Amar, Beber e Cantar (Alain Resnais, 2014)

Por Filipe Chamy

Todos percebem com imediato reconhecimento os elementos teatrais deste derradeiro longa de Alain Resnais: as entradas e saídas de cenas efetuadas pelas personagens, algo de sua movimentação (e os planos e contraplanos e como eles falam), os cenários minimalistas, as separações bastante distintas entre episódios (atos, cenas); mas, ainda que se trate de mais uma adaptação que o cineasta dirige de seu querido dramaturgo Alan Ayckbourn (após os excepcionais resultados obtidos em Smoking/No smoking e Medos privados em lugares públicos), não nos podemos deixar enganar pela superficialidade da constatação dos gêneros e dos temas de uma filmografia que, por mais que declare abertamente sua fascinação, inspiração e influência por campos como quadrinhos e teatro, é sempre cinema.

A primeira diferença: as cortinas não dão para um palco, mas para a vida. As personagens aqui encenam uma peça que em verdade tanto importa pouco a eles quanto a ensaiam menos que suas vidas. O que se esconde por trás dos panos e dos ambientes não é a falta de materialidade cênica como no teatro, mas a vibrante representação do que não há, a ausência, a lembrança e (obrigatório em Resnais) a memória.

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Aí, George. A personagem que liga todas as outras e emenda os conflitos e gera ação. Não é exatamente uma nova Muriel, mas se considerarmos Vocês ainda não viram nada! como um fecho para a obra do diretor também podemos ver Amar, beber e cantar como um epílogo e portanto naturalíssima a condição de George, uma invisível força propulsora de unidade, que harmoniza tudo. É George afinal quem cria o nó e ele próprio quem permite o desenlace.

A tragédia no riso ou a total desimportância do convencional? Porque se para um marido a mulher viajar com o amigo pode ser um drama, o que resta da moralidade realista quando o amigo não se decide entre três, quatro mulheres? Isso ou diz do caráter do homem ou propõe uma nova perspectiva de análise narrativa. Os caminhos do azar, que Resnais desenvolveu em filmes gêmeos que despertam a partir da decisão de fumar ou não fumar — e não é Sandrine Kiberlain que, apanhada no flagra pela própria consciência de culpa, também tem estremecimento parecido? É George sendo um deusinho num universo que espera seu desaparecimento para ter finalmente o livre-arbítrio: decidir não ir viajar, mesmo após afirmar que sim; negar o óbvio, apenas porque se lhe parece mais adequado mentir e assim ser mais amoroso que sincero; entender as vidas que se escapam e disso extrair justamente a serenidade. Mas o aviso do anjo da morte, que é o fim de tudo, versa sobre talvez não a onisciência mas a inexorabilidade das relações.

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O que se repete (a propósito: “répétition” em francês significa também ensaio) são palavras que podem ou não ser molas de interações: a dado momento, o marido indaga se a mulher atua ou está dizendo o que vai mesmo fazer; não se lembra das palavras pronunciadas, e o andar, o entoar e o pronunciar talvez não sejam tão marcadamente falsos — “o beijo não está no roteiro, mas você é a única”, quais as fronteiras entre o que se pratica e o que se declama? Não é tanto a metalinguagem da atuação, mas a metafísica das possibilidades. E onde George está doente, está mais são, pois lucidamente arquiteta as resoluções que sua doença (que independe dele) traria sem sua participação.

Diluídas em sons (a linda música de Mark Snow, recorrente parceiro do cineasta) e artificialidade (desenhos nos planos gerais, eficaz frugalidade na direção de arte), é a nobreza dos rostos em closes estranhíssimos sob fundo rabiscado e a luz das emoções sob as estações (anunciadas nos intertítulos e intuídas a cada quadro) que denotam um pouco esses disfarces que pulsam e se metamorfoseiam e oscilam entre extremos e não permitem classificação pois inclassificáveis as coisas que não possuem nome certo para rótulo.

Talvez por tudo isso Amar, beber e cantar seja pertinente. Mas não é preciso justificativa para o amor ou isso retiraria de sua própria essência a necessária irracionalidade. Alain Resnais acerta também nisso.

