O Diamante Branco (Werner Herzog, 2004)

Por Robson Galluci

Toda a obra de Herzog é permeada pela tensão entre as aspirações humanas e a natureza indomável, um conflito que não raro termina em loucura e destruição diante de um universo impassível. No entanto, depois do réquiem irreversível que é Lições das Trevas e a simbiose apocalíptica que ele encerra, os bombeiros que não podem mais conceber a existência sem o fogo e que por esse motivo reacendem as chamas, dando continuidade ao “colapso do universo em esplendor” como forma de justificar a si próprios, Herzog vem tentando encontrar encarnações mais saudáveis, menos caóticas e descontroladas desse choque primordial. Novos Aguirres e Fitzcarraldos, depois da palavra final de Lições das Trevas, tornaram-se desnecessários e agora dão lugar aos peregrinos e seu díptico de enfrentamento e submissão, aos assombrosos sobreviventes Dieter Dengler e Juliane Koepcke, os cientistas de Encontros no Fim do Mundo e O Diamante Branco. Mas Herzog não pode deixar de ser o que é, de modo que é também o tempo de Timothy Treadwell e do alerta de que a violência indiferente do mundo é inegavelmente real e presente; de que qualquer agenda humana que ignore esse fato está tão fadada à ruína quanto os projetos de seus personagens dos anos 70 e 80.

É claro que sugerir um corte brusco e categoricamente delimitado numa obra tão inquieta e viva quanto a herzoguiana é um exercício infrutífero — ao longo das décadas, há temas que submergem e são aparentemente esquecidos, apenas para voltarem à tona com toda a força quando não se espera; como os homens que decoraram as paredes da caverna de Chauvet, desde então perseguidos pela hostilidade inexplicável da natureza, em nada diminuída por milênios de evolução científica e técnica, e sua incapturabilidade essencial a fazer naufragar qualquer tentativa séria de representação. Essas linhas de força que retornam parecem em O Diamante Branco vir de O Grande Êxtase do Escultor Steiner, de quem Graham Dorrington bem poderia ser um herdeiro. O sonho de Dorrington é, desde a infância, voar, e a isso ele dedica sua vida, transformando-se em engenheiro e pesquisador, projetando dirigíveis pensados para o uso em expedições científicas. O foco principal do filme — o que se anuncia como tal — é o teste de um novo projeto de Dorrington na floresta tropical da Guiana, e os fantasmas do passado que o assombram durante os dias que passam na selva. Porque, por mais que seu sonho seja retratado de forma quase infantil por Herzog, no sentido de que começa e termina em si mesmo e não está tão contaminado pelo desejo de conquista, ele também deixou sua parcela de traumas e escombros ao longo do caminho, e especialmente o corpo de Dieter Dengler, morto num acidente envolvendo um dos dirigíveis de Dorrington dez anos antes das filmagens de O Diamante Branco. O cientista tenta não se culpar pelo que aconteceu, e racionalmente sabe que de fato não é diretamente responsável, mas se questiona se a mera existência de seu desejo de voar não está por trás das engrenagens que culminam na morte de Dieter. A cena em que Dorrington relembra o dia do acidente é dos momentos mais poderosos de todo o filme, a luta entre o sentimento de culpa e as demandas dos sonhos que transparece em seu olhar, a lenta consciência de que só o sucesso do “diamante branco” (como os habitantes locais passam a se referir ao dirigível) pode proporcionar o alívio buscado.

Mas nem mesmo as dúvidas e a luta interna de Dorrington são suficientes para Herzog, que logo começa a expandir e transitar entre diversos focos de interesse, todos tendo vida e ímpeto próprios, sonhos e aspirações que no entanto ainda orbitam em torno do esforço conjunto de colocar o dirigível no ar com sucesso, para os quais o diamante branco passa a ter um significado simbólico. Até mesmo para Herzog, que discute com Dorrington para que este o autorize a participar do primeiro voo de teste, sabendo que pode ficar sem um filme caso algo dê errado. Através de Mark Anthony Yhap, um dos carregadores contratados pela equipe, que não vê há muitos anos a família, emigrada para a Espanha, e brinca com a ideia de atravessar o Atlântico com o dirigível e pousar no telhado da casa, fazendo uma visita surpresa, a rede de relações movimentadas e agitadas pelo sonho de um único homem se estende para além do que está materialmente impresso no filme. Yhap é outro achado em O Diamante Branco, ainda que a espontaneidade de muitas de suas declarações seja questionável: é o completo oposto do homem herzoguiano — coloca-se diante da natureza com assombro respeitoso, sabe retirar dela aquilo de que precisa sem procurar impor um domínio, parece viver em relativa paz de espírito —, mas a ele também encanta a ideia de voar, de pairar no dirigível em meio à neblina, como descreve Dorrington, de vivenciar o naturalmente impossível.

Em outro dos desvios do filme, um dos membros da equipe desce pelas cataratas de Kaieteur, levando consigo uma câmera, para ver e registrar imagens da caverna inacessível que fica por trás da cachoeira, onde as aves fazem seus ninhos. Mais tarde, mais um sonho se junta à rede construída ao longo da projeção quando o líder de um dos grupos indígenas da região confessa que, se tivesse asas, a primeira coisa que faria seria justamente ir para a caverna e descobrir o que há ali. Contraditoriamente, porém, ele resolve não ver as imagens e pede a Herzog para não divulgá-las, pois toda a essência de sua cultura está na inacessibilidade do local, na ignorância do que ele encerra. O diretor atende à requisição, talvez percebendo que o que existe no coração da atitude do outro é ainda outra maneira de vínculo com o imponderável na natureza que busca uma forma de reconciliação: a cultura se funda na aceitação de que a caverna deve permanecer desconhecida. O homem que desceu e a viu, no entanto, não é condenado ou repreendido, mas aconselhado a guardar o que viu para si, porque é, em sentidos talvez inalcançáveis para nós, espectadores, dele — provavelmente da mesma forma que Dorrington e Yhap, após os voos bem-sucedidos do diamante branco, sentem-se ainda voando, ainda cercados pela neblina.

Evidentemente, porém, não há como Herzog terminar O Diamante Branco com tal ideia de reconciliação possível sem trair a si mesmo e suas convicções, sua crença erigida filme a filme de que a contenda com essa imponderabilidade, a insurgência contra a profunda indiferença do universo é uma característica fundamental do homem e determina sua busca incessante por um sentido último: nos instantes finais Dorrington conta a Yhap como os nativos da Nova Zelândia não puderam enxergar os navios que estavam à frente deles por estarem tão distante de seu mundo de ideias; e depois dá-se conta de como isso se repete com todos nós: comenta com espanto como os pássaros movem-se todos juntos, mudam de direção de organizadamente, como se uma música os controlasse. Uma música com tamanho poder, mas parecemos incapazes de ouvi-la — e segundo Herzog a luta para superar essa incapacidade, para até mesmo acreditar que essa música exista, é o que faz de nós o que somos.

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