Corrente do Mal (David Robert Mitchell, 2014)

Por Luis Henrique Boaventura

Ao erguer sua alegoria anacrônica da corrosão da juventude americana, terminal, numa Detroit suburbana cansada e quase fantasma, David Robert Mitchell faz retornar o medo à categoria de grande objeto linguístico do cinema fantástico americano. Não a razão para o medo, seu gatilho, mas a própria fundação do sentimento. Como se sabe, o terror elementar na mitologia americana, não importa quantas vezes reencarnado (se em Lynch, em Ferrara, Craven ou Dante; ou em uma dúzia de outros Carpenters além de Halloween), não está no distúrbio da ordem em si, mas na sua antecipação, no medo pelo medo da implosão de um modo de vida (ainda que imaginário, enquanto fantasia que carece de expurgação). Em Halloween (de todos, o par mais próximo do filme de Mitchell), Carpenter não cede à paranoia da ameaça estrangeira (planta baixa para o fetiche americano pelo terror alienígena dos anos 50, repisado mais tarde por Ridley Scott e pelo próprio Carpenter), pelo contrário, essa força age de dentro para fora: Myers mata a irmã, um crime singular no contexto da saga não apenas por ser o pecado original do pequeno Mike, mas por ser o único com justificativa plausível, momento em que Myers mata por motivação outra além da força-motriz imparável que o define. Ele pesa o ato da irmã e a condena à morte num julgamento que espelha a voracidade social por correção de comportamento. Está tombado o núcleo familiar pelos mesmos agentes que o americano, geração após a outra, falha em compreender: os jovens e o sexo.

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O sexo é o signo clássico do mau presságio no cinema de horror. Foi Mario Bava que, ao atribuir pujança erótica à hora da morte em Seis Mulheres Para o Assassino, inaugurou no sexo e no corpo feminino as preliminares para o assassinato como a manifestação estética máxima do gênero através da desconstrução do ato e do corpo (mais que frequentemente os amantes são pegos mid-coitus ou imediatamente após). Não se trata de destruir o sublime em detrimento do grotesco (já que estamos nesta página), mas senão de substituir uma beleza (essa da petite mort) pela outra, maior (o gozo total, da morte levada a cabo efetivamente). Ao usar o sexo para passar adiante sua maldição, Corrente do Mal segue a pista do giallo e do slasher, claro, embora sem consagrar nem o momento da morte e nem o do sexo, mas o espaço entre ambos, e mais: a decisão egoísta do já amaldiçoado em transmitir a praga e a decisão dos que de bom grado se voluntariam para o sacrifício de recebê-la.

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A força do horror em Corrente do Mal está apoiada sobre estes dois argumentos: o fato de que o monstro nunca para (aonde quer que se esteja no mundo ele estará caminhando — muito lentamente — na sua direção, ameaça projetada da extremidade do fora de campo); e o isolamento daquele que é “seguido” por ser o único capaz de vê-lo, o que torna a vigília dos seus amigos inútil a não ser que se escolha amaldiçoá-los também. E este me parece mais terrível que o primeiro. Não se trata apenas de estar sentenciado para sempre à agitação da fuga (toda casa, gramado, rua em que se entra em breve será deixada para trás; todos os lugares são passageiros e despojados de expectativa), mas de estar forçado à seguinte escolha: se isolar e morrer sozinho ou envolver — e condenar — as pessoas que se ama.

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Jay ama Yara, Kelly, Paul e Greg. Os cinco amigos parecem as únicas pessoas vivas nessa Detroit assombrada e decadente quando ligados pelo tempo vadio da adolescência, um onde/quando em que tudo é por demais sonífero e vagaroso e que transforma figuras paternas em estranhos surdos para os problemas que nessa idade não dispõem de tradução certa para a linguagem adulta (vide a forma tomada pelo monstro no embate final). Corrente do Mal se esvaziaria de sua verdadeira potência se Mitchell (o diretor já exercitou o tema em The Myth of the American Sleepover, sua estreia) não empreendesse todo o tempo necessário na construção das relações entre os garotos e no modo como eles percorrem juntos os espaços que o filme encontra e logo abandona quando se assume em seus meados como road movie, o que faz do pequeno trecho em que todos estão no carro a caminho da casa no lago um momento simples e belo. Não há outra família que não aquela do carro para se deixar para trás, ou tampouco um contento social lá muito significativo (são pouquíssimos os elementos capazes de indiciar mais ou menos a linha temporal, como o reader em forma de concha usado por Yara, que sequer existe na realidade), o que faz da necessidade de movimento uma ferida que já nasce dormente.

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O jovem que é cria dessa cultura do nascendo morimur, da expiação da culpa dos seus pais e dos pais destes, da data de validade expirada e da falência anunciada e irremediável — este é o personagem em todos os personagens de Corrente do Mal, condenados à mobilidade incessante e à orfandade de um território seu, à não-identidade por não haver modelo válido para se apreender no mundo externo ao seu pequeno círculo. Que o monstro eventualmente mate sua vítima é incidental diante da condição de fuga que ele impõe aos que são tocados e transformados em errantes, impossibilitados de ocupar e viver em um lugar determinado. Por isso é preciso redescobrir o lar americano para além do espaço de coisas como a grama, o passeio e as cercas brancas; é preciso encontrar casa nas pessoas. Como expresso no ato de Paul. Refundar o sonho sobre o sacrifício último por amor, já que o medo é invencível e viver para ele é apenas uma forma mais lenta e pungente de morte.

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No Silêncio da Noite (Nicholas Ray, 1950)

Por Luis Henrique Boaventura

1. Uma história de violência

A despeito da fúria que os toma como uma doença, os homens de Nicholas Ray são frágeis feito crianças, vulneráveis às iniquidades de um mundo que se recusa a abraçá-los. A resposta ao deslocamento, como quem responde a um pai, é sempre um cavo grito de cólera. Não há nada de inexplicável na raiva que Dixon sente, ela é apenas o desespero dos solitários, aqueles que em verdade ninguém narrou como Nick Ray (por se tratar em muito de narrar a si mesmo). Como para Jim Stark, Jim Wilson, Ed Avery, Johnny Guitar, a violência de Dixon é faísca do seu descompasso para com esse mundo que não o reconhece. A primeira cena de No Silêncio da Noite tem nos olhos de Dixon, refletidos no retrovisor, o único alento humano em contraste com a frieza da cidade que corre do lado de fora. Asfalto, pessoas, luzes, prédios, e dois olhos perdidos no espelho de um carro, último elemento relacionável do quadro. “É possível ser sozinho na cidade”, diz Ida Lupino a Robert Ryan em Cinzas Que Queimam. Dixon procura ir à forra com qualquer um que cruze seu caminho porque todos são estranhos a seus olhos, vultos incomunicáveis, miragens que povoam um lugar desolado, uma terra estrangeira (mesmo e principalmente as amizades que o cercam, rostos torpes e indistintos na noite). É por isso que Dix passa a vida procurando esta mulher de quem, como ele mesmo diz, não sabe o nome, não sabe como se parece, não sabe onde encontrar. Diferente dos vagabundos habituais do film noir, homens doentes, aleijados emocionais, Dix é um romântico em busca de alguém como ele nesse deserto, alguém que seja capaz de reconhecê-lo na neblina.

2. Inocentes

Há somente dois personagens livres de qualquer culpa em No Silêncio da Noite: Dixon e Mildred, a garota assassinada. No noir de um modo geral, mas principalmente nos filmes de Nicholas Ray, o mundo não é apenas um lugar hostil, é em si mesmo uma entidade maligna. Dixon e Mildred são vítimas de uma ordem que não permite a esse universo criado por Ray o cultivo do belo. É bobagem pensar, por exemplo, que Dixon poderia encontrar e, além disso, permanecer com sua amada para o resto da vida. Só lhe é concedido o encontro para que ele possa provar da perda, de uma dor que ainda não conhecia. Não há lugar aqui para a redenção, para o que é limpo; tudo está submetido a essa concepção draconiana das coisas, que tritura os corpos entre suas engrenagens. Nada pode a força humana contra a impiedade dessa máquina. É por isso que a única personagem pura, tola e genuinamente feliz em No Silêncio da Noite é morta com quinze minutos de filme.

3. Ponha-me na cama

Dixon tem a companhia de quatro personagens ao longo do filme: Charlie, o ator decadente, Brub, o velho parceiro da guerra, Mel, seu devotado agente, e Laurel, a mulher que ama. Brub se aproxima de Dix porque tem um caso para resolver, Laurel (ainda que venha a se apaixonar) quer apenas deixar de ser uma atriz de segunda, Charlie o visita uma vez por semana pra conseguir uns trocados, e para Mel, o único que parece nutrir uma legítima preocupação por ele, não se sabe até que ponto vale a amizade pelo homem ou o interesse pelo talento do cliente. Todos os quatro desconfiam dele, todos armam pelas suas costas. Brub o convida para jantar esperando lhe arrancar alguma pista, Laurel planeja fugir acreditando ser ele o assassino, Mel não hesita em roubar de sua mesa, sob um pretexto afiadíssimo, o roteiro pronto e levá-lo ao estúdio enquanto ainda é tempo. Não se sabe bem até que ponto Laurel e Mel estão cuidando de Dix ou de si mesmos. Enquanto isso, Dix parece ser o único a não desconfiar de ninguém em falso, o único em No Silêncio da Noite que é claro em todas as suas ações, seja no momento de se entregar sem volta a uma mulher ou em não esconder um impulso de raiva para o benefício dos presentes. “Diga para procurar um homem como eu, mas sem o meu senso artístico”, é como ele se despede de Brub na noite do jantar. Dix é uma presa fácil no mundo porque é o único personagem transparente, incapaz de não ser rigorosamente o que de fato é. Por isso precisa de proteção, por isso a cena em que Laurel, Mel e Charlie o colocam na cama para dormir, com um versinho de ninar e um beijo de boa noite, é o momento-chave de toda a epopeia de Ray em torno do homem solitário.

4. Um copo de cólera

Muito da beleza nessa solidão está na rejeição absoluta dos seus heróis, isolados inclusive do próprio espectador. Há essa [falsa] troca de protagonistas em No Silêncio da Noite. Começa de fato quando Laurel é convidada à delegacia pela segunda vez, sozinha e às escondidas de Dix (a quem ela deixou dormindo). Inadvertidamente, Ray faz de nós cúmplices de uma suspeita que só ganha forças com o passar do tempo. A cena da briga no asfalto é o argumento final para condená-lo, quando ele afasta a mão para alcançar uma pedra na beira da estrada e seus olhos (um Bogart à margem de qualquer comparação) se acendem como duas tochas. Até este momento vemos Dix cada vez menos enquanto, por outro lado, acompanhamos Laurel em tudo o que ela faz. Sabemos dos seus segredos trocados com a massagista, do pedido de socorro à mulher do sargento, de detalhes do seu passado. Conhecemos todos os seus medos. Dix, ao contrário, não nos deixa saber se sua próxima reação será um sorriso ou uma explosão de raiva. É quando Ray disfarçadamente torce os gêneros e, a um noir que já passava da metade sem um antagonista definido, a ideia de Dix como assassino e Laurel como a vítima em perigo passa a fazer todo sentido.