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Vocês ainda não viram nada! (Alain Resnais, 2012)

Por Filipe Chamy

Vocês ainda não viram nada! é um título genérico, que poderia servir para designar praticamente qualquer longa dirigido por Alain Resnais, sempre criativo inventor de novas maneiras de se exprimir e apresentar seus pensamentos e reflexões; mas ele escolheu nomear este filme com esse nome, e razão há de haver. Qual?

Basicamente, estamos diante de um tema muito caro ao diretor: a encenação. Mas aqui a coisa ganha contornos ainda mais tênues, quando Resnais trabalha a encenação dentro da realidade e a realidade encenada (dentro da encenação da realidade). O que isso significa? Que nada é o que parece: nós ainda não vimos nada.

A súbita morte de um dramaturgo convoca cerca de uma dúzia de atores para uma espécie de leitura de testamento: trata-se de um vídeo, em que o autor de teatro convida seus intérpretes a assistirem a uma peça, de que todos haviam participado anteriormente; se a peça agradar a eles, estará dada a autorização (póstuma) para a nova montagem.

Reunidos numa sala, os atores começam a ver a peça. E, como mágica, aqueles diálogos e situações apoderam-se de suas vidas, como se eles nunca houvessem sido exatamente atores mas representantes de certas entidades que precisavam comunicar-se com seus rostos, seus corpos. Não é que eles recitem frases por saudosismo, por consciência do “ofício” de ser ator; não, em absoluto. Eles são aquelas pessoas. O drama de Orfeu e Eurídice é real, sempre, em toda parte. Eles estão ali. Há duas Eurídices, dois Orfeus, um pai de Orfeu. Aqueles mundos coexistem, porque o sentido da realidade é multiforme: cada um enxerga as coisas de uma maneira — por isso uma Eurídice é mais introspectiva e a outra, impulsiva, por exemplo. Como dizer qual a real? Ora, a que se sente assim. Ou as duas, mais provavelmente (e, ressalte-se: não são as únicas).

Portanto, é isso que de inédito vemos: os sentidos simultâneos das diferenças no agir, no pensar, no dizer. Uma mesma fala pode tocar uma pessoa de tal maneira e afigurar-se a outra num modo completamente diverso. E é Resnais que nos mostra isso, com sugestão ímpar: fazendo vários conflitos ocorrerem ao mesmo tempo, forçando nossas percepções a entender que não é sempre uma saída única que rege os acontecimentos. A mitologia clássica (onde Jean Anouilh buscou a inspiração primária para sua releitura do mito, evidentemente) é uma ponte que também diz a que veio: se não havia registros sonoros e visuais das peças na Antiguidade, como eram as Eurídices, como eram os Orfeus? Muito simples: como são os Orfeus e as Eurídices. A Antiguidade vive em nós, os dramas são cíclicos e ainda vivemos os mesmos problemas que nossos antepassados, temos as mesmas crises, dores e amores.

Por isso também este filme, sobre uma milenar história de amor, dirigido por um homem de noventa anos, é um tratado moderníssimo sobre a representação e sobre o cinema. O incômodo do desconhecimento da identidade é um reflexo não apenas de atores, mas de todos nós: jovens ou velhos, estamos nus diante de coisas que são maiores que nós, que não entendemos e refutamos. Isso não foi criado por Ovídio, por Jean Anouilh ou por Resnais. E nem se encerrará com a morte de quem quer que hoje esteja vivo. Seja hoje ou dois mil anos atrás, ainda não vimos nada, pois já vimos tudo — e sempre haverá algo a ver.

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Ervas Daninhas (Alain Resnais, 2009)

Por Filipe Chamy

Quem acompanha a carreira de Alain Resnais sabe que esse hoje nonagenário não se cansa de sempre inovar os próprios caminhos de expressão: mexe na estrutura narrativa, na forma material do filme, brinca com a metalinguagem, os atores, os gêneros; faz de uma farsa teatral genialmente encenada (Smoking / No smoking) a uma opereta (Beijo na boca, não), de homenagem a quadrinhos roteirizada por Jules Feiffer e com inserções de animação (I want to go home) a ficção científica não-cronológica e existencialista (Eu te amo, eu te amo), entre décadas de inventividade motivada antes por um desejo de se exprimir com a criatividade que lhe empolga no momento que por deliberado senso de pioneirismo ou desejo de iconoclastia. E se no começo da carreira era comum Resnais pedir para romancistas e escritores sem prática cinematográfica fazerem roteiros para ele (como o fizeram Marguerite Duras, Alain Robbe-Grillet, Jorge Semprún e Jacques Sternberg, por exemplo), agora ele surpreende por, aparentemente pela primeira vez em sua admirável filmografia, adaptar um romance — expediente simples para muita gente, mas inédito em Resnais, que escolheu o excelente relato contemporâneo L’incident, de Christian Gailly, para adaptar às telas; sim, porque Resnais agora também, disfarçadamente e próximo de reputada cegueira, resolveu também dar suas pinceladas nos roteiros de seus filmes, o que parece vir com mais força nos últimos anos. Então não resta dúvidas de que Ervas daninhas é mais um acontecimento único na ficha resnaisiana.

