Corrente do Mal (David Robert Mitchell, 2014)

Por Luis Henrique Boaventura

Ao erguer sua alegoria anacrônica da corrosão da juventude americana, terminal, numa Detroit suburbana cansada e quase fantasma, David Robert Mitchell faz retornar o medo à categoria de grande objeto linguístico do cinema fantástico americano. Não a razão para o medo, seu gatilho, mas a própria fundação do sentimento. Como se sabe, o terror elementar na mitologia americana, não importa quantas vezes reencarnado (se em Lynch, em Ferrara, Craven ou Dante; ou em uma dúzia de outros Carpenters além de Halloween), não está no distúrbio da ordem em si, mas na sua antecipação, no medo pelo medo da implosão de um modo de vida (ainda que imaginário, enquanto fantasia que carece de expurgação). Em Halloween (de todos, o par mais próximo do filme de Mitchell), Carpenter não cede à paranoia da ameaça estrangeira (planta baixa para o fetiche americano pelo terror alienígena dos anos 50, repisado mais tarde por Ridley Scott e pelo próprio Carpenter), pelo contrário, essa força age de dentro para fora: Myers mata a irmã, um crime singular no contexto da saga não apenas por ser o pecado original do pequeno Mike, mas por ser o único com justificativa plausível, momento em que Myers mata por motivação outra além da força-motriz imparável que o define. Ele pesa o ato da irmã e a condena à morte num julgamento que espelha a voracidade social por correção de comportamento. Está tombado o núcleo familiar pelos mesmos agentes que o americano, geração após a outra, falha em compreender: os jovens e o sexo.

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O sexo é o signo clássico do mau presságio no cinema de horror. Foi Mario Bava que, ao atribuir pujança erótica à hora da morte em Seis Mulheres Para o Assassino, inaugurou no sexo e no corpo feminino as preliminares para o assassinato como a manifestação estética máxima do gênero através da desconstrução do ato e do corpo (mais que frequentemente os amantes são pegos mid-coitus ou imediatamente após). Não se trata de destruir o sublime em detrimento do grotesco (já que estamos nesta página), mas senão de substituir uma beleza (essa da petite mort) pela outra, maior (o gozo total, da morte levada a cabo efetivamente). Ao usar o sexo para passar adiante sua maldição, Corrente do Mal segue a pista do giallo e do slasher, claro, embora sem consagrar nem o momento da morte e nem o do sexo, mas o espaço entre ambos, e mais: a decisão egoísta do já amaldiçoado em transmitir a praga e a decisão dos que de bom grado se voluntariam para o sacrifício de recebê-la.

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A força do horror em Corrente do Mal está apoiada sobre estes dois argumentos: o fato de que o monstro nunca para (aonde quer que se esteja no mundo ele estará caminhando — muito lentamente — na sua direção, ameaça projetada da extremidade do fora de campo); e o isolamento daquele que é “seguido” por ser o único capaz de vê-lo, o que torna a vigília dos seus amigos inútil a não ser que se escolha amaldiçoá-los também. E este me parece mais terrível que o primeiro. Não se trata apenas de estar sentenciado para sempre à agitação da fuga (toda casa, gramado, rua em que se entra em breve será deixada para trás; todos os lugares são passageiros e despojados de expectativa), mas de estar forçado à seguinte escolha: se isolar e morrer sozinho ou envolver — e condenar — as pessoas que se ama.

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Jay ama Yara, Kelly, Paul e Greg. Os cinco amigos parecem as únicas pessoas vivas nessa Detroit assombrada e decadente quando ligados pelo tempo vadio da adolescência, um onde/quando em que tudo é por demais sonífero e vagaroso e que transforma figuras paternas em estranhos surdos para os problemas que nessa idade não dispõem de tradução certa para a linguagem adulta (vide a forma tomada pelo monstro no embate final). Corrente do Mal se esvaziaria de sua verdadeira potência se Mitchell (o diretor já exercitou o tema em The Myth of the American Sleepover, sua estreia) não empreendesse todo o tempo necessário na construção das relações entre os garotos e no modo como eles percorrem juntos os espaços que o filme encontra e logo abandona quando se assume em seus meados como road movie, o que faz do pequeno trecho em que todos estão no carro a caminho da casa no lago um momento simples e belo. Não há outra família que não aquela do carro para se deixar para trás, ou tampouco um contento social lá muito significativo (são pouquíssimos os elementos capazes de indiciar mais ou menos a linha temporal, como o reader em forma de concha usado por Yara, que sequer existe na realidade), o que faz da necessidade de movimento uma ferida que já nasce dormente.

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O jovem que é cria dessa cultura do nascendo morimur, da expiação da culpa dos seus pais e dos pais destes, da data de validade expirada e da falência anunciada e irremediável — este é o personagem em todos os personagens de Corrente do Mal, condenados à mobilidade incessante e à orfandade de um território seu, à não-identidade por não haver modelo válido para se apreender no mundo externo ao seu pequeno círculo. Que o monstro eventualmente mate sua vítima é incidental diante da condição de fuga que ele impõe aos que são tocados e transformados em errantes, impossibilitados de ocupar e viver em um lugar determinado. Por isso é preciso redescobrir o lar americano para além do espaço de coisas como a grama, o passeio e as cercas brancas; é preciso encontrar casa nas pessoas. Como expresso no ato de Paul. Refundar o sonho sobre o sacrifício último por amor, já que o medo é invencível e viver para ele é apenas uma forma mais lenta e pungente de morte.

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No Silêncio da Noite (Nicholas Ray, 1950)

Por Luis Henrique Boaventura

1. Uma história de violência

A despeito da fúria que os toma como uma doença, os homens de Nicholas Ray são frágeis feito crianças, vulneráveis às iniquidades de um mundo que se recusa a abraçá-los. A resposta ao deslocamento, como quem responde a um pai, é sempre um cavo grito de cólera. Não há nada de inexplicável na raiva que Dixon sente, ela é apenas o desespero dos solitários, aqueles que em verdade ninguém narrou como Nick Ray (por se tratar em muito de narrar a si mesmo). Como para Jim Stark, Jim Wilson, Ed Avery, Johnny Guitar, a violência de Dixon é faísca do seu descompasso para com esse mundo que não o reconhece. A primeira cena de No Silêncio da Noite tem nos olhos de Dixon, refletidos no retrovisor, o único alento humano em contraste com a frieza da cidade que corre do lado de fora. Asfalto, pessoas, luzes, prédios, e dois olhos perdidos no espelho de um carro, último elemento relacionável do quadro. “É possível ser sozinho na cidade”, diz Ida Lupino a Robert Ryan em Cinzas Que Queimam. Dixon procura ir à forra com qualquer um que cruze seu caminho porque todos são estranhos a seus olhos, vultos incomunicáveis, miragens que povoam um lugar desolado, uma terra estrangeira (mesmo e principalmente as amizades que o cercam, rostos torpes e indistintos na noite). É por isso que Dix passa a vida procurando esta mulher de quem, como ele mesmo diz, não sabe o nome, não sabe como se parece, não sabe onde encontrar. Diferente dos vagabundos habituais do film noir, homens doentes, aleijados emocionais, Dix é um romântico em busca de alguém como ele nesse deserto, alguém que seja capaz de reconhecê-lo na neblina.

2. Inocentes

Há somente dois personagens livres de qualquer culpa em No Silêncio da Noite: Dixon e Mildred, a garota assassinada. No noir de um modo geral, mas principalmente nos filmes de Nicholas Ray, o mundo não é apenas um lugar hostil, é em si mesmo uma entidade maligna. Dixon e Mildred são vítimas de uma ordem que não permite a esse universo criado por Ray o cultivo do belo. É bobagem pensar, por exemplo, que Dixon poderia encontrar e, além disso, permanecer com sua amada para o resto da vida. Só lhe é concedido o encontro para que ele possa provar da perda, de uma dor que ainda não conhecia. Não há lugar aqui para a redenção, para o que é limpo; tudo está submetido a essa concepção draconiana das coisas, que tritura os corpos entre suas engrenagens. Nada pode a força humana contra a impiedade dessa máquina. É por isso que a única personagem pura, tola e genuinamente feliz em No Silêncio da Noite é morta com quinze minutos de filme.

3. Ponha-me na cama

Dixon tem a companhia de quatro personagens ao longo do filme: Charlie, o ator decadente, Brub, o velho parceiro da guerra, Mel, seu devotado agente, e Laurel, a mulher que ama. Brub se aproxima de Dix porque tem um caso para resolver, Laurel (ainda que venha a se apaixonar) quer apenas deixar de ser uma atriz de segunda, Charlie o visita uma vez por semana pra conseguir uns trocados, e para Mel, o único que parece nutrir uma legítima preocupação por ele, não se sabe até que ponto vale a amizade pelo homem ou o interesse pelo talento do cliente. Todos os quatro desconfiam dele, todos armam pelas suas costas. Brub o convida para jantar esperando lhe arrancar alguma pista, Laurel planeja fugir acreditando ser ele o assassino, Mel não hesita em roubar de sua mesa, sob um pretexto afiadíssimo, o roteiro pronto e levá-lo ao estúdio enquanto ainda é tempo. Não se sabe bem até que ponto Laurel e Mel estão cuidando de Dix ou de si mesmos. Enquanto isso, Dix parece ser o único a não desconfiar de ninguém em falso, o único em No Silêncio da Noite que é claro em todas as suas ações, seja no momento de se entregar sem volta a uma mulher ou em não esconder um impulso de raiva para o benefício dos presentes. “Diga para procurar um homem como eu, mas sem o meu senso artístico”, é como ele se despede de Brub na noite do jantar. Dix é uma presa fácil no mundo porque é o único personagem transparente, incapaz de não ser rigorosamente o que de fato é. Por isso precisa de proteção, por isso a cena em que Laurel, Mel e Charlie o colocam na cama para dormir, com um versinho de ninar e um beijo de boa noite, é o momento-chave de toda a epopeia de Ray em torno do homem solitário.

4. Um copo de cólera

Muito da beleza nessa solidão está na rejeição absoluta dos seus heróis, isolados inclusive do próprio espectador. Há essa [falsa] troca de protagonistas em No Silêncio da Noite. Começa de fato quando Laurel é convidada à delegacia pela segunda vez, sozinha e às escondidas de Dix (a quem ela deixou dormindo). Inadvertidamente, Ray faz de nós cúmplices de uma suspeita que só ganha forças com o passar do tempo. A cena da briga no asfalto é o argumento final para condená-lo, quando ele afasta a mão para alcançar uma pedra na beira da estrada e seus olhos (um Bogart à margem de qualquer comparação) se acendem como duas tochas. Até este momento vemos Dix cada vez menos enquanto, por outro lado, acompanhamos Laurel em tudo o que ela faz. Sabemos dos seus segredos trocados com a massagista, do pedido de socorro à mulher do sargento, de detalhes do seu passado. Conhecemos todos os seus medos. Dix, ao contrário, não nos deixa saber se sua próxima reação será um sorriso ou uma explosão de raiva. É quando Ray disfarçadamente torce os gêneros e, a um noir que já passava da metade sem um antagonista definido, a ideia de Dix como assassino e Laurel como a vítima em perigo passa a fazer todo sentido.

5. Uma cena de amor

Dixon e Laurel estão na cozinha. É uma bonita manhã, uma luz morna invade o quadro por todos os lados. Ele prepara o café enquanto ela ainda se esforça para acordar direito. “Qualquer um que nos visse agora saberia que estamos apaixonados”. O que faz desta uma das cenas mais belas e terríveis que Ray já filmou é o segredo que o espectador compartilha com Laurel. É saber da dúvida que a assombra, que a faz amar e temer o mesmo homem, porque nós o tememos também. Estamos do lado de Laurel agora. Ray aproxima a câmera de seu rosto a cada sobressalto, os acordes da trilha pesam a cada expressão de medo nos seus olhos e marcam um suspense muito bem definido: a tensão, a iminência de perigo; dois personagens em cena, um a ameaça, outro o ameaçado. Se todos os amigos de Dix voltam-se em segredo contra ele, nós não deixamos por menos. A ação que se segue é acompanhada com o público como cúmplice, levado junto de Laurel ao agente de viagens, sabendo do seu plano de fugir antes do casamento, sabendo da armação entre ela e Mel para que Dix receba a notícia do melhor modo possível (e para que eles possam se safar mais facilmente). Na cena da comemoração do noivado, com todos reunidos no restaurante, o espectador é um a mais na mesa que sabe a verdade e sabe o que todos escondem de Dix. Por alguma trucagem maligna que Ray enreda, também nós damos as mãos no conluio para enganá-lo.

6. Une femme est une femme

Se por cânone no noir a femme fatale é a perdição do homem, o objeto introduzido para instaurar a desordem, aqui ela surge como salvação de uma alma em ruína. No Silêncio da Noite é uma espécie de verso no tecido do film noir, onde vemos as coisas em oposição ao que são realmente, como deveriam ser, mas que conduzirão ao mesmo velho destino dos homens sem esperança da linhagem de Lang, Tourneur, Preminger. Dixon, como ele mesmo diz na fala mais icônica do filme (“… I lived a few weeks while she loved me.”), estava morto até encontrar Laurel, e só depois de se apaixonar sua vida volta aos eixos. Poderia ser qualquer um, mas que se pegue Almas Perversas de contrapeso, este noir definitivo: o homem comum com uma vida comum que entra em colapso quando esbarra em uma mulher na rua. Dix, ao contrário, volta a trabalhar, volta a sorrir, volta a fazer planos. Tudo isto para terminar não muito diferente de Edward G. Robinson no filme de Lang: apagando-se num fade out enquanto caminha de cabeça baixa para fora do quadro. Ambos têm a chance de provar da felicidade só para despencarem de um lugar mais alto, a única diferença é que Lang deixa isto bem claro em Almas Perversas. A femme fatale de No Silêncio da Noite é extraordinária porque nos tem do seu lado a maior parte do filme. Ela nos confidencia seus segredos, divide sua aflição, seu medo, até que a decisão de fugir e de magoar Dix deliberadamente passa a fazer sentido ao espectador.

