospital, ela não resiste e morre um minuto antes do nascimento da filha. Ao encontrar o diário da garota, em meio a seus pertences, a enfermeira responsável pelo parto decide ir atrás da família para entregar o bebê. Através do diário, as histórias das duas mortes e da parteira se ligam a uma família russa mafiosa, que usa um restaurante de fachada para seus negócios. Falar mais que isso sobre a trama é estragar a experiência que o filme proporciona, antecipando as viradas de roteiro. Apesar de mergulhar no mundo da máfia russa, apresentando o código de tatuagens e rituais de aceitação, Cronenberg não faz um filme interessado em depor sobre o sistema (mesmo tendo detalhes cuidadosos na representação, como o uso de facas no lugar de armas de fogo, obedecendo aos códigos da Vory v Zakone, e o sotaque impecável de Viggo Mortensen – cuja atuação é um dos grandes trunfos do filme). O mérito do diretor está em utilizar o mundo de um chefe do crime, capaz de tratar com a mesma naturalidade seus negócios e uma panela de goulash no fogo, para compreender alguém que vive a violência como profissão. Descobrimos também que a violência, além de ser ação natural, é uma experiência pessoal, particular a cada indivíduo, mesmo em um grupo regido por normas de condutas que não permitem exceções (a instabilidade emocional de Kiril, personagem de Vincent Cassel, por exemplo, contrasta com a tranquilidade de Nikolai, o motorista de Viggo). Encontramos a assinatura de Cronenberg, cineasta legitimo do cinema de autor, especialmente na representação visual de como essa naturalidade é experimentada por aqueles que habitam o mundo da máfia. Cronenberg é o diretor que vai contra a corrente do discurso condenatório de todo e qualquer tipo de violência, interessado em investigar o que a gera. A eleição dos gêneros de horror, suspense, drama, que marcam sua filmografia, são apenas um meio para realizar a anatomia de uma das mais cruas emoções humanas. Senhores do crime é um ensaio sobre a proposição de que “cada pecado deixa uma marca” (frase do pôster de divulgação da produção). Sejam elas visíveis como as tatuagens de batismo de um grupo mafioso, ou daquelas que não se confessa nem às páginas de um diário. Quem não as carrega, que atire a primeira pedra. (Fernanda Canofre)

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A Mulher de Longe (Luiz Carlos Lacerda, 2012) e Dino Cazzola – Uma Filmografia de Brasília (Andréa Prates e Cleisson Vidal, 2012)

Por Daniel Dalpizzolo

O diálogo sobre preservação da memória do audiovisual brasileiro foi o carro-chefe da Mostra de Cinema de Ouro Preto, que aconteceu de 20 a 25 de junho na cidade histórica de Minas Gerais. Nada mais natural então que, além dos seminários para discussão de políticas públicas e técnicas de preservação, decorridos ao longo do evento, também sejam apresentados em sua programação resultados já conquistados na área, com duas obras cinematográficas montadas a partir do desejo de resgate de imagens de arquivos pessoais: A Mulher de Longe, de Luiz Carlos Lacerda, e Dino Cazzola – Uma Filmografia de Brasília, de Andréa Prates e Cleisson Vidal. Filmes que, se nem sempre bem resolvidos, nascem fundamentais por trazerem imagens jamais vistas anteriormente, salvando os materiais do desgaste do tempo e devolvendo-os ao local para o qual foram originalmente produzidos: o projetor de cinema.

Em seus aproximados 70 minutos, A Mulher de Longe apresenta uma reconstituição narrativa com pretensões líricas sobre a restauração de um filme perdido e inacabado do escritor mineiro Lúcio Cardoso, autor de importantes obras da literatura nacional, como Crônica de uma Casa Assassinada, adaptada para o cinema por Paulo Cesar Saraceni – com quem também contribuíra com outros roteiros, como Porto das Caixas -, e também parceiro de Lacerda, diretor do longa, em filmes como O Enfeitiçado e Mãos Vazias. Filmado em 1949, este seria o primeiro e único trabalho de Cardoso como cineasta, mas foi interrompido por falta de dinheiro, sem jamais ser retomado. O material estava arquivado junto à Cinemateca Brasileira e foi recentemente descoberto, motivando Lacerda a, mesmo sem o roteiro original e munido apenas de fragmentos imagéticos, tentar montá-lo à sua maneira.

Há uma relação direta entre o cineasta e o escritor que dá a este A Mulher de Longe uma atmosfera de admiração passional. Além das imagens originais, Lacerda filma tomadas complementares – com um trabalho de câmera muito distante da proeza dos registros de Cardoso – e distribui pelo filme cenas do processo de restauração das películas originais e também de outros trabalhos roteirizados por ele. O desejo aparente é de fazer uma grande reverência ao escritor, que apesar de não concluir seu único projeto de cinema também canalizou sua expressividade artística na pintura. No ano em que completaria seu centenário de vida, o lançamento do filme presta uma homenagem a Lúcio Cardoso – apesar de a oportunidade de conferir as imagens registradas por ele ser bem mais interessante do que o filme de uma forma geral.

Já em Dino Cazzola – Uma Filmografia de Brasília, as imagens resgatadas pertencem ao cinegrafista italiano Dino Cazzola, que acompanhou a construção e os primeiros anos de Brasília. É o segundo filme da programação da Mostra a abordar a conturbada construção da capital nacional e suas cidades satélite – sendo o outro A Cidade é uma só?, com o qual o filme rende paralelos interessantes. Uma Filmografia de Brasília nasce a partir do delicado processo de restauração dos arquivos de Dino – as imagens iniciais em que latas dos filmes são abertas e vemos a maior parte do material completamente podre e inutilizável são particularmente fortes, mais ainda dentro de um contexto como o deste festival – e apresenta imagens também inéditas, guardadas há anos na casa do cinegrafista, e que mostram um recorte deste período fundamental da história recente brasileira.

O documentário intercala a história do próprio Dino com imagens de Brasília, sua construção e primeiros anos, todas elas sob a perspectiva do cineasta – apesar de alguns fatos serem trazidos ao filme através de materiais da imprensa da época, especialmente para contextualizar a ascensão da ditadura militar, sob a qual Dino operaria a partir de 1964. O trabalho de Andréa Prates e Cleisson Vidal possui um mesmo tom de veneração e contemplação também presente em A Mulher de Longe, fazendo um documentário limpo, com uma narrativa preocupada essencialmente com a prestação de serviço de resgate – o que de certa forma pode limitar a discussão daquelas imagens tão emblemáticas, tornando o filme mais importante como acesso a estes registros históricos do que como princípio para um debate político sobre a cidade e o período retratados. A restauração, porém, está feita.

Visto na 7a Mostra de Cinema de Ouro Preto

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Cidade Ameaçada (Roberto Farias, 1960)

Por Daniel Dalpizzolo

Há uma linha de filmes de crime toda desenhada sobre uma tradição melancólica herdada, principalmente, de obras como Crime e Castigo, de Fiodór Dostoiévski, livro dos mais representativos sobre as consequências da execução de um crime, e de uma forte concepção moral imanente a uma sociedade que se sente apta a julgar pessoas e envolve-las com rótulos marginalizantes. Uma vez que se cometa um ato condenado por lei você se torna um criminoso, e é esta pecha que o diferenciará eternamente dos “homens comuns”. Não existe ex-criminoso assim como não existe até então um ex-aidético, porque a crença geral aponta para uma incapacidade de correção que se constroi tal qual um impasse físico ou de saúde, e sua história permanecerá escrita nos arquivos policiais e judiciais e depoerá contra você tão logo for possível. Na mesma medida, o desejo de tocar a vida após o crime, como já abordaria Dostoiévski, choca-se muitas vezes com um peso moral inquebrantável, uma necessidade de esquecimento e de superação incapaz de ser desviada até que se espere a punição da justiça.

Cidade Ameaçada, de Roberto Farias, veste-se do que há de melhor destas histórias no cinema. Filmado em 1960, no período pré-cinema novo brasileiro, o filme acompanha Passarinho e sua quadrilha, bando que realizou diversos crimes na cidade de São Paulo e tornou-se implacável alvo da polícia e da imprensa. A estética agressiva, de fortes imagens em um preto-e-branco contrastado, rasgante, cheio de luzes e sombras e planos ágeis e bastante movimentados, dá ao filme uma dinâmica semelhante à das grandes histórias policiais da década de 30, como Scarface, de Howard Hawks, que narra a ascensão e o declínio de um gângster e traficante de bebidas. Já o peso moral atrelado à narrativa a partir do arrependimento de Passarinho e sua paixão pela personagem de Ewa Vilma, que o leva a tentar largar a quadrilha para constituir uma família e viver a vida dos sonhos, lembra também obras como os filmes norte-americanos de Fritz Lang, cuja discussão moral em torno do crime é ainda hoje uma das mais contundentes do cinema.

