Detona Ralph (Rich Moore, 2012)

Por Murilo Lopes

Um dos fenômenos mais divertidos da era pós-banda larga (absolutamente em minha opinião, claro) tem sido a “legalização social” dos video-games. Explico: durante a década de 90 era muito legal jogar, claro, mas ainda era uma atividade um tanto quanto destinada aos pré-adolescentes sem grandes aptidões físicas para o futebol ou algum outro esporte qualquer. Se você jogava Super Mario World no final de semana com seus primos, tudo bem. Agora, se você passava o contraturno da escola apenas na frente do Super Nintendo… bem, alguma coisa não estava muito certa. Enfim… o ponto é que essa geração de “nerds” cresceu e, de alguma forma, se organizou na internet e descobriu que eram muito mais numerosos do que parecia inicialmente. A partir daí, cria-se o cenário no qual o mundo da diversão eletrônica se torna um negócio altamente rentável e em constante expansão E evolução. As pessoas abraçaram o video-game e hoje já dá para sair às ruas usando uma camiseta do Donkey Kong e falar, com lágrimas nos olhos, sobre a imensa nostalgia de tempos em que as coisas eram mais simples.

Quando soube do lançamento da animação Detona Ralph, de Rich Moore, o que eu esperava era, mais ou menos, isso que escrevi no primeiro parágrafo. Um “filme de video-game”, cheio de referências a clássicos e falas espertinhas que levariam hordas de marmanjos às salas de cinema para ficar apontando para a tela e encontrando menções a seus personagens preferidos. Um negócio meio parecido com filme de Pokémon, onde parece que o papel da pimpolhada é proferir, em voz alta, o nome de cada um dos monstrinhos a cada aparição deles na tela. No final das contas, eu não estava errado. Em suas quase duas horas, Detona Ralph desfila toneladas de referências aos mais variados games e estilos. Algumas inspiradíssimas, outras sutis, outras escancaradas. Neste sentido, o filme serve, sim, como fonte para o espectador colecionar as tais referências e mostrar que “manja tudo de video-game”. Mas ainda bem que o filme não é só isso.

A trama gira em torno de Ralph, o vilão de um antigo jogo de fliperama. Cansado de ser o “cara mau” e acabar derrotado pelo protagonista do jogo (Conserta-Felix), Ralph decide dar uma guinada em sua vida e ser um herói, pelo menos uma vez. A busca de Ralph o leva, então, a migrar para outros jogos, até acabar caindo em um game de corrida que acontece em um mundo feito de doces. Neste jogo, ele conhece Vanellope, uma garotinha que é um bug do game de corrida. Os dois párias, então, se aliam para tentar vencer a grande corrida classificatória que definirá o grid de largada da próxima prova. Detona Ralph é um filme dinâmico e esse é um dos pontos em que mais o admiro, enquanto filme de animação: contando com um grande número de personagens, o roteiro mostra grande habilidade em lidar com mais de um “núcleo de ação”. Ao invés de se focar somente na aventura de Ralph, o filme ganha dimensão ao aproveitar a pluralidade de personagens e ilustrar o mundo do fliperama e sua diversidade. Desta forma, além de Ralph e Vanellope, ainda acompanhamos Felix, o antagonista de Ralph, se aliando com a soldado Calhoun a fim de encontrar Ralph e evitar que ele “vire turbo” (um termo que o filme mantém inexplicado de forma acertada até o momento em que ele se faz realmente necessário), e, ainda, pequenas histórias paralelas, como a do Rei Doce e de outros personagens menores.

Com anos de experiência como diretor de séries animadas, Rich Moore desenha o universo de Detona Ralph de maneira a não ser, meramente, uma homenagem ao mundo dos games, mas sim um filme que acontece dentro deste mundo e que tem, sim, potencial para agradar públicos diferentes.

FacebookTwitter

Cosmópolis (David Cronenberg, 2012)

Por Fernanda Canofre

Uma limusine circula pelas ruas de Nova York. Dentro dela, Shiner (Jay Baruchel), corretor que trabalha para um bilionário de 28 anos, diz ao patrão: “Às vezes, você não se sente perdido quanto ao que fazer?”. O assunto era o tempo (e a vida) que se gasta correndo atrás de coisas que, no fim, parecem não ter sentido nenhum. A cena inicial de Cosmópolis¸ filme de David Cronenberg baseado no livro homônimo de Don DeLillo, dá o tom para a odisseia de um bilionário de Wall Street em busca de um corte de cabelo. O problema é que esse não é o melhor dia para atravessar a cidade por causa de um horário no barbeiro. Para começar, o esquema de segurança e os movimentos de protesto causados pela visita do presidente dos Estados Unidos à cidade transformaram o trânsito em um caos. O funeral de um famoso rapper muçulmano só piora a situação. Definitivamente, não é um bom dia para quem quer chegar a algum lugar a bordo de um carro de 9 metros de comprimento. O bilionário em questão, Eric Packer (Robert Pattinson), não quer perder tempo. A caminho do barbeiro, ele tenta jogar com todos os assuntos a serem resolvidos em sua vida. Entre eles, está o seu casamento com a herdeira de um império bilionário (Sarah Gadon), que, apesar de recente, já vive em crise. Packer desembarca do carro algumas vezes para ir atrás da frígida esposa. Em um dos encontros, ela nota pela primeira vez que os olhos do marido são azuis; em outro, ele descobre que ela fuma. Ambos não se conhecem, e Packer está sempre tentando desesperadamente criar uma conexão com a mulher. O sexo que ele não tem com a esposa, consegue através de mulheres que estão em sua folha de pagamento. Uma delas é sua consultora de arte (Juliette Binoche), que além de conselhos sobre leilões de obras de arte para aumentar a coleção do bilionário, entrega-lhe pequenas pérolas de filosofia barata. Uma mulher que passou dos quarenta anos, ela se sente tão perdida quanto o jovem corretor do início e diagnostica seu problema: “A vida é muito contemporânea”. A outra ligação sexual de Packer é sua personal trainer, com quem ele resume a série de exercícios a uma cama de hotel. Dos encontros em seu carro, há tempo reservado para um exame de próstata (que ocorre enquanto ele trata da crise da moeda japonesa com uma funcionária) e uma discussão ideológica com uma filósofa (Samantha Morton) que, embora tenha toda a questão socioeconômica do mundo teorizada, não tem ideia do que fazer com sua teoria e parece entediada com quem parte para ação.

O Capital e outras coisas

Quando DeLillo escreveu Cosmópolis, a crise financeira mundial, que se iniciou com o colapso da bolha imobiliária americana, ainda não havia ocorrido e movimentos sociais da geração 2.0, como Occupy Wall Street e os Indignados europeus, não existiam nem no coração do mais utópico pensador político. Talvez por isso, o filme de Cronenberg, situado em um futuro próximo, tenha sido prematuramente classificado como “ficção científica”. Se fosse ficção científica, Cosmópolis estaria na categoria das obras proféticas, como 1984, de George Orwell, com uma ressalva: se a obra de Orwell levou algumas décadas para ter um correspondente real, a de DeLillo caiu em alguma dobra temporal que acelerou o processo. O fim de uma era da sociedade como a conhecemos e do homem pertencente a esta é o nosso agora, basta abrir as páginas de qualquer jornal. Mais interessante ainda é o fato de o filme ter como produtora uma empresa portuguesa, pertencente a um dos países que mais sofre com a crise da Europa. A produção do longa foi o primeiro projeto milionário da Alfama, de Paulo Branco. Eric Packer é parte do 1% da população privilegiada, e vive em torno do capital virtual (“cibercapital”) e sua movimentação pelas bolsas financeiras de todo o planeta. O 1% que os membros dos 99% (de Wall Street e das praças ocupadas na Europa em crise) acusavam pelo colapso da sociedade em seus cartazes de protesto. Cronenberg soube incorporar os elementos contemporâneos ao filme de uma forma que nos deixa sem ter certeza se Packer está mesmo a viver em um tempo diferente do nosso. E toda a mudança, todo o esforço que ele aplica para evitar a evasão de sua fortuna, continua sem dar resposta alguma a sua vida. O jovem bilionário continua em busca de algo que nem ele sabe nomear o que é. Na conversa com sua consultora de arte, Packer insiste que quer comprar uma capela criada por um famoso artista europeu. A consultora avisa que a capela não está à venda, que não foi criada com propósito comercial. Ela foi pensada para estar aberta a visitação pública e não para uso restrito de apenas uma pessoa. O bilionário insiste, diz que paga o que for, mas que quer a capela inteira em sua cobertura. Packer não é religioso, mas a capela parece guardar em seu altar algo que ele ainda não conseguiu conhecer na vida. Se pela experiência ele não consegue ter acesso a essa emoção, está disposto a usar a única via que conhece para consegui-la: o dinheiro. Packer entende os mecanismos por onde circula o dinheiro, as estruturas do que sustenta o poder em seu mundo, no entanto, nenhum conhecimento é capaz de ligá-lo a algo que tenha sentido. A cena do presidente do FMI sendo assassinado ao vivo na televisão japonesa (puro Cronenberg!) não o choca, o protesto de um homem que ateia fogo a si mesmo, desperta apenas sua curiosidade, sobre como deve ser ficar ali, queimando e sentindo toda a dor até o fim. O único momento que traz um abalo emocional é a morte do rapper Brother Fez. Packer diz estar triste porque ouvia as músicas dele em seu elevador particular, mas sua tristeza parece vir de outra raiz, também ligada ao vazio que ele busca em vão preencher. Fez morreu de causas naturais, devido a um problema de coração que ele tratava há alguns anos. Não foi uma ideologia, uma luta, um protesto que o levou. Morreu como morrem a maioria dos investidores de Wall Street e das pessoas que batem cartão de ponto em escritórios comuns mundo afora.