7. Adeus, Dix.

Mas a personagem de Gloria Grahame não é a respeito de maldade e premeditação como a de Joan Bennett, ela é apenas mais uma vítima, e é esta absolvição final que faz de No Silêncio da Noite o mais belo e o mais triste dos filmes, uma nota sobre a perda, sobre o que não tem mais volta. Quando Laurel atende o telefone e fica sabendo da inocência de Dix, e os dois se olham por uma última vez, fica claro que, por um leve desencontro, diabrura do tempo, já é tarde demais. Como se a vida lhes fosse arrancada do corpo neste instante, ambos sabem que perderam um ao outro, que a pessoa pela qual se apaixonaram já não existe mais. Há agora um vácuo, um vulto, mais um rosto indistinto na sombra como todos os outros do reino de Dix, o nooble prince que só tem a própria vida a governar. E ele sabe agora, na calma do olhar derradeiro, que a culpa não é de Laurel. Culpa-se o mundo, númen maldito contra o qual não há refúgio ou artifício. E em face do amor desfeito, Dixon retira-se solenemente para o esquecimento de um fotograma escuro, porque a romaria dos homens toma o rumo certo nessa hora: de volta à estrada onde começou, vai diluir-se na velha correnteza urbana, no ventre oco do mundo, no silêncio franco da noite.

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Tourneur e a rarefação do horror

Por Luis Henrique Boaventura

Há três momentos de assombro em O Homem Leopardo: o galho que se dobra na cena do cemitério, o cigarro jogado na direção do curador do museu quando ele é perseguido pela rua, e os passos invisíveis que se aproximam de Clo-Clo pouco antes de sua morte. Três fagulhas da fricção de coisas suspensas do mundo conhecido pelo espectador, ações clandestinas que correm à revelia do quadro, no subterrâneo da imagem. A quem esses passos pertencem? De que mão em que sombra do quadro vem o cigarro jogado na tela? Ao peso de quem ou de quê se vergam os galhos das árvores do cemitério? Se o suspense, em definição simplista, é o terror sugerido, a tensão criada por Jacques Tourneur provém de um terror invisível, habitante de um inviolável fora de campo. Os grandes clímaces de O Homem Leopardo ocorrem sem a menor partícula de matéria que os dispare. O catalisador da tensão não está mais oculto, conforme cânone do gênero; ele sequer existe realmente. Visíveis na tela apenas faíscas de qualquer coisa que se esconde, provocante objeto de discurso resgatado dos dois filmes anteriores para se tornar peça funcional e impingir efeitos que não seriam possíveis sem uma intrincada progressão referencial.

Em 1942 e 1943, ao lado de Val Lewton, produtor da RKO Pictures, Jacques Tourneur rodou três filmes-B de horror com orçamento limitado a US$ 150.000 cada: (em ordem) Sangue de Pantera (Cat People, 1942), A Morta Viva (I Walked With a Zombie, 1943) e O Homem Leopardo (The Leopard Man, 1943). Três filmes absurdos para a época, ligados entre si por uma obsessão liminarmente erótica/infantil: o fascínio pelo que está oculto ou que se desconhece; uma presença que se infiltra nas camadas do filme, que se sente, que se ouve, mas que está sempre num nível imediatamente inferior ao da superfície. Qualquer coisa fantasmática e inferencial que se acha num subsolo diegético inacessível ao espectador. O único momento em que essa presença denunciada por uma sombra ou um estalo no escuro se materializa é no momento da morte, acessando um lapso entre os planos onde o medo, espectro incorpóreo do qual só se apreende a sombra que projeta, feito fumaça, entra em contato com o que é matéria e a destrói num golpe de lâmina (garras, dentes, a ponta de um florete).

Há um referente catalisador do horror pretendido por Tourneur em cada um dos três filmes. Em Sangue de Pantera é a metamorfose de Irena, em A Morta Viva é a magia negra e em O Homem Leopardo é o serial killer que mata imitando um felino. Cada um desses elementos é responsável por homologar o gênero em que Tourneur enquadra seus três filmes. É a relação entre eles, contudo, que permite ampliar a perspectiva de texto fílmico para as três obras (e não apenas uma) e que os constitui não como meros “referentes mundanos”, mas como vibrantes objetos de discurso.

Apesar de parecerem a princípio distintos, os elementos disponíveis nos três filmes são, na verdade, apenas um referente (apreendido e postulado por Tourneur como cânone do cinema de horror): a sugestão do perigo, a iminência da tragédia, a ameaça que não se mostra, mas que se esconde e que aterroriza sem precisar agir, bastando os efeitos de sua presença (por vezes real, por vezes apenas imaginária) ocultada nas sombras densas da fotografia como herança do até então recente expressionismo alemão. É o mesmo referente, passando, contudo, por recategorizações que o redefinem e sentenciam uma tese de Tourneur ao final de sua parceria com Val Lewton.

Ocorre, como se verá, um processo de rarefação do horror e de estudo do quanto essa gradação de intangibilidade afetará o envolvimento do espectador. O referente é denso em Sangue de Pantera, mais esparso em A Morta Viva (a partir de quando já é seguro o chamarmos de objeto de discurso), e totalmente abstrato em O Homem Leopardo. Cada um desses três filmes corresponde a uma fase de diluição da ameaça em medo puro, um esvaecer da matéria até que a mera suposição de sua presença seja desencadeante suficiente às pretensões de Tourneur. Como ocorre em O Homem Leopardo, tratado quase sempre como obra menor, de argumento cretino e subterfúgios primitivos, mas que é clímax de um delicado processo de expurgação desse algo secreto que habita as imediações da lente, um processo que se estende por estes três filmes fundamentais do início de carreira de Tourneur como operário de estúdio em Hollywood.

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Sangue de Pantera (Jacques Tourneur, 1942)

Sangue de Pantera conta a história de Irena (Simone Simon), uma jovem artista, imigrante nos Estados Unidos, que se apaixona e se casa com Oliver (Kent Smith). À medida que o tempo passa, a relação dos dois se deteriora, e Irena passa a sofrer com alucinações. Ela descobre ser descendente do chamado “cat people” (título original), pessoas com a capacidade de se transformar em panteras. Conforme avança, Irena percebe que o perigo que ela sempre sentiu em seu entorno partia, na verdade, dela mesma: uma mulher-pantera.

Concreta (mas implícita), a insígnia do horror aqui desfila (e este é o termo apropriado) encarnada em Irena, ainda cerceada pela prisão da pele, lutando para escapar. A primeira cena já entrega esse duelo: Irena, diante da jaula do zoológico, tentando desenhar a pantera. Ela se esforça para apreender no papel o relevo da sua escultura, a complexidade do seu movimento, a fúria e energia represadas no limite de uma vitrine de exposição, um quadro para ser apreciado por quem tiver a presteza de dedicar ao olhar alguns minutos do seu tempo; não muito diferente do processo empreendido por um cineasta. O medo é ainda completamente tangível, embora dormente. Como um animal preso, não há perigo para quem observa a não ser que essas grades se partam. É necessário esse irromper do horror para além de seus limites, do contrário, ele torna-se um engodo, uma caricatura, feito um bicho de zoológico: precária representação da natureza. A pantera não é pantera sem uma vasta planície que suporte o alcance das suas patas. Falta-lhe a explosão e o espaço, falta-lhe o poder de imprimir medo novamente. Não há diferença entre o animal que respira dentro da jaula e o que Irena desenha no papel: ambos são recortes de um cenário verdadeiro, ambos são meras representações de algo. O horror aprisionado é, afinal, apenas uma possibilidade de horror, e todo medo que emana dele é uma farsa.

Por isso este medo prende-se à carne; nada no filme avança para além do raio de ação que um corpo derrama sobre o outro. O tempo inteiro se investem esforços numa fuga, mas é tão somente a este conflito que o filme se atém: no universo do corpo. É o objeto de Tourneur em Sangue de Pantera: o corpo mutante, em movimento, em desespero; ao mesmo tempo a ameaça e o ameaçado. O suspense limita-se às instâncias do corpo porque a presença à que ele reage não pode jamais se dissociar do cálice que o contém (o corpo feminino). Por esse motivo, em cada uma de suas cenas (ao contrário do que ocorre nos dois filmes posteriores), sabe-se que a presença que ronda o personagem em perigo é a da pantera, amarrada ao tecido vivo do mundo e portanto sujeita a seus princípios (como a dor ou a morte). É a desvantagem de Irena para o voodoo de A Morta Viva ou a “impresença” assassina de O Homem Leopardo. Presa ao corpo, ela pode ser vista, ser tocada e, portanto, vencida.

Interessante que, mesmo por isso, seja a liberdade o tema de Sangue de Pantera, ainda que despojada de beleza, alcançada num rebentar seco e violento. O assassínio, embora guarde a premeditação ritualística da caça, é mais um despejar exangue de força reprimida, instantânea e derradeira; clímax do atrito entre os corpos (a grande demanda do bicho enjaulado). Tourneur passa quase 70 minutos apenas ensaiando o horror, acompanhando-o em seus muitos esforços para vir à tona; ocultando o referente na névoa, mas sempre aludindo a ele, em anáfora, com o som de passos que se espalham ao redor dos personagens ou da montagem ágil que Tourneur imprime à tensão de suas sequências. O medo ganha força porque refere a algo ainda aceso na memória discursiva do espectador.

Por alguma travessa ironia, essa força incontida termina por recair exatamente sobre a própria pantera (Irena). Um reflexo. Mas era essa mesma a ideia de libertação conduzida desde o início por Tourneur, onde se tenciona o estilhaçar do corpo (objeto frágil e mundano) para a sublime evolação do espírito. Vencido o nível da carne, passa a não haver defesa contra o mal.

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A Morta Viva (Jacques Tourneur, 1942)

Em A Morta Viva, Betsy (Frances Dee) é uma enfermeira contratada por Wesley (James Ellison) para cuidar de Jessica (Christine Gordon). Tentando ajudar Jessica, que sofre de um estado de catalepsia inexplicável, Betsy recorre ao voodoo, componente indissociável da cultura africana que povoa a ilha onde o filme se passa.

Sangue de Pantera termina com o irromper da forma por sua essência, uma vitória da alma como refúgio da verdade (mesmo que maligna). Por isso, em A Morta Viva, o medo já não jaz debaixo da debilidade de um corpo qualquer.  Ele é livre, absoluto, percorre ao largo o vazio do mundo, porque se Sangue de Pantera tratava da iminência da morte, A Morta Viva trata do seu habitat: o abismo e a desolação de seus espectros. O referente é recategorizado, não tomado como um novo elemento. A acepção construída ao longo dos três filmes de Tourneur só é possível porque a teia de sentido de A Morta Viva liga-se, por sua vez, ao que já fora construído em Sangue de Pantera. A tensão não explode mais da fratura do corpo, mas da fratura dos espaços que este conquista. Essa presença antes tão óbvia, traída por rastros e outros indícios, agora perde-se e desaparece nas fiações da atmosfera, arcaico feito algum fantasma cujo vulto ficou para sempre estampado nos olhos da morta-viva. O medo excede as paredes do corpo e ganha dimensões mais raras, montando nos seres e nas forças da natureza. É o som longínquo dos tambores, a sombra que se desprende de Carrefour e que chega antes dele ao seu destino, os cabos invisíveis que arrastam Jessica para a cura (novamente a morte como ideia de fuga). O medo que escapa das fronteiras do corpo em Sangue de Pantera ganha as fronteiras da Terra em A Morta Viva, povoando seus arredores de caveiras e animais enforcados, de assovios e vendavais, recorrendo à força do mundo, e não apenas de seus objetos, para imprimir-se sobre a tela.

Essa fé de Tourneur nos elementos do campo A Morta Viva um de seus filmes mais requintados. Tourneur aproveita-se de tudo que seu espaço fílmico tem a oferecer. As sombras compondo miragens de teias e balaustradas, o duelo particular entre os extremos do claro (de espanto) e do escuro (de medo), o vento que resvala no vestido de Jessica e o dota de vida própria enquanto ela atravessa o quadro deixando um rastro branco para trás. O fora de campo aqui é reinventado; ele não trata apenas do que cerca a câmera. O suspense sob esses preceitos é o do corpo, limitado à presença física. Já o suspense em A Morta Viva é o que monta o som dos tambores e viaja até o outro lado da ilha. O horror não mora na fricção entre um corpo e outro, mas nas largas distâncias que se impõem entre eles, oposição que só se torna possível quando se defronta A Morta Viva (o horror na segunda acepção) com Sangue de Pantera (na primeira acepção).

A imagem de um personagem se movendo de um extremo do quadro para o outro é recorrente em A Morta Viva. As duas cenas mais lembradas de Sangue de Pantera expõem essa diferença: na opressão da cena da piscina e na sequência em que Alice se sente seguida, quando a câmera faz apenas recortes de seu corpo e deixa para a imaginação do espectador a possibilidade de algo saltar na sua frente a qualquer momento. Já aqui não há essa necessidade. O horror está inscrito na terra; pertence à amplitude do espaço, não à exiguidade do corpo, mero joguete de Tourneur em suas composições — sumido no meio de um matagal ou engolido pelo mar; movido por bruxaria através do cenário como quem move peças num tabuleiro. O objeto de Tourneur em A Morta Viva é o próprio mundo (e suas passagens secretas).

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O Homem Leopardo (Jacques Tourneur, 1943)

A fim de melhorar a performance de Kiki (Jean Brooks), uma dançarina de um clube noturno no Novo México, Jerry (Dennis O’Keefe) tem a ideia de usar um leopardo no espetáculo. Assustado com a plateia, o bicho foge e não é mais encontrado. Nos dias que se seguem, uma série de assassinatos passa a assolar a cidade.

Se em Sangue de Pantera o horror mora no corpo e em A Morta Viva ele galopa livre a face do universo, em O Homem Leopardo ele se lança a um nível infinitamente mais lasso desse círculo: o do imaginário. É incrível que Tourneur, aproveitando-se de elementos extradiegéticos (o título, o fato de ter dirigido Sangue de Pantera um ano antes), nos induza ao engano absurdo de conceber literalmente um “homem-leopardo” quando sua existência não é sequer cogitada por algum personagem no filme. Não há menção, não há evidência, no máximo uma sugestão oblíqua. Ainda assim (até onde se sabe) é ele nas molduras dos planos, curvando um galho ou camuflado nas sombras pouco antes do ataque. A tensão funciona em O Homem Leopardo sem ligações com um indivíduo ou mesmo com a porção de espaço que ele supostamente ocupa, um espaço que nos dois filmes anteriores era compartilhado com a vítima, mas que agora acomoda-se num vão entre os patamares, interregno entre a realidade e a loucura.

Esse processo de diluição que se assiste nos três filmes só se completa porque o referente fechado no (longínquo) filme anterior é retomado com elaborada prestidigitação. O horror não está personificado exatamente — portanto não pode ser combatido, como em Sangue de Pantera — e não está solto na superfície do filme como em A Morta Viva. Ele é apenas uma suposição, interpretação dos sinais que sobram do fora de campo para dentro da tela (o galho, o cigarro, o som dos passos).