Neste que o próprio diretor considera seu primeiro filme “sério” (antes dele havia feito duas chanchadas, à época ainda desprezadas enquanto cinema), Roberto Farias monta uma narrativa  que mistura linguagem dos populares folhetins da época com uma estrutura narrativa clássica dos filmes policiais — gênero ao qual o autor retornaria outras vezes, como em Assalto ao Trem Pagador. O peso da história de crime e castigo de Passarinho é bastante intenso, e compõe um personagem (interpretado por Reginaldo Faria, irmão e constante parceiro do diretor) que possibilita um diálogo preciso com estas questões morais e existenciais tão caras aos filmes de crime. Da violência ao amor, do arrependimento à culpa, da necessidade de superação à pressão social e midiática que não permitem a Passarinho, depois de tantas capas de jornal, voltar a ser um “homem comum”: Cidade Ameaçada é uma ficção construída a partir de uma história real para colocar o espectador na pele do “criminoso” e sensibilizá-lo com seu drama opressor e angustiante, inerte diante de uma sociedade obcecada pela condenação.

Visto na 7ª Mostra de Cinema de Ouro Preto

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Entrevista com Adirley Queirós

Rever A Cidade é uma Só?, do Adirley Queirós, a céu aberto, na Praça Tiradentes de Ouro Preto, durante a 7ª CineOP, é uma experiência particularmente fascinante. Já havia visto o filme na 15ª Mostra de Cinema de Tiradentes, em janeiro, e revê-lo não só faz a admiração crescer ainda mais, mas reforça a certeza de que é um dos filmes brasileiros mais fundamentais dos últimos anos. Tive a oportunidade de conversar com o Adirley sobre o filme e outros assuntos que surgem através dele, e reproduzo o bate-papo aqui na íntegra, com pequenos cortes de palavras, frases ou ideias repetidas e algumas correções de fala, mas preservando a totalidade da conversa.

D: A Cidade é uma Só? se constroi basicamente como um documentário de invenção, com uma criação de personagens farsescos que se chocam com a realidade. A ideia era essa desde o princípio?

A: Esse filme surgiu de um edital sobre os 50 anos de Brasília. Quando a gente o escreveu para o edital, pensávamos em um documentário tradicional, mas já com algumas intervenções para quebrar com este real. Na concepção original tinha essa pegada. Mas quando a gente foi fazer o filme notou que só aquilo que tínhamos proposto enquanto tema do documentário não daria um bom filme, então começamos a colocar intervenções com atores. Os atores, na verdade, são os caras do nosso grupo de cinema, e a partir do momento em que a gente começa a gravar e sentir que talvez o filme estava com um formato mais quadrado, chamamos duas pessoas e começamos a propor a elas situações, uma tentativa maior de intervenção.

Foi pensada então uma forma de construir uma ficção para dialogar com esta realidade que vocês queriam filmar?

É. O filme passa por uma farsa. A forma como a gente queria contar a história teria que passar por essa possibilidade de uma pessoa estar se dispondo a encenar aquilo. São personagens que são quase vilões na história. Um é um personagem que vende lotes, é um grileiro de terras, mas um grileiro de terras pobre, um cara na correria do dia-a-dia, e o outro um cara que não consegue mais estar no meio da política, esta política que está no poder. A única forma de chegarmos a estes pontos dessa forma seria inventando, ou melhor, propondo a estas pessoas que não fossem elas, mas que jogassem todas as ansiedades delas dentro do filme.

Até porque a ficção muitas vezes é uma forma ainda mais eficaz de discutir a realidade, de atingir o discurso que você propõe. Estes personagens possibilitam a você fazer alguns choques dentro do filme que me interessam bastante, como a cena final do Dildu, quando o cinema que você está inventando se encontra dum jeito impressionante com um acontecimento real. Você acha que assim consegue propor uma discussão maior do que conseguiria com o documentário?

É engraçado, porque no filme nós temos três personagens principais: dois personagens de intervenção, que são enfim atores, e uma personagem que é real. Mas esta personagem “real”, eu sinto que ela, obviamente pelas negociações feitas para o filme, porque ela sabe o que tá acontecendo no filme, mas quando ela chega para atuar a história real dela, ela acaba fazendo tudo no nível da interpretação mesmo, classicamente falando. Ela tem noção da luz, da claquete, da ação do filme. E os caras que a gente propõe para representar, talvez pela nossa amizade, porque todo mundo estava muito dentro do filme, eles estão expostos ao filme, e o sentido de interpretação vai embora. Eles acreditam que aquilo é uma história real. E isso entra numa esfera política muito rapidamente. Fazer filme em Brasília, ou melhor, fazer filme fora de Brasília, em uma cidade satélite, já é uma conquista política. À medida que a gente coloca que o espaço político de Brasília vai muito além do planejamento do plano piloto, a gente já propõe uma discussão política. A gente queria realmente que houvesse uma discussão política no filme, queria intervir politicamente.

O próprio fato de vocês criarem esses personagens com um intuito de fazer esta discussão também já é uma posição política. 

Sim, estamos tomando uma posição política e histórica da cidade. A cidade que a gente vive, a Ceilândia, é uma cidade de 600 mil habitantes, que historicamente é a primeira favela de Brasília. Campanha de erradicação de invasões. Ela já nasce esquematizada como uma grande favela. Então eu cresci tendo a cidade como uma referência negativa sempre. Quando a gente constrói estes personagens, um personagem que cria um partido político e um personagem que vende lotes, já se cria um estranhamento. E o filme foi sendo pensado assim, no final, através destas situações. Aquela cena final que ele encontra a carreata do PT, toda ela foi esquematizada. A gente sabia que haveria uma passeata, conhecemos a cidade de cor e salteado. A gente sabe horário de sol, horário de limpo. Vimos mais ou menos como seria o trajeto e propusemos à equipe e ao personagem que encontrassem a carreata naquele exato momento. Com aquela luz e aquele plano aberto, porque sabíamos que ali eles chegariam como se fosse uma nave espacial, porque a campanha é assim: ela atravessa campos de futebol, atravessa as praças, passa por cima de todo mundo. E ele, no decorrer do filme, é um cara que faz uma campanha quase solitária…

Há um choque muito grande nisso, o Dildu largando o carro sem gasolina, tendo que seguir a pé, deixando santinhos pelas casas sozinho…. e de repente topa em uma esquina com aquela carreata monstruosa. É praticamente Davi x Golias.

Justamente. E eu vejo a grande questão política do filme bem nesse sentido. Os atores não sabiam daquela cena. Aquele carro é meu, aquele Santana. É o carro que eu ando no cotidiano, e aparece em todos os filmes inclusive. E ele não marca gasolina. Então eu coloquei pouca gasolina, os caras não sabiam quando iria acabar, mas estavam alertados de que em algum momento iria acabar. A equipe estava a postos para que, se acabasse, ela mantivesse a relação de mise-en-scène. Continuamos gravando. Os atores até olham para a câmera, porque quando acaba a gasolina eles ficam de fato agoniados porque acabou a gasolina, mas quando eles veem que a equipe também ainda está filmando eles percebem que é um jogo, mas eles internalizam tudo aquilo. A gente põe os personagens pra sentir o ambiente, pra sentir o estranhamento, a agonia que é estar na cidade e ter que pegar um ônibus de manhã. Aquela cena de Brasília a gente saiu 6 da manhã no carro e ficamos rodando até 2 da manhã do outro dia. A gente encheu dois tanques de gasolina e ficamos rodando em Brasília igual louco. Tomando pouca água, comendo pouca comida, pegando engarrafamento, pegando aquelas pistas grandes…E isso começou a trazer para os personagens uma agonia muito grande. Todo dia a gente convive com aquilo, mas quando a gente se propõe a fazer uma aventura pela cidade a gente sente que ela é opressora.

O filme acaba então se tornando assim um documentário sobre a sua própria realização, o caráter documental se vê principalmente ali. É criado, mas não é encenado…

Não, não tem essa de decupagem… a mise-en-scène é justamente a possibilidade de interpretação desses personagens… O que a gente propõe é assim: a partir deste momento, você é fulano. Internaliza fulano. Pesquisa fulano. Você é fulano a partir deste momento pra mim. Então o que você faz, como você faz, como você reage com a câmera, ou como você reage com as situações que a direção e a equipe propõem, é outra coisa. Eu dava pra eles os motes e eles reagiam. A agonia surgia nesse sentido. A gente propunha situações, a gente cercava as situações, mas não tinha texto pra eles falarem. Era muito livre o texto. A gente tinha uma câmera, com dois lapelas, e dentro do carro eu fazia o som, porque não tinha espaço pra duas pessoas, era eu e o cara da câmera. O cara da câmera com uma 5D, atento com tudo. Todo filme foi assim. Eles tinham muita liberdade pra puxar as coisas. Obviamente que eu intervia o tempo todo pra falar “fala sobre isso, comenta aquilo, entra aqui…”, porque eu sabia que se entrasse à direita ou à esquerda ele entraria em uma rua mais esburacada, ou uma rua mais extensa… e deixava o personagem reagir àquilo. Mas não tinha texto ensaiado.

A criação das situações então acontecia por você, pelos atores… era um processo coletivo e com liberdade.