Cronenberg sobre Cronenberg

No livro Cronenberg on Cronenberg, o diretor revelou que sempre teve preocupação de encontrar coesão para sua obra. Disse que ao olhar para a filmografia de diretores que eram reconhecidos como autores, desejava ter aquilo que eles tinham: uma marca que legitimasse sua autoria nas produções. No entanto, quando alcançou este status, ele reconheceu ter passado a conviver com a apreensão de corresponder às expectativas do público quanto ao próximo filme, de manter a continuidade desta “autoria”. Coisa que ele consegue em Cosmópolis. A representação da violência subjetiva praticada pela imprensa, os detalhes de um cenário futurista que leva ao suspense, o sexo como forma de encontrar legitimidade com o mundo concreto, o ligação de um indivíduo com os outros seres humanos através dos fatores sensoriais (aqui, a referência constante ao cheiro), todas são marcas autênticas do cinema de Cronenberg que voltamos a encontrar em Cosmópolis. No entanto, a apreensão confessada por ele também repercute de alguma forma aqui. Ao contrário do que disse a crítica francesa, Cosmópolis não pode ser acusado de verborrágico ou maçante. Mesmo assim, guarda em seu roteiro pontos desnecessários, que parecem dispositivo de segurança para garantir que a mensagem será corretamente recebida pelo espectador. Na cena do exame de próstata, por exemplo, a funcionária de Packer espreme uma garrafa d’água com as mãos, excitada com as expressões dele. Não demora muito para que surja no diálogo entre os dois uma fala do bilionário perguntando o que ela está fazendo e jogando literalmente: “Isso é tensão sexual”. Às vezes, o excesso transforma em artigo barato algo que poderia ser fino, se tratado apenas através da representação visual. Afinal, não é esse um dos grandes trunfos do cinema? A atuação de Robert Pattinson, mais que estereotipado pelo vampiro sem caninos da saga Crepúsculo, deixa margem para uma crítica ambígua. Nas cenas de Packer dentro da limusine, Pattinson parece não saber direito quem é Eric Packer. Somado a isso, alguns enquadramentos onde ele aparece no banco da limusine parecem colocá-lo em um caixão, e aí não tem jeito: é impossível escapar da associação com a imagem de um “vampiro”. No entanto, nas cenas fora da limusine, o ator consegue encarnar uma melancolia cínica e de alguma forma encontra o personagem que havia perdido dentro do carro.

No fim, entre mortos e feridos, excessos e abscessos, Cosmópolis é um belo tratado sobre a época atual. A filósofa assessora de Packer diz que há uma inversão nos valores do mundo. Para ela, o tempo virou elemento corporativo e, se antes tempo era dinheiro, agora dinheiro é tempo. E do tempo que não temos, fica só um consolo para quem vaga perdidamente pela nova época: “a vida é muito contemporânea”.

FacebookTwitter

Um Método Perigoso (David Cronenberg, 2011)

Por Luis Henrique Boaventura

A narrativa segundo David Cronenberg, embora envolta sempre desse classicismo anacrônico, transpira vez ou outra com o desconcerto, um solavanco gráfico ou rítmico — ecos do horror setentista americano, velha escola dessa geração — que desvia e constrange sua harmonia. Cronenberg desenvolveu durante muitos anos uma habilidade narrativa tão incomum, de filmar o choque e o absurdo com tão bem fingida indiferença, que seu cinema, aos olhares mais cansados ou impacientes, beira o inorgânico. Seus filmes mais recentes são mecanismos inexoráveis cuja precisão reclama o desarranjo, ordens forjadas para um arremate de distúrbio. Há, é claro, uma gradação no processo. Os terrores de início de carreira eram pensados não com vias a alcançar esse pico de desordem, mas a partir dele — o estado de caos que se devia solapar com uma intervenção pelo rearranjo, pela reparação. Calafrios e Enraivecida na Fúria do Sexo incursionavam logo numa vereda de gênero (terror, sci-fi) e procuravam ao longo da narrativa reencontrar um equilíbrio perdido antes mesmo de seu início, enquanto que em Videodrome e A Hora da Zona Morta essa perda de sanidade já era plenamente comportada pelo filme. A Mosca, por exemplo, desenvolve-se num insuspeito acorde de estabilidade para só então corromper-se com notas do cinema de horror e do sci-fi. Se Gêmeos talvez represente melhor o balanço dessas duas esferas de Cronenberg, sempre em fricção para mais tarde acomodarem-se numa única ideia de cinema, o princípio dessa virada seria pela primeira vez experimentado em M. Butterfly, filme despojado dessa necessidade do discurso para disparatar de repente e ruir o crescendo rímico da narrativa, deixando para si o prazer de largar-se no decurso da história. É M. Butterfly que aponta o caminho trilhado em definitivo a partir de Spider, filme de 2002, onde as quebras vorazes de rumo de suas obras anteriores definham-se em alvoroços passageiros, perturbando a vigência da ordem não mais para arrombar sua evolução, mas para trazer à superfície um atrito qualquer já previsto na cadeia dos seus movimentos.

Que Um Método Perigoso apareça neste momento, sucedendo Marcas da Violência e Senhores do Crime, é simplesmente poético. Marcas, ainda mais que Senhores do Crime, decompõe claramente a lógica do cinema de Cronenberg na última década: o tronco inconteste da trama atravessado de repente por um rompante de fúria. E essa calmaria da narrativa, que antes seguia seu curso sem distúrbio aparente até encontrar o evento-motor que a dobrasse sem quebrá-la (dois bandidos na lanchonete em Marcas da Violência, o recém-nascido em Senhores do Crime), assombra Um Método Perigoso em toda sua extensão, sem escape e sem respiro. A crítica mais recorrente a este novo filme tem sido a falta, exatamente, dessa tal (imaginária) centelha cronenbergniana que o deveria incendiar sem prévio aviso. Note-se que o cinema de Cronenberg, embora a respeito do qual muito se tenha dito quanto à paridade com o americano clássico, jamais poderia remontar à Old Hollywood enquanto conservasse estes raptos de razão (ainda que cada vez mais discretos, diegetizados). Um Método Perigoso, com tão evidenciada veia biográfica, por vezes documental em alguns subterfúgios (no voice-over, na força das elipses), jamais resiste (como corre o risco de parecer) ao impulso de tornar-se novo objeto de travessura auterista. A diferença talvez esteja numa minoração de frequência, na preferência pela implosão em detrimento do voraz rebentar de Crash, A Mosca e Gêmeos, do voo furtivo de Spider, Marcas e Senhores do Crime, porque Um Método Perigoso não é de modo algum um filme de exceção na carreira do diretor: Cronenberg continua sendo todo a respeito da matéria e das coisas do corpo.

Em Um Método Perigoso, Cronenberg declina de qualquer hermetismo gráfico (sempre apressadamente destacado quando analisam seus filmes) devolvendo a senda criativa à ordem da palavra — prensa seminal do mundo e da história — e à minúcia do corpo, do gesto, do poro. Há uma enorme crença na expressão pelo verbo e pelo corpo antes mesmo do que pela intervenção da câmera, o que é lindamente apropriado a uma narração que fia das relações (e da “talking cure”, afinal de contas) a urdidura de sua linguagem. A câmera em Um Método Perigoso não se furta nunca da ação, não usa o espaço do quadro para expressar uma mudança de lugar assim como não arrisca o movimento (ou mesmo a captação de um) como signo relevante. Mesmo a histeria de Sabina é reprimida a um mesmo quadrante da tela. Em vez do deslocamento de objetos há uma imobilidade e um preenchimento de espaços, uma cuidadosa disposição dos corpos pelo quadro — e mais especificamente de uma porção desses corpos. Um zelo à postura, à proporção, aos membros visíveis neste momento e exclusos no seguinte. Os rostos e os gestos em Um Método Perigoso servem de moldura à palavra, que por sua vez serve de moldura ao corpo. knightley, Fassbender e Mortensen (e Cassel, em menor proporção) raramente são pegos sozinhos pela câmera, em um momento de trânsito ou de silêncio. Os capítulos que as grandes elipses recortam são sempre de uma intensa interação entre eles, seja frente a frente, seja através das muitas cartas lidas em off. Há dois momentos capitais resolvidos inteiramente com a leitura de cartas em cena (como se, aos que reclamam de uma sobriedade incompatível com Cronenberg neste filme, ler em cena não fosse radical o suficiente), e isto porque é sempre a palavra que dirige a erosão das relações, que nos transfere de Viena a Zurique num corte e reposiciona os personagens em tempo/espaço, que os introduz e os varre do filme (como ocorre com o Otto Gross de Cassel). É a palavra que resgata prazeres trancados nos porões da memória para distorcer com eles a concórdia do corpo, reencarnando a milenar dicotomia corpo/mente em corpo/verbo (elemento de evocação, roda de materializar fantasmas).