É claro que há uma aproximação com Sangue de Pantera; muitos podem argumentar que a cena da rua com a parada de ônibus poderia estar sem problemas em O Homem Leopardo, mas há aí uma coincidência que ao mesmo tempo é uma diferença determinante: as certezas a respeito dessa cena. Em ambas o espectador está seguro da identidade do perigo que ronda os personagens, mas apenas quanto à primeira ele estará correto. Mesmo que dentro da trama a suspeita do protagonista recaia sobre um homem, o espectador imediatamente amplia a interpretação (porque tem um conhecimento extradiegético que não pode ignorar) e raciocina que, sim, os assassinatos são cometidos por um homem, mas um homem que se transforma em leopardo para matar (já que o bicho é descartado depois dez minutos de filme, uma peça que estrategicamente não se encaixa no trajeto que o público é induzido a percorrer). Em Sangue de Pantera, vemos Irena na tela seguindo Alice. Em O Homem Leopardo não vemos nada (com óbvia exceção da primeira morte, acidental). O suspense é todo firmado na ideia de uma ameaça abstrata, mais imaginária do que real (porque Tourneur só volta ao plano da realidade no pós-clímax, durante a investigação e o exame do corpo).

Nu e mínimo, O Homem Leopardo ilustra uma das questões mais elementares do próprio cinema: o fato de seu objeto ser sempre espectral, sempre uma impresença. As pessoas filmadas já não estão mais ali, os cenários já não existem, as ações foram há muito sedimentadas pela massa constante do tempo. O que se vê em um filme é o eco ancestral da realidade que ele registrou; o que cabe dentro do plano são apenas os sinais de um todo pressuposto, porque o que interessa ao cinema é o gole de fábula que se entorna nesse vácuo: entre o indício e sua fonte. É afinal o lugar da mise-en-scène, baseada na encenação de uma presença que se vende verdadeira, firmando este milenar contrato entre o mágico e o público: o pacto da ilusão, da mímica, onde até a crença é forjada. O horror invisível de O Homem Leopardo faz saltar a mais tênue filigrana desse conceito: o suspense, pleno e exuberante, baseado em rigorosamente nada além do que os signos jogados na tela são capazes de engendrar, levando a cabo o esforço patético do espectador em antecipar-se à narrativa.

Juntos, os filmes da parceria Lewton-Tourneur formam quase um estudo de caso das reações e comportamento do espectador diante dessa dissipação do horror, provando que ele não está no filme, mas na retina de quem o assiste. Cabe ao cineasta provocar os sentidos corretos, dar ao público espaços a preencher, uma construção só possível com as reconstruções operadas pelo discurso de Tourneur no mesmo referente catalisador do gênero que foi instituído no primeiro filme.

Essa rarefação do referente de horror faz-se quase defesa de uma ideia de cinema (um tanto démodé, talvez): partindo do intangível, tudo pode ser arranjado. O delírio mais ultrajante de Allan Poe é possível quando vestido na mortalha da noite, esconderijo de panteras e outros demônios. Tudo o que não se vê ou que não se conhece provoca o súbito deslumbramento dos homens, emprenha o mundo de centauros e feiticeiros, imprime num grão de poeira o fascínio cintilante do imponderável. Jacques Tourneur inventou com sua trinca de filmecos baratos, todos com a extensão de um episódio de novela, os princípios que regem até hoje a urdidura do medo no cinema: a imposição de algo cuja validação é irrelevante, que não demanda ser visto ou tocado, concorrendo junto ao espectador em sua própria dissimulação.

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Em Plena Forma (Pierre Étaix, 2010)

Por Luis Henrique Boaventura

Em Plena Forma é originalmente uma sequência da colagem de curtas Rir é o Melhor Remédio que Pierre Étaix extraiu do longa original a partir de um novo corte; faz parte dos filmes  restaurados e relançados em 2010.

Os non-sequiturs de Tati definitivamente encontram uma casa insuspeita no cálculo e na elegância de Pierre Étaix. As gags de Em Plena Forma são tão sóbrias e bem ensaiadas que o fazem emblemar um slapstick de ar bem mais moderno do que aquele de algumas sequências do pasteurizado O Artista, por exemplo; sobretudo por um aspecto: apesar de seu fazer como ator partir sempre de um maneirismo clown, o que o leva a interagir muito com objetos (Étaix é o tempo todo derrotado por coisas como uma cafeteira, um chapéu, um pacote que é grande demais para se carregar), a oposição de fato em relação a seus personagens mora na figura do Outro, o inferno personificado em uma série de pequenos personagens e as instituições sociais que eles instintivamente guardam.

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Se o lugar é um acampamento de férias, de refugiados, de concentração ou mesmo uma prisão a céu aberto é algo maravilhosamente embaralhado no filme. Logo ao chegar a câmera acompanha os passos de Étaix enquanto olha as altas cercas de arame farpado e espia um grupo de beberrões que cantam uns para os outros. Na entrada, o gesto mais forte: pessoas rastejando, o que é apropriado ao considerar que Em Plena Forma abre com um plano geral de uma bela colina ao amanhecer, e o protagonista é pequeno no centro do quadro diante do espaço que separa o chão da terra e de cerca nenhuma, para então se encontrar apertado e sufocado pelas mil pernas e braços da ordem social. Ele era livre e dono do mundo até ser encaixotado em um sistema com regras, hierarquia e lugares pré-determinados. Daí no fim o retorno à condição de criança, porque só assim, livre em quantos sentidos for possível conceber, para inventar um buraco no chão e fugir feito desenho animado.

O inimigo de Étaix em Em Plena Forma é todo mundo — estranhos, quadrúpedes e travestis, espalhados desleixadamente no seu caminho enquanto ele atravessa o quadro sem importar mais nada a não ser o passo obstinado para atravessá-lo. As pessoas não chegam a ser hostis, sequer são mais indiferentes a ele do que ele demonstra ser em relação a elas; em vez disso, perambulam entre uma sequência e outra como que pegando ar na superfície de cada pedacinho de filme que lhes é dado para se devolverem à massa indistinta de classes e gêneros que forma o acampamento, pequeno mostruário do mundo do qual ele procura fugir, motivo para ter ido acampar afinal de contas.

Pra nada servem as pessoas. O prazer que resta é caçoar delas com riso invisível.

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Feliz Aniversário (Pierre Étaix, 1962)

Por Luis Henrique Boaventura

Nada dos metódicos 12 minutos de Heureux Anniversaire denunciam que este se trata apenas do segundo filme de Pierre Étaix (em colaboração com um jovem Jean-Claude Carrière). Do grau de elaboração das cenas externas à montagem rigorosa de alternação de ritmos, rostos e objetos, Heureux Anniversaire é imaculado em sua cadeia de gags e atemporal enquanto parábola da vida urbana.

Pierre Étaix é o marido que luta contra o tráfego de Paris (caótica e despojada de qualquer traço de romance) para comprar presente, flores, champagne e não se atrasar para o jantar de aniversário de casamento que a esposa prepara tão docemente no refúgio do apartamento. O curta abre com um plano fechado sobre a mesa com taças, guardanapos e dois noivinhos de bolo. A câmera acompanha as mãos dela pousarem cada talher sobre a mesa como se fossem feitos de areia, junto de dois pães, uma garrafa de vinho e um pequeno presente escondido entre as folhas do guardanapo sobre o prato dele. Do presente dele o corte nos joga para o presente dela, carregado apressadamente com os dois braços enquanto ele atravessa a rua e quase se choca com um carregador de uma empresa de mudanças. Fora do apartamento o ritmo se rebela e os personagens ficam todos vulneráveis a uma corrente outra, indeterminada e alheia à sua vontade.

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Heureux Anniversaire choca dois mundos (de tempos distintos): dentro e fora. As pessoas dentro de casas e estabelecimentos são impassíveis até o momento em que a rua as reclama, como com o homem que fazia a barba em paz aparentemente infinita até ter sua vida transformada em um inferno pela busca por uma vaga para estacionar, ou o guarda relaxado, sem farda, que passa o tempo à janela. Mesmo as pessoas paradas no tráfego não estão paradas, pelo contrário. São dois os tempos: o tempo de dentro, debaixo de um teto, jaz fingido sob comando do homem; o tempo de fora, sobre asfalto, corre à absoluta revelia de sua existência. Na primeira cena, são as mãos da esposa que regem a câmera, dócil e à espera dos gestos que ela escolhe fazer. Do lado de fora, o marido é um entre tantos personagens perseguidos sem descanso no fast-forward alucinado de uma corrida de barreiras — que não são, aliás, carros e outras máquinas, mas os próprios personagens, obstáculos deles mesmos.

Montado e coreografado à perfeição, Heureux Anniversaire abraça Tati, Keaton e inevitavelmente Chaplin, mas corre em esfera própria; não se trata mais da opressão do modo de vida convertido em armadilha, mas da tentativa de controlar o que não aceita controle. O tempo é esta inocente invenção do homem que deu terrivelmente errado e se voltou contra ele, uma máquina numinosa e trituradora dos vivos. Afinal, mesmo a paciência inabalável da esposa é derrotada por um par de taças de vinho, e a única companhia dele para o jantar são os restos mortais de um girassol decapitado.

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Filmografia Comentada – David Cronenberg

Aproveitamos o lançamento de Cosmópolis no Brasil, adiado tantas vezes pela distribuidora nacional que ainda conseguimos nos antecipar a ele apesar do atraso de dois meses na atualização, para novamente nos reunirmos em um artigo coletivo sobre a obra de um cineasta (como fizemos com Nicholas Ray, à época da comemoração do seu centenário). O resultado é este passeio pela filmografia completa do canadense David Cronenberg, em que analisamos desde Stereo, sua estreia no cinema em 1969, até Senhores do Crime, lançado em 2006 — Um Método Perigoso e Cosmópolis, seus dois filmes mais recentes, possuem críticas à parte no site, que podem ser acessadas na home page.

Stereo (1969)

Ângulos, sombras, vozes, arquiteturas, sexos, futuros, solidões… A densa matéria que dá forma a Stereo, trabalho profético de um cinema, de uma ciência e filosofia, de um tempo humano ainda não encerrado, não esconde a relação obsessiva de David Cronenberg para com certos temas e procedimentos. Dos mais notáveis exercícios de estreia já vistos numa tela, esta primeira obra guarda paralelos com absolutamente todos os filmes a serem assinados pelo autor a partir de então. Impossível esgotar as interseções, os ecos e repetições dispersos pela filmografia em jogo. Por isso um inusitado interesse junto aos elementos que aqui ganham único tom: o preto e branco, o áudio em off, o frescor que emana da montagem principiante, por mais rígida que ela seja. Escapamos dos limites de orçamento abrindo um horizonte de encenação como raras vezes veremos no Cronenberg subsequente, mérito de um destemor típico dos primeiros passos, estes que são dados sob a incerteza de talvez serem os últimos. Stereo não poupa uma só convicção, abala toda uma estrutura lógica a partir de racionalidade própria, de confiança somente naquilo que tem em mãos: o movimento que extrai dos corpos e que origina a partir deles. Deste novo mundo aqui traçado, em que a carne e o desejo são confrontados pela insuficiência do toque, emana uma dolorosa esperança de um porvir que extinga a intransigência de opostos. Não se trata de utopia, mas de possíveis que não se excluem, de um cinema que aliança as distâncias — morais, estéticas, políticas — para favorecer uma harmonia perdida e fazer dela mais do que mera ficção. (Fernando Mendonça)

Crimes do Futuro (1970)

Filme independente filmado, escrito e dirigido por Cronenberg, o segundo de sua carreira. Neste seguimos Adrian Tripod, ex-diretor de uma clínica dermatológica, na procura pelo seu mentor, Antoine Rouge. O sumiço de Rouge está ligado de forma enigmática a uma doença infecciosa provocada por produtos cosméticos – infecção que parece ter sido a culpada pelo extermínio da população feminina sexualmente desenvolvida. Nesse mundo pós-apocaliptico, temos a vitória das instituições (que se mantém com toda a sua pompa burocrática e protocolar) sobre os indivíduos (que vagam errantes, morrem ou adoecem sem grandes explicações). Os homens seguem cumprindo procedimentos científicos e perpetuando racionalizações acadêmicas, ainda que essas atividades não pareçam ter qualquer efeito transformador sobre a realidade, além do descritivo. Para piorar, os únicos grupos que demonstram algum interesse em revitalizar a existência da espécie humana são círculos obscuros de conspiração de pedófilos, que objetivam criar por meio de outra forma de sexualidade uma espécie substituta para a humanidade. Dito assim, o filme soa muito mais repugnante do que ele de fato é. Mas, assim como seus homens indiferentes da pós-catástrofe, é na frieza das imagens e na anti-fruição narrativa em que o diretor se fia. Os contatos humanos são estranhos, o ambiente é hostil e esses seres sorumbáticos perambulam através de uma arquitetura opressora. O roteiro quase surrealista se arrasta  pelo vagar ilógico das ações. A narração em voz over e a intervenção de ruídos diversos e pouco agradáveis (o som do filme é todo indireto e de pós-produção) só aumentam o distanciamento do espectador. Se o filme beira o insuportável, resta o consolo de que ele foi construído para isso. (Kênia Freitas)

Calafrios (1975)


Como obra de seu período inicial, Calafrios ainda é um pouco imatura frente a outros filmes de Cronenberg; daí sua aparência “trash”, seu inegável flerte com a estética barata de produções de low budget, algumas imperfeições que a tornam única dentro da carreira de seu realizador e também como peça profética: tanto para o cinema, pois antecipa Alien e seus monstros de infiltração gosmenta, como para a discussão de grandes chagas (não apenas físicas) contemporâneas, como a ganância extrema que faz cientistas criarem em laboratório ameaças para a vida humana, visando à glória de ser reconhecido na luta contra o perigo artificialmente fabricado. Não é um pouco o que dizem ter havido com a AIDS? Aí Calafrios deixa de ser tão futilmente fantasioso (como se a imaginação fosse por si algo vulgar, descartável) se o consideramos nesse contexto, e de qualquer modo o terror sempre presente nunca se faz ridículo ou fora do tom, pois Cronenberg sabe como segurá-lo na sua cadência, que faz todo o sentido ao se impor no cotidiano das personagens. Ao se manifestarem de maneira explícita, os Calafrios percorrem também a espinha de seu público. E de repente talvez percebamos que a questão moral proposta por Cronenberg não se esgota no extermínio das criaturas macabras vistas neste filme, mas numa mudança de postura e mentalidade. (Filipe Chamy)

Enraivecida na Fúria do Sexo (1977)