Era coletivo mesmo. O personagem do candidato a deputado, por exemplo, tem um discurso muito ferrenho. Tem uma cena que não usamos que é uma sequência que eu quero montar um dia, porque é uma cena muito forte, é a coisa mais linda que tem. O personagem tá caminhando e a câmera caminhando com ele por uma feira da Ceilândia, chamada Feira do Rolo. É uma feira tensa, no sentido de que a polícia dá muito em cima. Mas é uma feira muito popular. E aí a gente faz um discurso, e as pessoas começam a acreditar, e aquilo vira um cortejo. Só que a gente não conseguiu montar, porque ela era muito forte e roubava o filme. Depois disso não tinha como existir mais nada. Nem no final caberia, porque o final não poderia acabar tão over assim. E nessa cena, por exemplo, havia também obviamente as pessoas que se revoltavam com o discurso dele. E as pessoas entravam pra briga. Tem uma cena que é assim, o cara querendo brigar com ele e eu entrando no meio e tudo isso sendo gravado. A gente também brigava pelo personagem, tava de fato acreditando nele. Inclusive tudo o que o Dildu fala ali eu também acredito. O corpo a corpo no filme é esse mesmo. Existia uma relação de hierarquia obviamente, por conta da direção, mas a gente mesmo dava segurança ao próprio filme. A gente tomava as dores do personagem. O personagem do Dildu é um personagem muito forte, um personagem que se expõe muito, que é muito marcante. As pessoas não chamam mais o cara (o ator) de Dilmar, chamam ele de Dildu agora. E isso também é foda pra ele, eu acho. Ele quer seguir a carreira de ator. Ele tá comigo no meu próximo projeto também.

Provavelmente por ser um documentário as pessoas acabam guardando mesmo que é ele, que é o Dildu. Foi uma incorporação tão forte que acabou se firmando o personagem na realidade…

É! Dildu é Dilmar Duraes, 77-2-23 é o ano de nascimento dele. Ano, mês e dia do nascimento dele. Ele criou uma relação de tudo que tava ao redor dele, mas não é ele, obviamente. Mas ele traz tudo pro filme. Ele sempre traz pro filme, por exemplo, a questão racial. Ele sempre traz pro filme a agonia com os poderosos, ele tem muita dificuldade de se relacionar com o poder. E tudo isso tá no filme. E eu acho que isso é um documentário, sabe. Como nossa equipe se relaciona com o poder. Como a gente pensa o poder. Isso tudo está ali.

E é um filme que aborda não apenas os temas que se discute através dos personagens, do candidato político se largando sozinho na campanha, mas também durante isso muitas questões presentes nas grandes cidades. O problema da habitação, a segregação social, essa separação entre a periferia e os grandes centros.

Justamente. O filme vai além da gente, da nossa leitura, da pretensão de dominar o filme. A gente não domina um filme. A gente solta um filme. E ele às vezes engole a gente também. Esse filme, por exemplo, sempre que eu vejo ele eu vejo um monte de símbolos que estão ali…. ele passa na Ceilândia. E as pessoas falavam coisas que eu não imaginava que elas iam falar. O X do personagem, ele andava com a camisa que tinha um X, que é relacionado com a história que a Nancy conta. Quando teve a campanha de erradicação de invasões de Brasília, era assim: os caras iam na tua casa e marcavam um X na porta. Então esse cara tinha que sair voado, se não saísse o governo derrubava. Então as casas que tinham um X eram as casas condenadas, ou, em uma outra perspectiva, tinham sido “escolhidas” para sair da cidade. Quando a gente teve um debate com pessoas mais velhas, elas se emocionavam muito com o X, porque, minha interpretação, o símbolo era muito forte ainda. Esses símbolos que tão além da gente são muito fortes no filme. Tem muitas coisas que podem passar batido pro público comum, mas pra aquele perímetro da cidade são muito fortes.

O filme se passa na Ceilândia. Vocês têm um grupo de cinema lá, é isso? Todo mundo que fez o filme é de lá. Então existe uma leitura do espaço em que vocês inserem os personagens que é muito forte. Talvez vocês até nem tenham a intenção direta disso, mas por terem vivido lá dentro, saberem o preconceito que é ser de lá e viver em Brasília. Você acha que isso dá uma amplitude fundamental ao filme?

O meu ambiente seguro é a Ceilândia. Eu sempre vivi lá e vivo lá até hoje. Eu caminho muito pela cidade. E ela é muito contraditória, é uma cidade muito grande. Tão dizendo que em 2012 ela vai ter 1 milhão de habitantes. Então a cidade cresce muito, porque é uma cidade que, apesar de ser uma cidade de quebrada, as pessoas focam muito nela, então ela tem alguns benefícios. E ela começa a ter uma contradição agora, porque ela começa a verticalizar, então ela vai virar uma grande favela, com grandes prédios, com essa coisa da expeculação imobiliária, da explosão imobiliária. Então vai criar na cidade um novo apartheid. Aquelas pessoas que construíram a cidade, que lutaram pra cidade ficasse aquilo que é, elas não conseguem mais segurar a especulação. Porque chega um cara por exemplo com 500 mil reais e compra a tua casa. Daí você vai pra outra favela, que é Águas Lindas. Então o processo continua.

A própria periferia começa a sofrer esse processo de verticalização e criar patamares de poder e segmentação dentro de si…

Na cidade agora o que é mais clássico são os condomínios fechados. Aí tu imagina, um condomínio fechado com apartamento que vale R$ 200 mil. Aí começa, na minha leitura, a criar esses guetos e a cidade começa a ficar mais tensa. Porque é os moleque doido fora dos condomínios e os condomínios com as pessoas da classe média.

É uma leitura das cidades modernas que o Fritz Lang fazia lá em 1926 ou 27 com o Metropolis, com os poderosos habitando os andares mais altos e a classe trabalhadora lá embaixo. Isso é uma consequência da própria estrutura do poder, não é?

É verdade. E como a gente queria falar sobre isso… a gente não queria falar de uma forma didática. Queria falar com isso na pretensão do cinema. Cinema é fotografia, é som, é ritmo… Então a gente queria fazer isso com muitos planos abertos, numa perspectiva quase de filme de faroeste, de filme de bang-bang, que são os filmes que estão no nosso imaginário de adolescente da cidade. Então a gente usa muito esses planos abertões e [lente] grande angular, que dá uma tensão… e a cidade sempre presente. O filme que a gente tá fazendo agora, é um documentário mas também é uma ficção científica. Estamos filmando por trás da cidade. Porque a Ceilândia é assim, a gente sempre tem uma perspectiva de frente, porque as vias só passam em frente. Então mesmo as quebradas em frente é tudo muito arrumadinho, mas por trás dela é quebrada de favela mesmo. O que a gente faz, na verdade, é filmar a cidade lá por trás dela, nessa perspectiva  de ficção científica. A cidade fica muito mais tensa, mais opressora, grandiosa. E eles queriam que [em A Cidade é uma Só?] a gente contasse essa história da redenção, a história do governo. A cidade é legal, a cidade é isso e é aquilo. A gente conta a história da cidade pela história dos caras da correria. Não são os caras que são servidores públicos, são os caras do corre. Então isso dentro da cidade às vezes causa estranhamento. Às vezes falam “pô, você conta a história da cidade, por esses caras que não construíram a cidade” — na cabeça deles. Como não construíram a cidade? Eles queriam que a gente contasse uma história edificante. “Ah, fulano de tal chegou em tal ano, foi um lutador….”. E foi mesmo. Só que hoje eles, na minha leitura, representam certo atraso. Assim como eu daqui cinco anos provavelmente vou ser um reaça também. Acho que a idade com o tempo joga a gente nessa coisa do reaça. São caras fantásticos, são meus amigos, mas eu não quero mais contar a história através da perspectiva deles.  Eles narram a história de maneira que parece que a cidade se resolveu. Mas ela não se resolveu, não resolveu nada. De repente se resolveu pra mim, que tô podendo fazer um filme, tô viajando… mas pra maioria das pessoas não se resolveu, cara. Não dá pra ser cínico de tal maneira. Na minha modesta leitura o documentário tradicional caminha pra esse lado.

Os documentários mais tradicionais geralmente são montados através das lembranças dos personagens, e as pessoas naturalmente costumam lembrar das coisas duma perspectiva positiva. Ninguém quer lembrar do que é ruim.

E a gente queria fazer o filme duma forma mais dinâmica. Que a gente se representando consegue colocar assim… “Tá vendo como o diretor é filho da puta? Tá vendo como o diretor também é cínico? Como o diretor também fala merda?” E é isso… tô falando merda no filme porque eu falo merda mesmo. Não tô encenando falar merda. Porque no set de filmagem é assim, e eu sempre faço isso.

Vocês trabalham de um jeito bastante extrovertido, né? O filme dá essa sensação de que vocês estão se divertindo muito fazendo cinema. E isso contamina o filme. É acima de tudo um filme muito divertido, que faz rir muito, que propõe esse debate político através duma forma que conquista as pessoas. Isso é uma consequência também do próprio jeito que vocês encaram o cinema?