5. Uma cena de amor

Dixon e Laurel estão na cozinha. É uma bonita manhã, uma luz morna invade o quadro por todos os lados. Ele prepara o café enquanto ela ainda se esforça para acordar direito. “Qualquer um que nos visse agora saberia que estamos apaixonados”. O que faz desta uma das cenas mais belas e terríveis que Ray já filmou é o segredo que o espectador compartilha com Laurel. É saber da dúvida que a assombra, que a faz amar e temer o mesmo homem, porque nós o tememos também. Estamos do lado de Laurel agora. Ray aproxima a câmera de seu rosto a cada sobressalto, os acordes da trilha pesam a cada expressão de medo nos seus olhos e marcam um suspense muito bem definido: a tensão, a iminência de perigo; dois personagens em cena, um a ameaça, outro o ameaçado. Se todos os amigos de Dix voltam-se em segredo contra ele, nós não deixamos por menos. A ação que se segue é acompanhada com o público como cúmplice, levado junto de Laurel ao agente de viagens, sabendo do seu plano de fugir antes do casamento, sabendo da armação entre ela e Mel para que Dix receba a notícia do melhor modo possível (e para que eles possam se safar mais facilmente). Na cena da comemoração do noivado, com todos reunidos no restaurante, o espectador é um a mais na mesa que sabe a verdade e sabe o que todos escondem de Dix. Por alguma trucagem maligna que Ray enreda, também nós damos as mãos no conluio para enganá-lo.

6. Une femme est une femme

Se por cânone no noir a femme fatale é a perdição do homem, o objeto introduzido para instaurar a desordem, aqui ela surge como salvação de uma alma em ruína. No Silêncio da Noite é uma espécie de verso no tecido do film noir, onde vemos as coisas em oposição ao que são realmente, como deveriam ser, mas que conduzirão ao mesmo velho destino dos homens sem esperança da linhagem de Lang, Tourneur, Preminger. Dixon, como ele mesmo diz na fala mais icônica do filme (“… I lived a few weeks while she loved me.”), estava morto até encontrar Laurel, e só depois de se apaixonar sua vida volta aos eixos. Poderia ser qualquer um, mas que se pegue Almas Perversas de contrapeso, este noir definitivo: o homem comum com uma vida comum que entra em colapso quando esbarra em uma mulher na rua. Dix, ao contrário, volta a trabalhar, volta a sorrir, volta a fazer planos. Tudo isto para terminar não muito diferente de Edward G. Robinson no filme de Lang: apagando-se num fade out enquanto caminha de cabeça baixa para fora do quadro. Ambos têm a chance de provar da felicidade só para despencarem de um lugar mais alto, a única diferença é que Lang deixa isto bem claro em Almas Perversas. A femme fatale de No Silêncio da Noite é extraordinária porque nos tem do seu lado a maior parte do filme. Ela nos confidencia seus segredos, divide sua aflição, seu medo, até que a decisão de fugir e de magoar Dix deliberadamente passa a fazer sentido ao espectador.

7. Adeus, Dix.

Mas a personagem de Gloria Grahame não é a respeito de maldade e premeditação como a de Joan Bennett, ela é apenas mais uma vítima, e é esta absolvição final que faz de No Silêncio da Noite o mais belo e o mais triste dos filmes, uma nota sobre a perda, sobre o que não tem mais volta. Quando Laurel atende o telefone e fica sabendo da inocência de Dix, e os dois se olham por uma última vez, fica claro que, por um leve desencontro, diabrura do tempo, já é tarde demais. Como se a vida lhes fosse arrancada do corpo neste instante, ambos sabem que perderam um ao outro, que a pessoa pela qual se apaixonaram já não existe mais. Há agora um vácuo, um vulto, mais um rosto indistinto na sombra como todos os outros do reino de Dix, o nooble prince que só tem a própria vida a governar. E ele sabe agora, na calma do olhar derradeiro, que a culpa não é de Laurel. Culpa-se o mundo, númen maldito contra o qual não há refúgio ou artifício. E em face do amor desfeito, Dixon retira-se solenemente para o esquecimento de um fotograma escuro, porque a romaria dos homens toma o rumo certo nessa hora: de volta à estrada onde começou, vai diluir-se na velha correnteza urbana, no ventre oco do mundo, no silêncio franco da noite.

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Tourneur e a rarefação do horror

Por Luis Henrique Boaventura

Há três momentos de assombro em O Homem Leopardo: o galho que se dobra na cena do cemitério, o cigarro jogado na direção do curador do museu quando ele é perseguido pela rua, e os passos invisíveis que se aproximam de Clo-Clo pouco antes de sua morte. Três fagulhas da fricção de coisas suspensas do mundo conhecido pelo espectador, ações clandestinas que correm à revelia do quadro, no subterrâneo da imagem. A quem esses passos pertencem? De que mão em que sombra do quadro vem o cigarro jogado na tela? Ao peso de quem ou de quê se vergam os galhos das árvores do cemitério? Se o suspense, em definição simplista, é o terror sugerido, a tensão criada por Jacques Tourneur provém de um terror invisível, habitante de um inviolável fora de campo. Os grandes clímaces de O Homem Leopardo ocorrem sem a menor partícula de matéria que os dispare. O catalisador da tensão não está mais oculto, conforme cânone do gênero; ele sequer existe realmente. Visíveis na tela apenas faíscas de qualquer coisa que se esconde, provocante objeto de discurso resgatado dos dois filmes anteriores para se tornar peça funcional e impingir efeitos que não seriam possíveis sem uma intrincada progressão referencial.

Em 1942 e 1943, ao lado de Val Lewton, produtor da RKO Pictures, Jacques Tourneur rodou três filmes-B de horror com orçamento limitado a US$ 150.000 cada: (em ordem) Sangue de Pantera (Cat People, 1942), A Morta Viva (I Walked With a Zombie, 1943) e O Homem Leopardo (The Leopard Man, 1943). Três filmes absurdos para a época, ligados entre si por uma obsessão liminarmente erótica/infantil: o fascínio pelo que está oculto ou que se desconhece; uma presença que se infiltra nas camadas do filme, que se sente, que se ouve, mas que está sempre num nível imediatamente inferior ao da superfície. Qualquer coisa fantasmática e inferencial que se acha num subsolo diegético inacessível ao espectador. O único momento em que essa presença denunciada por uma sombra ou um estalo no escuro se materializa é no momento da morte, acessando um lapso entre os planos onde o medo, espectro incorpóreo do qual só se apreende a sombra que projeta, feito fumaça, entra em contato com o que é matéria e a destrói num golpe de lâmina (garras, dentes, a ponta de um florete).

Há um referente catalisador do horror pretendido por Tourneur em cada um dos três filmes. Em Sangue de Pantera é a metamorfose de Irena, em A Morta Viva é a magia negra e em O Homem Leopardo é o serial killer que mata imitando um felino. Cada um desses elementos é responsável por homologar o gênero em que Tourneur enquadra seus três filmes. É a relação entre eles, contudo, que permite ampliar a perspectiva de texto fílmico para as três obras (e não apenas uma) e que os constitui não como meros “referentes mundanos”, mas como vibrantes objetos de discurso.

Apesar de parecerem a princípio distintos, os elementos disponíveis nos três filmes são, na verdade, apenas um referente (apreendido e postulado por Tourneur como cânone do cinema de horror): a sugestão do perigo, a iminência da tragédia, a ameaça que não se mostra, mas que se esconde e que aterroriza sem precisar agir, bastando os efeitos de sua presença (por vezes real, por vezes apenas imaginária) ocultada nas sombras densas da fotografia como herança do até então recente expressionismo alemão. É o mesmo referente, passando, contudo, por recategorizações que o redefinem e sentenciam uma tese de Tourneur ao final de sua parceria com Val Lewton.

Ocorre, como se verá, um processo de rarefação do horror e de estudo do quanto essa gradação de intangibilidade afetará o envolvimento do espectador. O referente é denso em Sangue de Pantera, mais esparso em A Morta Viva (a partir de quando já é seguro o chamarmos de objeto de discurso), e totalmente abstrato em O Homem Leopardo. Cada um desses três filmes corresponde a uma fase de diluição da ameaça em medo puro, um esvaecer da matéria até que a mera suposição de sua presença seja desencadeante suficiente às pretensões de Tourneur. Como ocorre em O Homem Leopardo, tratado quase sempre como obra menor, de argumento cretino e subterfúgios primitivos, mas que é clímax de um delicado processo de expurgação desse algo secreto que habita as imediações da lente, um processo que se estende por estes três filmes fundamentais do início de carreira de Tourneur como operário de estúdio em Hollywood.

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Sangue de Pantera (Jacques Tourneur, 1942)

Sangue de Pantera conta a história de Irena (Simone Simon), uma jovem artista, imigrante nos Estados Unidos, que se apaixona e se casa com Oliver (Kent Smith). À medida que o tempo passa, a relação dos dois se deteriora, e Irena passa a sofrer com alucinações. Ela descobre ser descendente do chamado “cat people” (título original), pessoas com a capacidade de se transformar em panteras. Conforme avança, Irena percebe que o perigo que ela sempre sentiu em seu entorno partia, na verdade, dela mesma: uma mulher-pantera.

Concreta (mas implícita), a insígnia do horror aqui desfila (e este é o termo apropriado) encarnada em Irena, ainda cerceada pela prisão da pele, lutando para escapar. A primeira cena já entrega esse duelo: Irena, diante da jaula do zoológico, tentando desenhar a pantera. Ela se esforça para apreender no papel o relevo da sua escultura, a complexidade do seu movimento, a fúria e energia represadas no limite de uma vitrine de exposição, um quadro para ser apreciado por quem tiver a presteza de dedicar ao olhar alguns minutos do seu tempo; não muito diferente do processo empreendido por um cineasta. O medo é ainda completamente tangível, embora dormente. Como um animal preso, não há perigo para quem observa a não ser que essas grades se partam. É necessário esse irromper do horror para além de seus limites, do contrário, ele torna-se um engodo, uma caricatura, feito um bicho de zoológico: precária representação da natureza. A pantera não é pantera sem uma vasta planície que suporte o alcance das suas patas. Falta-lhe a explosão e o espaço, falta-lhe o poder de imprimir medo novamente. Não há diferença entre o animal que respira dentro da jaula e o que Irena desenha no papel: ambos são recortes de um cenário verdadeiro, ambos são meras representações de algo. O horror aprisionado é, afinal, apenas uma possibilidade de horror, e todo medo que emana dele é uma farsa.

Por isso este medo prende-se à carne; nada no filme avança para além do raio de ação que um corpo derrama sobre o outro. O tempo inteiro se investem esforços numa fuga, mas é tão somente a este conflito que o filme se atém: no universo do corpo. É o objeto de Tourneur em Sangue de Pantera: o corpo mutante, em movimento, em desespero; ao mesmo tempo a ameaça e o ameaçado. O suspense limita-se às instâncias do corpo porque a presença à que ele reage não pode jamais se dissociar do cálice que o contém (o corpo feminino). Por esse motivo, em cada uma de suas cenas (ao contrário do que ocorre nos dois filmes posteriores), sabe-se que a presença que ronda o personagem em perigo é a da pantera, amarrada ao tecido vivo do mundo e portanto sujeita a seus princípios (como a dor ou a morte). É a desvantagem de Irena para o voodoo de A Morta Viva ou a “impresença” assassina de O Homem Leopardo. Presa ao corpo, ela pode ser vista, ser tocada e, portanto, vencida.

Interessante que, mesmo por isso, seja a liberdade o tema de Sangue de Pantera, ainda que despojada de beleza, alcançada num rebentar seco e violento. O assassínio, embora guarde a premeditação ritualística da caça, é mais um despejar exangue de força reprimida, instantânea e derradeira; clímax do atrito entre os corpos (a grande demanda do bicho enjaulado). Tourneur passa quase 70 minutos apenas ensaiando o horror, acompanhando-o em seus muitos esforços para vir à tona; ocultando o referente na névoa, mas sempre aludindo a ele, em anáfora, com o som de passos que se espalham ao redor dos personagens ou da montagem ágil que Tourneur imprime à tensão de suas sequências. O medo ganha força porque refere a algo ainda aceso na memória discursiva do espectador.