Cronenberg trata da eclosão dos objetos do corpo e da porosidade dessa matéria disforme vazada sempre por uma pulsão mais cava do desejo, do sexo, do sonho, da lembrança — tudo chamado à tona pela fala. A vitória do impulso sobre a pele, como quis Freud, pano luzidio em que se projetam, furtivas, errantes na distração dos olhos, as aspirações de um velho trauma. Por isso Um Método Perigoso é o grande filme de atores na carreira de Cronenberg; não pela economia da mise-en-scène, mas pela densa assimilação que esta faz das faces distribuídas pelo plano. Como o brilho no olhar de Fassbender, revelado por um súbito ângulo oposto, quando Sabina fala da sua excitação para com as surras de seu pai na infância, e o retorno imediato da câmera ao corpo oblíquo dela, visto de costas desta vez, torto, feio, como uma criatura assim sem forma imediatamente apreensível. Ou o distúrbio no olhar de Mortensen quando Jung diz que se separaria dele ali pois ficaria na primeira classe do navio, e a pequena vingança de Freud ao negar dividir seu sonho com o pupilo para não pôr em risco sua “autoridade”. A todo momento é a palavra puxando coisas que o corpo, feito culpado de um crime, esforça-se em disfarçar.

É claro que a roda de acontecimentos dá razão a Freud, provando sua (assim chamada por Jung) “obsessão” pelo corpo e pelo sexo estar absolutamente correta. Jung não percebe que sua tendência pelo misticismo e sua noção de que a psicanálise deveria permitir ao ser humano mudar e reinventar-se é o que o leva a terminar se despedindo do grande amor de sua vida (em suas palavras) ali na beira daquele mesmo lago aonde viria a morrer 50 anos depois. A ilusão de Jung de um maravilhoso “território inexplorado” é a mesma que concebeu ser possível conciliar o desejo que a palavra flagrou com a negação ao que o corpo exigiu. A matéria tem demandas que a mente não consegue entender. E é quando Sabina o deixa que a câmera desfaz-se de sua posição ocupada durante o filme inteiro e avança num travelling violento, de uma tristeza com textura e com peso, na direção de um olhar preso à tranquilidade do lago. Com tudo já dito, a fala cessa finalmente, e tudo mais no mundo é o silêncio de quem espera.

FacebookTwitter

Valente (Mark Andrews, Brenda Chapman e Steve Purcell, 2012)

Por Filipe Chamy

A primeira coisa que parece digna de observação em Valente é como ele é muito mais um filme da Disney que da Pixar.

Dialogando com décadas de uma tradição (quase) irretocável, Valente a todo instante lembra os longas animados disneyanos: o cabelo da simpática protagonista Merida é vermelho e ondulante como o de Ariel, a pequena sereia; o rei expansivo e boêmio faz recordar os alegres monarcas de A bela adormecida; há certos elementos de ambientes e personagens que recriam Irmão urso etc.

É claro que a Pixar pertence à Disney. E mesmo quando não o era seus projetos eram feitos em parceria com a Disney, que possui um aparato de divulgação e distribuição bem mais poderoso. Mas é curioso que justo agora, que John Lasseter é o chefe da animação Disney, a Pixar tenha procurado se voltar para esse lado. Porque Valente parece prenunciar alguma tendência de mudança no modo Pixar de se fazer um filme, e não só por ter colocado pela primeira vez o foco das atenções em uma garota: Carros 2, o longa anterior da empresa, soava muito mais como um veículo (sem trocadilho) de promoção de bonequinhos, roupas e todo tipo de tralhas do que uma obra de expressão autoral, e nesse sentido Valente é que aparentemente demonstra com mais segurança o que vem preocupando e inspirando os artistas pixarianos.

Portanto, Merida já pode muito bem figurar como uma legítima princesa Disney. E é nítida também a evolução das jovens reinantes: da totalmente ingênua Branca de Neve à reprimida Rapunzel, todas elas haviam demonstrado uma evolução no retrato do agir feminino, deixando aos poucos a submissão imposta por seculares tradições e procurando elas mesmas redefinirem seus caminhos em suas vidas. Se Branca de Neve, Cinderela e Aurora (a bela adormecida) dependiam em seus destinos da conjunção entre a sorte mágica do acaso e a boa vontade e coragem de um príncipe encantado, Ariel, a rebelde, começou a se distanciar desse pedestal e contrariou os desígnios do rei seu pai; Belle, a decidida, modifica com seu caráter e inteligência toda uma situação de maldição e desesperança; Jasmine, a voluntariosa, reescreve as leis de uma sociedade arcaica e instaura o feminismo de igualdade de escolhas. Essas princesas deram a tônica para mudanças que refletem certos anseios sociais, étnicos e humanos “lato sensu”, com mais abrangência racial, menos estereótipos de gênero, maior ambição narrativa ao deixar de usar clichês de princesas literárias como muletas para a estrutura dos filmes seguintes.

Merida dá a sua contribuição e pela primeira vez vemos uma princesa Disney que não só discorda dos pais (no caso, a mãe) como ainda faz das suas para literalmente mudá-los. De Branca de Neve a ela, foi adicionado um caminhão de força, de decisão, de maturidade.

Valente tem bons coadjuvantes, boa cenografia, encenação, figurino, bons diálogos e direção, bons planos, boa música e boa concepção e roteiro. Mas se nele há algo de ótimo é a garota dos cabelos ruivos revoltos, a figura que quando os esconde sob os trajes de costume é uma menina e quando rasga o aperto da roupa e os liberta é mulher. É Merida, uma figura bastante crível e que afinal a encontramos em uma idealização, um sonho. É preciso aceitar que o cinema de animação pode apresentar gente muito real também.

FacebookTwitter

Violeta Foi para o Céu (Andrés Wood, 2011)

Por Fernanda Canofre

“Escribe como quieras, usa los ritmos que te salgan, prueba instrumentosdiversos, siéntate en el piano , destruye la métrica, grita en vez de cantar, sopla la guitarra y tañe la corneta. Odia las matemáticas y ama los remolinos. La creación es un pájaro sin plan de vuelo, que jamás volará en línea recta.”

(Violeta Parra)

Quem nunca ouviu falar da chilena Violeta Parra, pode começar por aqui. Uma tela preta. Uma voz de mulher avisando Carmen Luísa que ela deve se apressar porque logo as pessoas vão começar a chegar. No quadro seguinte, a tela preta dá lugar a um plano fechado de um olho verde cansado. Ele não olha para a câmera, olha para milhas além do que está ali. Entra então a imagem de uma galinha solitária em uma mata coberta de neblina. A galinha parece não saber se sai à procura de algo ou se fica à espera de alguém que a encontre. Na mesma mata, uma mulher de saias longas, cor de violeta, vem caminhando. Esta é a forma de Andrés Wood, diretor do aclamado Machuca (2004), iniciar a sua versão da biografia de um dos maiores símbolos da música e da cultura chilena. Como um pássaro, metáfora explorada na película tanto visualmente quanto nos diálogos, Violeta migra muitas vezes de endereço, mas migra também de vida. Em uma entrevista, Wood conta que no imaginário popular existem muitas Violetas, e que cada fã, cada pessoa que conheceu sua história e/ou seu trabalho, sabia a representação que queria ver na tela. A representação de personagens que são lendas vivas no imaginário popular é uma das tarefas hercúleas do cinema, e na maioria das vezes se transforma em caricatura barata do personagem. O curto tempo para contar uma vida, a caracterização, a escolha de elenco, tudo é armadilha que parece cair na condenação desse tipo de projeto. O acaso da consagração é como sorte nas cartas. Mexer em um “corpo” do qual todo o povo se sente dono é arriscar a cada frame. E a direção de Wood parece consciente disso. Com Violeta Foi para o Céu, roteiro baseado no livro do filho da artista, Angél Parra, e escrito em parceria com o mesmo, o diretor encontra uma maneira de ter todos os fragmentos de Violeta Parra e, ao mesmo tempo, tê-la por inteiro em menos de duas horas de filme. Como em uma das tapeçarias de La Parra, o diretor borda em película a Violeta mãe, cantora, folclorista, pintora, artista engajada, chilena, mulher, costurando todas elas em um ritmo que prende o interesse do espectador pelo destino dos olhos verdes cansados.