Sim, acima de tudo, pra gente cinema é diversão. A gente vai pro set e fica rindo. A gente fala muito que se não tá rindo tem alguma coisa de errado. Porque o cinema é alegria, né. É uma profissão, e a gente encara como uma profissão, que a gente vai se divertir, vai curtir e vai dizer o que a gente quer da forma mais honesta possível. Pode tá equivocado, mas é o que a gente pensa. Tem que ter verdade. Se é drama, tem que ter verdade. Se é horror, tem que ter verdade. A gente tem que falar bem assim “não, cara, isso podia acontecer. É um filme, mas pode acontecer”. A gente parte dessa premissa: o cinema tem que construir uma verdade. E essa mise en scène que a gente vai construir tem que estar lá. Pra que de repente a gente se aprimorar de técnica, de equipamento, se empoderar… porque é isso, se você faz um filme e você é reconhecido, você se empodera.. . mas pode ser problema também…

Você pode acabar se tornando reaça também…

É, justamente, o grande problema é isso: se tornar reaça e criar uma presunção. No Brasil, por exemplo, tem tanto curtametragista bom, tanto de cara bom, então fazer um longa é um privilégio. Não é porque você é pior ou é melhor. Não é igual no futebol, que você tá nos juniores e vai pro profissional. É consequência. Tem tanto cara bom aí que poderia fazer filmes melhores do que a gente faz, e a gente pode citar, como os caras da Filmes de Plástico… enfim, tem um monte de cara que tem uma puta ideia de cinema e ainda não fez o seu longa. Hoje o grande problema é cair nessa presunção de que há um patamar diferenciado entre curta e longa. Porque na essência a produção é a mesma, o que vai diferenciar é a grana, porque pra um é maior e outro menor…

Você falou que fez o filme com uma 5D. Hoje em dia a facilidade de acesso a câmeras de vídeo digitais tem proporcionado que, por exemplo, uma pessoa da Ceilândia tenha uma câmera de vídeo e possa fazer um filme de lá, não com uma equipe de produção levando seus equipamentos pra favela, fazendo um filme sobre a favela com a imagem que já tinham lá de fora. Uma coisa em comum entre o seu filme e os filmes da galera da Filmes de Plástico é que eles nascem ali no coração da periferia. Vocês tão filmando vocês mesmos.

Os filmes que eu mais me identifico hoje são os filmes da Filmes de Plástico. Não só por essa questão territorial, mas pra mim Contagem é igual à Ceilândia, tem muito a cara. Além dessa identificação territorial os filmes dos caras tem isso, a narrativa dos caras é muito rápida, é gostosa de ver. Você vê um filme como Fantasmas, é uma coisa fantástica… você ouvir o som dos caras, o diálogo deles. E isso é proporcionado também por essa capacidadede gravação, de captação. Tem o áudio e tem uma camerazinha de longe gravando as coisas. Mas é um puta cinema, um cinema fantástico. Eu acho que é importante se apropriar dessas coisas, tem que se apropriar de todos esses elementos do digital, mas não pode ficar só nisso. É outra questão que pra gente é muito complicado. Porque você ter acesso ao que há de melhor na produção é político. Se você quer fazer um filme em película, tem que tentar fazer em película. Hoje nem tanto, mas há cinco anos atrás pra você entrar em um festival grande você tinha que entrar em película. E isso é político. Hoje a gente consegue entrar com digital, mas mesmo entrando com digital você tem que pensar que o digital também tem N possibilidades. Você pode ter uma câmera mais cara, não é problema ter uma câmera mais cara.

Não se pode transformar o digital barato numa posição política de trabalho.

É, senão acaba virando uma questão que vai depor contra a gente, dos caras falarem bem assim “ah, dá R$ 15 mil pros caras da favela que eles fazem com R$ 15 mil”. Mas tem R$ 1 milhão ainda pra eles fazerem filme.

E enfim, vocês têm uma equipe pra pagar, têm custos pra bancar… O cinema é algo caro naturalmente, porque trata de encenação. A técnica de cinema é cara. Isso não é algo que vai mudar…

E como que você pode fazer um grupo se o grupo não consegue sobreviver disso? Imagina assim, até quando a gente vai ter energia pra fazer cinema como hobby? Cinema não é só hobby, cinema é intervenção política pra gente. A gente sabe que quando faz um filme a gente tá comprando briga pra sempre. Toda vez que a gente passa um filme em Brasília a gente tem uma discussão, tem uma briga, tem uma pontuada. A gente passa muito filme em universidade. E é engraçado como os caras da universidade querem encarar a gente com a perspectiva do pobre. Eles não conseguem imaginar como que a gente quer tirar onda com o Niemeyer. Tiro onda mesmo, porque o Niemeyer pra gente não quer dizer nada. Ele tem toda a história dele, tem a construção de Brasília… mas eles têm que entender que Brasília pra gente não é mãe, é madrasta. A gente não tem que ser feliz com o pai da madrasta. Não é meu avô, não tem porra nenhuma de avô, o Niemeyer. Brasília pra gente não é imaculada. Não tem que ser imaculada, tem que botar fogo naquela porra. O primeiro plano do filme é pegando fogo o mapa de Brasília. Tudo isso a gente pensou, a gente tá aqui pra agredir Brasília. Porque ao mesmo tempo que a gente odeia Brasilia, no sentido de que a gente cria um discurso pra odiar Brasilia, a gente só existe por causa dela. A gente só tem essa possibilidade fílmica política porque tá perto de Brasília. Então ao mesmo tempo em que a gente nega Brasília, a gente tá reafirmando Brasília.

Ela faz parte de vocês, vocês fazem parte dela, e não dá pra negar isso. Mas vocês também não têm que se privar de dar o ponto de vista de vocês sobre ela.

Se você olhar o conjunto de Brasília, ele é extremamente reacionário. É burocrática, cheia de servidor público. É racista. Se você olhar o número de negros  que tem em Brasília… negro que trabalha em Brasília é garçom. E isso inflaciona todo o déficit. Se você mora em quebrada você ainda assim vive uma vida muito difícil. Tem toda essa dinâmica que influencia no nosso olhar sobre Brasília.

Isso acaba atraindo o olhar não apenas de pessoas de Brasília, mas de quem está fora de Brasília e vê o filme. “Ah, Brasília é uma cidade muito bonita, Niemeyer e tal….”. Mas existem todos esses problemas e geralmente isso tá muito maquiado, as pessoas de longe não percebem.

É, e mesmo assim existe muitos caras massa em Brasília, tem muitos caras que a gente respeita lá… Mas eles querem que a gente construa algo pra se agregar a Brasília… “Eles são um pessoal massa, da quebrada, eles tão construindo alguma coisa…”. Parece que a gente tá construindo alguma coisa pra morar em Brasília, pra ser agregado.

Como se isso fosse uma espécie de evolução, vocês estarem passando de moradores da Ceilândia pra moradores de Brasília.

Exatamente. E não é evolução pra gente. No próximo filme nosso um homem vem do futuro investigar um crime na Ceilândia. O filme é uma espécie de ficção científica. Pra você atravessar a fronteira pra Brasília, tem que ter passaporte. E isso é algo que está estabelecido. A gente transforma a segmentação sutil que existe em uma segmentação física. Pra você passar pra Brasília você tem que ter passaporte. Brasília é uma cidade kafkiana. Você não vai a Brasília e anda em Brasília. Uma vez eu saí e bebi muito, enchi a cara, e o carro quebrou. O pneu furou. Eu precisava encontrar alguém que me emprestasse uma roda de pneu. As pessoas corriam de mim. Eu entrei num daqueles prédios e não tinha ninguém, porra. Não tinha ninguém embaixo. Obviamente que era todo habitado, mas não tinha ninguém embaixo. Os filmes que a gente faz tem muito isso, de tentar dialogar com o estranhamento que a cidade causa.

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Pra Frente, Brasil (Roberto Farias, 1982)

Por Daniel Dalpizzolo

É possível hoje, com um distanciamento histórico confortável, pensar a ditadura militar brasileira pós-golpe de 64 como ambiente inspirador para a sustentação do cinema de gênero, especialmente o thriller. Há o clima de paranoia instalado naturalmente pelo embate de uma força política totalitária versus a contraforça que se forma em silenciosa oposição, velada e submundana, porém prestes a explodir a qualquer momento. Há também a possibilidade da violência, das torturas físicas e psicológicas, das perseguições e cenas de ação que emergiam deste conflito ideológico, símbolos de um cinema narrativo popular alicerçados com preceitos básicos do suspense e da ação. Em Pra Frente, Brasil encontramos, em um momento quase póstumo do período (poucos anos antes da eleição de Tancredo Neves, primeiro civil a assumir a presidência nacional desde 1964), um ponto histórico interessante do cinema brasileiro, em que as feridas da ditadura são expostas sob uma perspectiva até então pouco usual, e proporcionam um diálogo aberto entre estes códigos do cinema narrativo e uma realidade ainda não superada — uma coragem necessária e intrínseca ao espetáculo, mas por vezes também incompreendida ou coagida pelo discurso moralizante que costuma proteger estas memórias. O filme, embora produzido em 1982, foi liberado da sua interdição apenas no ano seguinte, em mais uma vitória da arte sobre a censura.