O romance de Gailly é quase todo composto de diálogos livres, misturados a uma trama quase sensorial, de tato e de contato. Lendo-o, é bastante difícil encontrar Resnais naquelas páginas, mas, vendo o filme, observa-se que é Resnais do começo ao fim, inescapavelmente, sem qualquer hesitação. Parece talhado para suas idiossincrasias, e a maneira com que filma aquelas personagens e ocorrências faz qualquer um pensar que é um roteiro original escrito especialmente para Resnais, e não um romance de um escritor ainda um pouco obscuro no cenário das letras mundiais, que o escreveu quase quinze anos antes de Resnais adaptá-lo para o cinema.

É uma história de acasos e consequências, em que o rico mundo interior de cogitações das pessoas confunde-se com o anódino da paisagem, a robusteza algo incômoda do ambiente, o deserto da realidade que não sabe acolher as emoções profundas que, em descrição seca, parecem deslocadas ou arbitrárias. É portanto de dois mundos que falamos, e só há choque, desespero e humor quando há a colisão entre esses mundos, como nos conflitos polícia/lei/sociedade versus dramas particulares — que a certo ponto do filme perdem todo o sentido, explicando-se assim o sumiço de certas figuras proeminentes no começo da trama, procuradas por um evento e depois descartadas e desconsideradas.

Fugindo um pouco da metáfora de um Jules e Jim, as decisões inopinadas que existem em Ervas daninhas agem um pouco como nossas mudanças de humor cotidianas: aquilo que nos agrada agora pode ser um desprazer depois; e se os vai-e-vens do casal Marguerite Muir (Sabine Azéma) e Georges Palet (André Dussollier) parecem estranhos, por que não considerar que são pessoas estranhas? A esquisitice faz parte da vida, não dá para higienizar narrativamente todo caráter, ainda mais na construção artística. Então assumimos facilmente que aquela mulher foi roubada, sua carteira foi encontrada pelo homem, e esse incidente deu origem a uma profunda modificação em suas vidas.

É isso que Resnais mostra, com suas demonstrações de humor e irreverência (os cortes precisos, as elipses, as alterações de tom, a câmera extremamente singular), sua escolha pela adaptação deste material e não de outro, seu carinho com os intérpretes (que aparecem em vários de seus filmes, alternadamente ou não), o aspecto artesanal de sua obra: incidentes há, a vida é feita deles. A beleza está no captar ou não sua importância: quando formos gatos, poderemos comer croquetes?

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O Homem Nu (Roberto Santos, 1968)

Por Filipe Chamy

A adaptação literária no cinema é repleta de preconceitos, dogmas, institutos. Quase sempre os comentários versam sobre a infidelidade adaptativa, a impossibilidade de se condensar centenas de páginas em poucos minutos ou horas, as facilidades e dificuldades de transposição de linguagem de uma mídia a outra, diferentes enfoques etc. Mas pensa-se nisso para obras extensas, romances, sobretudo. E o que dizer quando se adaptam narrativas enxutas, como um conto ou uma crônica?

O homem nu, de Fernando Sabino, fica no meio dessas duas formas. E então toda essa problemática sobre modificação ou transmutação é preciso ser repensada: a história original sendo muito curta, o filme é mais “completo” que ela?

Discutir as coisas assim não dá em nada. Basta ver que é outro espírito, outras metas. E não se pode falar em qualquer tipo de adulteração, pois o próprio Fernando Sabino é um dos autores do roteiro deste filme. Então, pode-se dizer, o personagem está sempre ali, com seu criador.