Nos primeiros dois minutos de filme, já temos uma narrativa fragmentada em quatro tempos, formando a estrutura na qual se apoia a história.  Temos o tempo do olho verde em close; Violeta em uma entrevista para a televisão chilena; Violeta adulta, viajando com o filho e um gravador, registrando músicas populares do Chile (quase uma versão dos Irmãos Grimm da Cordilheira andina); e a Violeta criança. Dessa última, aprendemos no olhar o que a Violeta adulta, que cruza o país em uma trupe de shows com a irmã Hilda, vai verbalizar: “a vida não é uma festa”. Nas cenas da infância de Violeta, Wood estabelece a cumplicidade com aquele que seria a relação mais duradoura de sua vida: o violão. Junto com os irmãos, acompanhando o pai em apresentações nos botecos, que parecem servir apenas para pagar a conta das bebidas consumidas por ele, Violeta, sem falar, encontra no violão a forma de se comunicar e de se impor ao mundo. Quando o pai flerta com uma mulher, ela agarra as cordas e para a música. Quando ele imita um macaco para a diversão dos presentes, como um bobo da corte, é batendo o violão contra o piano que Violeta calada interrompe a humilhação. O instrumento, que ela aprendeu a tocar apenas observando os outros foi primeiro seu companheiro, depois sua forma de se expressar. Como uma menina que carrega uma boneca, Violeta aparece-nos a carregar o violão, arrastando-o no chão, “sentando-o” ao seu lado, só aos poucos, quase ao acaso, descobre que daquelas cordas seus dedos podem fazer sair um som. Durante a entrevista, a artista Violeta Parra, já reconhecida em seu país, responde ao entrevistador que pergunta: “O que seu pai lhe deixou?”. Violeta: “A mim? Nada”. Ele insiste: “Nada?” Ela confirma: “Nada. Bom, me deixou um velho violão”. O entrevistador continua: “Apenas um violão?”. Violeta explica: “Sim, ele perdeu tudo jogando cartas. Não me deixou nem terra, animais ou propriedades. Nem nada de nada”. O entrevistador, que parece não ter conseguido a resposta que queria, tenta outra vez: “Mas seu pai era professor. Algo mais ele tem que ter deixado!”. Violeta devolve: “Para que, se o violão que ele me deixou veio cheio do canto dos pássaros?”.

Os pássaros, a metáfora visual das aves, tecem a essência de Violeta no filme. Como a cena do início, mencionada anteriormente. A cena da galinha perdida na mata ecoa na lembrança versos do poema “Tecendo a manhã”, de João Cabral de Melo Neto: “Um galo sozinho não tece uma manhã: ele precisará sempre de outros galos. De um que apanhe esse grito que ele e o lance a outro; de um outro galo que apanhe o grito de um galo antes e o lance a outro; e de outros galos que com muitos outros galos se cruzem os fios de sol de seus gritos de galo, para que a manhã, desde uma teia tênue, se vá tecendo, entre todos os galos”. A vida de Violeta Parra foi essa de coletar e repassar o canto para outros galos, em busca de tecer um amanhecer para o povo de onde saiu. Era sua forma de mudar a realidade social que a incomodava, mas também de buscar algo pessoal que a vida ainda não havia lhe deixado encontrar. Tornou-se uma das fundadoras do movimento Nueva Canción chileno, que teria papel importante na campanha de Salvador Allende e seria reprimido mais tarde por Pinochet, depois do golpe de 1973. Um movimento que teve versões próprias em vizinhos latino-americanos e na Península Ibérica, nas pátrias que viviam sob regimes de ditaduras. Mas isso só aconteceria após a morte de La Parra, em estações que ela não viveu para ver. A vida da índia mestiça, nascida no ano da Revolução Bolchevique, foi o toque de tambor para o que ainda estava por vir. Como o galo de Cabral de Melo Neto, que tem a missão de ouvir e repassar o canto, Violeta viajou pelos recantos do Chile atrás de “galos” perdidos, coletando composições populares que ajudassem a revelar a identidade chilena, e que, sem registros, poderiam acabar por se perder no tempo e na extinção de seus autores. De violão em braço, caderno nas mãos e o gravador carregado pelo filho, Violeta queria registrar as alegrias e as dores do povo ao qual também ela pertencia. Coisas que ela mesma sentiu nos quarenta e nove anos que a repartiram em muitas Violetas.

Andrés Wood, ajudado pela atuação da atriz Francisca Gavillán, encontra uma harmonia rara de se obter em cinebiografias. Não há um traço dominante em sua Violeta. Se a vemos determinada, enquanto artista, encabeçando as performances musicais de Las Hermanas Parra, batalhadora com os filhos a tiracolo, a vemos também vulnerável e sem forças em outros momentos. Nas cenas do relacionamento com o musicólogo suíço, Gilbert Favre, por exemplo, encontramos uma Violeta possessiva e agressiva. Porém, em outras, conhecemos seu humor peculiar, que ajudava a expressar sua verdade mesmo em situações adversas. Como em um dos trechos da entrevista na televisão, no qual Wood toca na visão política da artista. O entrevistador pergunta para a cantora se ela aceitou o convite para se apresentar na Polônia. Quando ela afirma que sim, ele, freando uma reação indignada, solta: “Você sabia que este é um país comunista?”. Violeta prontamente responde: “Exatamente por isso eu aceitei”. O entrevistador então questiona: “Você é comunista?”. Violeta dispara: “Não, por nada! Quem te disse isso? Eu sou tão comunista que se me acertarem um tiro, meu sangue sai vermelho!”. O entrevistar, já se entregando ao riso, segue: “A mim também o sangue sairia vermelho!”. E Violeta devolve: “Que bom companheiro!”, apertando a mão em um cumprimento. Porém, o grande trunfo de Violeta Foi para o Céu é conseguir manter a sensibilidade, sem cair em fórmulas velhas de dramalhão. A morte, tratada sem afetação, não é um tabu, é apenas parte natural da vida. Quem se depara com ela sofre, porém a própria vida se encarrega de lembrar que o tempo não para com os pulmões de um galo apenas. Andrés Wood consegue inclusive resistir à tentação de utilizar Gracias a la vida, um dos grandes clássicos de Parra, composto apenas um ano antes de sua morte, que é visto como um hino de despedida.

Violeta Foi para o Céu é um relicário da identidade latino-americana. Coprodução chilena, argentina e brasileira, recorda o legado de Violeta Parra em uma época que o Chile volta a ver movimentos estudantis e de contestação em suas ruas, e que o mundo vê o retorno de protestos daqueles que não aceitam mais estar de fora do sistema. Porém, mais do que isso, o filme apresenta a obra de uma das grandes folcloristas da América Latina para uma nova geração. Angél, acompanhando a mãe, caminhando por um deserto, atrás de uma dona Miguelina que pode ensiná-la a cantar, pergunta o que vai acontecer se não a encontrarem. Violeta, apesar de ter certeza que a encontrará, responde ao filho: “vai ser uma pena, porque ninguém se lembrará dela”. A velha verdade de que ao serem esquecidos, os mortos morrem uma segunda vez. Coisa com que La Parra, que se foi há 45 anos, não precisa se preocupar. Aqui, em um filme, Violeta Parra está mais viva do que nunca.

FacebookTwitter

As Aventuras de Tintim (Steven Spielberg, 2011)

Uma adaptação de Tintim (ou Tintin, no original) feita por Steven Spielberg era algo que eu temia.

Já sabemos há muitos anos de sua paixão pela criação de Hergé — da qual comprou certos direitos já nos anos 1980 —, e também conhecemos de cor e salteado sua louvável peregrinação pelos meandros da infância, bem como seu fascínio por aventuras que só recentemente foram respaldadas pela intelectualidade crítica, a exemplo das assinadas por gente como Carl Barks e James Barrie.

Ainda assim, era com pé atrás que eu via os boatos sobre um novo filme de Tintim (que já teve alguns longas décadas atrás, inclusive dois live action) pouco a pouco ganhando peso, até se confirmarem há alguns anos e finalmente, poucos meses atrás, tomarem forma em trailers, fotos de divulgação, propagandas de todo o tipo. E o filme então ficou pronto e foi lançado.

Mas se Spielberg é tão próximo a esse universo e tão apaixonado pelo personagem, por que o inescapável e firme receio?

O caso é que Spielberg sempre me pareceu inadequado nesse tipo de terreno: a aventura “fantasiosa”. Muita empolgação pela pirotecnia, pelo teatral, pelo malabarismo visual, o que afeta a narrativa de uma maneira geralmente bastante incômoda para mim. Nem da série de Indiana Jones eu sou apreciador: para mim, muito barulho por nada. As músicas-tema onipresentes de John Williams, os diálogos de efeito, a estrutura esquemática da ação, seus intervalos e clímaces, tudo sempre soou a mim como um pálido arremedo do que ele sempre admirou nesses campos.

Mas com Tintim Spielberg acerta a mão; e se falei de “arremedo”, essa é uma das chaves do sucesso do filme: sua honestidade. Spielberg não tenta copiar Hergé e se valer disso como blindagem. Pelo contrário: ele mexe nos álbuns mesclando histórias, suprimindo ou introduzindo personagens, alterando fatos, situações, ocorrências. E qual o problema disso?

Devo fazer um aparte aqui: sou enorme admirador de Tintim, tendo lido e assistido a todas as suas aventuras durante anos e anos de minha vida. Então — com certa pena em reconhecer isso — acrescento a meus temores descritos acima a adaptação “fracassada” de tão magníficas obras. Nunca creditarei a uma adaptação livre a qualidade insatisfatória de um filme, mas involuntariamente pensava com desgosto na supressão do professor Girassol (ou Tournesol, ou Calculus), por exemplo: ora, se a base dessa aventura é em grande parte devido à aparição e impulso desse personagem, como um declarado fã dos quadrinhos cogita filmar a história sem sequer mencioná-lo?