Por alguma travessa ironia, essa força incontida termina por recair exatamente sobre a própria pantera (Irena). Um reflexo. Mas era essa mesma a ideia de libertação conduzida desde o início por Tourneur, onde se tenciona o estilhaçar do corpo (objeto frágil e mundano) para a sublime evolação do espírito. Vencido o nível da carne, passa a não haver defesa contra o mal.

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A Morta Viva (Jacques Tourneur, 1942)

Em A Morta Viva, Betsy (Frances Dee) é uma enfermeira contratada por Wesley (James Ellison) para cuidar de Jessica (Christine Gordon). Tentando ajudar Jessica, que sofre de um estado de catalepsia inexplicável, Betsy recorre ao voodoo, componente indissociável da cultura africana que povoa a ilha onde o filme se passa.

Sangue de Pantera termina com o irromper da forma por sua essência, uma vitória da alma como refúgio da verdade (mesmo que maligna). Por isso, em A Morta Viva, o medo já não jaz debaixo da debilidade de um corpo qualquer.  Ele é livre, absoluto, percorre ao largo o vazio do mundo, porque se Sangue de Pantera tratava da iminência da morte, A Morta Viva trata do seu habitat: o abismo e a desolação de seus espectros. O referente é recategorizado, não tomado como um novo elemento. A acepção construída ao longo dos três filmes de Tourneur só é possível porque a teia de sentido de A Morta Viva liga-se, por sua vez, ao que já fora construído em Sangue de Pantera. A tensão não explode mais da fratura do corpo, mas da fratura dos espaços que este conquista. Essa presença antes tão óbvia, traída por rastros e outros indícios, agora perde-se e desaparece nas fiações da atmosfera, arcaico feito algum fantasma cujo vulto ficou para sempre estampado nos olhos da morta-viva. O medo excede as paredes do corpo e ganha dimensões mais raras, montando nos seres e nas forças da natureza. É o som longínquo dos tambores, a sombra que se desprende de Carrefour e que chega antes dele ao seu destino, os cabos invisíveis que arrastam Jessica para a cura (novamente a morte como ideia de fuga). O medo que escapa das fronteiras do corpo em Sangue de Pantera ganha as fronteiras da Terra em A Morta Viva, povoando seus arredores de caveiras e animais enforcados, de assovios e vendavais, recorrendo à força do mundo, e não apenas de seus objetos, para imprimir-se sobre a tela.

Essa fé de Tourneur nos elementos do campo A Morta Viva um de seus filmes mais requintados. Tourneur aproveita-se de tudo que seu espaço fílmico tem a oferecer. As sombras compondo miragens de teias e balaustradas, o duelo particular entre os extremos do claro (de espanto) e do escuro (de medo), o vento que resvala no vestido de Jessica e o dota de vida própria enquanto ela atravessa o quadro deixando um rastro branco para trás. O fora de campo aqui é reinventado; ele não trata apenas do que cerca a câmera. O suspense sob esses preceitos é o do corpo, limitado à presença física. Já o suspense em A Morta Viva é o que monta o som dos tambores e viaja até o outro lado da ilha. O horror não mora na fricção entre um corpo e outro, mas nas largas distâncias que se impõem entre eles, oposição que só se torna possível quando se defronta A Morta Viva (o horror na segunda acepção) com Sangue de Pantera (na primeira acepção).

A imagem de um personagem se movendo de um extremo do quadro para o outro é recorrente em A Morta Viva. As duas cenas mais lembradas de Sangue de Pantera expõem essa diferença: na opressão da cena da piscina e na sequência em que Alice se sente seguida, quando a câmera faz apenas recortes de seu corpo e deixa para a imaginação do espectador a possibilidade de algo saltar na sua frente a qualquer momento. Já aqui não há essa necessidade. O horror está inscrito na terra; pertence à amplitude do espaço, não à exiguidade do corpo, mero joguete de Tourneur em suas composições — sumido no meio de um matagal ou engolido pelo mar; movido por bruxaria através do cenário como quem move peças num tabuleiro. O objeto de Tourneur em A Morta Viva é o próprio mundo (e suas passagens secretas).

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O Homem Leopardo (Jacques Tourneur, 1943)

A fim de melhorar a performance de Kiki (Jean Brooks), uma dançarina de um clube noturno no Novo México, Jerry (Dennis O’Keefe) tem a ideia de usar um leopardo no espetáculo. Assustado com a plateia, o bicho foge e não é mais encontrado. Nos dias que se seguem, uma série de assassinatos passa a assolar a cidade.

Se em Sangue de Pantera o horror mora no corpo e em A Morta Viva ele galopa livre a face do universo, em O Homem Leopardo ele se lança a um nível infinitamente mais lasso desse círculo: o do imaginário. É incrível que Tourneur, aproveitando-se de elementos extradiegéticos (o título, o fato de ter dirigido Sangue de Pantera um ano antes), nos induza ao engano absurdo de conceber literalmente um “homem-leopardo” quando sua existência não é sequer cogitada por algum personagem no filme. Não há menção, não há evidência, no máximo uma sugestão oblíqua. Ainda assim (até onde se sabe) é ele nas molduras dos planos, curvando um galho ou camuflado nas sombras pouco antes do ataque. A tensão funciona em O Homem Leopardo sem ligações com um indivíduo ou mesmo com a porção de espaço que ele supostamente ocupa, um espaço que nos dois filmes anteriores era compartilhado com a vítima, mas que agora acomoda-se num vão entre os patamares, interregno entre a realidade e a loucura.

Esse processo de diluição que se assiste nos três filmes só se completa porque o referente fechado no (longínquo) filme anterior é retomado com elaborada prestidigitação. O horror não está personificado exatamente — portanto não pode ser combatido, como em Sangue de Pantera — e não está solto na superfície do filme como em A Morta Viva. Ele é apenas uma suposição, interpretação dos sinais que sobram do fora de campo para dentro da tela (o galho, o cigarro, o som dos passos).

É claro que há uma aproximação com Sangue de Pantera; muitos podem argumentar que a cena da rua com a parada de ônibus poderia estar sem problemas em O Homem Leopardo, mas há aí uma coincidência que ao mesmo tempo é uma diferença determinante: as certezas a respeito dessa cena. Em ambas o espectador está seguro da identidade do perigo que ronda os personagens, mas apenas quanto à primeira ele estará correto. Mesmo que dentro da trama a suspeita do protagonista recaia sobre um homem, o espectador imediatamente amplia a interpretação (porque tem um conhecimento extradiegético que não pode ignorar) e raciocina que, sim, os assassinatos são cometidos por um homem, mas um homem que se transforma em leopardo para matar (já que o bicho é descartado depois dez minutos de filme, uma peça que estrategicamente não se encaixa no trajeto que o público é induzido a percorrer). Em Sangue de Pantera, vemos Irena na tela seguindo Alice. Em O Homem Leopardo não vemos nada (com óbvia exceção da primeira morte, acidental). O suspense é todo firmado na ideia de uma ameaça abstrata, mais imaginária do que real (porque Tourneur só volta ao plano da realidade no pós-clímax, durante a investigação e o exame do corpo).

Nu e mínimo, O Homem Leopardo ilustra uma das questões mais elementares do próprio cinema: o fato de seu objeto ser sempre espectral, sempre uma impresença. As pessoas filmadas já não estão mais ali, os cenários já não existem, as ações foram há muito sedimentadas pela massa constante do tempo. O que se vê em um filme é o eco ancestral da realidade que ele registrou; o que cabe dentro do plano são apenas os sinais de um todo pressuposto, porque o que interessa ao cinema é o gole de fábula que se entorna nesse vácuo: entre o indício e sua fonte. É afinal o lugar da mise-en-scène, baseada na encenação de uma presença que se vende verdadeira, firmando este milenar contrato entre o mágico e o público: o pacto da ilusão, da mímica, onde até a crença é forjada. O horror invisível de O Homem Leopardo faz saltar a mais tênue filigrana desse conceito: o suspense, pleno e exuberante, baseado em rigorosamente nada além do que os signos jogados na tela são capazes de engendrar, levando a cabo o esforço patético do espectador em antecipar-se à narrativa.

Juntos, os filmes da parceria Lewton-Tourneur formam quase um estudo de caso das reações e comportamento do espectador diante dessa dissipação do horror, provando que ele não está no filme, mas na retina de quem o assiste. Cabe ao cineasta provocar os sentidos corretos, dar ao público espaços a preencher, uma construção só possível com as reconstruções operadas pelo discurso de Tourneur no mesmo referente catalisador do gênero que foi instituído no primeiro filme.

Essa rarefação do referente de horror faz-se quase defesa de uma ideia de cinema (um tanto démodé, talvez): partindo do intangível, tudo pode ser arranjado. O delírio mais ultrajante de Allan Poe é possível quando vestido na mortalha da noite, esconderijo de panteras e outros demônios. Tudo o que não se vê ou que não se conhece provoca o súbito deslumbramento dos homens, emprenha o mundo de centauros e feiticeiros, imprime num grão de poeira o fascínio cintilante do imponderável. Jacques Tourneur inventou com sua trinca de filmecos baratos, todos com a extensão de um episódio de novela, os princípios que regem até hoje a urdidura do medo no cinema: a imposição de algo cuja validação é irrelevante, que não demanda ser visto ou tocado, concorrendo junto ao espectador em sua própria dissimulação.

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Em Plena Forma (Pierre Étaix, 2010)

Por Luis Henrique Boaventura

Em Plena Forma é originalmente uma sequência da colagem de curtas Rir é o Melhor Remédio que Pierre Étaix extraiu do longa original a partir de um novo corte; faz parte dos filmes  restaurados e relançados em 2010.

Os non-sequiturs de Tati definitivamente encontram uma casa insuspeita no cálculo e na elegância de Pierre Étaix. As gags de Em Plena Forma são tão sóbrias e bem ensaiadas que o fazem emblemar um slapstick de ar bem mais moderno do que aquele de algumas sequências do pasteurizado O Artista, por exemplo; sobretudo por um aspecto: apesar de seu fazer como ator partir sempre de um maneirismo clown, o que o leva a interagir muito com objetos (Étaix é o tempo todo derrotado por coisas como uma cafeteira, um chapéu, um pacote que é grande demais para se carregar), a oposição de fato em relação a seus personagens mora na figura do Outro, o inferno personificado em uma série de pequenos personagens e as instituições sociais que eles instintivamente guardam.

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Se o lugar é um acampamento de férias, de refugiados, de concentração ou mesmo uma prisão a céu aberto é algo maravilhosamente embaralhado no filme. Logo ao chegar a câmera acompanha os passos de Étaix enquanto olha as altas cercas de arame farpado e espia um grupo de beberrões que cantam uns para os outros. Na entrada, o gesto mais forte: pessoas rastejando, o que é apropriado ao considerar que Em Plena Forma abre com um plano geral de uma bela colina ao amanhecer, e o protagonista é pequeno no centro do quadro diante do espaço que separa o chão da terra e de cerca nenhuma, para então se encontrar apertado e sufocado pelas mil pernas e braços da ordem social. Ele era livre e dono do mundo até ser encaixotado em um sistema com regras, hierarquia e lugares pré-determinados. Daí no fim o retorno à condição de criança, porque só assim, livre em quantos sentidos for possível conceber, para inventar um buraco no chão e fugir feito desenho animado.