Se é nessa operação de assimilação da ditadura através do filme de gênero e na abordagem direta realizada do período que encontram-se os grandes atrativos deste trabalho de Roberto Farias, sua encenação insuficiente impossibilita ao filme transmitir-se hoje com a mesma eficiência que, presume-se, teve no período do lançamento, quando, mais que um resultado final enquanto cinema, via-se um golpe cinematográfico de importância factual. Os elementos mencionados estão todos ali, porém esvaziados de força narrativa. Na indefinição de um ponto de vista, sabemos que Jofre, o homem sequestrado e torturado por engano sob acusação de subversão  (não pelo Estado, mas por um grupo financiado por empresários) está vivo, embora os verdadeiros protagonistas sejam Miguel, seu irmão, e Marta, sua mulher (Jofre some do filme na maior parte do tempo, aparecendo brevemente para fazer reafirmações sobre sua condição apolítica e sobre a injustiça da situação). As cenas em que seus familiares mergulham na paranoia, são perseguidos ou estão sob ameaça da polícia ou dos grupos, duram muito menos que o necessário para que se estabeleça uma mínima relação de tensão. A construção da sensação representativa da paranoia necessária para o funcionamento do thriller político é praticamente ignorada, e boa parte da primeira hora é preenchida por diálogos e situações frágeis e pouco interessantes, cuja leitura não ultrapassa o superficial (há também as insistentes e banais associações entre a Copa do Mundo de 1970, ano em que se passa a história, e a violência censurada da mídia).

É nos minutos finais, ao partir do suspense para a ação, que estão as melhores cenas de Pra Frente, Brasil — funcionando, enfim, independente da sua relação com a ditadura e com o contexto de produção, e, guardadas proporções, lembrando a potência de um clímax como o de Bastardos Inglórios, filme em que Tarantino também opera sobre um delicado tema histórico e explorado raramente com tamanha subversão — embora haja diferenças determinantes, pois se a subversão em Pra Frente, Brasil é gerada pelo golpe de produção dentro de um sistema ainda contaminado pela própria postura política que critica, em Bastardos há um grande distanciamento de sua produção com a Segunda Guerra e um desejo de fazer do cinema um campo para  vingar a história, e não para retratá-la/reproduzi-la. Ao final de Pra Frente, Brasil, Roberto Farias incorpora elementos de western e road movies para construir um grande e espetaculoso clímax, que inicia com o cercamento da casa na qual estão refugiados os familiares de Jofre, composta por tomadas tradicionais de faroestes, e termina em uma violenta perseguição de carro na autoestrada — culminando finalmente em uma explosão de slow motions, num conjunto de planos que a habilidade de Farias para o registro da ação sustenta muito bem, e que não encontra precedentes no restante do filme.

* Visto na 7ª Mostra de Cinema de Ouro Preto  

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Editorial #2

Por Daniel Dalpizzolo

Eu queria estar sozinho no mundo. Apenas eu, Steiner, e mais nenhuma coisa viva. Nenhum sol, nenhuma cultura. Eu, nu sobre uma pedra alta… E então não sentiria mais medo”.

O depoimento apresentado na cartela final de O Grande Êxtase do Escultor Steiner é atribuído a Walter Steiner, um empenhado atleta de sky jumping que o documentário acompanha durante uma competição do esporte. A frase, entretanto, jamais foi dita pelo verdadeiro Steiner, mas forjada por Werner Herzog para alimentar a idiossincrasia do mito que seu filme se dedica a construir – afinal, lembrando a clássica fala de O Homem Que Matou o Facínora, de John Ford, “quando a lenda é mais interessante que a verdade, imprime-se a lenda”. Se o recurso, como tantos outros truques existentes nos documentários de Herzog, pode ser questionado sob o prisma da ética documental, é preciso observar também que o cinema de Herzog jamais respeitou a dicotomia tradicional entre documentário e ficção — compreendendo-a como um impasse à liberdade de criação preservada à arte. Sua ficção é, acima de tudo, um intenso documento de produção, retrato fidedigno de um processo – e do espaço em que este processo ocorre -; seus documentários, quase sempre partindo da própria presença de Herzog e sua relação com os personagens e ambientes que investiga, representam acima de tudo um olhar muito particular pertencente ao diretor, preenchido por recortes talhados por ele para fazer, através do cinema, uma reflexão permanente e metamórfica sobre a vida, numa antologia de imagens que somente poderia existir em sua obra.

O texto atribuído a Steiner condensa uma síntese notável de Herzog. Em seu cinema, a relação dos homens com a terra está, enfim, à beira de um colapso. A atmosfera é de preparação para o apocalipse, num clima de contagem regressiva para o fim do mundo. Após séculos de exploração e desbravamento, o homem, no ápice da sua presunção, crê no domínio da natureza a partir da ciência e da ocupação territorial, auxiliado pelos avanços tecnológicos do mundo pós-revolução industrial — mas, parece-nos alertar Herzog, a natureza pode ser tão hostil quanto estes agentes que tentam domesticá-la, e guarda mistérios que jamais estarão ao alcance da compreensão plena dos homens. O cinema de Herzog nos conduz ao que há de mais incipiente na exploração da terra — desde o simples ato de viajar até o desbravamento e a extração de recursos naturais, como mostra, por exemplo, Fitzcarraldo, ou as expedições colonizadoras de Aguirre, A Cólera dos Deuses — até chegar às consequências mais urgentes deste processo contínuo de desenvolvimento civilizatório — a ambição por domínio; a disputa por hegemonia e poder; a depredação ambiental; as guerras e conflitos cuja agressividade influencia tanto aos próprios homens quanto ao mundo que ocupam; questões, enfim, que não poderiam ser mais próprias de nosso tempo.

Se também é intrínseca ao cinema, como às demais artes, a função de servir aos homens como meio de expressão e de organização da sua relação física e sensorial com o mundo — um princípio da arte que o próprio Herzog discute em um de seus mais recentes filmes, A Caverna dos Sonhos Esquecidos —, podemos afirmar que Herzog é um dos autores que melhor souberam aproveitar esta especificidade do meio cinematográfico para transpor às suas imagens uma reflexão sobre a realidade em que vive — usando o cinema a seu bel-prazer para chegar aos fins desejados. Neste contexto, percebe-se que a obra de Herzog se constroi sobre algumas linhas paralelas e essenciais que se repetem constantemente, levando-nos, porém, sempre a novos e surpreendentes caminhos: em uma delas, traçando justamente um panorama desolador e não raramente apocalíptico da civilização contemporânea e seu conflito com o mundo; em outra, mais intimista e autorreflexiva, promovendo uma busca incansável, seja através de personagens reais ou ficcionais, por homens que, assim como ele, alienam-se dos padrões tradicionais da nossa sociedade, homens cuja obstinação se constroi sob uma intrigante solução entre sonho e insanidade, às vezes desafiando a própria morte; numa terceira linha, também se nota um olhar devoto à natureza ao mesmo tempo bela e ameaçadora da terra, um desejo místico de explorá-la e de eternizar seu contato com ela através do cinema (como reforça a frase forjada para Steiner, Herzog parece temer menos um vulcão prestes a explodir sua fúria à superfície da terra que os homens com quem cruza na rua).

Dar conta de uma obra tão rica e emblemática, evidentemente, jamais seria possível. Grande parte da expressividade e das questões que emanam do cinema de Herzog se detém à experiência particular de cada espectador com os filmes. Mas acreditamos que, organizando esta análise geral da sua filmografia, torna-se possível não apenas discutirmos um pouco da essência deste autor transgressor e único, mas nos integrarmos à reflexão proposta por ele a respeito de nós mesmos, do mundo e dos desvios percorridos e traçados nele pela civilização que o habita, o explora e o afronta — ou seja, deste embate eterno entre homem e natureza, entidades que mantém entre si um indissipável conflito ao qual o cinema de Herzog constantemente nos convida a retornar. Pensar sua obra e situá-la no tempo em que ela se cria e sobre o qual ela comunica nos permite observar que, para além do seu imensurável valor como cineasta, encontramos em Herzog um homem de grande convicção no uso das formas de expressão artística próprias ao seu tempo — falando especificamente do cinema, arte nascida e firmada dentro de nosso caráter industrial, e, também por força dele e das demais artes visuais, de cada vez mais amplo conhecimento imagético do mundo — para imantar à história sua passagem pela vida e sua relação conturbada com este planeta que ele observa com tanto fascínio. Nossa segunda edição, portanto, presta uma homenagem a este artista que não nos cansa de impressionar com seu cinema — para finalmente utilizar estas duas palavrinhas — louco e genial.

Maio de 2012.