A maneira como Spielberg contorna essas “alterações” é exemplar. Não se escora na fama dos personagens (o filme é muito bem recomendado a qualquer neófito no assunto) nem resvala na preguiçosa indulgência covarde dos realizadores acostumados com mimos e flores. A engenhosidade do filme se deve em parte a essa decisão de Spielberg: não copiar Hergé, mas deixar claro a todo instante como respeita seu legado e como cada sugestão dos álbuns é aproveitada por sua força, intensidade e beleza. Desde os créditos iniciais, o amor de Spielberg por Hergé e Tintim é explicitado de mil formas, com várias citações e referências, que não parecem ocas ou exibitórias, mas carinhosas demonstrações de apego e estima. O que ele muda, muda com a consciência de servir a um propósito: o de funcionar no filme. E o filme funciona muito bem, obrigado.

Muito se discutiu sobre a técnica de filmagem, com atores reais sendo depois “digitalizados” (via motion capture) para a forma de animação tal como a vemos, mas essa é mais uma coisa louvável: alguma dúvida da artificialidade dos efeitos especiais caso Spielberg decidisse filmar As Aventuras de Tintim da maneira comum? Seria mais um simples blockbuster de ação, repleto de uma maquinaria tola desesperada para alcançar o realismo, mas que em verdade seria convencionalmente impostora. Ao passo que do jeito como veio à luz, As Aventuras de Tintim beneficia-se de seu caráter particular: não parece desenho animado (fugindo assim também da brilhante adaptação televisiva feita pela Nelvana nos anos 1990) e tampouco perde crédito assemelhando-se a um filme de movimentos “forçados”, indo na contramão da eficiência ao demonstrar a mentira dos perigos, a fragilidade das ações. Com todo o dinheiro envolvido na produção do filme, Spielberg nunca filmaria um filme artesanalmente hergeniano, como Phillipe de Broca fez em algumas fitas estreladas por Jean-Paul Belmondo.

É portanto com alegria que se constata que o filme é  um resultado bastante satisfatório de uma experiência algo ousada, restando a nós apenas a torcida para que os próximos filmes da franquia (infelizmente, um dos males agregados ao projeto) sejam tão felizes quanto esta primeira parte.

Filmes citados

As Aventuras de Tintim [The Adventures of Tintin; EUA/Nova Zelândia, 2011], de Steven Spielberg. 107 min.

FacebookTwitter

Missão Impossível: Protocolo Fantasma (Brad Bird, 2011)

Cúmulo da ironia, é nas mãos do diretor menos preocupado com questões autorais em toda franquia Missão Impossível que nos deparamos com um filme em pleno diálogo com ampla tradição cinéfila, repleto de referências e citações que fazem de Protocolo Fantasma um prato cheio não apenas para os admiradores do gênero, mas para todos que curtem um cinema de relação, onde a reviravolta não fica limitada à superfície do que “se roteiriza”, mas alcança tudo o que “se materializa” no corpo da imagem.

Muito mais do que demonstrar competência na organização técnica de uma superprodução e boa dose de rigor no manejo das sequências centralizadas na ação física, Brad Bird oferece com este episódio um leque de conexões que poderia se aproximar, em tese, da proposta original de Brian De Palma ao ressuscitar o personagem de Ethan Hunt — o que aquele próprio não fez, pois apesar de ser ele um diretor da intertextualidade fílmica, seu Missão Impossível não bebe de outras fontes senão do seriado homônimo e alguns títulos de espionagem. Protocolo Fantasma, a começar do belo título encontrado, vem mesmo para jogar com todo um caráter de cinema que se reconhece herdeiro, potencializando não só a condição intrínseca e inerente ao que toca o projeto de um filme sequência (sempre assombrado pelos fantasmas de seus antecessores), mas também inserindo-se numa filiação de certo cinema americano que tem renovado a maneira de colocar uma imagem em diálogo.

Nesse sentido, vem logo à mente a significativa escolha da atriz Léa Seydoux para um importante papel de vilã reservado pelo enredo. Esta mulher que, eternizada como A Bela Junie, vem se tornando presença obrigatória de um cinema autorreferente dos EUA (de Tarantino a Woody Allen), ocupa em Protocolo Fantasma um sentido nuclear daquilo que percebemos enquanto jogo de encenação, de restituição do corpo humano dentro de um gênero que tende a ignorá-lo. Léa não é somente Junie, ou talvez porque continue a sê-lo e para sempre será, ela é todo um imaginário francês, como o provam suas breves e definitivas aparições em Bastardos Inglórios e Meia-noite em Paris, filmes que agora encontram no filme de Bird um irmão mais novo.

Ora, não há motivo para considerar o papel de Léa, ou melhor, esta interpretação de uma leitura cinéfila como objetivo de Protocolo Fantasma, uma resposta do acaso. Inocente é acreditar que um filme como este, que faz equipamentos tecnológicos voarem pendurados num Balão Vermelho — toda a sequência do balão trabalha uma virtuose que enfatiza intencionalmente este recorte do imaginário francês —, venha se valer da atriz apenas para preencher o elenco. Se Léa entra e sai de cena (que se ressalte a saída de efeito…) sem aviso prévio é porque toda a constituição de sua personagem baseia-se numa expectativa em que a ameaça está única e simplesmente em sua própria existência enquanto matéria a ser filmada. Léa é o rosto mal visto por Ethan (Tom Cruise) no início de Protocolo Fantasma, é o corpo que não se afirma, ou melhor, que só se deixa exibir depois de aterrorizar por sua ausência; ela é exatamente aquilo em que Ethan se transformará ao final de sua jornada, o que pesa a semelhança da maneira como se filmam a primeira aparição de Léa e a última de Tom: seres cabisbaixos, quase disformes, fantasmáticos.

E se existe uma cena que tenha a força de representar toda a problemática da imagem levantada por Protocolo Fantasma — problema de materialidade, de visibilidade — é aquela assombrosa sequência da tempestade de areia em Dubai que praticamente rompe o filme ao meio. Além da óbvia tensão advinda do caos natural, a situação climática emoldura a melhor perseguição do filme; melhor, justamente porque nela a convicção do olhar é questionada até o limite. Ethan Hunt não enxerga um palmo à frente dos olhos, e se o vemos é porque a câmera praticamente cola em seu corpo. Dissolvem-se as certezas, os alvos, e ficamos todos à mercê do que não se pode ver, mas que continua lá, em permanente ameaça. Pelo menos desde Vento e Areia, filme agonizante de todo um estatuto do olhar, sabemos que, no cinema, a confiança não pode se estabelecer apenas pelo que se vê, ainda que a visão seja o único recurso para enfrentar o mundo. Protocolo Fantasma reafirma, ao seu modo, que todo movimento parte de um princípio ativo básico (ação, uma condição dramática) para assim gerar o prazer de ver. Porque simplesmente enxergar é clímax.

FacebookTwitter

O Espião Que Sabia Demais (Tomas Alfredson, 2011)

O Espião Que Sabia Demais é um thriller de espionagem da mesma forma e na mesma medida em que Deixe Ela Entrar era um filme de terror: os códigos de gênero são usados para erguer um universo que vai erodir sob o peso das relações e aspirações pessoais que não se ajustam às suas necessidades. A cena dos créditos já dá o tom: Control e Smiley saem do Circus para nunca mais voltar, descendo escadas e atravessando corredores sob o olhar aturdido dos colegas e funcionários, em silêncio, sem trilha incidental, sem gesto em direção ao espetáculo. O filme já começa cansado, exausto, um sistema de espionagem e informações que parece a essa altura se mover apenas por inércia, monótono e, ao que tudo indica, longe da relevância que pode ter tido durante a guerra e no período imediatamente após. Smiley está oficialmente “fora da família” e é justamente essa a razão que leva um membro da alta hierarquia do governo a chamá-lo para realizar uma investigação quando a história sobre o agente duplo transpira. Mas não se abandona a família nunca, Smiley não demora muito a descobrir, e quaisquer que sejam os problemas correntes, é preciso buscar a resposta no que aconteceu antes, de modo que a investigação se concentra primordialmente no passado, e muitíssimo menos nos esquemas de espionagem do passado do que nas tensões e relações conforme se delinearam antes e deram origem ao que se vê no presente.

De forma que o que se esperaria ser o conflito central de O Espião Que Sabia Demais é de um pragmatismo desencantado — é preciso descobrir quem é o espião infiltrado simplesmente porque, afinal, é um espião infiltrado e assim as coisas são feitas, e não por ser um ato torpe ou desprezível (coisa que o filme não tenta sugerir por nenhuma vez — como diz o próprio agente depois de ser desmascarado, “Era preciso escolher um lado e foi o que eu fiz”), ou pela natureza ou relevância das informações que ele passa a Moscou (que nunca sabemos com clareza — nenhuma conspiração maquiavélica, nenhuma ameaça iminente de guerra nuclear a ser encontrada aqui). Não que as informações sejam banais ou o a traição ao Circus seja aceitável; a questão é que nada disso importa realmente ao diretor, o que faz com que a trama central seja inusitadamente desvalorizada e receba pouquíssima ênfase, inclusive formal. Exemplo claro é como as reviravoltas propriamente ditas não recebem tratamento especial algum, enquanto cenas em que o que está em jogo são os vínculos entre os personagens — Smiley e seu estratagema para conseguir o endereço da casa em Londres, a execução no final — são aquelas que Alfredson mobiliza montagem e trilha para enfatizar, carregar de tensão e significado.