O inimigo de Étaix em Em Plena Forma é todo mundo — estranhos, quadrúpedes e travestis, espalhados desleixadamente no seu caminho enquanto ele atravessa o quadro sem importar mais nada a não ser o passo obstinado para atravessá-lo. As pessoas não chegam a ser hostis, sequer são mais indiferentes a ele do que ele demonstra ser em relação a elas; em vez disso, perambulam entre uma sequência e outra como que pegando ar na superfície de cada pedacinho de filme que lhes é dado para se devolverem à massa indistinta de classes e gêneros que forma o acampamento, pequeno mostruário do mundo do qual ele procura fugir, motivo para ter ido acampar afinal de contas.

Pra nada servem as pessoas. O prazer que resta é caçoar delas com riso invisível.

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Feliz Aniversário (Pierre Étaix, 1962)

Por Luis Henrique Boaventura

Nada dos metódicos 12 minutos de Heureux Anniversaire denunciam que este se trata apenas do segundo filme de Pierre Étaix (em colaboração com um jovem Jean-Claude Carrière). Do grau de elaboração das cenas externas à montagem rigorosa de alternação de ritmos, rostos e objetos, Heureux Anniversaire é imaculado em sua cadeia de gags e atemporal enquanto parábola da vida urbana.

Pierre Étaix é o marido que luta contra o tráfego de Paris (caótica e despojada de qualquer traço de romance) para comprar presente, flores, champagne e não se atrasar para o jantar de aniversário de casamento que a esposa prepara tão docemente no refúgio do apartamento. O curta abre com um plano fechado sobre a mesa com taças, guardanapos e dois noivinhos de bolo. A câmera acompanha as mãos dela pousarem cada talher sobre a mesa como se fossem feitos de areia, junto de dois pães, uma garrafa de vinho e um pequeno presente escondido entre as folhas do guardanapo sobre o prato dele. Do presente dele o corte nos joga para o presente dela, carregado apressadamente com os dois braços enquanto ele atravessa a rua e quase se choca com um carregador de uma empresa de mudanças. Fora do apartamento o ritmo se rebela e os personagens ficam todos vulneráveis a uma corrente outra, indeterminada e alheia à sua vontade.

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Heureux Anniversaire choca dois mundos (de tempos distintos): dentro e fora. As pessoas dentro de casas e estabelecimentos são impassíveis até o momento em que a rua as reclama, como com o homem que fazia a barba em paz aparentemente infinita até ter sua vida transformada em um inferno pela busca por uma vaga para estacionar, ou o guarda relaxado, sem farda, que passa o tempo à janela. Mesmo as pessoas paradas no tráfego não estão paradas, pelo contrário. São dois os tempos: o tempo de dentro, debaixo de um teto, jaz fingido sob comando do homem; o tempo de fora, sobre asfalto, corre à absoluta revelia de sua existência. Na primeira cena, são as mãos da esposa que regem a câmera, dócil e à espera dos gestos que ela escolhe fazer. Do lado de fora, o marido é um entre tantos personagens perseguidos sem descanso no fast-forward alucinado de uma corrida de barreiras — que não são, aliás, carros e outras máquinas, mas os próprios personagens, obstáculos deles mesmos.

Montado e coreografado à perfeição, Heureux Anniversaire abraça Tati, Keaton e inevitavelmente Chaplin, mas corre em esfera própria; não se trata mais da opressão do modo de vida convertido em armadilha, mas da tentativa de controlar o que não aceita controle. O tempo é esta inocente invenção do homem que deu terrivelmente errado e se voltou contra ele, uma máquina numinosa e trituradora dos vivos. Afinal, mesmo a paciência inabalável da esposa é derrotada por um par de taças de vinho, e a única companhia dele para o jantar são os restos mortais de um girassol decapitado.

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Um Método Perigoso (David Cronenberg, 2011)

Por Luis Henrique Boaventura

A narrativa segundo David Cronenberg, embora envolta sempre desse classicismo anacrônico, transpira vez ou outra com o desconcerto, um solavanco gráfico ou rítmico — ecos do horror setentista americano, velha escola dessa geração — que desvia e constrange sua harmonia. Cronenberg desenvolveu durante muitos anos uma habilidade narrativa tão incomum, de filmar o choque e o absurdo com tão bem fingida indiferença, que seu cinema, aos olhares mais cansados ou impacientes, beira o inorgânico. Seus filmes mais recentes são mecanismos inexoráveis cuja precisão reclama o desarranjo, ordens forjadas para um arremate de distúrbio. Há, é claro, uma gradação no processo. Os terrores de início de carreira eram pensados não com vias a alcançar esse pico de desordem, mas a partir dele — o estado de caos que se devia solapar com uma intervenção pelo rearranjo, pela reparação. Calafrios e Enraivecida na Fúria do Sexo incursionavam logo numa vereda de gênero (terror, sci-fi) e procuravam ao longo da narrativa reencontrar um equilíbrio perdido antes mesmo de seu início, enquanto que em Videodrome e A Hora da Zona Morta essa perda de sanidade já era plenamente comportada pelo filme. A Mosca, por exemplo, desenvolve-se num insuspeito acorde de estabilidade para só então corromper-se com notas do cinema de horror e do sci-fi. Se Gêmeos talvez represente melhor o balanço dessas duas esferas de Cronenberg, sempre em fricção para mais tarde acomodarem-se numa única ideia de cinema, o princípio dessa virada seria pela primeira vez experimentado em M. Butterfly, filme despojado dessa necessidade do discurso para disparatar de repente e ruir o crescendo rímico da narrativa, deixando para si o prazer de largar-se no decurso da história. É M. Butterfly que aponta o caminho trilhado em definitivo a partir de Spider, filme de 2002, onde as quebras vorazes de rumo de suas obras anteriores definham-se em alvoroços passageiros, perturbando a vigência da ordem não mais para arrombar sua evolução, mas para trazer à superfície um atrito qualquer já previsto na cadeia dos seus movimentos.

Que Um Método Perigoso apareça neste momento, sucedendo Marcas da Violência e Senhores do Crime, é simplesmente poético. Marcas, ainda mais que Senhores do Crime, decompõe claramente a lógica do cinema de Cronenberg na última década: o tronco inconteste da trama atravessado de repente por um rompante de fúria. E essa calmaria da narrativa, que antes seguia seu curso sem distúrbio aparente até encontrar o evento-motor que a dobrasse sem quebrá-la (dois bandidos na lanchonete em Marcas da Violência, o recém-nascido em Senhores do Crime), assombra Um Método Perigoso em toda sua extensão, sem escape e sem respiro. A crítica mais recorrente a este novo filme tem sido a falta, exatamente, dessa tal (imaginária) centelha cronenbergniana que o deveria incendiar sem prévio aviso. Note-se que o cinema de Cronenberg, embora a respeito do qual muito se tenha dito quanto à paridade com o americano clássico, jamais poderia remontar à Old Hollywood enquanto conservasse estes raptos de razão (ainda que cada vez mais discretos, diegetizados). Um Método Perigoso, com tão evidenciada veia biográfica, por vezes documental em alguns subterfúgios (no voice-over, na força das elipses), jamais resiste (como corre o risco de parecer) ao impulso de tornar-se novo objeto de travessura auterista. A diferença talvez esteja numa minoração de frequência, na preferência pela implosão em detrimento do voraz rebentar de Crash, A Mosca e Gêmeos, do voo furtivo de Spider, Marcas e Senhores do Crime, porque Um Método Perigoso não é de modo algum um filme de exceção na carreira do diretor: Cronenberg continua sendo todo a respeito da matéria e das coisas do corpo.

Em Um Método Perigoso, Cronenberg declina de qualquer hermetismo gráfico (sempre apressadamente destacado quando analisam seus filmes) devolvendo a senda criativa à ordem da palavra — prensa seminal do mundo e da história — e à minúcia do corpo, do gesto, do poro. Há uma enorme crença na expressão pelo verbo e pelo corpo antes mesmo do que pela intervenção da câmera, o que é lindamente apropriado a uma narração que fia das relações (e da “talking cure”, afinal de contas) a urdidura de sua linguagem. A câmera em Um Método Perigoso não se furta nunca da ação, não usa o espaço do quadro para expressar uma mudança de lugar assim como não arrisca o movimento (ou mesmo a captação de um) como signo relevante. Mesmo a histeria de Sabina é reprimida a um mesmo quadrante da tela. Em vez do deslocamento de objetos há uma imobilidade e um preenchimento de espaços, uma cuidadosa disposição dos corpos pelo quadro — e mais especificamente de uma porção desses corpos. Um zelo à postura, à proporção, aos membros visíveis neste momento e exclusos no seguinte. Os rostos e os gestos em Um Método Perigoso servem de moldura à palavra, que por sua vez serve de moldura ao corpo. knightley, Fassbender e Mortensen (e Cassel, em menor proporção) raramente são pegos sozinhos pela câmera, em um momento de trânsito ou de silêncio. Os capítulos que as grandes elipses recortam são sempre de uma intensa interação entre eles, seja frente a frente, seja através das muitas cartas lidas em off. Há dois momentos capitais resolvidos inteiramente com a leitura de cartas em cena (como se, aos que reclamam de uma sobriedade incompatível com Cronenberg neste filme, ler em cena não fosse radical o suficiente), e isto porque é sempre a palavra que dirige a erosão das relações, que nos transfere de Viena a Zurique num corte e reposiciona os personagens em tempo/espaço, que os introduz e os varre do filme (como ocorre com o Otto Gross de Cassel). É a palavra que resgata prazeres trancados nos porões da memória para distorcer com eles a concórdia do corpo, reencarnando a milenar dicotomia corpo/mente em corpo/verbo (elemento de evocação, roda de materializar fantasmas).

Cronenberg trata da eclosão dos objetos do corpo e da porosidade dessa matéria disforme vazada sempre por uma pulsão mais cava do desejo, do sexo, do sonho, da lembrança — tudo chamado à tona pela fala. A vitória do impulso sobre a pele, como quis Freud, pano luzidio em que se projetam, furtivas, errantes na distração dos olhos, as aspirações de um velho trauma. Por isso Um Método Perigoso é o grande filme de atores na carreira de Cronenberg; não pela economia da mise-en-scène, mas pela densa assimilação que esta faz das faces distribuídas pelo plano. Como o brilho no olhar de Fassbender, revelado por um súbito ângulo oposto, quando Sabina fala da sua excitação para com as surras de seu pai na infância, e o retorno imediato da câmera ao corpo oblíquo dela, visto de costas desta vez, torto, feio, como uma criatura assim sem forma imediatamente apreensível. Ou o distúrbio no olhar de Mortensen quando Jung diz que se separaria dele ali pois ficaria na primeira classe do navio, e a pequena vingança de Freud ao negar dividir seu sonho com o pupilo para não pôr em risco sua “autoridade”. A todo momento é a palavra puxando coisas que o corpo, feito culpado de um crime, esforça-se em disfarçar.

É claro que a roda de acontecimentos dá razão a Freud, provando sua (assim chamada por Jung) “obsessão” pelo corpo e pelo sexo estar absolutamente correta. Jung não percebe que sua tendência pelo misticismo e sua noção de que a psicanálise deveria permitir ao ser humano mudar e reinventar-se é o que o leva a terminar se despedindo do grande amor de sua vida (em suas palavras) ali na beira daquele mesmo lago aonde viria a morrer 50 anos depois. A ilusão de Jung de um maravilhoso “território inexplorado” é a mesma que concebeu ser possível conciliar o desejo que a palavra flagrou com a negação ao que o corpo exigiu. A matéria tem demandas que a mente não consegue entender. E é quando Sabina o deixa que a câmera desfaz-se de sua posição ocupada durante o filme inteiro e avança num travelling violento, de uma tristeza com textura e com peso, na direção de um olhar preso à tranquilidade do lago. Com tudo já dito, a fala cessa finalmente, e tudo mais no mundo é o silêncio de quem espera.