Imprevista atualização de mítica vampiresca, Rabid é o filme que conecta uma primeira fase de Cronenberg — de poucos recursos, quase artesanal — ao estilo que caracteriza todo o restante de sua carreira. Da dialética Corpo X Ciência, eis um reflexo exponencial dos traumas que este conflito moderno origina dentro daqueles que se submetem, ou são submetidos, a modificações de sua natureza para sobrevivência. É para não morrer que a protagonista suga a vida e o sangue (e o sexo) de todos que se aproximam; para continuar em seu corpo que, incontrolável e inconscientemente, ela espalha uma peste, a Raiva do título original, entre a população local. Os princípios de uma antropofagia espelhados pelo próprio cinema, pelo referencial de gênero em que Cronenberg adentra e pelo que ele lega e compartilha com autores de seu tempo (Romero, Craven, Rollin), cinemas feitos com os restos da humanidade. Neste corpo neutralizado a que se restringe o contorno da mulher atriz (Marilyn Chambers, advinda do mundo pornô e por isso com a única experiência legítima ao universo de Rabid, um filme a que só importam os resquícios dos corpos e de suas ações mecânicas), Cronenberg encontra a carnalidade devida e necessária ao seu projeto de imagem; é o que sua última cena confirma, no caminhão de lixo que tritura o cadáver esquecido, que se afasta dentro de uma rotina apocalíptica sem o menor pudor ou impressão nostálgica. Constatação de um tempo em que já não cabe a saudade, de um espaço que não alivia a mortalidade do mundo. Em Rabid um cinema que volta ao pó, que se rende ao finito, uma lembrança de que já não importa a ficção se tudo é frágil, ilusório, enfermo. (Fernando Mendonça)

Fast Company (1979)

Fast Company carrega o velho e bom discurso bufão de liberdade “hit the road” anos 70, concepção residual da semifalida contracultura sessentista e da agonizante transição, no cinema, do douradíssimo Monument Valley pralgum triste pedaço de asfalto entre o Novo México e a Louisiana — radiografia translúcida do jovem cinema americano tirada por um filme B de Alberta, Canadá. Embora pareça estranho ver um carsploitation entre filmes de horror na filmografia de Cronenberg, Fast Company guarda, ainda que sob as ressalvas de uma produção precária, indícios da mise-en-scène minimalista vista mais claramente a partir da década seguinte. A câmera é erradia e os cortes são rudes (especialmente naquele campo-contracampo frenético das cenas de corrida), mas acabam sempre por recompor a cadência de um outro cinema. No macro, Cronenberg é mesmo afeito ao escândalo, ao absurdo; mas na minutiae dos seus filmes sempre se instalou aquele olhar kafkiano que narra o desconcerto como banal, que faz da loucura a mais anêmica trivialidade. Para além do filme em si, que não despertaria mesmo um interesse genuíno (nem dentro do seu sub-gênero), há este semiclassicismo prematuro em Fast Company, de adotar a insurgência lisérgica exportada pela Nova Hollywood com preceitos do cinema clássico guardados no bolso. (Luis Henrique Boaventura)

Filhos do Medo (1979)

 

Nem o espectador nem os personagens que circundam Nola Cavendish — o médico trambiqueiro cujo tratamento se revela mais eficiente do que deveria; o marido que vai de um lado a outro em busca de uma explicação para os eventos cada vez mais inexplicáveis que ocorrem à sua volta — sabem, até as cenas finais de Os Filhos do Medo, se ela tem consciência ou não da existência de sua “ninhada” e de como as atitudes dos “filhos” refletem seus estados emocionais. A revelação é adiada por Cronenberg pelo maior tempo possível; a narrativa nos despista inúmeras vezes, empurrando Nola para uma posição de vítima indefesa de Oliver Reed; e tudo isso carrega a hora da reviravolta de expectativa, porque, embora sejamos levados a pensar que temos uma noção bastante boa do que está de fato acontecendo, o filme toma o cuidado de não nos deixar cristalizar uma certeza nunca. Assim, o momento em que Frank entra naquela quarto é valorizado, e é logo depois que estaremos diante da (apenas) segunda irrupção explícita, em todo o filme, do horror cronenberguiano como tomou forma na primeira fase da carreira do diretor, o das anomalias e deformações corporais; o que pode parecer estranho num filme com temática tão convidativa à imagem frontal do corpo padecendo de um mal físico ou psicológico que Cronenberg cultivou durante toda a sua carreira. Os Filhos do Medo tem essa postura porque aqui não importa tanto a mutação particular que vemos, mas sim o fato de que Nola não só a aceita como a celebra: e a mise en scène é sua cúmplice nesse aspecto, na forma como esconde de nossa vista, pela sua elegância, pela cadência da narrativa, muito mais próxima de um suspense clássico que um Scanners, a verdadeira natureza dos eventos. Nos filmes anteriores não existia olhar simpático algum para o que acontecia; mas de Os Filhos do Medo em diante a câmera de Cronenberg sempre enquadrará a anomalia (física ou mental) num misto de horror e fascinação. (Robson Galluci)

Scanners — Sua Mente Pode Destruir (1981)

 

Uma ficção-científica de terror, Scanners, com seu clima pesado, não deixa de trazer algumas questões caras ao cinema de Cronenberg: tecnologia e coerção social controlando e moldando os corpos dos indivíduos, que resistem como podem. No filme, um grupo de pessoas adquiriu a capacidade de ler e controlar mentes, devido a um experimento científico malsucedido. Com o fracasso das experiências, esses scanners (leitores de mentes) tornaram-se páreas na sociedade, incapazes de adaptarem essa aptidão a uma vida ordinária. A situação só muda quando um scanner decide reunir todos esses enjeitados em um plano de dominar o mundo. E apenas um outro scanner será capaz de acabar com essa revolução violenta. É essa guerra telecinética que filma Cronenberg. Se pela temática poderíamos supor uma abordagem mais psicológica, o que interessa ao diretor é o embate físico desses corpos. Os olhos se esbugalham, as veias saltam, o rosto se deforma. Como de costume no seu cinema, é essa metamorfose corporal que interessa a Cronenberg: o que se passa na tela como uma pele. O poder mental dos scanners se materializa como a carne e o sangue nas imagens, às vezes tão densos que as cabeças até explodem. (Kênia Freitas)

Videodrome — A Síndrome do Vídeo (1983)

Mcluhan apontou a tecnologia eletrônica – e posteriormente cibernética – emergente no século XX como uma extensão do corpo humano, o faz dela, deste ponto de vista, um tema natural para o cinema de Cronenebrg. Desde então diversos filmes se aproveitaram da ideia de diluição entre a realidade física e a ilusão virtual para a composição de uma única entidade-mundo – o próprio Cronenberg realizaria anos mais tarde nova investida no tema com eXistenZ -, nenhum deles com a precisão assustadora e visionária de Videodrome. Ao participar de algumas exibições de filmes snuffs – antes mesmo do termo ser cunhado para classificar os vídeos que reproduzem violência física e mortes não encenadas, reais – o personagem de James Woods passa a sofrer alucinações e é de seu ponto de vista distorcido e insano que acompanharemos tudo o que se desenrola na história, sem jamais sabermos quais elementos são reais dentro do conceito de “realidade” proposto para o filme e quais são meras intervenções de seus delírios. O dispositivo central parte de uma forte inversão: enquanto os limites morais da encenação são postos em xeque nos filmes-dentro-do-filme, com a reprodução de mortes reais em vídeo, a vida do personagem é sugada por um imaginário de gênero através do qual é transformada em uma grande ficção, com direito a cenas de ação, perseguição, sexo, assassinato e gore, elementos básicos do códice das ficções oitentistas – e também dos filmes canadenses do cineasta, que faria com Videodrome sua estreia em solo estadunidense. Desta dicotomia nascem momentos emblemáticos como o abdômen de Woods abrindo-se para ser transformado em um vídeo-cassete humano, ou a televisão o engolindo, ou a arma que ele porta se integrando ao seu corpo, fundindo assim máquina e homem em um mesmo ser – imagens que não poderiam refletir com maior precisão sobre nossos tempos. A tecnologia, embora à serviço da civilização do homem, também pode ser sua ruína. Long live the new flesh, diz Cronenberg, e salve-se quem, nesta intempérie de estímulos artificiais, conseguir se manter imune à insanidade. (Daniel Dalpizzolo)

A Hora da Zona Morta (1983)

A sintonia que o original literário de Dead Zone nutre para com o universo de Cronenberg é facilmente identificável pela relação de forças polarizada em torno do corpo humano, da dimensão que escapa à ciência e expande o horizonte de atuação dos entes racionais no mundo em que vivem. Abordagem de um vigoroso romance de Stephen King, este filme converge alguns aspectos que complementam o imaginário de Cronenberg no que tange o seu habitual alargamento dos limites físicos, no caso, uma demolição das barreiras que a mente encontra para exercer poder num domínio exterior à pele, sem a necessidade de qualquer contato com seus agentes de percepção. O protagonista encarnado por Christopher Walken, vítima de um acidente que libera em seu cérebro uma paranormalidade fundamentada na visão de dores e medos sofridos em espaços-tempo descontínuos ao de sua presença, concentra problemas característicos aos tipos que se multiplicam na filmografia do diretor: angústias de pessoas que se encontram num estado de diferença, que se fundem numa alteridade não compreendida e, por isso, são impedidos de uma comunicação social e afetiva com aqueles que já não conseguem enxergar neles mais do que uma memória latente, uma impressão perdida do passado. Apesar de tudo, o foco acentuado por Cronenberg sobre a interrompida vida amorosa/familiar de seu personagem — de um romantismo frustrado como só veríamos novamente em Marcas da Violência — ecoa uma impotência compartilhada pelo próprio resultado final de A Hora da Zona Morta, filme um tanto quanto envelhecido e formalmente dissonante dentro do cinema que ele desenvolveu no século passado. Talvez por isso, seu trabalho que melhor esboce os caminhos que ele trilharia nestes anos mais recentes, maduros o suficiente para assumir um classicismo indiscreto, confrontador. (Fernando Mendonça)

A Mosca (1986)

Precedido por uma reputação cheia de meias verdades, A mosca é tido na conta de refilmagem, de festim “gore” e de ficção-científica absurda e descerebrada. Mas na superfície tudo é raso, e é difícil subestimar este filme de David Cronenberg após assistir a ele com um mínimo de atenção. A Mosca não é um remake caça-níqueis, é uma outra versão do mesmo texto literário (não lembrando em nada o filme de 1958, aliás); também não se refestela nunca na gosma e na sujeira e no podre como uma maneira de chamar a atenção ou estilizar maneirismos estúpidos: é uma jornada de destruição, e claro que na putrefação física os detritos e chagas são abundantes; o rótulo de ficção científica — empregada aqui, pela ala detratora, como atributo pejorativo — também parece inadequado, sendo A Mosca um filme essencialmente romântico e dramático, uma saga de ambição e desespero, incrivelmente trágico, com uma moral encerrada no fundo de sua percepção da megalomania humana, com a eterna vontade que temos de usar a ciência para superar a natureza, sermos um pouco criaturas divinais. A Mosca está portanto longe do oportunismo, do amadorismo e do conservadorismo. É uma obra madura disfarçada sob a aparência de tolo entretenimento, e aí Cronenberg acerta na mosca. (Filipe Chamy)

Gêmeos — Mórbida Semelhança (1988)

Se as deformidades e transformações do corpo eram o leitmotiv da obra de Cronenberg até A Mosca, em Gêmeos — Mórbida Semelhança adentramos numa operação que desfacela esta regra e, por sua necessidade de encenação (fazer de um mesmo corpo, em tela, dois), concede à misè en scène do diretor um status cirúrgico — não sem propósito, é um filme que aproxima a ciência e a arte com certa frequência. Pois a consciência única dividida pelos gêmeos interpretados por Jeremy Irons permite a Cronenberg fazer uso de instrumentos próprios ao cinema (o corte, a angulação da câmera, o campo/contracampo) para nos cercar com um jogo de espelhos, partindo substancialmente de um mesmo e imutável corpo. Enquanto em Shivers, Rabid ou A Mosca as anomalias do corpo eram observadas frontalmente pela câmera, em Gêmeos essa mutação é originada justamente por ela, através de seus truques mais fundamentais, para dar à luz a ilusão da arte — e a arte não fora sempre, em sua gênese, uma grande ilusão? O corpo de Irons vela em si toda transgressão imagética deste filme de narrativa cristalina (como dito com frequência, o princípio do que se convencionou chamar de segunda fase da carreira de Cronenberg, dedicada ao estudo da mente humana e seus desvios), alternando personalidades a cada plano para fundir personagens que vivem alimentando-se uns dos outros — não apenas Bev e Elliot, mas todas as combinações geradas entre eles nas transformações físicas e verbais de Irons, que sustentam uma danação estimulada mutuamente e enlaçada à incompletude da outra metade, entregue a nós sempre com o retardo de um corte. Quando enquadrados frontalmente e imóveis num mesmo plano, com o rigor de uma pintura degenerada, Cronenberg reconduz o espectador à mórbida realidade da vida para lembrar que Bev e Shaw, ao final, não são nada além de matéria morta e inanimada; apenas mais um truque do cinema. Apagam-se as luzes e a ilusão tem fim. (Daniel Dalpizzolo)

Mistérios e Paixões (1991)

 