A cena-chave de O Espião Que Sabia Demais é uma festa, mostrada aos poucos ao longo de toda a projeção, em que com pouquíssimas palavras Alfredson nos transmite muito do que precisamos saber e, mais que isso, nos coloca no mesmo estado emocional dos personagens, ao ver como as coisas eram e compará-las a como elas são no presente do filme. Nesse sentido, temos o oposto de Deixe Ela Entrar: lá, dois marginalizados que se encontram e se aceitam; aqui, toda uma comunidade à sua maneira excluída do convívio social normal (mesmo os relacionamentos amorosos são parcialmente vividos dentro do grupo, e as exceções — como o próprio Smiley ou Peter Guillam — acabam por se mostrar pontos fracos) que se desintegra diante de nossos olhos. Enquanto a identidade do espião não é descoberta, esse grupo pode se manter, mesmo que só na aparência, pode oferecer um conforto; mas após a revelação não restará mais nada, nem mesmo as ilusões, e o próprio processo de investigação envolve o esfacelamento voluntário dos vínculos que ainda resistem: até mesmo Smiley precisa cometer uma traição (“Nós temos muito em comum”, frase que ele dirige a Karla, seu duplo soviético e idealizador da operação do agente duplo, quando os dois se encontram, sendo muito mais verdadeira do que pode parecer a princípio), fazendo uma promessa cujo cumprimento ele sabe ser impossível para obter a colaboração de Ricki Tarr na armadilha que montam no clímax. O clima de paranoia aos poucos cede espaço a um clima de resignação, à medida que o fim se aproxima inexoravelmente e as máscaras caem, colocando um ponto final a uma identidade comum partilhada por todos. Não por acaso, o último flashback do filme, reservado a Jim Prideaux, apenas confirma qual foi a maior das traições, já implícita anteriormente. E a montagem que encerra O Espião Que Sabia Demais não poderia ser mais certeira, um desfile dos últimos filhos daquele grupo, agora órfãos de todo — e mesmo que Smiley aparentemente se reconcilie com a esposa, é preciso notar que, no último plano do filme, ele está sozinho na sala em que antes se reuniam vários.

FacebookTwitter

Tudo Pelo Poder (George Clooney, 2011)

Se observarmos a atual conjuntura política norte-americana, não há nenhuma surpresa no teor da trama de Tudo Pelo Poder. A campanha idealista que lançou à vitória o primeiro presidente negro da história dos Estados Unidos, Barack Obama, e a posterior decepção com seu governo, até então carregado de ideias megalomaníacas e poucas ações efetivas, dão sustentação a um olhar desiludido para as engrenagens do poder. Na expectativa pela renovação dos mecanismos de um país que enfrenta grandes dilemas (econômicos, políticos e em suas relações internacionais), a vitória do candidato democrata parecia uma solução apropriada para dedetizar a Casa Branca e levar à frente do país uma nova perspectiva de trabalho, mas não foi isso que aconteceu.

Se o marketing da corrida eleitoral de Obama se revela hoje mais preciso que sua atuação política, nada mais natural que este novo filme de George Clooney atacar justamente na construção da imagem de um candidato democrata à corrida eleitoral, e que esta imagem de campanha, pautada por discursos fortes e convicções ideológicas que logo se revelam falsas ao espectador, seja construída na superfície de um jogo de mau-caratismo. E é uma pena que, ao final desta trama de intrigas mesquinhas, por vezes alheias aos complexos jogos políticos geralmente filmados pelo cinema, Clooney se acovarde detrás de uma postura arredia e insipiente — ou, como se diz no palavreado popular, não fazendo mais que “jogar tudo pro alto”.

Tudo Pelo Poder não vai muito além de um exercício rasteiro de cinismo, e se satisfaz trabalhando sua visão da política de maneira infantil, num discurso que afina com o ponto de vista popularesco sobre o meio político, segundo o qual todas as pessoas ali envolvidas parecem presas ao esvaziamento ideológico, à corrupção moral, à desconsideração da ética etc., o que não permite ao próprio filme se desvincular de discursos falaciosos no estilo “independente de quem estiver no poder, eles vão nos foder” — o que não passa de preconceito trabalhado de um jeito totalmente preguiçoso. Por construir esta treva irreparável de maneira tão superficial, o filme acaba se mostrando politicamente irrelevante, sem fazer muito a não ser reafirmar ideias vazias e grosseiras.

Mas, se por um lado Tudo Pelo Poder decepciona por tratar o espectador de forma tão leviana quanto qualquer falsa ideia de marketing, também é difícil negar que a dramaturgia de Clooney vem se aprimorando (é um filme muito eficiente em sua estrutura) e que existe uma força interessante quando estas questões são deixadas em segundo plano para serem focadas as relações de convivência e de poder entre seu ótimo protagonista, Stephen Myers (Ryan Gosling), assessor de imprensa do candidato Mike Morris (interpretado pelo próprio Clooney),  e as pessoas com quem precisa lidar diretamente em seu trabalho, no qual percorrerá uma linha céu/inferno/céu que, ao invés de derrubá-lo, o fortalecerá assim que aprender a jogar o jogo de intrigas dos bastidores da campanha (em suas nuances, aliás, essa visão de backstages fala muito melhor sobre o comportamento humano do que sobre qualquer aspecto do meio político que procura retratar).

É interessante observar também que Myers não se encaixa no padrão “homem idealista que descobre a realidade suja que o cerca”; desde o início já demonstra ter inclinação ao egoísmo, à mentira, à manipulação e aos desvios éticos, enfim, aos valores condenados pelo filme — afinal, nas primeiras sequências marca um encontro com o assessor do candidato de oposição, come a estagiária, etc. —, o que dá muito bem o tom da vingança planejada por ele no terceiro ato, mas torna inaceitável a forma encontrada pra fechar todas as ideias do filme, depois daquele twist cataclísmico. A cena final, na qual, detendo agora o controle da situação, Myers repete a ação da sequência de abertura, analisando o local em que Morris irá se pronunciar para o público, com as falas que serão ditas reproduzidas em voice off, se resume em apelar mais uma vez para a denegrição barata do meio político, sem chegar a lugar algum (o plano final é especialmente repulsivo). Clooney mira no alvo mais fácil de ser atingido, enquanto seu próprio filme parece uma boa representação do quanto esta é uma visão insuficiente — nem seu protagonista, nem qualquer outro personagem contrapõem as denúncias feitas, ou seja, não parece haver possibilidade de solução para o universo em que ele se instala, e assim o filme termina por dar as costas à sua própria denúncia, mostrando ainda que a verdadeira força da história poderia estar justamente na capacidade de transgredir essa denúncia sistêmica para se fixar nas questões humanas que suscitam dela, que poderiam ser uma chave interessante para se discutir de forma mais abrangente as questões gerais da obra.

O que me faz recordar dos grandes filmes políticos já feitos em Hollywood (impossível não mencionar o John Carpenter de Eles Vivem e Fuga de Los Angeles, duas obras essencialmente políticas — mas que não se tratam de filmes tão sérios quanto Tudo Pelo Poder, não é?), e do quanto eles fazem falta nestes dias em que o afronte vazio se tornou sinônimo de opinião e de posição ideológica, em que a condescendência geral com o moralismo de boutique transmite cada vez mais uma ideia de revolta coletiva que não sabe de onde parte nem para onde vai — um barulho pelo barulho, que assume um tom ainda mais cacofônico ao diluir-se por mensagens e correntes compartilhadas mecanicamente nas hoje tão populares redes sociais da internet. Tudo Pelo Poder, à exceção de ser um filme envolvente quando focado nos conflitos particulares de seus personagens, acaba, no geral, se mostrando não mais do que um reflexo de nossa cínica realidade.

FacebookTwitter

O Garoto da Bicicleta (Jean-Pierre e Luc Dardenne, 2011)

O que mais me interessa em O garoto da bicicleta é sua clareza. Este último (até agora) longa dos irmãos Dardennes é extremamente transparente nas intenções e na abordagem. Não varre a sujeira para debaixo do tapete e não se omite às fraquezas das personagens, às torturas cotidianas que implicam certa exposição dos caracteres das pessoas — não tipos, o que seria frustrante —, naquela maneira de nos fazer ficar com raiva dos impulsos que elas tomam e depois, consternados, percebermos: elas agiram de modo totalmente natural. O contraponto (ou culpa) da eficácia seria uma moralidade forçada, então, pois outras decisões talvez descambassem não para a encenação, mas para a imitação, a idealização hipócrita.