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“Onde está o quadro?”

Por Luis Henrique Boaventura

Em determinada cena de O Homem Urso Timothy Treadwell deixa uma de suas câmeras sozinha sobre um tripé e some no fim de um caminho de terra. Neste momento (algo em torno de dez ou doze segundos) Herzog aproveita-se da ausência do autor das imagens e toma o quadro emprestado para uma breve anotação[1]. Herzog argumenta que, apesar do rigor e da paixão que colocava em suas filmagens, Treadwell parecia não haver notado a beleza espontânea e inconsciente de que se imbui a natureza quando vigiada de posições semissecretas. A marca da ausência humana (o ângulo pelo qual ele desaparece, ponto de fuga da imagem), na perspectiva de Herzog, desprende uma ênfase para outros filamentos da composição (folhas, poeira, uma garoa fosca) que se animam nas fronteiras do quadro (e para fora dele). É uma nota ao poder autofecundo da imagem, prescindível do caractere humano para significar e que a iguala de muitos modos à própria natureza, acusando a débil ilusão humana que concebe a existência da primeira pela gestação do ‘real’ no ventre do olhar. Inevitável (e deliciosa) contradição é que, para indicar essa autonomia da imagem, Herzog, como é recorrente em sua obra, tenha cedido à necessidade de violar os limites do quadro e marcar sua própria presença no filme, revogando tacitamente o que acabara de dizer.

Presencia-se aí o aguardado encontro de Herzog com o automaton que, não em razão da natureza em si, mas de seu recorte físico e temporal operado por um terceiro, cruza muito de seus filmes um pouco abaixo da superfície. Porque não há interstício possível entre os devires do tempo e a desordem que o olho projeta que não a miopia do próprio olho. Do momento em que a câmera é abandonada à absoluta ausência do componente humano — pouco interessa se por dez segundos ou dez anos — a vegetação passa a dotar-se de um arcaico encantamento (nunca estivemos ali, não há câmera, não há interferência: apenas eternidade) e é condenada a repetir-se infinitamente em suas variações invisíveis. Nem do rastro de bota na grama a lente parece dar conta porque as molduras do quadro se desfazem no lemniscate deste simples e assombroso movimento: um caule que se verga ao equilíbrio entre o vento e a gravidade. Se decompusermos esta imagem em fotogramas isolados (no topo da página), e se perfilarmos cada fotograma em relação ao seu subsequente, torna-se muito difícil para o olho humano flagrar diferenças. Pode até notar um espaço vazio de um lado e um subitamente ocupado de outro, mas não será capaz de identificá-las. A natureza não ostenta uma face[2], não há identidade a não ser a concebida pelo homem. Não há um elemento vivo que atravesse o quadro para este olho, preênsil de rostos e de signos, fisgar como seu referente; não há, como numa acepção mais clássica de cinema, o objeto tracejante que viaja de um ponto a outro, da esquerda para a direita, de cima para baixo, de dentro para fora. Não há o deslocamento; mas há, importante notar, o movimento (nada é estático apesar de o próprio quadro o ser). Um movimento que se desprende da paragem dos componentes que o quadro contém (e da própria câmera, acima de tudo) e se acomoda secretamente no verso do olho, sem despertar suspeitas nem sobressaltos, pois trata-se da surda e infinitesimal agitação da natureza: terna, intemporal, assustadora.

A oposição herzoguiana clássica (homem versus natureza) é central em um procedimento muito repetido pelo cineasta: a compulsiva imposição de si mesmo contra esta (em suas palavras) “overwhelming indifference of nature”, contra o “blank stare” que ele olha e que o olha ameaçadoramente de volta (tudo o que é olhado, como sabemos, retorna o olhar), não porque talvez haja uma intenção ou círio antigo de consciência que comande este olhar, pelo contrário, é a desolação que apavora. É aceitar a fortaleza imemorial do mundo onde a vida, tão exuberante em seus edifícios (a floresta amazônica, as montanhas bávaras, as cataratas de Kaieteur), talvez não seja mais do que um reino de insetos, como a casa que, abandonada à ação do tempo, torna-se dócil anfitriã de traças e morcegos.

É interessante Herzog reivindicar uma beleza inerente à natureza ao mesmo tempo em que acusa Treadwell de inocência por acreditar em seu “secret world of the bears”. Se o ponto de vista realmente cria o objeto, então é forçoso aceitar que a “amizade” de Treadwell com os ursos compartilha o mesmo princípio da crença de Herzog num valor intrínseco às coisas, e que o flerte de Treadwell com a morte encontra rara simbiose nas afrontas de Herzog à hostilidade do mundo (Aguirre, La Soufrière, Caminhando no Gelo…), pois é o modo que ambos encontraram para rebelarem-se: o pôr-se/impor-se em cena, o que não significa a procura por um lugar na Terra, mas a afirmação, convicta, de uma posição capaz de alterar a ordem viciada da vida.

A peregrinação narrada por Herzog em Caminhando no Gelo não é nem de longe carta de fé a alguma força superior, assim como a insurreição travessa de La Soufrière não é um sacrilégio; Herzog não acena aos deuses, prefere ir a seu encontro, do contrário, teria rezado por Lotte Eisner ao invés de enfrentar 22 dias de inverno europeu para “salvá-la”, ou teria blasfemado contra os ares à erupção do vulcão caribenho, como faz gente normal, em vez de marchar até o topo da montanha só para mijar no olho da cratera (a estatura do ato não autoriza brandura na linguagem). Nasce nesse prurido por um impacto, nessa volição sagrada para significar a si mesmo perante o caos imanente das coisas, a projeção que Herzog faz de si em seus personagens e, quando isto não for suficiente, o posicionamento em forma de voiceover ou até da própria presença física.

Está nessa imposição um vício inerente, que o define e o dirige, mas também uma virtude absolutamente rara e que o liga, para além da mera figuração autorista, a A Família de Filipe IV (Las Meninas)[3], o quadro assustador e indecifrável de Diego Velázquez. A colocação de si mesmo no quadro chama mais atenção para a figura do próprio observador do que de Velázquez. Seria o quadro todo um espelho, seria o espectador um espelho, ou seria o espelho ao fundo um quadro? Sua fé em suas próprias leis, leitor (ou então nas leis de perspectiva, depende do tipo de pessoa que você é), constituirá sua impressão particular tanto do quadro de Velázquez quanto dos de Herzog. No caso de encarar o quadro como espelho do universo (como se também não o fosse a própria arte), por extensão, é coerente aceitar que a força com que Velázquez coloca-se em sua obra joga ênfase para uma colocação do observador diante do quadro: Velázquez afiança toda sua existência e a de sua arte à suposição (ato de fé) de que haverá para ela um olhar que a reavive. O pintor se alforria de sua posição natural (de frente à cena) e infiltra-se no quadro (pondo-se em cena) não em razão de algum gesto leviano de vaidade, muito pelo contrário: o faz para chamar o espectador a substituí-lo. O mundo pintado pelo artista só passa a existir na tela porque um dia alguém prestou-se a pintá-lo, mas isto não é suficiente, é preciso que alguém se ponha também a observá-lo para que passe a existir realmente. O quadro em si não faz parte do inventário da natureza como faz a vegetação captada em O Homem Urso, portanto o tempo se encarregará de dar fim a ele, assim como aos filmes de Herzog. O que é humano não possui lugar entre os objetos da natureza (dentre eles o próprio corpo, que nos é emprestado). Toda arte, portanto, superada esta patética ilusão de eternidade que nos envaidece (a escritores, principalmente), é nada mais que a velha barganha (do modelo Kübler-Ross): a tentativa vã de avultar-se no relevo de entidades de que falamos muitas vezes (incluindo neste texto), mas que mal compreendemos: o mundo e o tempo.

A disposição de Velázquez entre os objetos do quadro é acima de tudo uma irrupção de si na e contra essa rede de filamentos desconectados que sustém o giro do tempo, um escrivão que reaproveita suas escrituras, que apaga os que um dia inventou anulando sem remorsos seu impacto no mundo. A luta do artista é essa saga contra o irremediável oblívio dos escritos da História. Como no caso de Velázquez, a imposição que Herzog promove, incursionando nas veredas da Terra com um exército de câmeras, luzes e aparatos, é tanto uma colocação de si no universo retratado quanto no âmbito do próprio retrato. Já faz quase uma década que Timothy Treadwell foi devorado por um urso numa reserva ambiental canadense, mas é seguro afirmar que, antes mesmo dele nascer e muito depois de ele ter morrido, os poucos segundos para os quais Herzog chama atenção em O Homem Urso, aqueles em que a natureza revela seu macabro mecanismo de autocorreção (o que outros por ocasião chamam “ciclo da vida”), repetiram-se e continuarão a se repetir indefinidamente sem registrarem qualquer sinal do homem que encantou-se com sua beleza nem daquele que a ignorou. Ao realizar este movimento estranho de digressão (sair da imagem ao caminhar para dentro da imagem), Treadwell representou com raro acerto a trajetória humana na Terra. Eis a imperturbável sincronia entre os caminhos do homem e os sumidouros do mundo.

“Às vezes tenho a sensação de que nada do que acontece acontece, porque nada acontece sem interrupção, nada perdura nem persevera nem se recorda incessantemente, e até a mais monótona e rotineira das existências vai se anulando e negando a si mesma em sua aparente repetição até que nada seja nada e ninguém seja ninguém que tenha sido antes, e a frágil roda do mundo é empurrada por desmemoriados que ouvem e veem e sabem o que não se diz nem sucede nem é cognoscível nem comprovável. […] e por isso estamos cheios de arrependimentos e de ocasiões perdidas, de confirmações e reafirmações e ocasiões aproveitadas, quando o certo é que nada se afirma e tudo se vai perder. Ou talvez não tenha havido nada”.
— Javier Marías, Coração tão branco

 


*”Onde está o quadro?” teria perguntado o escritor francês Théophile Gautier ao ver  “Las Meninas” no Museu do Prado.

[1] In his action movie mode, Treadwell probably did not realize that seemingly empty moments had a strange secret beauty. Sometimes images themselves developed their own life, their own mysterious stardom.

[2] What haunts me is that, in all the faces of all the bears that Treadwell ever filmed, I discover no kinship, no understanding, no mercy. I see only the overwhelming indifference of nature. To me, there is no such thing as a secret world of the bears and this blank stare speaks only of a half-bored interest in food.

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Wheel of Time (Werner Herzog, 2003)

Wheel of Time, documentário das cerimônias de iniciação budista em Bodh Gaya, na Índia, revela muito das vontades e motivações de Herzog diante de um projeto, ou o que o faz perseguir a realização de um. O ritual consiste basicamente em milhões de pessoas em peregrinação (algumas de joelhos, algumas se arrastando) para ver a “Roda do Tempo”, uma mandala feita de areia colorida por monges tibetanos. Não há, é claro, sentido na busca que não o de acalmar a velha inquietação humana diante ao que não conhece ou compreende, pois quanto falta o conhecimento e a compreensão, resta a fé, que é tudo e nada ao mesmo tempo. Herzog poderia muito bem fazer ficção do quintal de casa, mas a noção de câmera traz, para ele, uma ideia intrínseca de artefato desbravador, de compor iluminuras nos rodapés do mundo. O plano final, remontando a Fata Morgana, é senha do transtorno que mantém este arqueólogo na estrada, porque há mais mágica escondida no universo do que somos capazes de registrar. A fé em sua câmera, seu cajado, o leva de um ponto a outro da Terra na esperança de encontrar também lá uma nova roda do tempo. Algum evento breve e excepcional (Lições das Trevas, La Soufrière, O Diamante Branco) que deva ser colhido na palma da mão e guardado em um relicário.