Cineastas do naipe de canadense David Cronenberg, com tantas obras-primas no currículo, não permitem que se possa aferir ou apontar com certeza absoluta qual trabalho que fizeram seria o melhor de todos. Mas, no caso, posso dizer que meu preferido dentre todos os que ele realizou é este Naked Lunch (o crítico norte-americano Jonathan Rosenbaum é outro que, salvo engano, o têm como favorito, mas curiosamente nunca foi um filme muito querido entre a crítica brasileira). Temos aqui um escritor frustrado que trabalha num emprego de merda, para quem não conhece, trata-se da história de Bill Lee (Peter Weller, de Robocop), um escritor junkie que trabalha como exterminador de baratas para poder pagar as contas. Porém, ele começa a correr grandes riscos de perder o emprego, ao ser acusado de desperdício do seu estoque de inseticida. O que acontece é que sua esposa, Joan (Judy Davis), esgota o material ingerindo-o como uma droga qualquer. Incentivado pela esposa, ele, que também já foi viciado, volta a usar da droga, o que faz com que dialogue com insetos falantes, que o incumbem de matar a mulher, o que ele acaba fazendo acidentalmente. Bill foge para um lugar estranho por onde é levado por suas alucinações, a Interzone, onde, munido de uma máquina de escrever que briga e se transforma em insetos gigantes, ele redige “relatórios” em que narra a seus “superiores” (os insetos) a vida dos nativos dos lugares, entre os quais, outros escritores obcecados por drogas, literatura e homossexualismo. Na verdade, Bill e esses outros escritores são agentes disfarçados que tentam descobrir o gerenciador local no tráfico de lacraias pretas brasileiras gigantes, que dão origem a uma droga de efeito ainda superior as demais. Não é preciso dizer que esse enredo de acontecimentos inacreditáveis e inenarráveis formam um universo surreal cheio de bizarrices, um delírio visual em que se sobressaem os insetos gigantes que mais parecem crustáceos, verdadeiras criaturas que se assemelham às que costumam povoar filmes de terror, mas que aqui fazem parte das “viagens” perpetradas pela mente psicodélica dos personagens quando sob efeito dos alucinógenos. O romance original do escritor beat William Burroughs foi publicado em 1959, e, desde sua estréia, considerado escandaloso. Muitos o julgavam intransponível para o cinema, até David Cronenberg encarar o desafio de levá-lo para as telas e filmá-lo na Inglaterra, Canadá e Japão, em 1991. De fato, a tarefa de transformar esse argumento em filme sem resvalar na mediocridade parecia ser uma tarefa das mais difíceis. Cronenberg superou todas as barreiras da transposição e criou um filme extraordinário. Ainda não li o romance, mas embora digam que Cronenberg tenha atenuado bastante o livro original, pode-se dizer que o canadense nunca levou suas bizarrices até as últimas consequências que nem em Naked Lunch. Em tempo: alguém tem dúvida de que William Burroughs, em seus delírios, escreveu esse livro na sublime companhia espiritual de Franz Kafka? Entre metamorfoses e mutações, a arte se recicla e se renova. Contar uma história dessas sem que o resultado se torne uma bobagem muito grande é mesmo coisa de gênio. (Vlademir Lazo)

M. Butterfly (1993)

M. Butterfly é um filme sobre a superfície da imagem. A ficção do corpo. O corpo é a peça-chave da filosofia misantropa cronenbergueana. O corpo que se transmuta, que se torna oculto, que resiste, disposto a domar a lógica das pulsões à sua volta, seja as violentas ou sexuais. Para quem ainda não viu o filme do diretor canadense, não se trata de uma adaptação da ópera Madame Butterfly, de Giacomo Puccini, mas da relação de Rene Gallimard, o personagem de Jeremy Irons, com uma interprete do papel-título em uma montagem da famosa ópera. A obsessão do primeiro pela imagem de Butterfly, cuja efígie é a materialização dos seus desejos, uma representação de algo próximo de um sonho (ou de um pesadelo), faz com que Gallimard persiga o seu adorado objeto de veneração por todos os lugares. Um grau de encantamento do qual não se quer acordar. Ao mesmo tempo, uma ambígua relação do exótico mundo da cultura chinesa com as perversões da burguesia ocidental (como define a personagem-título), que conduz a jogos políticos e a um intenso romance. Mas a trama aqui já não é mais apenas o que parece, ela revela-se um emaranhado de expressões faciais, de olhares, de gestos, de medos, de desejos, de frustrações, de expectativas. E o próprio Jeremy Irons, que nos acostumamos a ver vestido de modo impecável, com sua postura absolutamente contida e equilibrada, seus movimentos medidos, as palavras utilizadas de forma exata, com toda sua etiqueta aristocrática sendo posta em prática de forma exemplar, ao final não será mais o mesmo, depois de ser amado por uma mulher perfeita e após a visão de damas esbeltas com cheosan e quimonos, que morrem pelo amor de indignos demônios estrangeiros. Um filme sobre aparências, os enganos e a transitoriedade, as falsas percepções e certezas de um personagem inserido dentro de outra noção da realidade, como em tantas outras obras de David Cronenberg. (Vlademir Lazo)

Crash — Estranhos Prazeres (1996)

Antes que um filme sobre perversões sexuais, Crash é uma narrativa sobre valores contemporâneos: é consideravelmente moderna a percepção de que afinal nos mecanizamos cada vez mais, e este filme de Cronenberg trata dessa nova condição com impressionante exposição — os corpos, os movimentos, as penetrações na carne (e da carne) são retratados com brutal transparência, quase um sentido físico extra-tela, uma força mesmo aterrorizante. Mas não tanto quanto a que impulsiona as personagens do longa, que procuram nas cicatrizes, nos hematomas, colisões, sangue e feridas toda sorte de compensação por sua deficiência sentimental; quando as batidas de carros as excitam, é como se as máquinas lhes fossem armaduras com as quais resolvem finalmente entregar-se à luta, ou ao prazer. É portanto uma forma de decepção íntima que as anima a terem o gozo com a dor, pois na alegria é que elas sofrem mais. Então quando dois corpos se abraçam e se penetram, a cópula é antes uma exibição fria de poder e domínio que um ato humano de envolvimento. Se visto apressadamente, Crash parecerá a descrição de uma simples jornada de autodestruição inconsequente e fútil. Mas ainda que talvez seja também isso, há algo de mais profundo e tocante. E tocar nesse nervo doloroso é tarefa cumprida com êxito por Cronenberg, que, como tentam suas criaturas, é incansável manipulador de corpos e mentes. (Filipe Chamy)

eXistenZ (1999)

No final dos anos 90, Cronenberg já abandonara havia muito as mutações e deformações físicas extremas da primeira fase de sua carreira em favor de um universo em que a mente é a origem das atribulações do indivíduo, mas é apenas em eXistenZ que esse ponto de vista se concretiza da maneira mais radical até então. Antes, o personagem cronenberguiano via-se delimitado (em como percebia a si mesmo e se colocava no mundo) pelo seu próprio corpo, e só podia sair de sua passividade, com resultados violentos, via intervenções externas — parasitas, deformações, experimentos científicos malsucedidos —, mais tarde colocadas sob um frágil controle: o homem maquina sua própria mutação. Em eXistenZ, porém, isso tudo desaparece, porque o fora não existe mais. Tudo está no jogo, tudo está na mente. Suspeita-se até mesmo do próprio corpo, talvez apenas outra ficção, como toda a (aparência de) realidade que circunda os personagens. Certos elementos típicos da primeira fase dão as caras, como a bioporta na espinha e o gamepad, porém mais como despiste ou referência irônica ao universo mental do diretor, e preenchendo o papel de alívio cômico mais de uma vez; e deve-se destacar como, fora a própria bioporta, todas as mutações que vemos — o console orgânico vivo, os anfíbios mutantes — não são causadas nos próprios personagens, e sim na realidade/ficção mental pela qual se deslocam. Daqui em diante, o fantástico e a ficção-científica começarão a sumir do cinema de Cronenberg, conforme essa realidade que é criada e deformada obedecendo aos impulsos da mente passa a assumir formas cada vez mais “realistas” (delírios esquizofrênicos, mentiras contadas deliberadamente); e, embora eXistenZ adote uma postura de completa negação de que sequer haja um fora, nos filmes seguintes o mundo externo voltará a dar sinais de vida, apenas para ser ferozmente repelido. Porque a única coisa que pode sacudir os personagens da nova fase de Cronenberg de sua passividade é a mesma que tanto afligiu os anteriores: um assalto inesperado da realidade física. Em retrospecto, diante da situação dos protagonistas de eXistenZ quando o filme acaba, Seth Brundle não terminou, no final das contas, tão mal. (Robson Galluci)

Spider — Desafie Sua Mente (2002)

“Se o hábito faz o monge, quanto menos monge, mas hábito se faz necessário.”
Essa foi a primeira frase sobre Spider que me fez ligá-lo prontamente ao protagonista solitário de O Perfume, de Patrick Suskind. Ambos os personagens manejam com engenho algumas das faculdades mais humanas, ao passo que são absurdamente deficientes em serem propriamente humanos, e é isso que melhor os define. Em Suskind, um perfumista sofre por ter vindo ao mundo sem cheiro próprio. Em Spider, um homem esgota suas últimas forças, num tremendo esforço de memória, para reconstrução de um quebra-cabeça, até chegar a quem escondeu a peça que falta. Na minha trajetória com Cronenberg, Spider parece o monstro mais contido. Aliás, tudo ao redor serve apenas para ilustrar a contrição do personagem, em verdade, certo desmerecimento por tudo que pareça acessório em relação à sua obsessão dramática pela morte da mãe. Sempre me ocorre pensar que os ambientes entre cinza e tons pastéis denotem a falta de sangue (como signo de vida) nestas histórias de personagens que impregnam a cor do filme com a profundidade de suas questões. No jogo de substituição das personagens femininas, confesso, minha atenção perturbada se viu esfregar o olhos. Sofro ao pensar naquele personagem-aranha absorto na criação de sua própria rede mantendo assim as perspectivas turvas ao levantar a atenção de seu projeto. É fácil perder o fio da meada.. Aliás, para Spider não existe fora: tudo que importa/existe está de alguma forma abarcado por algum dos nós que ele foi deixando pelo caminho. Engraçado perceber a dor do protagonista ao não poder sair à rua com um mega novelo, e amarrar a cidade inteira. Acaba contentado em expor seus fluxos no quartinho apertado do sanatório. Complexo de Édipo? Na verdade a obsessão de Spider passa tanto pela morte da mãe, como pela criação da narrativa à qual precisará dar um final. Um homem perturbado que se isola na solidão da paranóia, criando intrincadas relações neurais, teias, para resolução do quebra cabeças. Aquilo que se esconde, ou aquilo que escondemos de nós mesmos? Quem nunca viu esse filme? (Geo Abreu)

Marcas da Violência (2005)

Marcas da Violência profana as escrituras e retifica o mito do assassínio original em página nova, onde Abel mata Caim, ganha o perdão no lugar do exílio e funda sobre seu corpo o edifício da sagrada família, misturando no mesmo barro o sangue inocente com o maligno. Porque há um mal atávico que sopra do Mediterrâneo no ouvido dos homens e contra o qual não vale a composição dos velhos testamentos, por isto Marcas da Violência é menos sobre a história das fundações e as fundações da História do que sobre o papel do perdão na manutenção do mundo; um perdão não ao indivíduo, mas à natureza e seu mistério, interregno rudimentar geradouro do bem e do mal, do pai e do assassino. Como quando Tom, aos pés do seu matador, é salvo por um tiro do filho. Sem saber o que esperar, se a reprimenda do pai ou dois tapas nas costas, ele permanece quieto, assustado, dando conta ainda do estranho quadro que lhe assalta os olhos (três corpos em torno do pai baleado), estes olhos prematuros jamais expostos a um certo mundo que rosna e espreita aos portões da cidadezinha. Tom levanta-se, tira das mãos adolescentes do filho a espingarda e o absolve com um abraço, gesto redentor do patriarca que tem o rosto manchado de sangue. Não importa que seus prodígios se extraviem, a violência acaba sempre por encontrar um caminho de volta, e é natural que se proceda no seio da família a esta esquize elementar: entre o filho puro e o corrompido, entre o pai e o estranho. Daí a beleza da composição de gestos na cena final. Restaurar a casa que tomba sem esquecer que em nossa pedra angular foi imolada uma criança. (Luis Henrique Boaventura)

Senhores do Crime (2007)

O início de Senhores do Crime parece saído de uma história de Dostoiévski. Em quatro minutos de filme, Cronenberg apresenta duas mortes. A primeira, um assassinato praticado por alguém que experimenta pela primeira vez a sensação de matar. A segunda, de uma adolescente grávida que busca socorro em uma farmácia, com o que parece ser uma hemorragia. Levada ao hospital, ela não resiste e morre um minuto antes do nascimento da filha. Ao encontrar o diário da garota, em meio a seus pertences, a enfermeira responsável pelo parto decide ir atrás da família para entregar o bebê. Através do diário, as histórias das duas mortes e da parteira se ligam a uma família russa mafiosa, que usa um restaurante de fachada para seus negócios. Falar mais que isso sobre a trama é estragar a experiência que o filme proporciona, antecipando as viradas de roteiro. Apesar de mergulhar no mundo da máfia russa, apresentando o código de tatuagens e rituais de aceitação, Cronenberg não faz um filme interessado em depor sobre o sistema (mesmo tendo detalhes cuidadosos na representação, como o uso de facas no lugar de armas de fogo, obedecendo aos códigos da Vory v Zakone, e o sotaque impecável de Viggo Mortensen – cuja atuação é um dos grandes trunfos do filme). O mérito do diretor está em utilizar o mundo de um chefe do crime, capaz de tratar com a mesma naturalidade seus negócios e uma panela de goulash no fogo, para compreender alguém que vive a violência como profissão. Descobrimos também que a violência, além de ser ação natural, é uma experiência pessoal, particular a cada indivíduo, mesmo em um grupo regido por normas de condutas que não permitem exceções (a instabilidade emocional de Kiril, personagem de Vincent Cassel, por exemplo, contrasta com a tranquilidade de Nikolai, o motorista de Viggo). Encontramos a assinatura de Cronenberg, cineasta legitimo do cinema de autor, especialmente na representação visual de como essa naturalidade é experimentada por aqueles que habitam o mundo da máfia. Cronenberg é o diretor que vai contra a corrente do discurso condenatório de todo e qualquer tipo de violência, interessado em investigar o que a gera. A eleição dos gêneros de horror, suspense, drama, que marcam sua filmografia, são apenas um meio para realizar a anatomia de uma das mais cruas emoções humanas. Senhores do crime é um ensaio sobre a proposição de que “cada pecado deixa uma marca” (frase do pôster de divulgação da produção). Sejam elas visíveis como as tatuagens de batismo de um grupo mafioso, ou daquelas que não se confessa nem às páginas de um diário. Quem não as carrega, que atire a primeira pedra. (Fernanda Canofre)

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Um Método Perigoso (David Cronenberg, 2011)

Por Luis Henrique Boaventura

A narrativa segundo David Cronenberg, embora envolta sempre desse classicismo anacrônico, transpira vez ou outra com o desconcerto, um solavanco gráfico ou rítmico — ecos do horror setentista americano, velha escola dessa geração — que desvia e constrange sua harmonia. Cronenberg desenvolveu durante muitos anos uma habilidade narrativa tão incomum, de filmar o choque e o absurdo com tão bem fingida indiferença, que seu cinema, aos olhares mais cansados ou impacientes, beira o inorgânico. Seus filmes mais recentes são mecanismos inexoráveis cuja precisão reclama o desarranjo, ordens forjadas para um arremate de distúrbio. Há, é claro, uma gradação no processo. Os terrores de início de carreira eram pensados não com vias a alcançar esse pico de desordem, mas a partir dele — o estado de caos que se devia solapar com uma intervenção pelo rearranjo, pela reparação. Calafrios e Enraivecida na Fúria do Sexo incursionavam logo numa vereda de gênero (terror, sci-fi) e procuravam ao longo da narrativa reencontrar um equilíbrio perdido antes mesmo de seu início, enquanto que em Videodrome e A Hora da Zona Morta essa perda de sanidade já era plenamente comportada pelo filme. A Mosca, por exemplo, desenvolve-se num insuspeito acorde de estabilidade para só então corromper-se com notas do cinema de horror e do sci-fi. Se Gêmeos talvez represente melhor o balanço dessas duas esferas de Cronenberg, sempre em fricção para mais tarde acomodarem-se numa única ideia de cinema, o princípio dessa virada seria pela primeira vez experimentado em M. Butterfly, filme despojado dessa necessidade do discurso para disparatar de repente e ruir o crescendo rímico da narrativa, deixando para si o prazer de largar-se no decurso da história. É M. Butterfly que aponta o caminho trilhado em definitivo a partir de Spider, filme de 2002, onde as quebras vorazes de rumo de suas obras anteriores definham-se em alvoroços passageiros, perturbando a vigência da ordem não mais para arrombar sua evolução, mas para trazer à superfície um atrito qualquer já previsto na cadeia dos seus movimentos.