Não que o naturalismo seja um pressuposto para as coisas funcionarem: longe disso, aliás, pois o naturalismo de O garoto da bicicleta é meio estilizado de acordo com seus propósitos — o que serve bem a seu desenvolvimento, aliás. Um exemplo: o jovem traficante, com aquele charme de Huckleberry Finn, um pária desgarrado das convenções sociais, à margem da respeitabilidade burguesa, não será esse mesmo jovem um exemplo desse naturalismo “forçado” que, ao mesmo tempo em que expõe sua crueldade (o rapaz é um aliciador), demonstra seu lado humano (o rapaz cuida dos avós idosos)? Fugindo da caricatura, os Dardennes encontram o que há de mais humano e caloroso.

Então seguimos o pequeno protagonista (um Calvin sem Hobbes/Haroldo) em sua desolação (porque a infância também tem suas agruras), rumo ao completo contrário do que esperava: no lugar do pai sumido, o amor; no lugar do conflito, a paz; no lugar da amizade de barro, o conforto da segurança. Não é um moralismo de fachada, um dedo inquisidor a apontar o bom caminho. Aqui não há essas representações dogmáticas de oposições maldade versus bondade, ou moralidade versus libertinagem. É uma história simples sobre um garoto em descompasso com sua vida, e nisso está a nobreza da jornada.

Não faltou quem incompreendesse os conflitos do menino e sua rebeldia superficial, e no entanto esse é o grande trunfo de O garoto da bicicleta: com seu rosto de indefiníveis reações, fechado, mudo como um monge, a criança possui toda a verdade do mundo para desacreditar qualquer crítica nesse sentido; é fácil de entender seu desconforto e suas dores, compadecer-se de seus problemas. Seus gestos de violência e egoísmos não são condenáveis, errado está quem os demoniza. Sacralizar uma imagem absurda da infância é não querer reconhecer as falhas de um mundo onde existe o abandono, a miséria e a negligência. Se os Dardennes expõem essas chagas, não se pode, em absoluto, acusá-los de “vazios”, a crítica mais comum a seu cinema.

Impressionantes sequências de ação (sim, ação, como correr num bosque ou fugir de um internato) e embates corporais de uma fluidez tão rítmica quanto sagaz (e nem disso o garoto foi poupado) tornam o relato ainda mais forte e vivo, mais pulsante e doloroso, num torpor quase de delírio, de correr sem fôlego, de se extenuar e chegar ao ápice do esgotamento físico e nervoso. Nessa sucessão de imagens e planos claros, com uma fotografia (luz natural?) que não esconde o sofrimento ou a redenção, os Dardennes constroem meticulosamente um mosaico de louvável e fresca beleza, a beleza que comporta a tristeza (o chagrin dos franceses, apesar de os irmãos serem belgas), o risco, o erro e a estupefação, o remorso mais profundo e a melancolia mais pura.

Filme que respeita a infância e dá a ela a dimensão devida do dramático — e eventualmente do trágico —, O garoto da bicicleta, com ciclos que alternam furor e calma, é como a respiração inquieta de seu personagem-título, na angústia de suas inquietações.

FacebookTwitter

Inquietos (Gus Van Sant, 2011)

Falar sobre Inquietos é antes de tudo falar sobre mais um filme de Gus Van Sant. Se muitos diretores contemporâneos ainda carregam consigo a alcunha da autoria — Terrence Malick, Pedro Almodóvar, Lars Von Trier, para ficarmos nos exemplos óbvios dos que lançaram filmes este ano —, nenhum deles carrega o estigma de forma tão dúbia quanto Van Sant. Fãs e detratores parecem distinguir facilmente entre os projetos mais autorais do diretor (Elefante, Last Days, Paranoid Park) e o cinema sob encomenda (Encontrando Forester, Gênio Indomável, Milk). Ainda que nem sempre essa distinção signifique necessariamente uma superioridade de um Van Sant sobre o outro.

Nessa divisão, Inquietos pertenceria ao segundo grupo — dos filmes de Van Sant com roteiros de outras pessoas, em que o diretor empresta seu modo de filmar e construir uma mise en scène à realização. Vemos, assim, sua forma de acompanhar os personagens muito proximamente, os tons do ambiente que parecem contaminar a fotografia do filme e uma relação imprescindível com a trilha sonora. Inquietos traz inclusive um dos temas caros ao diretor, essa espécie de angústia da juventude, a inconformidade dos corpos à necessidade de serem docilizados pela sociedade, pela vida adulta.

No filme, Enoch é um jovem atormentado pela repentina morte dos pais em um acidente de carro. O seu passatempo, além de jogar batalha naval com seu amigo imaginário, é o de frequentar funerais de pessoas que não conhece. É exatamente em um desses que Enoch conhece Annabel, uma doente terminal de câncer. Aos poucos ambos desenvolvem uma paixão fofamente mórbida.

Assim, com um pouco mais do que 15 minutos de filme, o roteiro nos instala em uma armadilha dramática: sabe-se de saída o futuro do romance e dos personagens e, ainda assim, empatiza-se com o encontro improvável. Da trilha sonora indie bonitinha aos figurinos com o ar vintage descolado, passando pelos personagens disfuncionais porém adoráveis, tudo se encaixa perfeitamente — irritantemente, perfeitamente. Quase não há brechas para respiros ou ambiguidades, cada peculiaridade dos personagens precisa ser didaticamente explicada. Não é possível que os jovens se apaixonem sem o clipe clichê de música romântica e imagens de momentos felizes passados juntos. Não é dado ao espectador a menor dúvida, é preciso que Enoch diga com todas as palavras que sua maior frustração é a de não ter podido se despedir dos pais em seu funeral, pois o garoto encontrava-se em coma.

Em suma, não há inquietude em Inquietos, apenas certezas e caminhos bem definidos — mesmo que pouco ortodoxos ou convencionais. Não há justamente lugar para o cinema de Van Sant — ou para o que há de melhor no cinema de Van Sant. A superfície da imagem do diretor é contradita pela psicologização adolescente da narrativa. A empatia da forma como Van Sant filma seus personagens é esmagada pela esquematização do roteiro.

A exceção mágica do filme fica nas costas de Hiroshi — o fantasma (ou seria um amigo imaginário?) de Enoch, que foi um piloto kamikaze da II Guerra Mundial. A princípio, a relação com o personagem parece não superar a obviedade funcional de garoto deprimido com problemas de sociabilidade que inventa para si um amigo inseparável. Aos poucos, embora nunca de forma definitiva, essa relação torna-se mais incerta. Diante de um roteiro tão autoexplicativo, a presença (e as ausências também) de Hiroshi estremece os padrões estabelecidos. Por alguns segundos, não sabemos ao certo o que vimos ou como aquela peça se encaixa em um quebra-cabeça tão fechado. Mas apenas por alguns segundos.

FacebookTwitter

George Harrison – Living in the Material World (Martin Scorsese, 2011)

Em paralelo aos seus trabalhos de ficção, Martin Scorsese vem dando continuidade há longo tempo a uma interessante série de documentários, sejam em suas viagens cinematográficas pela Hollywood do passado ou pela Itália, ou em No Direction Home, sobre Bob Dylan, isso para não falarmos no registro que fez de uma das turnês do Rolling Stones que também lançou em filme. Uma atividade que constitui um recorte cultural bastante rico do mundo no pós-guerra, que o diretor ítalo-americano, bom stoniano que é, vale lembrar, dedica agora aos Beatles, mas não centrado em sua parceria mais famosa (a de Lennon-McCartney), e sim na figura também mitificada de outro de seus integrantes, o personagem-título de George Harrison – Living in the Material World.

Felizmente, Scorsese em nenhum momento arrisca se lançar no discurso de Beatle negligenciado ou esquecido, o que não corresponderia a realidade. Em um dos depoimentos do filme, Paul McCartney ressalta que não existia melhor ou pior no conjunto, e que os integrantes formavam os quatro cantos de um quadrado em qual todas as partes eram essenciais. A beatlemania, por sinal, ocupa um grande espaço da Parte 1, numa primorosa reconstituição das origens e trajetória do grupo. Até Harrison, aos poucos, ter sua individualidade se sobressaindo no filme de Scorsese. Poucos anos separam momentos como o que Paul relata que uma das canções que ele compusera numa manhã George a melhorou muito (tocando-a de um jeito diferente do que fora originalmente pensando) e de um outro em que Georgesugeriu riffs de guitarra para “Hey, Jude” que Paul recusou, invocando que a música era dele, e cada um decidia a respeito de suas próprias composições. Todos haviam evoluído espantosamente naquele espaço de poucos anos, e a banda se tornara imensa demais e paradoxalmente pequena para conter as personalidades de seus quatro integrantes.

A evolução de Harrison coincide com a sua descoberta da cultura místico-indiana, que o influenciaram espiritual e artisticamente. Gurus e mantras passam a se tornar recorrentes no documentário (infelizmente Scorsese sequer menciona o conhecido episódio em que um dos lideres espirituais amigos de George teria dado em cima de Mia Farrow, que acompanhava o grupo). Era difícil ceder um espaço mais amplo nas faixas dos discos de uma banda que possuía dois dos melhores compositores de todos os tempos (Paul e John). Num primeiro momento, a influência indiana foi responsável por uma fase esquisita de George, que lançou um irregular disco solo, Wonderwall (cuja existência os fãs do cantor preferem simplesmente ignorar) e compôs as possivelmente piores músicas dos Beatles: “The Inner Light” e “Within’ You Without You” (que está justamente no Sgt. Peppers). Assimilada a influência, como sentido espiritual e melódico, mas incorporada ao estilo ocidental de canções pops nas quais George e os Beatles eram mestres (sem o peso de cítaras e outros instrumentos indianos), o biografado atingiu o seu amadurecimento como compositor que logo chegaria a sua plenitude.