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Invencível (Werner Herzog, 2001)

Por Luis Henrique Boaventura

Há um certo eco de Stroszek e Kaspar Hauser (Bruno S.) em Zishe Breitbart (Jouko Ahola), protagonista de Invencível. Os dois partilham da mesma inaptidão em relação ao meio e do mesmo olhar pasmado, de quem lê hieróglifos incompreensíveis, para com o mundo a sua volta. Talvez se poderia evocar também Woyzeck, mas prefiro que sua compleição explosiva (muito diferente da natureza de bicho acuado de Stroszek, Kaspar e Zishe) excluam-no do diagrama.

Bruno S. (23 anos internado em instituições para doentes mentais antes de virar artista de rua) e Jouko Ahola (finlandês ex-detentor do World’s Strongest Man) não eram atores de formação. Foram pinçados do mundo real por Herzog por serem, cada um à sua maneira, excepcionais. O estranhamento de ambos para com a câmera é propriedade imanente também de seus personagens e reflete, como quis Herzog, um constrangimento em relação ao próprio contexto, o diegético e o externo (da produção do filme), que transmite ao primeiro seus efeitos em processo recorrente no cinema de Herzog (ver texto sobre Fitzcarraldo).

Stroszeck/Kaspar e Zishe entram em conflito e fragmentam tudo com o que têm contato na nova sociedade, mais friável do que julgavam seus fundadores, para qual partem nos primeiros minutos de cada filme. A ignorância clarividente de Kaspar Hauser é um pouco como a força física de Zishe: um superpoder (um desvio), outorgando a seu portador a capacidade para feitos extraordinários. A primeira reação a o que é extraordinário, como se sabe, é a curiosidade, passando ao esgotamento do dom e à sua eventual transmutação para qualquer anormalidade de natureza circense, a partir do momento em que aquele interesse primeiro é perdido ou substituído pela necessidade de destruição do que está interferindo na padronização do meio. O percurso clássico dos heróis, dos gênios, dos déspotas e dos loucos messiânicos.

Mas Zishe, de Siegfried a Sansão, termina mesmo como Aquiles, o semideus morto pela flecha no calcanhar; todo-poderoso, coabitante do plano dos homens, divide com eles a vulnerabilidade diante de algo estupidamente mundano como uma infecção causada por metal enferrujado, porque assim é Herzog: a compostura fabulosa de seus mundos de repente soçobrada por um golpe de realidade.

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2000 Jahre Christentum: Christ and Demons in New Spain (Werner Herzog, 1999)

Por Luis Henrique Boaventura

Assistir a um documentário de Herzog narrado por outra pessoa (no caso, Donald Arthur) faz sentir uma falta imensa do próprio Herzog colocando-se em cena, ainda que sua visão esteja por demais evidente em mais de uma passagem. Mas Christ and Demons in New Spain não passa exatamente para a metade de cima da filmografia relevante do diretor. Trata-se de um episódio produzido para uma série de TV alemã referente aos dois mil anos do cristianismo, em que Herzog viaja à Guatemala para investigar o confronto entre as crenças astecas e a nova corrente imposta pelos conquistadores espanhóis. A configuração fragmentária do povo, sem muita identidade cultural apesar da rica cultura e sem convicção de espírito, está impressa nos rostos durante as paradas que Herzog presencia. Na passagem de uma imagem de Cristo, em especial. É um Cristo fantasma, convergente de um vazio que não se pode compensar, de um passado exangue e parricida, que Herzog vai até Antigua para descobrir. Não se sabe ao certo o quão profunda é a relação do povo com o cristianismo porque a presença de Cristo reverte-se imediatamente em ausência, em falta de memória de todo um povo deixado órfão da noite para o dia, e é numa pergunta aparentemente primária, “O que é Jesus para estas pessoas?”, prenhe de uma segunda questão ainda mais fundamental (“Quem somos?”), que Christ and Demons in New Spain encerra seu grande achado. Nada atenua a carência da própria história.

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The Transformation of the World into Music (Werner Herzog, 1996)

Por Luis Henrique Boaventura

Não passa pela cabeça inicialmente que The Transformation of the World into Music fora concebido como uma simples introdução a uma série de programas de ópera para a TV alemã. A vitalidade do documentário aponta um tema apaixonante para Herzog: não a ópera especificamente (com que o diretor mantém uma relação passional), mas o próprio ato de criação de algo, seja o que for. Herzog acompanha ensaios e montagem do espetáculo com a curiosidade de quem não dedicou uma vida inteira a fazer cinema. Um escrutínio para os artífices do concerto. É claro que é necessário algum interesse em ópera (ou em Wagner, que às vezes se basta sozinho enquanto figura) para fazer valer, em primeiro lugar, os 90 minutos de um documentário com linguagem purista, composto de câmera na mão e entrevista-sobre-entrevista, e em segundo lugar, para simplesmente encontrar o filme, raro demais até para os padrões do que é obscuro na filmografia de Herzog. Havendo disposição, The Transformation of the World into Music vale a pena. Há em especial uma pequena sequência, com a sobreposição de música sobre recortes de pinturas, que lembra demais o exercício de montagem de Alain Resnais em Guernica.

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Cobra Verde (Werner Herzog, 1987)

Por Luis Henrique Boaventura

“I think about a time when I will be relaxed.
When flames and non-specific passions wear themselves
away. And my eyes and hands and mind can turn
and soften, and my songs will be softer
and lightly weight the air.”
— Amiri Baraka

É claro que o ritmo que Herzog imprime ao prólogo de Cobra Verde (cantado por um repentista sertanejo, para se ter ideia da serenidade de que o filme parte) não condiz com a sobrevinda de Klaus Kinski à tela. Mas a ruptura é indispensável. O plano em questão abre num corte seco e com um close absurdo. Em seguida, a câmera inicia uma bela sequência de movimentos: vai paliar o choque do encontro num vagaroso recuo em zoom out, iniciar um giro sobre si mesma, rastrear o horizonte em busca de algum alento e reencontrar Kinski do outro lado, num elíptico 360. Nada se acha nesse intervalo, só mais poeira e sertão, num circuito que é, em escala, o mesmo percurso do traficante Cobra Verde. De bandido, peão, herói e general a bandido outra vez, sempre em fuga, sempre em desespero.

A obsessão de Cobra Verde em fugir do Nordeste (na forma de um sonho mais inocente: o de ver o mar, muito porque a ideia de mar é oponente exata à de sertão) o leva a cruzar o oceano, aonde, para sua surpresa, apesar da grandeza da expedição e da imensa distância, vem a encontrar uma terra tão seca quanto a sua, com negros tão negros quanto os seus. Não há possibilidade de fuga porque logo em sua primeira cena, de joelhos sob uma cruz de paus e envolto em ossadas de boi, Herzog o concebe como componente inapartável da paisagem. Cobra Verde é terra e tronco desse sertão, é escombro da raça aniquilada, ruína de uma gente que já teve sua chance. E no que se refere a isto de nada vale ir do leito de morte ao nascedouro, nem tentar retornar, porque a África e o Nordeste compartilham sua matéria-prima. A paridade da terra, do clima e da gente entre ambos aponta para dois gêmeos há muito separados e esquecidos um do outro, religados mais tarde, pelo homem branco, em horrenda transfusão.

As hordas de negros que cantam em uma praia em Gana parecem ecoar a voz do escravo que delas se desprendeu, aquele que reclama ao senhor de engenho sua orfandade irreparável nas bases de um tronco em Pernambuco. Há aí um diálogo inaudível, gritos que se lançam e caem ao mar antes de encontrarem um ao outro no meio do caminho. E é irônico que Herzog, ao narrar a história do maior traficante de escravos do Brasil, confira a ele a ternura da esperança, da saudade e do desengano, três turning points capitais (nessa ordem) da aventura do africano em direção ao brilhante Novo Continente. É por isto que o tom de derradeiro repouso (de retorno pacífico para casa, ou seja, para a terra) nos versos de Amiri Baraka (militante da dessegregação, ensaísta da escravatura, dramaturgo dos navios negreiros) serve menos ao povo torturado e escravizado do que ao próprio Cobra Verde.

Esse desejo de voltar sempre, que é perene, é intranquilo de natureza e inerente ao ser humano, dá origem a uma cena final que é o duplo exato de retorno/repouso que os esforços de Cobra Verde miram desprovidos de decisão, apenas instinto. A três passos do mar, o derrotado aventureiro não consegue mover o bote até a água (é pesado demais). Meio-vivo, ele se projeta em falso contra a areia da praia. Sem outra opção que não a de retroceder pela primeira vez em vida, Cobra Verde resgata uma energia primeva e desconhecida, puxa as cordas do bote como se a fim de reatá-lo puxasse todo o continente, e cedendo enfim ao cansaço, tomba na água feito um corpo baleado somente para encontrar na precipitação da queda um último vestígio de vínculo neste oceano do exílio: a luminosa, de brilho impossível, de natureza absurda e fabular, a por tanto tempo sonhada água do mar. Tão salgada e quente quanto a terra e a sede no Sertão.

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Fitzcarraldo (Werner Herzog, 1982)

Por Luis Henrique Boaventura

A falta de distinção entre o que é ficção e o que é documentário é uma constante em Herzog. Parece não ter havido, como ocorre eventualmente a todo cineasta, a esquize que permite ao olho separar a encenação do que apenas está em cena. Como resultado, esta “falha” congênita sempre fará de seus filmes peças rudes, impuras, onde o documentário é contaminado pela orientação do documentarista (muito além do que é inerente ao gênero) e a ficção é atravessada pelo extradiegético, onde a frieza de um Stroszek afilia-se muito mais a componentes do mundo físico do que Wheel of Time ou O Diamante Branco, arquivos de uma realidade mística e carregada de ideologia. Não ser capaz de enxergar esta linha pode afastar alguns, mas é exatamente o que faz de Herzog não apenas um artista único mas, acima de tudo, um documentarista fidelíssimo do seu tempo (afinal não é a própria realidade fantástica em seus preceitos?).

Fitzcarraldo, o filme em que essa acepção é mais evidente, acaba sempre e de muitos modos narrando sua própria história porque o objeto de sua narrativa é ele mesmo. O discurso em si e a produção deste discurso, em dependência do ponto de vista, são um o fantasma da imagem do outro. A todo o momento a ficção (história da saga do Fitzcarraldo-personagem) parece espelhada por um segundo filme (referente à feitura do próprio Fitzcarraldo); ambos vigiam a mesma ação, dividem atores e cenário, documentam a loucura e a obsessão humanas até que o segundo, no ponto de convergência entre ambos (o arraste do navio morro acima), ergue-se e devora seu duplo diegético.

Se Herzog, um fetichista da realidade, um dedicado inventariante dos objetos da natureza, deu de frente com a Paramount para efetivamente realizar a travessia pela montanha (opondo-se a o que lhe propuseram: uma ordinária mentira de estúdio), foi porque sabia que a mise-en-scène de Fitzcarraldo seria cosida antes pelos objetos, corpos e espaços achados em cena (porque assim está inscrito no espírito do desbravador-documentarista), depois na montagem, panorama em que a posição e comportamento da câmera se veem — se não diminuídos — subordinados a uma organização outra (um organismo), porque também ela é feita refém do que encontrar, privada do controle absoluto que os cânones prescrevem à figura do diretor.