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A Caverna dos Sonhos Esquecidos (Werner Herzog, 2011)

Por Daniel Dalpizzolo

Quando Herzog acessa o interior da caverna Chauvet, na França, acompanhando pesquisadores de diversas áreas científicas em uma expedição pelo mais antigo registro de pinturas pré-históricas de que se tem notícia, ele pede desculpas pela presença da equipe de produção à frente das câmeras – dando a si mesmo a liberdade para expôr em cena sombras e equipamentos de iluminação, utilizando na edição oficial planos que geralmente fariam parte de imagens de bastidores, e às vezes indo mais além, fazendo em tela uma aproximação entre as restrições existentes no percurso e as soluções encontradas para dribá-las. A quebra do limite cênico, apesar de também ser consequência da limitação espacial do terreno explorado e das regras que precisam seguir para registrar as imagens (andar em linha, não pisar fora da estreita plataforma de metal construída sobre a terra, etc), ajuda a identificar a importância que o processo, que a expedição de filmagem e o próprio fato de estarem registrando pela primeira vez o interior deste lugar histórico, possui para a experiência e para a discussão propostas — e o quanto o diretor utiliza isso conscientemente para o resultado de seu filme. Como dito no texto de La Soufrière, os documentários de Herzog  costumam transformar em elemento de cena a própria busca pelo registro – não apenas como efeito audiovisual, embora ele exista, mas como dispositivo de discurso; um discurso que, aqui, propõe uma reflexão sobre a necessidade de expressão do homem, o efeito do tempo e a importância da arte para a definição e a mínima compreensão dos períodos históricos da humanidade.

É bem verdade que questões como estas podem gerar discussões intermináveis, e certamente não conclusivas. Mas não é às respostas que miram as intenções de Herzog, que em Cave of Forgotten Dreams explora novamente alguns dos seus temas favoritos: a ambição, os sonhos e as idiossincrasias dos seres humanos em choque com a vastidão e os mistérios da fascinante e por vezes ameaçadora natureza terrestre. Ao conseguir liberação do Ministério da Cultura francês para registrar as pinturas encontradas na caverna Chauvet, protegidas como um tesouro por grossas portas de ferro, Herzog mira sua lente para o que é considerada a primeira evidência de arte de que se tem notícia – e, por isso, o princípio da existência do homem contemporâneo, capaz não apenas de encontrar meios de sobreviver em nosso mundo — e de explorá-lo, nào raramente de forma nociva a ele e à sua própria espécie  —, mas também de expressar sua interação com ele, seus sentimentos conflituosos e particulares perante ele, tornando as experiências vividas em um pedaço da história que permanece marcado como tatuagens nas rochas das cavernas – um processo que hoje, no artificialismo do mundo moderno, como insinuado pelo surreal epílogo filmado em uma Usina Nuclear existente próximo à caverna, ocorre geralmente de forma virtual, como faz Herzog com sua visita ao local para registrá-lo em um filme digital — o uso das câmeras digitais 3D, neste aspecto, é um achado impressionante.

O choque de tempos e formas de expressão faz de A Caverna dos Sonhos Esquecidos um ponto fundamental na obra de Herzog. Depois de explorar alguns personagens básicos (e, como não poderia deixar de ser, bastante incomuns em suas observações) para a contextualização da caverna, dando a dimensão necessária à sua importância enquanto espaço natural e também histórico/cultural, Herzog propõe um experimento narrativo e estético para o qual abandona a câmera amadora com que filmava a expedição e, com um moderno equipamento de alta definição 3D, retorna ao local para propôr um passeio incidental e quase espiritual (como pontua meio grosseiramente um dos personagens da segunda parte) por entre vãos e paredes da caverna, aproximando-se tanto quanto possível daquelas imagens tão emblemáticas (dentre elas em especial a única figura humana retratada em meio aos demais animais, um misto de mulher com touro que até então, por estar localizada em um ponto inacessível para a pequena câmera digital, era mantida ao espectador como um mistério – momentos antes uma personagem afirma ser uma pena o cineasta não poder mostrar completamente essa pintura em seu filme por causa da distância que a câmera precisa manter dela, o que possibilita a ele mais uma vez fazer da apresentação de uma solução para o problema uma etapa do próprio filme) e reprojetando-as em uma nova dimensão.

O que chega à tela se torna mais do que um documentário sobre uma caverna que contém as mais primitivas pinturas conhecidas da arte humana, mesmo sem fugir muito disso. A diferença do que poderia ser um documentário tradicional sobre o tema para este A Caverna dos Sonhos Esquecidos é que, consciente de que o resultado da arte é precedido por um fundamental processo de vivência, Herzog nos permite a partir das imagens da caverna não apenas fazer um passeio pelo primitivismo da expressão artística, mas também nos consolidarmos como espectadores de um filme que registra mais do que descobertas, mas um homem entrando em contato com estas descobertas, refletindo suas dúvidas e suas convicções sobre a arte em um encontro vivo e autorreflexivo. O filme de Herzog, desta forma, não se distancia das representações misteriosas pintadas nos muros da caverna, embora aqui exista uma autoconsciência explícita que nos possibilita compreedê-lo mais claramente, algo que, até pelo distanciamento histórico e cultural que se tem com as pinturas da era paleolítica, o próprio Herzog obviamente não consegue em relação ao material que observa — e faz questão de nem tentar, por acreditar que, embora a arte permaneça, é impossível que ela registre em si todos os sonhos e angústias de homens que, há mais de 35 mil anos, pintaram as obras.

O que se mantém forte após a experiência é justamente a vivacidade deste cinema que se propõe a olhar para as peculiaridades do mundo e dos homens que o habitam sem precisar abnegar suas próprias origens, colocando autor e filme como parte integrante de uma experiência que transcende os fatos para propôr sensações e reflexões. Não há no filme grandes respostas sobre as origens da arte ou qualquer questão histórica — embora saibamos que estas questões existem, elas fazem parte do processo, não de um pressuposto resultado. O que realmente importa observar é que A Caverna dos Sonhos Esquecidos mantém-se como o até então único registro em vídeo daquelas pinturas e da exploração da caverna que as protege, da mesma forma que aquele santuário permanece para nosso tempo como o único registro de uma cultura primitiva à qual jamais teremos acesso, e da qual os sonhos, anseios e particularidades vislumbramos através do mistério de sua arte, que segue sendo uma das mais legítimas formas de compreendermos as diferenças existentes em cada cultura e período histórico da humanidade — e nos defrontarmos com reflexos de nossa própria existência, indelével e atemporal em seu conflito com o mundo que habitamos.

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Ballad of the Little Soldier (Werner Herzog, 1984)

Por Daniel Dalpizzolo

Ballad of the Little Soldier foi apontado à época como o documentário mais político de Herzog, uma afirmação que, conforme foi empregada, é questionada pelo próprio autor. “[O filme] É sobre crianças lutando na guerra, e não sobre os sandinistas ou Somoza”, disse o cineasta ao justificar que seu trabalho não teria interesse em defender nenhuma das posições ideológicas da batalha da Guerra Civil nigaraguense, mas apresentar ao mundo uma situação extrema gerada pelo conflito: a militarização dos índios misquitos, nativos de uma área do país atacada pelos sandinistas que, para se defenderem das investidas dos rebeldes, despiram-se da sua própria cultura para aprenderem a lutar com armas de fogo e técnicas militares, criações da selvageria do mundo civilizado que até então desconheciam.

O tom humanista do projeto colocou este telefilme de 45 minutos, co-dirigido com o jornalista franco-alemão Denis Reichle, em choque com o próprio conflito ideológico da guerra. Ballad of  the Little Soldier foi filmado in loco e veiculado enquanto o fato ainda ocorria no país. Logo no início, para contextualizar o sofrimento dos nativos, o filme destaca histórias crueis que relembram a violência sofrida por eles durante os ataques. Acusado por isso de se posicionar contra os sandinistas, Herzog define-se com poucas palavras: “Sou a favor dos misquitos”, reforçando a indignação com o massacre e com suas consequências, em especial para as crianças e adolescentes sobreviventes.

Apesar de lidar com um delicado embate ideológico em seu entorno, Ballad of the Little Soldier está muito menos  — ou nada — preocupado em discutir a guerra civil nicaraguense do que em investigar o impacto que os conflitos bélicos exercem na concepção de valores destes jovens crescidos em meio à violência gerada por eles, em uma realidade que os coloca seguidamente, já no início da vida, em contato direto com a morte, tendo que lidar abertamente com o medo, a perda de familiares e os sentimentos que suscitam desta perda — em especial o ódio, e o quanto ele pode se tornar um elemento desumanizador para uma geração que se constroi submissa à brutalidade da guerra. Ao voltar suas lentes às crianças nicaraguenses, Herzog implanta uma discussão que vai além do país retratado, propondo uma reflexão sobre parte significante da história do século XX, escrita em ruínas de batalhas intra e extra-territoriais.

Se existe, porém, algo de extremamente político nas escolhas de Herzog para a concepção de Ballad of the Liittle Soldier, diz respeito muito mais à forma com que ele opta por trabalhar seu material em favor de suas observações e questionamentos particulares sobre o tema; à maneira com que aproveita o formato documental não com a pretensão de um retrato cru da realidade, mas de um recorte desta realidade para a defesa de um princípio e de um ponto de vista próprio e consciente — um método que, é claro, também pode ser colocado em xeque, como não raramente ocorre nas discussões morais que o documentarismo de Herzog proporciona. A Herzog não bastaria olhar para o mundo e não filtrá-lo e devolvê-lo ao espectador como resultado de seu contato com ele, independente do que se discute ou do gênero em que se instala. No que diz respeito a Ballad, não são necessárias mais que duas ou três imagens ou entrevistas para percebermos que a defesa empreendida por Herzog vai além de qualquer questão moral — pois diz respeito à própria razão da vida.