Que Um Método Perigoso apareça neste momento, sucedendo Marcas da Violência e Senhores do Crime, é simplesmente poético. Marcas, ainda mais que Senhores do Crime, decompõe claramente a lógica do cinema de Cronenberg na última década: o tronco inconteste da trama atravessado de repente por um rompante de fúria. E essa calmaria da narrativa, que antes seguia seu curso sem distúrbio aparente até encontrar o evento-motor que a dobrasse sem quebrá-la (dois bandidos na lanchonete em Marcas da Violência, o recém-nascido em Senhores do Crime), assombra Um Método Perigoso em toda sua extensão, sem escape e sem respiro. A crítica mais recorrente a este novo filme tem sido a falta, exatamente, dessa tal (imaginária) centelha cronenbergniana que o deveria incendiar sem prévio aviso. Note-se que o cinema de Cronenberg, embora a respeito do qual muito se tenha dito quanto à paridade com o americano clássico, jamais poderia remontar à Old Hollywood enquanto conservasse estes raptos de razão (ainda que cada vez mais discretos, diegetizados). Um Método Perigoso, com tão evidenciada veia biográfica, por vezes documental em alguns subterfúgios (no voice-over, na força das elipses), jamais resiste (como corre o risco de parecer) ao impulso de tornar-se novo objeto de travessura auterista. A diferença talvez esteja numa minoração de frequência, na preferência pela implosão em detrimento do voraz rebentar de Crash, A Mosca e Gêmeos, do voo furtivo de Spider, Marcas e Senhores do Crime, porque Um Método Perigoso não é de modo algum um filme de exceção na carreira do diretor: Cronenberg continua sendo todo a respeito da matéria e das coisas do corpo.

Em Um Método Perigoso, Cronenberg declina de qualquer hermetismo gráfico (sempre apressadamente destacado quando analisam seus filmes) devolvendo a senda criativa à ordem da palavra — prensa seminal do mundo e da história — e à minúcia do corpo, do gesto, do poro. Há uma enorme crença na expressão pelo verbo e pelo corpo antes mesmo do que pela intervenção da câmera, o que é lindamente apropriado a uma narração que fia das relações (e da “talking cure”, afinal de contas) a urdidura de sua linguagem. A câmera em Um Método Perigoso não se furta nunca da ação, não usa o espaço do quadro para expressar uma mudança de lugar assim como não arrisca o movimento (ou mesmo a captação de um) como signo relevante. Mesmo a histeria de Sabina é reprimida a um mesmo quadrante da tela. Em vez do deslocamento de objetos há uma imobilidade e um preenchimento de espaços, uma cuidadosa disposição dos corpos pelo quadro — e mais especificamente de uma porção desses corpos. Um zelo à postura, à proporção, aos membros visíveis neste momento e exclusos no seguinte. Os rostos e os gestos em Um Método Perigoso servem de moldura à palavra, que por sua vez serve de moldura ao corpo. knightley, Fassbender e Mortensen (e Cassel, em menor proporção) raramente são pegos sozinhos pela câmera, em um momento de trânsito ou de silêncio. Os capítulos que as grandes elipses recortam são sempre de uma intensa interação entre eles, seja frente a frente, seja através das muitas cartas lidas em off. Há dois momentos capitais resolvidos inteiramente com a leitura de cartas em cena (como se, aos que reclamam de uma sobriedade incompatível com Cronenberg neste filme, ler em cena não fosse radical o suficiente), e isto porque é sempre a palavra que dirige a erosão das relações, que nos transfere de Viena a Zurique num corte e reposiciona os personagens em tempo/espaço, que os introduz e os varre do filme (como ocorre com o Otto Gross de Cassel). É a palavra que resgata prazeres trancados nos porões da memória para distorcer com eles a concórdia do corpo, reencarnando a milenar dicotomia corpo/mente em corpo/verbo (elemento de evocação, roda de materializar fantasmas).

Cronenberg trata da eclosão dos objetos do corpo e da porosidade dessa matéria disforme vazada sempre por uma pulsão mais cava do desejo, do sexo, do sonho, da lembrança — tudo chamado à tona pela fala. A vitória do impulso sobre a pele, como quis Freud, pano luzidio em que se projetam, furtivas, errantes na distração dos olhos, as aspirações de um velho trauma. Por isso Um Método Perigoso é o grande filme de atores na carreira de Cronenberg; não pela economia da mise-en-scène, mas pela densa assimilação que esta faz das faces distribuídas pelo plano. Como o brilho no olhar de Fassbender, revelado por um súbito ângulo oposto, quando Sabina fala da sua excitação para com as surras de seu pai na infância, e o retorno imediato da câmera ao corpo oblíquo dela, visto de costas desta vez, torto, feio, como uma criatura assim sem forma imediatamente apreensível. Ou o distúrbio no olhar de Mortensen quando Jung diz que se separaria dele ali pois ficaria na primeira classe do navio, e a pequena vingança de Freud ao negar dividir seu sonho com o pupilo para não pôr em risco sua “autoridade”. A todo momento é a palavra puxando coisas que o corpo, feito culpado de um crime, esforça-se em disfarçar.

É claro que a roda de acontecimentos dá razão a Freud, provando sua (assim chamada por Jung) “obsessão” pelo corpo e pelo sexo estar absolutamente correta. Jung não percebe que sua tendência pelo misticismo e sua noção de que a psicanálise deveria permitir ao ser humano mudar e reinventar-se é o que o leva a terminar se despedindo do grande amor de sua vida (em suas palavras) ali na beira daquele mesmo lago aonde viria a morrer 50 anos depois. A ilusão de Jung de um maravilhoso “território inexplorado” é a mesma que concebeu ser possível conciliar o desejo que a palavra flagrou com a negação ao que o corpo exigiu. A matéria tem demandas que a mente não consegue entender. E é quando Sabina o deixa que a câmera desfaz-se de sua posição ocupada durante o filme inteiro e avança num travelling violento, de uma tristeza com textura e com peso, na direção de um olhar preso à tranquilidade do lago. Com tudo já dito, a fala cessa finalmente, e tudo mais no mundo é o silêncio de quem espera.

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“Onde está o quadro?”

Por Luis Henrique Boaventura

Em determinada cena de O Homem Urso Timothy Treadwell deixa uma de suas câmeras sozinha sobre um tripé e some no fim de um caminho de terra. Neste momento (algo em torno de dez ou doze segundos) Herzog aproveita-se da ausência do autor das imagens e toma o quadro emprestado para uma breve anotação[1]. Herzog argumenta que, apesar do rigor e da paixão que colocava em suas filmagens, Treadwell parecia não haver notado a beleza espontânea e inconsciente de que se imbui a natureza quando vigiada de posições semissecretas. A marca da ausência humana (o ângulo pelo qual ele desaparece, ponto de fuga da imagem), na perspectiva de Herzog, desprende uma ênfase para outros filamentos da composição (folhas, poeira, uma garoa fosca) que se animam nas fronteiras do quadro (e para fora dele). É uma nota ao poder autofecundo da imagem, prescindível do caractere humano para significar e que a iguala de muitos modos à própria natureza, acusando a débil ilusão humana que concebe a existência da primeira pela gestação do ‘real’ no ventre do olhar. Inevitável (e deliciosa) contradição é que, para indicar essa autonomia da imagem, Herzog, como é recorrente em sua obra, tenha cedido à necessidade de violar os limites do quadro e marcar sua própria presença no filme, revogando tacitamente o que acabara de dizer.

Presencia-se aí o aguardado encontro de Herzog com o automaton que, não em razão da natureza em si, mas de seu recorte físico e temporal operado por um terceiro, cruza muito de seus filmes um pouco abaixo da superfície. Porque não há interstício possível entre os devires do tempo e a desordem que o olho projeta que não a miopia do próprio olho. Do momento em que a câmera é abandonada à absoluta ausência do componente humano — pouco interessa se por dez segundos ou dez anos — a vegetação passa a dotar-se de um arcaico encantamento (nunca estivemos ali, não há câmera, não há interferência: apenas eternidade) e é condenada a repetir-se infinitamente em suas variações invisíveis. Nem do rastro de bota na grama a lente parece dar conta porque as molduras do quadro se desfazem no lemniscate deste simples e assombroso movimento: um caule que se verga ao equilíbrio entre o vento e a gravidade. Se decompusermos esta imagem em fotogramas isolados (no topo da página), e se perfilarmos cada fotograma em relação ao seu subsequente, torna-se muito difícil para o olho humano flagrar diferenças. Pode até notar um espaço vazio de um lado e um subitamente ocupado de outro, mas não será capaz de identificá-las. A natureza não ostenta uma face[2], não há identidade a não ser a concebida pelo homem. Não há um elemento vivo que atravesse o quadro para este olho, preênsil de rostos e de signos, fisgar como seu referente; não há, como numa acepção mais clássica de cinema, o objeto tracejante que viaja de um ponto a outro, da esquerda para a direita, de cima para baixo, de dentro para fora. Não há o deslocamento; mas há, importante notar, o movimento (nada é estático apesar de o próprio quadro o ser). Um movimento que se desprende da paragem dos componentes que o quadro contém (e da própria câmera, acima de tudo) e se acomoda secretamente no verso do olho, sem despertar suspeitas nem sobressaltos, pois trata-se da surda e infinitesimal agitação da natureza: terna, intemporal, assustadora.

A oposição herzoguiana clássica (homem versus natureza) é central em um procedimento muito repetido pelo cineasta: a compulsiva imposição de si mesmo contra esta (em suas palavras) “overwhelming indifference of nature”, contra o “blank stare” que ele olha e que o olha ameaçadoramente de volta (tudo o que é olhado, como sabemos, retorna o olhar), não porque talvez haja uma intenção ou círio antigo de consciência que comande este olhar, pelo contrário, é a desolação que apavora. É aceitar a fortaleza imemorial do mundo onde a vida, tão exuberante em seus edifícios (a floresta amazônica, as montanhas bávaras, as cataratas de Kaieteur), talvez não seja mais do que um reino de insetos, como a casa que, abandonada à ação do tempo, torna-se dócil anfitriã de traças e morcegos.

É interessante Herzog reivindicar uma beleza inerente à natureza ao mesmo tempo em que acusa Treadwell de inocência por acreditar em seu “secret world of the bears”. Se o ponto de vista realmente cria o objeto, então é forçoso aceitar que a “amizade” de Treadwell com os ursos compartilha o mesmo princípio da crença de Herzog num valor intrínseco às coisas, e que o flerte de Treadwell com a morte encontra rara simbiose nas afrontas de Herzog à hostilidade do mundo (Aguirre, La Soufrière, Caminhando no Gelo…), pois é o modo que ambos encontraram para rebelarem-se: o pôr-se/impor-se em cena, o que não significa a procura por um lugar na Terra, mas a afirmação, convicta, de uma posição capaz de alterar a ordem viciada da vida.

A peregrinação narrada por Herzog em Caminhando no Gelo não é nem de longe carta de fé a alguma força superior, assim como a insurreição travessa de La Soufrière não é um sacrilégio; Herzog não acena aos deuses, prefere ir a seu encontro, do contrário, teria rezado por Lotte Eisner ao invés de enfrentar 22 dias de inverno europeu para “salvá-la”, ou teria blasfemado contra os ares à erupção do vulcão caribenho, como faz gente normal, em vez de marchar até o topo da montanha só para mijar no olho da cratera (a estatura do ato não autoriza brandura na linguagem). Nasce nesse prurido por um impacto, nessa volição sagrada para significar a si mesmo perante o caos imanente das coisas, a projeção que Herzog faz de si em seus personagens e, quando isto não for suficiente, o posicionamento em forma de voiceover ou até da própria presença física.

Está nessa imposição um vício inerente, que o define e o dirige, mas também uma virtude absolutamente rara e que o liga, para além da mera figuração autorista, a A Família de Filipe IV (Las Meninas)[3], o quadro assustador e indecifrável de Diego Velázquez. A colocação de si mesmo no quadro chama mais atenção para a figura do próprio observador do que de Velázquez. Seria o quadro todo um espelho, seria o espectador um espelho, ou seria o espelho ao fundo um quadro? Sua fé em suas próprias leis, leitor (ou então nas leis de perspectiva, depende do tipo de pessoa que você é), constituirá sua impressão particular tanto do quadro de Velázquez quanto dos de Herzog. No caso de encarar o quadro como espelho do universo (como se também não o fosse a própria arte), por extensão, é coerente aceitar que a força com que Velázquez coloca-se em sua obra joga ênfase para uma colocação do observador diante do quadro: Velázquez afiança toda sua existência e a de sua arte à suposição (ato de fé) de que haverá para ela um olhar que a reavive. O pintor se alforria de sua posição natural (de frente à cena) e infiltra-se no quadro (pondo-se em cena) não em razão de algum gesto leviano de vaidade, muito pelo contrário: o faz para chamar o espectador a substituí-lo. O mundo pintado pelo artista só passa a existir na tela porque um dia alguém prestou-se a pintá-lo, mas isto não é suficiente, é preciso que alguém se ponha também a observá-lo para que passe a existir realmente. O quadro em si não faz parte do inventário da natureza como faz a vegetação captada em O Homem Urso, portanto o tempo se encarregará de dar fim a ele, assim como aos filmes de Herzog. O que é humano não possui lugar entre os objetos da natureza (dentre eles o próprio corpo, que nos é emprestado). Toda arte, portanto, superada esta patética ilusão de eternidade que nos envaidece (a escritores, principalmente), é nada mais que a velha barganha (do modelo Kübler-Ross): a tentativa vã de avultar-se no relevo de entidades de que falamos muitas vezes (incluindo neste texto), mas que mal compreendemos: o mundo e o tempo.