Irmana-se do real e seus dejetos, suas reentrâncias, suas barreiras, a substância do imaginário. Herzog e Fitzcarraldo (o homem), doppelgängers em seus respectivos mundos, contrabandeiam a dureza da ficção para a realidade e da realidade para a ficção num circuito que é franco e translúcido. A marcha do cineasta, tal qual a marcha do personagem, trata de reaproximar universos que em verdade nunca estiveram separados apesar da aplicada disciplina legada do cinema clássico em disfarçar o mundo externo, presumido em cada imediação dos quadros num intercâmbio há muito reprimido. Em Fitzcarraldo, pelo contrário, há esta licença sem expiração que só Herzog parece possuir e que lhe concede trânsito irrestrito entre filme e sua produção, um contexto inédito em que o extracampo é livre para arriscar voos para o que está em cena e o que está em cena para empreender fugas para detrás da câmera, permitindo a um que redefina o outro.

Concebido assim, como documentação da própria insanidade (da impossibilidade aparente de realizar um épico total), Fitzcarraldo dribla prescrições que fundam na ilusão (na encenação) as bases do que define o cinema enquanto arte, expulsando-o para outro rol, não nomeado ainda, dos filmes que se alimentam de si mesmos, que fazem do próprio tour de force o objeto central de sua narração. Fitzcarraldo é o uróboro em método e argumento.

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Joey e o carrossel

É incrível que o senhor seja um adulto”. Assim é dito a Lawrence Woolsey (John Goodman), um falido produtor de cinema B de terror nos anos 60, post-mortem da velha e etérea Hollywood, logo ao final de Matinée – Uma Sessão Muito Louca. E é pouco considerando que Woolsey literalmente põe abaixo o cinema da première do seu filme apenas para que o público tenha a impressão, em plena crise nuclear cubana, de que uma bomba atômica foi lançada sobre a cidade. Tudo porque, justifica ele, “as pessoas já não se assustam como antigamente”.

Importante verificar que Woolsey não é um nostálgico, não perde seu tempo lamentando o olhar viciado do público que já não se inspira com os velhos truques; não pela aquisição de uma consciência de seu lugar e de seu tempo que poderiam justificar uma tentativa de adaptação ou um retirar-se solene do caminho já tantas vezes encenado no cinema (em O Leopardo, em O Homem do Oeste, em Pelo Amor e Pela Morte). Pelo contrário, o velho produtor jamais dá sinais de que compreende a urgência da sua posição nem sua transitoriedade fadária. Não há espaço para saudade (arabesco cafona, incabível em Joe Dante) porque Woosley parece ignorar que o cinema que ele ama deu lugar a outro na fila de preferência das plateias; parece desconhecer o estado crítico da sua arte, interpretando-o talvez como uma etapa a mais na evolução do gênero. Aninhado nessa ignorância, é lógico, tudo é alegria; toda celebração é uma ode à teatralidade. Fica claro, ao transformar os corredores do cinema em seu picadeiro particular, que Woolsey se diverte mais que qualquer um em seu próprio espetáculo, ignorando a verdade do perigo como um desenho animado ignora a gravidade. A farsa, blindada contra as leis mais impassíveis deste mundo, é sempre mais aprazível que qualquer realidade.

Apesar de ser um dos filmes mais fracos do diretor, Matineé diz muito sobre as leis que regem o universo particular de Joe Dante, não muito diferentes das que operam em um Papa-Léguas & Coiote. Como Lawrence Woolsey, Dante é uma criança imprudente que tem por grande pretensão o mais barato entretenimento e como veículo o cinema que tanto ama sem se dar conta de que talvez as audiências já não compactuem com o seu entendimento sobre o que, afinal, um “filme” deveria ser. A quem assiste, Dante parece mais um mímico que acredita piamente na existência do seu brinquedo invisível. Para que o público consiga compartilhar dessa loucura é preciso crença cega no absurdo da ideia, é preciso mergulhar no caracol de mecanismos simplistas que ornamentam seu cinema e se deixar invadir por um ímpeto que a mente adulta há muito suprimiu.

Joe Dante começou no horror e encontrou casa no cinema oitentista de aventura, mas apesar da superficial disparidade, a dinâmica que move um Piranha e um Looney Tunes – De Volta à Ação é exatamente a mesma. Na última cena de Piranha, dois personagens conversam sobre a possibilidade apocalíptica de as super piranhas modificadas pelo exército chegarem ao oceano. Barbara Steele, musa de Mario Bava e Anthonio Margheriti, rechaça a ideia para, em seguida, sorrir e olhar no olho do espectador, diretamente para a câmera, que corta para um plano do mar toscamente eclipsado por um filtro vermelho. Desde o início, Dante abraça suas referências e não as larga, mas ao contrário do que ocorre com um Quentin Tarantino, esse amor não se traduz em condutor para o processamento de uma grafia própria, nem reclama para si a necessidade de ser explicitado. Dante não se define por sua “bibliografia”, ainda que a carregue consigo o tempo inteiro. Seu cinema é quase sempre uma releitura escrachada de gêneros e seus saturados artifícios, mas que nunca usurpa de um Tubarão sua tessitura mais simples nem do matinê seu zeitgeist, passando ao largo de um mero decalque sôfrego que comete falsidade ideológica ao se fazer passar por quem não é ou assumindo pretensa homenagem para colar pretexto que acoberte sua anemia de estilo.

Quando ainda estudante, feito um moleque que completa um álbum de figurinhas, Dante compilou trailers, clips, comerciais de TV e até vídeos institucionais do Governo num monstro de 7 horas de duração chamado The Movie Orgy, produto que claramente deve mais à obsessão adolescente, prurido de um fãzóide que precisa externar o que já não cabe numa ideia de entretenimento para si mesmo (é preciso também entreter, é preciso causar impacto no mundo), do que ao próprio ócio puro e simples. Referências a Vampiros de Almas e a Guerra dos Mundos pipocam por toda sua filmografia, personagens da era Jones da Warner Bros. se multiplicam a todo o momento no canto de um quadro ou através de uma vitrine, isto fora minha certeza (da qual não tenho prova, só uma doida vontade de confissão) de que Dante usou seu Matinée apenas como pretexto para poder filmar Mant (há uma versão contínua que pode ser encontrada no Youtube), a horrível história de um homem transformado em formiga gigante que aterroriza Nova York. O marasmo de Matinée parece denunciar a má vontade com que Dante encara esse cinema mais “normal” diante da notável riqueza de detalhes e do ritmo fervilhante de Mant, seu mimado filme B.

A linguagem particular de Joe Dante se constitui através de um fanatismo que, de tão substancial, de tão homogêneo, não pode ser aplicado a um nome ou mesmo a todo um gênero, dissipando-se antes no verso do próprio ato de encenação. A Dante interessa antes o fascínio do cinema do que o cinema em si, antes o fascínio do horror do que o próprio horror. Tome o mecanismo de tensão em Piranha: basta um homem na água para Dante encenar a força que é suficiente ao filme, e basta que a água fique vermelha para que haja clímax. O gatilho do horror é tão somente um corpo em cena.

Em Grito de Horror é à ferramenta e não a seu propósito que a câmera se atém quando passeia os olhos sobre os detalhes da transformação do lobisomem, prendendo o público no deleite de cada garra e cada dente que viceja no bicho lentamente, porque o fascínio sobre o que aquelas armas podem causar não é algo a ser correspondido. A imagem implica o que não lhe interessa expor. É somente no circuito interno do momento, de vagar, antecipando um ataque que nem sabemos se vai acontecer (porque não importa), que se pode observar com toda calma e com todo medo possível (represado na paralisia da personagem, versão diegética para a fascinação do cineasta) os caninos do monstro, signos desse horror que o filme empenha, já que toda cena em que são acionados é rápida e turva como um golpe. Se a morte é rápida demais para ser apreendida, passa a interessar o seu ensaio.

A fruição do próprio fazer supera em muito o seu objetivo. É claro que todo cineasta enseja primeiro o prazer em filmar, mas há talvez um equilíbrio aí presente (em usar deste prazer como liga de construção, não como fim em si) que se corrompe. Dante é aquela criança que passa o dia montando e remontando um castelo de areia, ou uma ferrovia, ou uma cidade em miniatura, porque quando esta cidade ficar pronta, a diversão terminará. O propósito que se persegue, quando atingido, extingue o próprio motivo de sua existência. A diferença para todos os outros diretores de sua geração, seu maior defeito e sua maior virtude, é que Dante jamais se permitiu a esta descoberta. É até hoje o mais inconsequente e juvenil dos cineastas oitentistas americanos. Assistir a O Buraco 3D, seu último filme, é se deparar aqui com esta ambígua revelação: Dante não cresceu nada em um espaço de 30 anos. O deboche de um Gremlins é o mesmo que reverbera com força em Homecoming The Screwfly Solution, seus dois médias para a série Masters of Horror. Assim como em Piranha, em O Buraco 3D é o objeto antes de sua execução, é o cinema como pequeno parque de diversões, um brinquedo que só entretém enquanto imitar a simplicidade alegre de um pião, carente apenas de um primeiro impulso para embalar-se sobre si mesmo.

Tudo responde a essa recreação própria do olhar. Para Dante, fazer cinema é brincar de trenzinho, rodando num ciclo infinito que se regozija a cada volta. Como ocorre em Viagem ao Mundo dos Sonhos (de longe seu pior filme), onde três crianças montam uma nave espacial com sucata e rumam ao desconhecido em busca dos mistérios do universo. Quando chegam, descobrem que os alienígenas, supostos guardiões destes segredos, são também apenas crianças — crianças fanáticas por filmes e televisão. Dante entende que é mais divertido se o destino final dessa viagem for também seu ponto de partida, onde se encontra a mesma perspectiva infantil que se deixou para trás, porque então se pode começar tudo outra vez.

É assim que as animações de Chuck Jones e o cinema B de Roger Corman coexistem ao longo de toda a carreira de Dante, como iconografias que se amalgamam sob um ponto de ebulição em comum: o olhar infantil, que vê a tudo — de PernalongaFrankenstein — pelo mesmo prisma de entretenimento. O estranho cosmos que Dante habita parece mais uma combinação desses dois universos, de lápis de colorir e fumaça cenográfica. Há os extremos para um lado (Piranha e Grito de Horror), os extremos para outro (Looney TunesViagem Insólita), e as áreas de choque entre ambos. O humor de Gremlins e principalmente o de sua sequência (Gremlins 2 – A Nova Geração) é muito antes o humor do desenho animado que do terror, porque o horror do filme permanece sempre iluminado pela óptica do artifício, sem jamais incorrer na quebra de encanto de tentar atingir seu fim canônico.

O ponto confluente de todo esse aparato referencial é sem dúvida Meus Vizinhos São um Terror, onde Dante escreve a fórmula-mestra do seu cinema: crianças em corpos de adultos que passam as tardes brincando de mansão mal-assombrada. O tempo inteiro é o fascínio do desconhecido, da expectativa infantil sempre capaz de enfeitiçar a realidade que toca, estabelecendo com sorte um motivo a mais para apertar a campainha e sair correndo. Já pouco importa se de fato os vizinhos possuem uma coleção de ossos no porão desde que esta suspeita baste para esquecer a modorra de uma rua sem saída, ajudando a vencer o tédio nem que seja preciso reinventar a rua inteira. É também o que basta a Joe Dante: insistir na brincadeira, na invenção de um horror que não exige se constituir em algum momento. Não se trata de sentir medo realmente, mas de encená-lo, ainda que sua origem seja por todos sabidamente fingida.

É esse medo o protagonista de O Buraco 3D. No filme, dois irmãos encontram no porão de casa um buraco assustador que parece libertar fantasmas e dar vida a objetos inanimados, oportunidade para Dante reviver os truques mais rasteiros do horror sobrenatural, de referenciar a si mesmo (em Grito de Horror), a Halloween – Noite de TerrorA Hora do Pesadelo e até Brinquedo Assassino. Mais tarde, descobrimos que as aparições no tal buraco eram manifestações do que cada um mais secretamente temia, porque é exatamente assim que o medo de um porão sombrio ou de uma velha mansão funciona, exigindo à imaginação que forje o cenário e engane olhos e ouvidos.