Neste contexto, há uma melancolia muito forte na metade final do filme, quando acompanhamos o treinamento dos pequenos misquitos, apoiados por forças militares estrangeiras, para irem ao campo de batalha vingar a morte dos seus pais, irmãos e amigos — como enfatiza um dos entrevistados do filme, um garoto que atravessa as noites sonhando com a mãe assassinada no massacre, e que não vê a hora de matar alguns sandinistas imaginando que isso vá ajudar a aliviar a sua dor. As chocantes imagens dos nativos, em geral com idade entre nove e doze anos, caracterizados com roupas militares e desferindo tiros de metralhadoras com suas mãos trêmulas e nervosas, arremessando bombas e aprendendo disciplina e macetes da guerra, surgem como não mais que cenas de preparação para a morte — como diz o próprio professor presente no vídeo, há pouquíssimas chances de saírem vivos desta disputa covarde. À medida que as rajadas de metralhadora sobrepõem-se à inocência e à fragilidade dos soldados, é acentuada também a sensação de que estes jovens não são mais do que reféns da natureza hostil dos homens — e que, não fossem as circunstâncias do conflito, poderiam estar ainda hoje cantando juntos, como faziam na juventude, algumas das suas baladas de amor favoritas.

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O Grande Êxtase do Escultor Steiner (Werner Herzog, 1974)

Por Daniel Dalpizzolo

“Eu queria estar sozinho no mundo. Apenas eu, Steiner, e mais nenhuma coisa viva. Nenhum sol, nenhuma cultura. Eu, nu sobre uma pedra alta… E então não sentiria mais medo”.

Já no plano de abertura, Werner Herzog não se inibe de denunciar o fascínio com que filma o personagem título de O Grande Êxtase do Escultor Steiner. Quando o corpo do esquiador Walter Steiner decola pela rampa de neve e é suspenso no ar para o salto, o diretor evidencia não apenas a condição de documentarista para a qual foi contratado, mas sobretudo a de um admirador. Neste instante, a opção pelo slow motion dilata a relação entre tempo e ação e transforma o voo de Steiner em um momento de êxtase não só para o personagem, cuja dedicação ao esporte que pratica é notável de uma maneira inusual, mas para o próprio filme — e também para o diretor, que entre tantas maneiras possíveis para iniciá-lo opta justamente por entregar, antes mesmo da aparição do título, a imagem-chave de sua narrativa: o corpo de Steiner rompendo as cores do céu, flutuando há metros do solo. A música de Popul Vuh, grupo com participação fundamental nas trilhas-sonoras de Herzog durante as décadas de 70/80, complementa esta breve e imersiva composição sensorial que, em um plano de 40 segundos, produz uma eficiente síntese da força e dos interesses deste espetacular documentário.

Steiner é o primeiro trabalho de Herzog em média-metragens documentais para a televisão, precursor de algumas operações que se tornariam corriqueiras na metodologia adotada pelo cineasta para seus trabalhos de documentarismo — tanto na televisão quanto no cinema. A mais notável, naturalmente, é a presença de Herzog à frente das câmeras e na trilha de narração extra-diegética, transformando a si e seu contato com o objeto filmado em elementos narrativos imprescindíveis para atingir a expressividade almejada — procedimento que aqui, curiosamente, fora imposto pela produtora de televisão que o contratou, mas que se torna fundamental para a potência do filme. Com esta característica, a partir de O Grande Êxtase…, Herzog construiria toda uma linha de documentários pela qual busca registrar pessoas reais que se aproximem da idiossincrasia de alguns personagens representados por sua ficção, especialmente aqueles interpretados por Klaus Kinski; homens que vivem sob um híbrido de loucura, sonho e obstinação, e que sustentam o estereótipo de personagem herzoguiano, não raramente apropriado como definição instransponível de seu cinema — apesar de representar com mais justiça um certo e fundamental recorte dele.

A estrutura de O Grande Êxtase… evoca uma grande reportagem de televisão sobre a tentativa de Steiner, carpinteiro alemão que produz seus próprios esquis e fora duas vezes campeão mundial de sky-flying, de quebrar o recorde mundial do esporte. Para acompanhar o treinamento e a prova em que o atleta desejava obter essa façanha, Herzog instala equipamentos cinematográficos de última geração e, assim, registra em mais de um ângulo o trajeto que Steiner fará no ar, desde o início do salto até que seu corpo toque novamente a superfície da neve. Percebemos não se tratar de um documentário tradicional quando, em uma das primeiras cenas, o próprio diretor, posicionado exatamente como um repórter de televisão à frente da câmera, nos oferece uma explicação sobre o método utilizado para registrar a ação, detalhando o modelo e a posição das câmeras em torno da pista. Alguns minutos depois, já durante o treinamento de Steiner, a presença de Herzog na narrativa justifica-se definitivamente em um momento emblemático: do alto de um pico, o repórter-cineasta acompanha uma queda brusca do esportista durante o pouso, ainda sem detalhes sobre a violência e as consequências do impacto do corpo na neve. A nós, espectadores, resta apenas a opção de acompanharmos sua reação atônita ao acidente, quando Steiner salta mais de 10 metros além do calculado e quase atenta contra a própria vida.

Impossível não relembrar, neste instante, de outro momento emblemático de um dos documentários mais recentes de Herzog, O Homem Urso, quando o próprio Herzog também é filmado reagindo a um trágico acidente de seu personagem; no caso, a cena em que reproduz e ouve pela primeira vez o áudio que registra a morte de Timothy Treadwell, personagem central do filme, um ecologista que abandona a sociedade ocidental civilizada para viver ao lado dos ursos do Alaska por mais de dez anos — até ser morto por um deles. Herzog, a partir desta cena de Steiner, abre caminho para uma série de produções que atingiria seu ápice com O Homem Urso, na qual, mais que a representação destas figuras estereotípicas acolhidas por seu cinema, nos convida a acompanhar uma relação quase simbiótica entre artista e objeto documentado, desafiando em certas situações os limites entre um e outro. Embora encarada por alguns com certa desconfiança, especialmente pela manipulação evidente do diretor sobre seus temas e personagens, há de se convir que esta diluição entre documentário e criação gera um interessante fascínio ao seu cinema: um fascínio que, para além do tema registrado em tela, nasce da consciência de que estas narrativas ganham vida quando gestadas a partir de Herzog, e não meramente por Herzog.

É a partir de Herzog, e com o aproveitamento eficiente das suas opções estéticas — o slow motion, a trilha-sonora ousada, a estrutura metalinguística —, que a incidentalidade poética dos voos de Steiner se amplifica, e é nestas imagens tão simbólicas para o cinema do diretor — cujos desafios dos homens às suas próprias forças, à morte e aos limites da natureza terrestre sempre foram interesses muito caros — que o filme ganha contornos distintos dos que provavelmente possuiria nas mãos de qualquer outro autor. Acompanhar as imagens de Steiner em busca do salto perfeito é acompanhar também o esforço de Herzog para conceber um filme capaz de registrar na celuloide a essência deste homem, de transformar sua idiossincrasia em lirismo e seus pequenos voos em uma libertação do corpo à gravidade da Terra, atendendo enfim ao sonho atribuído ao personagem durante o filme — apesar do próprio Steiner, o homem, sofrer intervenções pontuais de Herzog na construção deste mito, como a imposição da cartela final, que apresenta uma citação supostamente dita por dele, mas que fora forjada por Herzog para sustentar a força do mito e do que desejaria expressar através dele.

Steiner fala ao espectador do seu grande desejo de poder voar — um voo livre, como o de um pássaro— quase como um objetivo possível, apesar da sua evidente limitação biológica. E, se o grande êxtase do esquiador é este de estar suspenso ao ar, com o corpo flutuando solitariamente na direção do vento, o filme de Herzog se encerra acima de tudo como uma liberdade poética ofertada pelo diretor à existência de seu próprio personagem. Preservado o registro de seu salto através do cinema, Steiner pode, nos recortes de vida que pulsam pelos planos de O Grande Extase…, permanecer voando para sempre.

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Fata Morgana (Werner Herzog, 1971)

Por Daniel Dalpizzolo

Fata Morgana inaugura uma fórmula que seria reaproveitada por Herzog em filmes como Lições das Trevas e Além do Infinito Azul — e representa também um breve índice das intenções do diretor no documentário, e da liberdade com que ele costuma manipular suas narrativas dentro do gênero. A partir de imagens registradas na região do Saara, na África, o cineasta compõe uma aventura impressionista que se desprende da veracidade intrínseca ao registro documental para, com reforço da narração em off, reconfigurar suas imagens sob a esfinge de uma ficção-científica distópica, originando uma antologia de miragens que nos deixa a sensação de estarmos o tempo todo observando nosso próprio mundo sob a ótica de um ser alienígena — num contato primário cheio de mistérios e obstáculos cognitivos, propícios ao imediato estranhamento.