A disposição de Velázquez entre os objetos do quadro é acima de tudo uma irrupção de si na e contra essa rede de filamentos desconectados que sustém o giro do tempo, um escrivão que reaproveita suas escrituras, que apaga os que um dia inventou anulando sem remorsos seu impacto no mundo. A luta do artista é essa saga contra o irremediável oblívio dos escritos da História. Como no caso de Velázquez, a imposição que Herzog promove, incursionando nas veredas da Terra com um exército de câmeras, luzes e aparatos, é tanto uma colocação de si no universo retratado quanto no âmbito do próprio retrato. Já faz quase uma década que Timothy Treadwell foi devorado por um urso numa reserva ambiental canadense, mas é seguro afirmar que, antes mesmo dele nascer e muito depois de ele ter morrido, os poucos segundos para os quais Herzog chama atenção em O Homem Urso, aqueles em que a natureza revela seu macabro mecanismo de autocorreção (o que outros por ocasião chamam “ciclo da vida”), repetiram-se e continuarão a se repetir indefinidamente sem registrarem qualquer sinal do homem que encantou-se com sua beleza nem daquele que a ignorou. Ao realizar este movimento estranho de digressão (sair da imagem ao caminhar para dentro da imagem), Treadwell representou com raro acerto a trajetória humana na Terra. Eis a imperturbável sincronia entre os caminhos do homem e os sumidouros do mundo.

“Às vezes tenho a sensação de que nada do que acontece acontece, porque nada acontece sem interrupção, nada perdura nem persevera nem se recorda incessantemente, e até a mais monótona e rotineira das existências vai se anulando e negando a si mesma em sua aparente repetição até que nada seja nada e ninguém seja ninguém que tenha sido antes, e a frágil roda do mundo é empurrada por desmemoriados que ouvem e veem e sabem o que não se diz nem sucede nem é cognoscível nem comprovável. […] e por isso estamos cheios de arrependimentos e de ocasiões perdidas, de confirmações e reafirmações e ocasiões aproveitadas, quando o certo é que nada se afirma e tudo se vai perder. Ou talvez não tenha havido nada”.
— Javier Marías, Coração tão branco

 


*”Onde está o quadro?” teria perguntado o escritor francês Théophile Gautier ao ver  “Las Meninas” no Museu do Prado.

[1] In his action movie mode, Treadwell probably did not realize that seemingly empty moments had a strange secret beauty. Sometimes images themselves developed their own life, their own mysterious stardom.

[2] What haunts me is that, in all the faces of all the bears that Treadwell ever filmed, I discover no kinship, no understanding, no mercy. I see only the overwhelming indifference of nature. To me, there is no such thing as a secret world of the bears and this blank stare speaks only of a half-bored interest in food.

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Wheel of Time (Werner Herzog, 2003)

Wheel of Time, documentário das cerimônias de iniciação budista em Bodh Gaya, na Índia, revela muito das vontades e motivações de Herzog diante de um projeto, ou o que o faz perseguir a realização de um. O ritual consiste basicamente em milhões de pessoas em peregrinação (algumas de joelhos, algumas se arrastando) para ver a “Roda do Tempo”, uma mandala feita de areia colorida por monges tibetanos. Não há, é claro, sentido na busca que não o de acalmar a velha inquietação humana diante ao que não conhece ou compreende, pois quanto falta o conhecimento e a compreensão, resta a fé, que é tudo e nada ao mesmo tempo. Herzog poderia muito bem fazer ficção do quintal de casa, mas a noção de câmera traz, para ele, uma ideia intrínseca de artefato desbravador, de compor iluminuras nos rodapés do mundo. O plano final, remontando a Fata Morgana, é senha do transtorno que mantém este arqueólogo na estrada, porque há mais mágica escondida no universo do que somos capazes de registrar. A fé em sua câmera, seu cajado, o leva de um ponto a outro da Terra na esperança de encontrar também lá uma nova roda do tempo. Algum evento breve e excepcional (Lições das Trevas, La Soufrière, O Diamante Branco) que deva ser colhido na palma da mão e guardado em um relicário.

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Invencível (Werner Herzog, 2001)

Por Luis Henrique Boaventura

Há um certo eco de Stroszek e Kaspar Hauser (Bruno S.) em Zishe Breitbart (Jouko Ahola), protagonista de Invencível. Os dois partilham da mesma inaptidão em relação ao meio e do mesmo olhar pasmado, de quem lê hieróglifos incompreensíveis, para com o mundo a sua volta. Talvez se poderia evocar também Woyzeck, mas prefiro que sua compleição explosiva (muito diferente da natureza de bicho acuado de Stroszek, Kaspar e Zishe) excluam-no do diagrama.

Bruno S. (23 anos internado em instituições para doentes mentais antes de virar artista de rua) e Jouko Ahola (finlandês ex-detentor do World’s Strongest Man) não eram atores de formação. Foram pinçados do mundo real por Herzog por serem, cada um à sua maneira, excepcionais. O estranhamento de ambos para com a câmera é propriedade imanente também de seus personagens e reflete, como quis Herzog, um constrangimento em relação ao próprio contexto, o diegético e o externo (da produção do filme), que transmite ao primeiro seus efeitos em processo recorrente no cinema de Herzog (ver texto sobre Fitzcarraldo).

Stroszeck/Kaspar e Zishe entram em conflito e fragmentam tudo com o que têm contato na nova sociedade, mais friável do que julgavam seus fundadores, para qual partem nos primeiros minutos de cada filme. A ignorância clarividente de Kaspar Hauser é um pouco como a força física de Zishe: um superpoder (um desvio), outorgando a seu portador a capacidade para feitos extraordinários. A primeira reação a o que é extraordinário, como se sabe, é a curiosidade, passando ao esgotamento do dom e à sua eventual transmutação para qualquer anormalidade de natureza circense, a partir do momento em que aquele interesse primeiro é perdido ou substituído pela necessidade de destruição do que está interferindo na padronização do meio. O percurso clássico dos heróis, dos gênios, dos déspotas e dos loucos messiânicos.

Mas Zishe, de Siegfried a Sansão, termina mesmo como Aquiles, o semideus morto pela flecha no calcanhar; todo-poderoso, coabitante do plano dos homens, divide com eles a vulnerabilidade diante de algo estupidamente mundano como uma infecção causada por metal enferrujado, porque assim é Herzog: a compostura fabulosa de seus mundos de repente soçobrada por um golpe de realidade.

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2000 Jahre Christentum: Christ and Demons in New Spain (Werner Herzog, 1999)

Por Luis Henrique Boaventura

Assistir a um documentário de Herzog narrado por outra pessoa (no caso, Donald Arthur) faz sentir uma falta imensa do próprio Herzog colocando-se em cena, ainda que sua visão esteja por demais evidente em mais de uma passagem. Mas Christ and Demons in New Spain não passa exatamente para a metade de cima da filmografia relevante do diretor. Trata-se de um episódio produzido para uma série de TV alemã referente aos dois mil anos do cristianismo, em que Herzog viaja à Guatemala para investigar o confronto entre as crenças astecas e a nova corrente imposta pelos conquistadores espanhóis. A configuração fragmentária do povo, sem muita identidade cultural apesar da rica cultura e sem convicção de espírito, está impressa nos rostos durante as paradas que Herzog presencia. Na passagem de uma imagem de Cristo, em especial. É um Cristo fantasma, convergente de um vazio que não se pode compensar, de um passado exangue e parricida, que Herzog vai até Antigua para descobrir. Não se sabe ao certo o quão profunda é a relação do povo com o cristianismo porque a presença de Cristo reverte-se imediatamente em ausência, em falta de memória de todo um povo deixado órfão da noite para o dia, e é numa pergunta aparentemente primária, “O que é Jesus para estas pessoas?”, prenhe de uma segunda questão ainda mais fundamental (“Quem somos?”), que Christ and Demons in New Spain encerra seu grande achado. Nada atenua a carência da própria história.

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The Transformation of the World into Music (Werner Herzog, 1996)

Por Luis Henrique Boaventura

Não passa pela cabeça inicialmente que The Transformation of the World into Music fora concebido como uma simples introdução a uma série de programas de ópera para a TV alemã. A vitalidade do documentário aponta um tema apaixonante para Herzog: não a ópera especificamente (com que o diretor mantém uma relação passional), mas o próprio ato de criação de algo, seja o que for. Herzog acompanha ensaios e montagem do espetáculo com a curiosidade de quem não dedicou uma vida inteira a fazer cinema. Um escrutínio para os artífices do concerto. É claro que é necessário algum interesse em ópera (ou em Wagner, que às vezes se basta sozinho enquanto figura) para fazer valer, em primeiro lugar, os 90 minutos de um documentário com linguagem purista, composto de câmera na mão e entrevista-sobre-entrevista, e em segundo lugar, para simplesmente encontrar o filme, raro demais até para os padrões do que é obscuro na filmografia de Herzog. Havendo disposição, The Transformation of the World into Music vale a pena. Há em especial uma pequena sequência, com a sobreposição de música sobre recortes de pinturas, que lembra demais o exercício de montagem de Alain Resnais em Guernica.

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Cobra Verde (Werner Herzog, 1987)

Por Luis Henrique Boaventura

“I think about a time when I will be relaxed.
When flames and non-specific passions wear themselves
away. And my eyes and hands and mind can turn
and soften, and my songs will be softer
and lightly weight the air.”
— Amiri Baraka

É claro que o ritmo que Herzog imprime ao prólogo de Cobra Verde (cantado por um repentista sertanejo, para se ter ideia da serenidade de que o filme parte) não condiz com a sobrevinda de Klaus Kinski à tela. Mas a ruptura é indispensável. O plano em questão abre num corte seco e com um close absurdo. Em seguida, a câmera inicia uma bela sequência de movimentos: vai paliar o choque do encontro num vagaroso recuo em zoom out, iniciar um giro sobre si mesma, rastrear o horizonte em busca de algum alento e reencontrar Kinski do outro lado, num elíptico 360. Nada se acha nesse intervalo, só mais poeira e sertão, num circuito que é, em escala, o mesmo percurso do traficante Cobra Verde. De bandido, peão, herói e general a bandido outra vez, sempre em fuga, sempre em desespero.

A obsessão de Cobra Verde em fugir do Nordeste (na forma de um sonho mais inocente: o de ver o mar, muito porque a ideia de mar é oponente exata à de sertão) o leva a cruzar o oceano, aonde, para sua surpresa, apesar da grandeza da expedição e da imensa distância, vem a encontrar uma terra tão seca quanto a sua, com negros tão negros quanto os seus. Não há possibilidade de fuga porque logo em sua primeira cena, de joelhos sob uma cruz de paus e envolto em ossadas de boi, Herzog o concebe como componente inapartável da paisagem. Cobra Verde é terra e tronco desse sertão, é escombro da raça aniquilada, ruína de uma gente que já teve sua chance. E no que se refere a isto de nada vale ir do leito de morte ao nascedouro, nem tentar retornar, porque a África e o Nordeste compartilham sua matéria-prima. A paridade da terra, do clima e da gente entre ambos aponta para dois gêmeos há muito separados e esquecidos um do outro, religados mais tarde, pelo homem branco, em horrenda transfusão.

As hordas de negros que cantam em uma praia em Gana parecem ecoar a voz do escravo que delas se desprendeu, aquele que reclama ao senhor de engenho sua orfandade irreparável nas bases de um tronco em Pernambuco. Há aí um diálogo inaudível, gritos que se lançam e caem ao mar antes de encontrarem um ao outro no meio do caminho. E é irônico que Herzog, ao narrar a história do maior traficante de escravos do Brasil, confira a ele a ternura da esperança, da saudade e do desengano, três turning points capitais (nessa ordem) da aventura do africano em direção ao brilhante Novo Continente. É por isto que o tom de derradeiro repouso (de retorno pacífico para casa, ou seja, para a terra) nos versos de Amiri Baraka (militante da dessegregação, ensaísta da escravatura, dramaturgo dos navios negreiros) serve menos ao povo torturado e escravizado do que ao próprio Cobra Verde.

Esse desejo de voltar sempre, que é perene, é intranquilo de natureza e inerente ao ser humano, dá origem a uma cena final que é o duplo exato de retorno/repouso que os esforços de Cobra Verde miram desprovidos de decisão, apenas instinto. A três passos do mar, o derrotado aventureiro não consegue mover o bote até a água (é pesado demais). Meio-vivo, ele se projeta em falso contra a areia da praia. Sem outra opção que não a de retroceder pela primeira vez em vida, Cobra Verde resgata uma energia primeva e desconhecida, puxa as cordas do bote como se a fim de reatá-lo puxasse todo o continente, e cedendo enfim ao cansaço, tomba na água feito um corpo baleado somente para encontrar na precipitação da queda um último vestígio de vínculo neste oceano do exílio: a luminosa, de brilho impossível, de natureza absurda e fabular, a por tanto tempo sonhada água do mar. Tão salgada e quente quanto a terra e a sede no Sertão.

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Fitzcarraldo (Werner Herzog, 1982)

Por Luis Henrique Boaventura

A falta de distinção entre o que é ficção e o que é documentário é uma constante em Herzog. Parece não ter havido, como ocorre eventualmente a todo cineasta, a esquize que permite ao olho separar a encenação do que apenas está em cena. Como resultado, esta “falha” congênita sempre fará de seus filmes peças rudes, impuras, onde o documentário é contaminado pela orientação do documentarista (muito além do que é inerente ao gênero) e a ficção é atravessada pelo extradiegético, onde a frieza de um Stroszek afilia-se muito mais a componentes do mundo físico do que Wheel of Time ou O Diamante Branco, arquivos de uma realidade mística e carregada de ideologia. Não ser capaz de enxergar esta linha pode afastar alguns, mas é exatamente o que faz de Herzog não apenas um artista único mas, acima de tudo, um documentarista fidelíssimo do seu tempo (afinal não é a própria realidade fantástica em seus preceitos?).

Fitzcarraldo, o filme em que essa acepção é mais evidente, acaba sempre e de muitos modos narrando sua própria história porque o objeto de sua narrativa é ele mesmo. O discurso em si e a produção deste discurso, em dependência do ponto de vista, são um o fantasma da imagem do outro. A todo o momento a ficção (história da saga do Fitzcarraldo-personagem) parece espelhada por um segundo filme (referente à feitura do próprio Fitzcarraldo); ambos vigiam a mesma ação, dividem atores e cenário, documentam a loucura e a obsessão humanas até que o segundo, no ponto de convergência entre ambos (o arraste do navio morro acima), ergue-se e devora seu duplo diegético.