A escuridão é uma folha em branco. É nesse vazio entre o fascínio da ignorância e o fascínio da descoberta que se inscreve toda a mise-en-scène de Joe Dante, captada assim como um friozinho na espinha, uma história de acampamento. Dante não percorrerá jamais o caminho de Sam Raimi, de Steven Spielberg ou de Peter Jackson; está fadado a ser sempre o mesmo moleque que não vê os velhos carrinhos perderem a graça, despedindo-se aos poucos dos tapetes da sala para ocuparem o topo esquecido das estantes. É por isso que Joe está igual em Piranha, igual em Pequenos Guerreiros e igual em O Buraco 3D, porque assim como Woolsey, o produtor falido de Matinée, ele acredita tão cegamente em sua perenidade que seu cinema termina por contagiar-se com um sopro de eternidade que, se não verdadeira, cristaliza no anverso do filme uma holografia, uma marca de permanência, esta sim inexaurível combatente da teleologia a que os cineastas eventualmente se rendem, convertendo vício em círculo virtuoso.

Dante, como a criança que só sabe da morte por ouvir falar, sequer suspeita da estrutura linear do tempo, celebrando cada filme como uma nova volta no trilho ensimesmado que é seu cinema, vivendo-o sem a vaga ideia de que existe uma evolução possível e, portanto, um fim inevitável. Nesse cosmo próprio, âmbar reanimado com nova vida pela fé indiferente aos fatos do mundo, seu cinema flutuará, sem massa ou densidade, invulnerável à ação da gravidade ou à impiedade dos anos. Cada novo rodopio de Dante nesse brinquedo parece suspender-se no mesmo espaço imaterial de tempo: entre o arrepio do breu repentino e o alívio no acender da lâmpada.

*versão de artigo originalmente publicado no Cineplayers, jul/2011.

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Sobre o abismo e outros vértices

Foi Christian Metz quem chamou a atenção para uma consciência da imagem de si mesma e uma autoconsciência do espectador, inscrevendo aí uma dinâmica de interdependência entre ambos. Pegando emprestadas algumas noções da Análise do Discurso francesa, Metz ponderou que “a enunciação é o ato semiológico pelo qual certas partes de um texto nos falam desse texto como se fosse um ato”. O olhar para a câmera em Um Corpo Que Cai, de Alfred Hithcock, é o exemplar definitivo desse ato e dessa enunciação no cinema.

Atormentado pela morte de Madeleine, John vê na rua uma mulher de semelhança extraordinária à de sua amada. Decide segui-la, descobre que ela mora no mesmo apartamento onde Madeleine morava. Bate à porta, começa a conversar; seu nome é Judy. As roupas estão diferentes, o cabelo está de outra cor, mas há sem dúvida algo além da mera similaridade que John não consegue ignorar. Marcam um encontro para dali a meia hora. Já passam dos 90 minutos de filme, e a câmera, que seguira John para cima e para baixo de San Francisco até então, subitamente não o acompanha. Fica no quarto, com Judy, que faz dela sua refém e elege-se para todos os efeitos figura central do filme de Hitchcock — e este é um momento de choque em Um Corpo Que Cai: a câmera, pajem vagueante de um frágil Jimmy Stewart, é assim de repente amputada de seu protagonista.

Eis a quebra da prescrição do cinema clássico quanto ao disfarce dos próprios mecanismos e a proteção à eficiência de sua narrativa. Sabe-se que ainda incipiente, pelo menos até o início dos anos 20, o cinema tinha no teatro não apenas uma base, mas uma referência quase mimética. Faltava-lhe um aparato de expressão, um modus operandi que lhe fosse próprio. Foi somente a partir dos contributos de Griffith, Eisenstein e Dziga Vertov que se foi revelando a silhueta do que constituiria mais claramente a linguagem cinematográfica, desligando o cinema das artes às quais era por assim dizer subordinado, como o teatro e a literatura. Para tanto, este jovem cinema desenvolveu-se sob a norma do apagamento de si mesmo, evoluindo na utopia de um veículo de narração absoluto ao empregar o truque da história que se narra sozinha. Tal noção remete à narratologia e principalmente aos estudos de enunciação do linguista francês Émile Benveniste. Segundo Benveniste, há uma oposição entre história e discurso: a “história” é a narração objetiva, fáctica, sem a intervenção de quem narra; no “discurso”, por outro lado, há a influência ou no mínimo uma intenção de controle do narrador, e portanto a livre exponenciação da subjetividade. Ora, nada se conta por si mesmo, logo, a ideia de história não deve ser interpretada literalmente, mas como uma estratégia narrativa. Muita coisa, sim, aparenta contar-se sozinha, e é a esse princípio que está ligada a “eficácia do cinema clássico americano” de que fala Marc Vernet.

A câmera primitiva, aquela imóvel que simplesmente registrava a ação semovente diante de si, caía na contradição de marcar indelevelmente sua própria presença física. A lente estanque joga ênfase sobre sua existência, sobre a existência de uma aparelhagem que a precede e, por conseguinte, para a existência do próprio espectador. A escritura de uma linguagem própria ao cinema pressupunha então, por necessidade, o apagamento da câmera para que o espectador pudesse tomar o lugar que lhe cabe. Se há um olho que capta a cena, este olho não pode ser alheio, não pode haver intermediação aparente. O espectador quando encarnado nessas lentes e conduzido pela atmosfera fílmica como um ente alado e invisível, observador ubíquo da fantasia, perde necessariamente a consciência de si mesmo. Por isso o público ideal do cinema clássico é aquele que não toma nota de si, que não se percebe, condição esta para que se mantenha intacta a delicada ilusão da caixa escura. A câmera então é um paradoxo, um espectro que opera exaustivamente para desfazer os próprios rastros. Vernet, lembrando a dicotomia de Benveniste, diz que “o filme de ficção clássico é um discurso […] que se disfarça de história”. Repare que é Judy quem entrega o twist da trama (não a própria narrativa, autônoma e invisível), como quem, antecipando-se à descoberta inevitável da verdade, decide contar ao amante (não John, mas o público) a natureza de sua traição. Judy rasga esse disfarce. A história que se conta sozinha é tomada de assalto pela personagem e redefinida a partir dela.

É por um desesperado grito de piedade que descobrimos a verdade em Um Corpo Que Cai. Judy, voltando o olhar para dentro da câmera como quem olha o centro de um redemoinho, encontra nesse gesto o olhar sonâmbulo do espectador, absorto até ali no encanto do teatro de sombra. Notando a proeminência da lente, desfolhando teia e névoa, Judy enxuga este olhar com o seu, afirmando-se personagem e conduzindo o espectador à tomada de consciência de si mesmo. Não fosse essa direção do olhar mecanismo suficiente, Judy emprega um flashback, trucagem fílmica por excelência, que se sobrepõem — como que por expiação, dada a astúcia deste jogo de cena — ao rosto de Kim Novak.

De todos os possíveis traços de subjetividade presentes em um filme — a trilha, a montagem, o narrador-personagem, efeitos de computação gráfica, um ângulo errático que não se avisa — o olhar para a câmera é o mais simples e o mais radical, é a marca de enunciação por excelência porque instaura, explícita e inexoravelmente, a dêixis na narrativa. A “história” não admite dêixis, não adere a marcas de enunciação, razão pela qual o olhar direto, impressão explícita do EU no discurso, estilhaça de imediato a trucagem  que ela tenta plantar. Este olhar é em si mesmo um enunciado. A partir dele o personagem salta a malha diegética e toma conhecimento de sua existência. Ao olhar para a câmera, ele não apenas diz — ele diz que diz. Como efeito colateral, o espectador também toma consciência de si. É por este motivo que alguém da produção joga uma torta na cara de um dos bandidos em Bang Bang, de Andrea Tonacci, assim que ele decide explicar a história ao espectador. A partir do posicionamento do personagem enquanto personagem, o espectador é chamado a se posicionar enquanto espectador, e a ilusão da subjetividade é desfeita.

Judy é talvez a femme fatale mais perigosa do cinema por empregar esse arroubo de realidade e lançar a dissimulação que define seu arquétipo na direção reta do público, como o monstro de uma pintura que salta da tela para agarrar seu observador. Repare no cálculo dos movimentos quando John deixa o apartamento. Como seu pescoço vira de vagar e seus olhos sobem pesando a resistência do ar até encontrar o olho de vidro da objetiva. Com o cuidado de quem não quer afugentar um bicho, Judy olha o público e pede que o público a olhe de volta, convidando-o a ver dentro dela a grande revelação de Um Corpo Que Cai. Ardilosa, tenta comprar seu perdão com a antecipação da verdade. Na sequência, Judy escreve uma carta endereçada a John, dizendo o quanto o ama e o quanto se arrepende por seu crime. A carta soa mais como a defesa de um argumento, despojada da febre de que se imbui inadvertidamente um relato apaixonado. Quando Judy rasga a carta, forjando arrependimento, tudo fica claro: a confissão é endereçada ao espectador e a ninguém mais. É extraordinária a destreza do truque: agora Judy e o público têm um segredo juntos, condição que ninguém, nem mesmo John, poderá revogar. Dois confidentes sozinhos contra a roda tresloucada do mundo.

A partir deste momento, John é derrubado de sua posição de protagonista e usado como mero joguete do enunciado que Judy luta para validar. Sua submissão no terço final de Um Corpo Que Cai é estratégica. Judy clama por piedade ao olhar para a câmera e procura colocar-se nesta posição cedendo a cada vontade de John, um homem movido pelo desejo de fender a ordem do tempo e pregar uma peça à própria memória enquanto ela se vitimiza com diabólica habilidade. Judy, personagem consciente de sua posição na diegese, sente voltar-se contra ela o curso da trama e decide que uma intervenção é necessária. Tal intervenção paga o preço: ela acaba se declarando, inevitavelmente, locutora do enunciado que procura defender. O discurso então disfarçado de história pela mão do narrador-cineasta é sequestrado e desvelado novamente em discurso por um narrador-personagem. Nem tanto porque assim se transcrevera a ordem das coisas, mas porque lhe era conveniente. Judy revela a máquina fílmica e toma o enunciado em suas mãos simplesmente porque não havia outra saída.

Há os que sempre verão em Judy a dissimulação própria das fêmeas hollywoodianas, mas há aqueles que, mesmo conscientes de sua natureza oblíqua, não fugirão ao encanto de seus gestos acusando por que não a carruagem incendiada do tempo, índice macabro que cavalga Um Corpo Que Cai de um extremo a outro. É o tempo, demônio de andar revolto, de recônditos sinuosos, de arames circunscritos no despetalar dos sonhos, que enlouquece John e que mata duas vezes a única mulher que amou. É a trilha fugidia do tempo, desencontrando-se num lugar para amarrar-se em outro, que funde Judy e Madeleine numa única criatura, escombro ou fantasma que condena John à repetição. É inevitável reparar que o destino de Judy, moldado ao de Madeleine, não se altera apesar de todos os seus esforços, e que por estranha ironia ela termina vítima em Um Corpo Que Cai.

Porque este é o filme dos que marcham em direção à queda. Que se inocente Judy pelo desespero e John pela obsessão; que se inocente a câmera e o enunciado; que se absolva Gavin, pseudo-antagonista perdido em duas ou três cenas. E quanto aos olhos, dois pingentes rateantes sucumbindo à gravidade, que se conceda então o benefício da dúvida, rendidos quem sabe ao balanço desse pêndulo, logrados na densa inclinação do abismo.

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