É a partir deste radical desafio estético que Herzog elabora seu primeiro ensaio sobre a natureza exploradora e dominante do homem — não apenas em relação ao mundo em que vive, o qual desafia e depreda constantemente, mas também entre sua própria espécie, segmentada por traçados territoriais, culturas, línguas e crenças distintas. Fata Morgana traz em seus planos do continente africano pequenos fragmentos do nosso mundo contemporâneo, através de indícios da opressão vivida pelos povos africanos sob a ação do colonialismo europeu — apresentada simbolicamente logo nas primeiras imagens, formadas por diferentes takes da aterrisagem de um mesmo avião branco em um aeroporto do deserto, fundindo-se mais à paisagem a cada corte com a abstração provocada pela massa de calor que emana do solo, até torná-lo um elemento indissolúvel do cenário — e da miséria que se alastrou pelo continente após os conflitos.

São, em suma, recortes da paisagem árida do deserto que preenchem o mais amplo dos três capítulos em que se estrutura o filme, intitulado ironicamente como Criação. Embora seja imprimido um significado controverso à superfície destas imagens (acompanhadas por uma narração de trechos do Popol Vuh, livro que retrata o mito maia sobre a criação do mundo), Fata Morgana parte de um comentário desiludido sobre os caminhos percorridos pelo homem nesta jornada muitas vezes desenfreada – e não raramente nociva – de desenvolvimento, especialmente na sociedade pós-industrial, refém da produção em massa, da constante evolução tecnológica, da ambição pelo poder e pela dominação, do desejo de posse irrefreável. Se o cinema de Herzog costuma olhar para a natureza terrestre como uma estrutura selvagem, bela e ao mesmo tempo ameaçadora, em Fata Morgana – ou Lições das Trevas, ou O Infinito Azul, ou muitos outros filmes – também não deixa de observar que a hostilidade pode estar presente em igual medida tanto nela quanto nos próprios homens. Se seu cinema é geralmente lembrado por refugiar-se em personagens outsiders, loucos e sonhadores – características também observadas no próprio cineasta -, cujas idiossincrasias não costumam ser facilmente aceitas pelos padrões sociais, Herzog também permite ao espectador um contato com sua visão sobre a estrutura desta sociedade da qual eles tendem a se segregar — seja para viver com os ursos, como o Timothy Treadwell de O Homem Urso, ou dirigir patrolas na Antártida, como o filósofo entrevistado logo ao início de Encontros no Fim do Mundo.

Em Fata Morgana, especificamente, Herzog comunica este olhar desiludido para nossa realidade através de um híbrido entre criação e destruição, civilização e ruína, os homens e o espaço que os situa no tempo. A narrativa evoca um filme de ficção-científica justamente como forma de agregar um sentido duplo ao espaço filmado. O deserto do Saara, com sua imensidão de colinas e planícies, é a representação da natureza crua da terra como palco possível tanto para a vida quanto para a morte — dependendo muito, e especialmente, de como lidamos com ela. Em muitos dos longos travellings do filme, seguindo esta lógica, o deserto não se apresenta sozinho. Acompanham-no os rastros de morte e ruína, representados não apenas pelas carcaças de animais estiradas na areia, mas por signos que evidenciam a passagem do homem pelo local em um sentido pouco harmonioso — sabe-se, através de subversões, que estes vestígios não representam o desenvolvimento sustentável e equilibrado, mas sim os conflitos bélicos ocorridos no continente, de forma semelhante a tantas outras partes do mundo.

A criação e a destruição, mais do que justapostas, são fundidas em uma mesma percepção, apropriada pelo filme através desta ótica peculiar de quem olha para a realidade com um misto de estranhamento e miopia, como que em contato com uma série de miragens (por sinal, tradução do termo Fata Morgana). Herzog condensa assim a passagem dos homens pela terra — ou, pelo menos, a dos ainda capazes de sentir alguma indignação. E dela parte para o Paraíso, como reflete o título do segundo dos três capítulos do longa (que se encerra com outro mais curto, intitulado Idade Dourada), quando o filme entorta de vez em seu radicalismo estético, intercalando canções românticas do cantor folk canadense Leonard Cohen com frases e reflexões cada vez mais desiludidas. “No paraíso, os homens chegam mortos ao mundo”, é o que salienta a narração em um dos momentos derradeiros da apoteose herzoguiana de Fata Morgana — e é basicamente esta a sensação que sobrevive da experiência com o filme. Se alguns anos depois, em Lições das Trevas, o alemão colocaria o homem em contato com o apocalipse na terra, aqui, em um dos seus primeiros longas, já nos conduz a um passo mais próximo dele, deixando-nos à deriva, sem proteção e despojado de esperança, à espera do fim do mundo.

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A Invenção de Hugo Cabret (Martin Scorsese, 2011)

Por Daniel Dalpizzolo

A história de amor entre Martin Scorsese e o cinema não é mais uma novidade. Se a nouvelle vague francesa, de Godard e Truffaut, é considerada hoje o primeiro grupo de cineastas declaradamente cinéfilos, filmando obras assumidas em uma consciência que ao mesmo tempo reverenciava e refletia as preferências cinematográficas dos autores, Scorsese por sua vez é, entre os cineastas da geração anos 70 do cinema norte-americano, talvez o que mais abertamente tenha declarado sua devoção pela sétima arte – seja nos filmes realizados ou em entrevistas concedidas sobre o assunto.

Em A Invenção de Hugo Cabret, o diretor expõe abertamente estes sentimentos e traz o amor ao cinema e ao poder da imaginação como força motriz da trama e de sua bela encenação. Do primeiro ao último minuto, vivenciamos uma fábula que, com seu visual embasbacante e seus impressionantes efeitos 3D, somente poderia existir no cinema, numa fantasia que se constroi em um mundo à parte da nossa realidade. A Paris do filme, de tons alaranjados e crepusculares, é apresentada como cenário fantasioso e impossível. Cada plano da capital francesa é uma imagem da cidade que você nunca mais verá, a não ser em A Invenção de Hugo Cabret.

Neste cenário próprio da ficção, Scorsese nos situa pelo olhar do menino Hugo Cabret, um órfão miserável que vive em uma estação de trem. A primeira parte do filme surge como uma fábula dickenseniana passada toda dentro da enorme e minuciosa estação (lembra sem muito esforço a mais famosa obra de Dickens, o clássico da literatura infanto-juvenil Oliver Twist). É notável a habilidade do diretor ao construir este cenário e nos posicionar no centro dele junto do protagonista, complementando-o com um grande número de personagens secundários que auxiliam a compor uma ambientação abrangente e imersiva.

Cada detalhe da estação, dos corredores às enormes engrenagens dos relógios nos quais Hugo se abriga, é composto com esmero, tornando-nos íntimos do espaço em poucos minutos. A exemplo do filme anterior de Scorsese, Ilha do Medo, em que o diretor dedicava parte considerável da narrativa para que o personagem de Di Caprio simplesmente explorasse a ilha-sanatório em que estava preso, aqui Hugo percorre todos os cantos da enorme estação, e a câmera de Scorsese, com uma decupagem leve e fluída, persegue o garoto por sua realidade sofrida e pouco entusiasmante. Em seguida, rompe esta realidade com o surgimento de uma garota e da aventura em que se metem, levando-os ao centro dos interesses do filme: a ode à magia e ao encantamento do cinema.

O grande trunfo de A Invenção de Hugo Cabret em sua segunda metade, que homenageia o precursor da ficção e dos efeitos especiais no cinema, o mágico e cineasta francês Georges Méliès, é equilibrar seu encantamento declarado pelo cinema de forma ao mesmo tempo emocionante e levemente didática, tornando possível que tanto os cinéfilos mais ardorosos quanto aqueles que mal conhecem a história da sétima arte possam se encantar com a homenagem de Scorsese. Ao resgatar às novas gerações a essência do trabalho de Méliès, o diretor naturalmente faz de seu filme uma viagem pelo que há de mais essencial nos mecanismos da fábula, que se vale da construção de novas realidades para fazer-nos esquecer a nossa por algumas horas – e, também por isso, é justamente ao fazer seus personagens sentarem numa sala de cinema para contemplar a restauração das principais obras de Méliès que o filme se encerra.

O momento final é tão simbólico que mesmo a falta de sutileza de algumas sequências anteriores torna-se um problema menor diante do expressivo significado deste ato – que propõe um olhar para o passado, para a gênese da magia artística, valendo-se da beleza proporcionada pelos recursos tecnológicos do cinema digital. O cinema, a arte que salvou Scorsese da violência do bairro em que cresceu, das drogas e da depressão, é também a arte que salva Hugo da solidão, Méliès do esquecimento e da decadência, e frequentemente a nós, espectadores, dos tantos problemas que nos acometem diariamente. É sobre este poder de resgate do cinema que fala A Invenção de Hugo Cabret, um filme dedicado inteiramente à magia dessa arte tão encantadora e envolvente, e filmado de forma tão apaixonada que se torna praticamente impossível não nos entregarmos a ele.


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