Se Herzog, um fetichista da realidade, um dedicado inventariante dos objetos da natureza, deu de frente com a Paramount para efetivamente realizar a travessia pela montanha (opondo-se a o que lhe propuseram: uma ordinária mentira de estúdio), foi porque sabia que a mise-en-scène de Fitzcarraldo seria cosida antes pelos objetos, corpos e espaços achados em cena (porque assim está inscrito no espírito do desbravador-documentarista), depois na montagem, panorama em que a posição e comportamento da câmera se veem — se não diminuídos — subordinados a uma organização outra (um organismo), porque também ela é feita refém do que encontrar, privada do controle absoluto que os cânones prescrevem à figura do diretor.

Irmana-se do real e seus dejetos, suas reentrâncias, suas barreiras, a substância do imaginário. Herzog e Fitzcarraldo (o homem), doppelgängers em seus respectivos mundos, contrabandeiam a dureza da ficção para a realidade e da realidade para a ficção num circuito que é franco e translúcido. A marcha do cineasta, tal qual a marcha do personagem, trata de reaproximar universos que em verdade nunca estiveram separados apesar da aplicada disciplina legada do cinema clássico em disfarçar o mundo externo, presumido em cada imediação dos quadros num intercâmbio há muito reprimido. Em Fitzcarraldo, pelo contrário, há esta licença sem expiração que só Herzog parece possuir e que lhe concede trânsito irrestrito entre filme e sua produção, um contexto inédito em que o extracampo é livre para arriscar voos para o que está em cena e o que está em cena para empreender fugas para detrás da câmera, permitindo a um que redefina o outro.

Concebido assim, como documentação da própria insanidade (da impossibilidade aparente de realizar um épico total), Fitzcarraldo dribla prescrições que fundam na ilusão (na encenação) as bases do que define o cinema enquanto arte, expulsando-o para outro rol, não nomeado ainda, dos filmes que se alimentam de si mesmos, que fazem do próprio tour de force o objeto central de sua narração. Fitzcarraldo é o uróboro em método e argumento.

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Joey e o carrossel

É incrível que o senhor seja um adulto”. Assim é dito a Lawrence Woolsey (John Goodman), um falido produtor de cinema B de terror nos anos 60, post-mortem da velha e etérea Hollywood, logo ao final de Matinée – Uma Sessão Muito Louca. E é pouco considerando que Woolsey literalmente põe abaixo o cinema da première do seu filme apenas para que o público tenha a impressão, em plena crise nuclear cubana, de que uma bomba atômica foi lançada sobre a cidade. Tudo porque, justifica ele, “as pessoas já não se assustam como antigamente”.

Importante verificar que Woolsey não é um nostálgico, não perde seu tempo lamentando o olhar viciado do público que já não se inspira com os velhos truques; não pela aquisição de uma consciência de seu lugar e de seu tempo que poderiam justificar uma tentativa de adaptação ou um retirar-se solene do caminho já tantas vezes encenado no cinema (em O Leopardo, em O Homem do Oeste, em Pelo Amor e Pela Morte). Pelo contrário, o velho produtor jamais dá sinais de que compreende a urgência da sua posição nem sua transitoriedade fadária. Não há espaço para saudade (arabesco cafona, incabível em Joe Dante) porque Woosley parece ignorar que o cinema que ele ama deu lugar a outro na fila de preferência das plateias; parece desconhecer o estado crítico da sua arte, interpretando-o talvez como uma etapa a mais na evolução do gênero. Aninhado nessa ignorância, é lógico, tudo é alegria; toda celebração é uma ode à teatralidade. Fica claro, ao transformar os corredores do cinema em seu picadeiro particular, que Woolsey se diverte mais que qualquer um em seu próprio espetáculo, ignorando a verdade do perigo como um desenho animado ignora a gravidade. A farsa, blindada contra as leis mais impassíveis deste mundo, é sempre mais aprazível que qualquer realidade.

Apesar de ser um dos filmes mais fracos do diretor, Matineé diz muito sobre as leis que regem o universo particular de Joe Dante, não muito diferentes das que operam em um Papa-Léguas & Coiote. Como Lawrence Woolsey, Dante é uma criança imprudente que tem por grande pretensão o mais barato entretenimento e como veículo o cinema que tanto ama sem se dar conta de que talvez as audiências já não compactuem com o seu entendimento sobre o que, afinal, um “filme” deveria ser. A quem assiste, Dante parece mais um mímico que acredita piamente na existência do seu brinquedo invisível. Para que o público consiga compartilhar dessa loucura é preciso crença cega no absurdo da ideia, é preciso mergulhar no caracol de mecanismos simplistas que ornamentam seu cinema e se deixar invadir por um ímpeto que a mente adulta há muito suprimiu.

Joe Dante começou no horror e encontrou casa no cinema oitentista de aventura, mas apesar da superficial disparidade, a dinâmica que move um Piranha e um Looney Tunes – De Volta à Ação é exatamente a mesma. Na última cena de Piranha, dois personagens conversam sobre a possibilidade apocalíptica de as super piranhas modificadas pelo exército chegarem ao oceano. Barbara Steele, musa de Mario Bava e Anthonio Margheriti, rechaça a ideia para, em seguida, sorrir e olhar no olho do espectador, diretamente para a câmera, que corta para um plano do mar toscamente eclipsado por um filtro vermelho. Desde o início, Dante abraça suas referências e não as larga, mas ao contrário do que ocorre com um Quentin Tarantino, esse amor não se traduz em condutor para o processamento de uma grafia própria, nem reclama para si a necessidade de ser explicitado. Dante não se define por sua “bibliografia”, ainda que a carregue consigo o tempo inteiro. Seu cinema é quase sempre uma releitura escrachada de gêneros e seus saturados artifícios, mas que nunca usurpa de um Tubarão sua tessitura mais simples nem do matinê seu zeitgeist, passando ao largo de um mero decalque sôfrego que comete falsidade ideológica ao se fazer passar por quem não é ou assumindo pretensa homenagem para colar pretexto que acoberte sua anemia de estilo.

Quando ainda estudante, feito um moleque que completa um álbum de figurinhas, Dante compilou trailers, clips, comerciais de TV e até vídeos institucionais do Governo num monstro de 7 horas de duração chamado The Movie Orgy, produto que claramente deve mais à obsessão adolescente, prurido de um fãzóide que precisa externar o que já não cabe numa ideia de entretenimento para si mesmo (é preciso também entreter, é preciso causar impacto no mundo), do que ao próprio ócio puro e simples. Referências a Vampiros de Almas e a Guerra dos Mundos pipocam por toda sua filmografia, personagens da era Jones da Warner Bros. se multiplicam a todo o momento no canto de um quadro ou através de uma vitrine, isto fora minha certeza (da qual não tenho prova, só uma doida vontade de confissão) de que Dante usou seu Matinée apenas como pretexto para poder filmar Mant (há uma versão contínua que pode ser encontrada no Youtube), a horrível história de um homem transformado em formiga gigante que aterroriza Nova York. O marasmo de Matinée parece denunciar a má vontade com que Dante encara esse cinema mais “normal” diante da notável riqueza de detalhes e do ritmo fervilhante de Mant, seu mimado filme B.

A linguagem particular de Joe Dante se constitui através de um fanatismo que, de tão substancial, de tão homogêneo, não pode ser aplicado a um nome ou mesmo a todo um gênero, dissipando-se antes no verso do próprio ato de encenação. A Dante interessa antes o fascínio do cinema do que o cinema em si, antes o fascínio do horror do que o próprio horror. Tome o mecanismo de tensão em Piranha: basta um homem na água para Dante encenar a força que é suficiente ao filme, e basta que a água fique vermelha para que haja clímax. O gatilho do horror é tão somente um corpo em cena.

Em Grito de Horror é à ferramenta e não a seu propósito que a câmera se atém quando passeia os olhos sobre os detalhes da transformação do lobisomem, prendendo o público no deleite de cada garra e cada dente que viceja no bicho lentamente, porque o fascínio sobre o que aquelas armas podem causar não é algo a ser correspondido. A imagem implica o que não lhe interessa expor. É somente no circuito interno do momento, de vagar, antecipando um ataque que nem sabemos se vai acontecer (porque não importa), que se pode observar com toda calma e com todo medo possível (represado na paralisia da personagem, versão diegética para a fascinação do cineasta) os caninos do monstro, signos desse horror que o filme empenha, já que toda cena em que são acionados é rápida e turva como um golpe. Se a morte é rápida demais para ser apreendida, passa a interessar o seu ensaio.

A fruição do próprio fazer supera em muito o seu objetivo. É claro que todo cineasta enseja primeiro o prazer em filmar, mas há talvez um equilíbrio aí presente (em usar deste prazer como liga de construção, não como fim em si) que se corrompe. Dante é aquela criança que passa o dia montando e remontando um castelo de areia, ou uma ferrovia, ou uma cidade em miniatura, porque quando esta cidade ficar pronta, a diversão terminará. O propósito que se persegue, quando atingido, extingue o próprio motivo de sua existência. A diferença para todos os outros diretores de sua geração, seu maior defeito e sua maior virtude, é que Dante jamais se permitiu a esta descoberta. É até hoje o mais inconsequente e juvenil dos cineastas oitentistas americanos. Assistir a O Buraco 3D, seu último filme, é se deparar aqui com esta ambígua revelação: Dante não cresceu nada em um espaço de 30 anos. O deboche de um Gremlins é o mesmo que reverbera com força em Homecoming The Screwfly Solution, seus dois médias para a série Masters of Horror. Assim como em Piranha, em O Buraco 3D é o objeto antes de sua execução, é o cinema como pequeno parque de diversões, um brinquedo que só entretém enquanto imitar a simplicidade alegre de um pião, carente apenas de um primeiro impulso para embalar-se sobre si mesmo.

Tudo responde a essa recreação própria do olhar. Para Dante, fazer cinema é brincar de trenzinho, rodando num ciclo infinito que se regozija a cada volta. Como ocorre em Viagem ao Mundo dos Sonhos (de longe seu pior filme), onde três crianças montam uma nave espacial com sucata e rumam ao desconhecido em busca dos mistérios do universo. Quando chegam, descobrem que os alienígenas, supostos guardiões destes segredos, são também apenas crianças — crianças fanáticas por filmes e televisão. Dante entende que é mais divertido se o destino final dessa viagem for também seu ponto de partida, onde se encontra a mesma perspectiva infantil que se deixou para trás, porque então se pode começar tudo outra vez.

É assim que as animações de Chuck Jones e o cinema B de Roger Corman coexistem ao longo de toda a carreira de Dante, como iconografias que se amalgamam sob um ponto de ebulição em comum: o olhar infantil, que vê a tudo — de PernalongaFrankenstein — pelo mesmo prisma de entretenimento. O estranho cosmos que Dante habita parece mais uma combinação desses dois universos, de lápis de colorir e fumaça cenográfica. Há os extremos para um lado (Piranha e Grito de Horror), os extremos para outro (Looney TunesViagem Insólita), e as áreas de choque entre ambos. O humor de Gremlins e principalmente o de sua sequência (Gremlins 2 – A Nova Geração) é muito antes o humor do desenho animado que do terror, porque o horror do filme permanece sempre iluminado pela óptica do artifício, sem jamais incorrer na quebra de encanto de tentar atingir seu fim canônico.

O ponto confluente de todo esse aparato referencial é sem dúvida Meus Vizinhos São um Terror, onde Dante escreve a fórmula-mestra do seu cinema: crianças em corpos de adultos que passam as tardes brincando de mansão mal-assombrada. O tempo inteiro é o fascínio do desconhecido, da expectativa infantil sempre capaz de enfeitiçar a realidade que toca, estabelecendo com sorte um motivo a mais para apertar a campainha e sair correndo. Já pouco importa se de fato os vizinhos possuem uma coleção de ossos no porão desde que esta suspeita baste para esquecer a modorra de uma rua sem saída, ajudando a vencer o tédio nem que seja preciso reinventar a rua inteira. É também o que basta a Joe Dante: insistir na brincadeira, na invenção de um horror que não exige se constituir em algum momento. Não se trata de sentir medo realmente, mas de encená-lo, ainda que sua origem seja por todos sabidamente fingida.

É esse medo o protagonista de O Buraco 3D. No filme, dois irmãos encontram no porão de casa um buraco assustador que parece libertar fantasmas e dar vida a objetos inanimados, oportunidade para Dante reviver os truques mais rasteiros do horror sobrenatural, de referenciar a si mesmo (em Grito de Horror), a Halloween – Noite de TerrorA Hora do Pesadelo e até Brinquedo Assassino. Mais tarde, descobrimos que as aparições no tal buraco eram manifestações do que cada um mais secretamente temia, porque é exatamente assim que o medo de um porão sombrio ou de uma velha mansão funciona, exigindo à imaginação que forje o cenário e engane olhos e ouvidos.

A escuridão é uma folha em branco. É nesse vazio entre o fascínio da ignorância e o fascínio da descoberta que se inscreve toda a mise-en-scène de Joe Dante, captada assim como um friozinho na espinha, uma história de acampamento. Dante não percorrerá jamais o caminho de Sam Raimi, de Steven Spielberg ou de Peter Jackson; está fadado a ser sempre o mesmo moleque que não vê os velhos carrinhos perderem a graça, despedindo-se aos poucos dos tapetes da sala para ocuparem o topo esquecido das estantes. É por isso que Joe está igual em Piranha, igual em Pequenos Guerreiros e igual em O Buraco 3D, porque assim como Woolsey, o produtor falido de Matinée, ele acredita tão cegamente em sua perenidade que seu cinema termina por contagiar-se com um sopro de eternidade que, se não verdadeira, cristaliza no anverso do filme uma holografia, uma marca de permanência, esta sim inexaurível combatente da teleologia a que os cineastas eventualmente se rendem, convertendo vício em círculo virtuoso.

Dante, como a criança que só sabe da morte por ouvir falar, sequer suspeita da estrutura linear do tempo, celebrando cada filme como uma nova volta no trilho ensimesmado que é seu cinema, vivendo-o sem a vaga ideia de que existe uma evolução possível e, portanto, um fim inevitável. Nesse cosmo próprio, âmbar reanimado com nova vida pela fé indiferente aos fatos do mundo, seu cinema flutuará, sem massa ou densidade, invulnerável à ação da gravidade ou à impiedade dos anos. Cada novo rodopio de Dante nesse brinquedo parece suspender-se no mesmo espaço imaterial de tempo: entre o arrepio do breu repentino e o alívio no acender da lâmpada.

*versão de artigo originalmente publicado no Cineplayers, jul/2011.

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