Criar um filme de duas horas a partir de poucas páginas é bastante curioso, e quem conhece a obra de Sabino pode estranhar a demora da introdução da saga da nudez propriamente dita, que só se dá do meio do filme em diante. Antes, toda a vida do professor Silvio Proença (feito com grande presença por Paulo José, pouco antes de dar vida a outro “herói” literário: o Macunaíma de Joaquim Pedro de Andrade) é repassada em breves pinceladas: sua relação com a mulher (feita por Leila Diniz, que a certo ponto é indagada se sonhou com um avião caindo, trágico paralelo com a realidade de sua vida), seu tédio com a burocracia dos eventos a que se submete, uma certa infidelidade moral que não o liga a nada e o deixa perenemente flutuando por sobre palestras, livros, reuniões.

Aí ocorre o choque da nudez: e Proença vira a caça, o inimigo. O que é mais natural (a ausência de roupas a esconderem o corpo) é considerado subversivo, perigoso. Proença é combatido, não o deixam explicar-se, não há redenção para ele. O absurdo da situação é um pesadelo amorfo, parece ridículo (e o é), parece inconcebível (e o é), mas está acontecendo, ali, com alguém que até então nunca havia sido vítima de nada, exceto da morosidade burguesa habitual. Proença não sabe se defender, pois nunca precisou de defesa.

Roberto Santos dirige o filme quase como um documentário, seguindo o homem nu de instante a instante, sempre junto a ele, sentindo suas pausas e cansaços, suas dores, percepções, esperanças. Haverá solução? A coisa parece sair mais e mais do controle, ao ponto de que a crônica de costumes metamorfoseia-se, via ácida sátira, em surreal descrição de metáforas. O convencionalismo político, a hipocrisia cotidiana, o caos das comunidades contemporâneas, enfim, é quando as roupas são retiradas que vemos o quanto a nudez (a verdade, a sinceridade, a ausência de disfarces) incomoda, o quanto aquilo é flagrantemente iconoclasta. O homem nu é, portanto, um filme político. Agoniante, incisivo. Que isso não impeça ninguém de abstrair a seriedade e consolar-se com a graça da triste odisseia de Silvio Proença: como Roberto Santos e Fernando Sabino reforçam no final, esta é uma sociedade do espetáculo, em que as exibições tanto são mais divertidas quanto deixamos de lado o pudor e vemos que afinal, todos estamos nus.

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Um Quixote Sem Mancha (Miguel M. Delgado, 1969)

Por Filipe Chamy

O fenômeno Cantinflas, ainda que obscurecido hoje por novidades recentes, faz parte de uma expressiva porção do cinema popular da segunda metade do século XX. Era aquela época (não desaparecida de todo, mas cada vez menos frequente) em que um ator, cantor ou celebridade fazia tanto sucesso que sua persona adquiria vida própria, e essa imagem era explorada em inúmeras ocasiões e oportunidades, variando pouco de caso em caso. Alguns exemplos famosos: Jerry Lewis, Woody Allen, Oscarito, irmãos Marx. Dá para perceber como isso é comum no terreno da comédia: quando um humorista entusiasma, é normal e esperado que ele apareça mais e mais caracterizando o personagem que lhe trouxe popularidade; e aí vemos muitos filmes e programas televisivos em que o artista repetirá os mesmos trejeitos, falará da mesma maneira e usará as mesmas roupas, confundindo sua vida dentro e fora das telas. Não é um problema para quem consegue ser autoral dentro desse esquema, e não se questiona a genialidade de um Chaplin (que, dizem, achava Cantinflas o maior cômico do mundo) ou de um Tati apenas porque eles na maior parte de suas vidas retrataram um mesmo tipo cômico, ainda que sempre os aperfeiçoando.

Cantinflas foi um grande astro do cinema mexicano, mantendo invicta sua popularidade até morrer, quando, segundo consta, foi saudado como herói não apenas pela dedicação de décadas à alegria em suas fitas cômicas mas também por ter legado a maior parte de seu dinheiro (ele ficou milionário) a gente necessitada. Mas em vida seu carisma era inigualável: por seu tipo físico marcante (baixinho, bigodes diminutos nos extremos dos lábios), seu desembaraço e seu talento em ser genuinamente divertido, com um pouco de humor físico e muita graça ao falar (o verbo “cantinflear” foi cunhado para dar conta de alguém que mais fala do que se faz entender), Cantinflas tornou-se o maior nome das produções de comédia mexicanas, sendo quase um alter ego do mexicano comum que se vira como pode e é capaz de enxergar a leveza em seus problemas sociais cotidianos. Aliás, para se compreender um pouco a dimensão de seu estrelato, basta dizer que ele foi “exportado” para Hollywood, onde protagonizou alguns trabalhos de grande bilheteria (como o vencedor do Oscar A volta ao mundo em oitenta dias); e, mais, ele tinha a liberdade de escrever seus filmes e dar a eles com isso um toque pessoal muito distinto e que ainda hoje torna as singelas obras que estrela experiências muito agradáveis.