A Parte 2 começa não com a dissolução dos Beatles, mas com o surgimento de “While My Guitar Gently Weeps” (tocada com a participação de Eric Clapton), quando George passa a compor em pé de igualdade próxima da de seus colegas de banda. Com a carreira solo, o documentário confere destaque ao ótimo All Things Must Pass, o disco triplo do compositor lançado em 1970, e ao Concerto de Bangladesh que ele organizou no ano seguinte, porém Scorsese dali em diante prefere se concentrar mais no homem e menos no artista. George substitui as drogas pela meditação (chegando a perder sua esposa para o amigo Eric Clapton), Ravi Shankar e Maharishi se tornam seus parceiros mais próximos, cultiva a paixão pelas pistas de automobilismo, a companhia dos krishnas, além de sua carreira de produtor de cinema (especialmente dos trabalhos da turma do Monty Python), que ocupa um longo segmento perto do final. Mas acima de tudo o misticismo e obsessões espirituais do cantor (que numa entrevista chega a chamar os descrentes de ignorante), numa tentativa de Scorsese de compreender a persona particular de George. Alguns discos poderiam ter sido um pouco abordados (como o de 1979, talvez o melhor dele), porém Scorsese prefere pular logo para o Traveling Wilburys, banda que formou com outras celebridades no final dos anos oitenta (o que infelizmente parece coincidir com a atitude de vários dos ditos fãs de Harrison que não ouvem mais que o All Things Must Pass). Nem mesmo são mencionados no documentário os problemas com a autoria do gospel “My Sweet Lord” (seu maior hit na carreira solo), que lhe custou trinta anos de processo por plágio até relançar a canção numa versão descaracterizada em 2000.

Scorsese prefere um recorte na figura simpática do sujeito que pregava um desapego ao “mundo material”, através de um volumoso material de filmagens caseiras ou de suas turnês. Acaba por impressionar o depoimento de sua viúva relatando a luta de ambos contra um jovem maluco que invadira a residência do casal para assassinar o compositor, e que ressoa a trágica morte de John Lennon mostrada anteriormente (ao som de uma bela canção de George dedicada ao amigo morto). Mesmo tendo sobrevivido ao ataque, George Harrison estava com os dias contados, vítima de um câncer que o liquidaria. O seu desaparecimento em Living in the Material World não nos deprime: levado pela morte é como se ele apenas encontrasse a paz espiritual que tanto procurava, com Scorsese fechando o documentário com um plano que aparecera na abertura: Harrison surgindo do nada por entre as tulipas de um canteiro de flores no campo, flertando com a câmera durante uma filmagem caseira. É como um atestado de que a sua presença estará sempre por perto, ainda que em merecido descanso das agruras e emoções do mundo material.

FacebookTwitter

O Enigma de Outro Mundo (Matthijs van Heijningen Jr., 2011)

A princípio, O Enigma de Outro Mundo de 2011 não é um remake do filme de John Carpenter, e sim uma prequel, centrada nos acontecimentos da base norueguesa e que se conecta ao início do original, em que os dois sobreviventes, perseguindo um cão que se revela mais uma réplica criada pelo monstro alienígena que desenterraram, se encontram com o time de Kurt Russell. Partindo dessa abordagem, o que mais se destaca é o aspecto lúdico que Matthijs van Heijningen dá ao filme: trata-se de um jogo entre ele e os fãs da obra original, em que as peças vão sendo movidas pelo tabuleiro e posicionadas até que tudo esteja no lugar para o encaixe entre as duas histórias; assim, temos o encontro da nave, a retirada do bloco de gelo onde se encontra a criatura, uma longa sequência que serve para dar origem ao cadáver queimado grotesco que os americanos levam para a própria base, pequenas inserções aqui e ali que preparam o cenário da visita de MacReady ao local destruído.

Nesse sentido, Van Heijningen acaba realizando algo próximo ao que Martin Campbell fez em Cassino Royale: ambos partem da premissa de um status quo partilhado com o público e encenam a sua construção a partir de uma situação significativamente diferente, ainda que apenas na aparência. Isso, porém, já aponta uma das fraquezas do filme de Van Heijningen: se a informação compartilhada de Campbell é um personagem de status já mitológico que ele irá lapidar, através dos acontecimentos, tendo como matéria-prima um James Bond muito distante daquele com que estamos acostumados, no caso do filme de Carpenter não há nada nesse sentido, e o jogo proposto começa a perder a graça quando fica evidente que não se pode esperar fazer nada além de meramente preparar o cenário que os personagens da “continuação” visitam — a lista ali em cima não é casual. Fora isso, o novo O Enigma de Outro Mundo parece um filme feito apenas para preencher os 100 minutos antes das cenas dos créditos finais que conduzem ao original, e nesses 100 minutos não há nada que já não tivesse ficado evidente a partir das poucas cenas que Carpenter dedicou aos noruegueses; Van Heijningen não tem dimensões a acrescentar, e sua prequel acaba sendo pouco mais que uma brincadeira de fã.

Mas, ao mesmo tempo, e por mais que sob muitos aspectos não seja, O Enigma de Outro Mundo de 2011 também é um remake do filme original. De certa forma, não é nenhuma surpresa: temos a mesma criatura, a mesma situação de isolamento, no mesmo lugar, com poucas semanas de diferença — é claro que a coisa toda vai se desenrolar de forma semelhante. É um remake genuíno, porém, indo muito além de uma estrutura geral parecida: temos a clássica cena do teste para ver quem está infectado — e crédito às boas ideias: dessa vez, a prova de humanidade está nas obturações, já que o monstro não consegue replicar material inorgânico —, o clímax na nave, a cena em que um personagem finalmente entende o que está acontecendo, e até mesmo o lança-chamas falhando num momento crucial. Sendo um filme claramente feito por um fã do original, também funciona como homenagem, e Van Heijningen se aguenta bem nesse quesito, embora não se livre de fazer diversas concessões ao tipo de cinema comercial de terror praticado hoje em dia — o exemplo maior é que, por mais que haja uma tentativa séria de estabelecer a paranoia e a erosão da confiança do grupo que assombravam a versão de Carpenter, ela logo é sabotada pelo excesso de aparições da criatura, que a todo momento surta e destrói seu disfarce lançando tentáculos para todos os lados, aqui com muito menos paciência e, pelo jeito, ainda menos consciência de qual é, afinal, a vantagem de conseguir criar réplicas quase perfeitas de suas vítimas. E também estranhamente submetida a certos maniqueísmos e que-tais, que a levam a escolher como clone para o clímax justamente o personagem construído como uma espécie de vilão humano do filme, o cientista arrogante, irresponsável etc.

Por um lado, esse tipo de comparação não é dos melhores critérios — é preciso ver o filme pelo que ele é independentemente do de Carpenter —, mas o problema central é que, diferente de um Planeta dos Macacos: A Origem, O Enigma de Outro Mundo de Van Heijningen não assume nunca uma postura com relação a si próprio que não seja uma função do de Carpenter; o filme de Wyatt é tanto uma prequel do de Schaffner quanto de uma eventual continuação que se estabeleça por si mesma, assumindo o original de maneiras indiretas — tendo, por assim dizer, diante de si um horizonte em que o filme de 1968 pode ter sua existência ignorada. O horizonte de Van Hejningen nunca prescinde do original, e cria um elo concreto com O Enigma de Outro Mundo de John Carpenter, mas o situa justamente no entrelaçamento entre um remake que não faz mais que apontar para sua inspiração — é quase uma performance, apresentando o clássico de 1982 para a geração atual —, mas que nunca alcança o mesmo nível, e uma prequel que nunca se afasta do óbvio.

Temos, portanto, um filme que até é, em muitos aspectos, eficiente, mas exatamente no que não se propõe, pois seus méritos terminam ofuscados pela insistência em não deixar que o de Carpenter saia da vista ou da memória. Resta a questão de como uma obra tão dependente de outra se apresenta a um público que não tenha assistido ao original (o filme acabou sendo um fracasso de bilheteria, o que é sintomático, não de uma estética provocativa ou de timing ruim, mas de seu encapsulamento e horizonte referencial mínimo). Poderia ter sido diferente, porque não se deve negar que a ideia e a intenção — um remake que não é bem um remake e ainda por cima tenta levar os espectadores a assistir ao filme que o inspirou — são boas, e o próprio Carpenter já tinha dado, em Assalto à 13ª DP, a lição de como fazer uma refilmagem que não é bem uma refilmagem (e de um filme de um grande cineasta). Não se pode negar também que temos aqui algo acima da média quando se trata de remakes de filmes do diretor, mas isso não quer dizer muita coisa. Nem é suficiente.

 

FacebookTwitter