Vício Frenético (Werner Herzog, 2009)

Por Kênia Freitas

Nem uma sequência e nem um remake do filme homônimo de 1992 de Abel Ferrara, apenas uma obra com o mesmo título sobre um “tenente mal” (tradução literal do título original). Pelo menos, é assim que o diretor Werner Herzog explica a coincidência, garantindo que não havia assistido ao filme dos anos 1990 – o que tem tudo para ser apenas mais uma das fabulações do diretor em torno da sua carreira. De qualquer forma, fato verídico ou inventado, isso não vem ao caso, visto que os dois filme são de fato muito diferentes em suas propostas.

Para enterrarmos as comparações de uma vez, podemos dizer que onde Ferrara mergulha numa frieza melancólica, Herzog se contamina pela maldade pulsante. Onde um é a depressão (com uma interpretação magistral de Harvey Keitel), o outro é pura mania (explosão de adrenalina em que até a canastrice típica de Nicola Cage funciona bem). Se Ferrara conseguiu um filme mais honesto; o cinismo de Herzog é, por sua vez, libertador… Temos a pura potência de um homem mal, despojado de valores morais e, por isso, indiferente as pressões sociais. Enfim, o que poderíamos chamar de  um homem livre.

No inicio do filme conhecemos Terrence McDonagh, aparentemente um policial exemplar –  afinal, ele estava trabalhando em pleno caos provocado pelo furacão Katrina em Nova Orleans, enquanto os outros haviam abandonado os seus postos. Nesse dia, tentando salvar um prisioneiro do afogamento, ele se machuca seriamente passando a sentir dores constantes no corpo e a depender de drogas (licitas ou não) para anestesiá-las. Mas o que está em questão não é apenas como um ambiente ruim irá transformá-lo em um policial corrupto e sem escrúpulos. Ou seja, como sua dependência é alimentada pelo próprio ambiente de trabalho. O que está de fato em jogo no filme de Herzog é a luta desse homem contra si, contra o próprio corpo dolorido e viciado, e contra a sua pulsão de auto-destruição.

Mais uma vez, temos a contaminação da loucura do personagem na câmera de Herzog – e, portanto, no filme. Em determinado momento, é como se estivéssemos presos naquela mente perturbada e em permanente martírio e não conseguíssemos sair. As iguanas cantam e os homens mortos dançam e, ainda assim, não podemos parar, não há descanso possível e, muito menos, corpo sem dor. Dos movimentos aberrantes às cenas de puro delírio, é preciso desestabilizar o local do espectador e do seu olhar.

Nesse sentido, a trama se conduz como um amontoado de cartas de baralho que vai caindo, mas que ainda assim se encaixa perfeitamente. Terrence McDonagh resolve cada um dos seus problemas enredando-os em outros ainda mais complicados e cada vez mais amarrados. E, quase inacreditavelmente, eles se solucionam: um pouco por sorte, um pouco por planejamento e, sobretudo, porque para quem nada pior pode acontecer não há outra alternativa. Assim, McDonagh precisa resolver uma investigação de assassinato, livrar-se dos capangas que chantageiam a namorada prostituta, apaziguar os problemas matrimoniais do pai em tratamento com a madrasta alcoólatra e conseguir pagar as dívidas acumuladas em jogos de azar: tudo ao mesmo tempo e urgente.

Temos, assim, uma espécie de fábula moral ao contrário. Em seu cinismo trágico, McDonagh é um homem terrivelmente preso a si – ainda que moralmente livre de todos. Na mesma medida em que tudo se resolve porque nada de ruim pode de fato afetar aquele homem, a recíproca é verdadeira para a felicidade. Não há final heróico que consiga evitar que ele continue a ter “alguns dias ruins”. Não há possibilidade de um ponto de vista fixo e definitivo. E, acima de tudo, não há fim.

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