Este Un Quijote sin mancha é um de seus últimos filmes, dirigido por seu “compadre” Miguel M. Delgado (que dirigiu dezenas de filmes com ele e com o mítico lutador Santo el enmascarado de plata). São as aventuras de um advogado, ou melhor, um “quase” advogado: Justo Leal y Aventado — claro que o nome é mais uma das brincadeiras de Cantinflas —, que, apesar de não ser o operador de leis mais culto e experiente que se viu, é o mais nobre de coração e o mais simpático, tentando desentortar o que há de mau na vida e nas injustiças, a exemplo do magnífico herói de que se vale o título do filme.

Claro que o filme não apresenta muito mais que os momentos de brilho de Cantinflas, sua interação com outros personagens/atores, suas reações, suas digressões e suas ações. Mas isso realmente não se faz necessário, o que não significa que todo o resto seja dispensável: a direção de atores de Delgado, sua movimentação honesta de câmera e construção de planos e enquadramentos, nada disso parece deslocado ou ineficiente (como em certos filmes dos Trapalhões — outros comediantes nessa linha “o filme sou eu” —, em que a estrutura cênica é um pouco lastimável).

Altamente recomendada então a visita a esse homem do cinema, a esse Cantinflas que hoje só não encanta mais porque vem sendo menosprezado e pouco difundido – pelo menos no Brasil, onde também era garantia de público. Esperamos que a coisa não chegue ao ponto de em alguns anos retornar ao anonimato de sua identidade “real” — como se sua realidade fosse fora do cinema —, Mario Moreno. Que se imprima a lenda.

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O Amigo da Minha Amiga (Eric Rohmer, 1987)

Por Filipe Chamy

O que mais chama a atenção nos filmes de Eric Rohmer, o que salta aos olhos e parece seu definitivo testamento como autor de cinema, é como ele rege seus atores e como suas personagens são desenvolvidas. Os intérpretes de suas obras parecem encarnar pessoas sumamente tranquilas, que falam muito mas se exaltam pouco, sempre racionalizam o que sentem e são totalmente avessas a explosões emocionais. Isso é verdade apenas aparentemente: sob um verniz de calma e serenidade, toda a intensidade da vida é pintada por Rohmer com inesgotável segurança; e suas criaturas sofrem, choram, gargalham ou se enfurecem com naturalidade honesta e constante.

Aqui neste O amigo da minha amiga, última de suas “comédias e provérbios”, Rohmer também deixa claro outras marcas suas: o feminismo que o faz se interessar pelo retrato de mulheres (e não de estereótipos); a vida dentro dos quadros, pois toda a ação se passa dentro do enquadramento e nunca fora das paredes delimitadas em seus planos – a câmera mesmo se movimenta relativamente pouco -; a extrema nobreza e respeito que consagra aos dilemas e dúvidas das gentes de suas narrativas.

O aparente classicismo rohmeriano é apenas a roupagem de que o realizador se vale para demonstrar sua atenção a detalhes que realmente importam a sua concepção de cinema, e portanto sua encenação comporta elementos que se repetem de filme para filme, como um microcosmos que o diretor se dispõe a analisar um pouco mais a cada filme, variando apenas certos aspectos de ambientação estrutural, por exemplo. Este filme é uma peça urbana, assim como Os amores de Astrée e Céladon é um recorte histórico, O joelho de Claire é uma cena de campo etc.

O amigo da minha amiga interessa sobretudo pelas cirandas que rodeiam as personagens e o sentido que isso apresenta a elas e ao espectador, jogando muito habilmente com expectativas, com fatos e com surpresas, não permitindo conclusões e julgamentos antes do fim do filme, como de resto seguindo as pegadas da própria vida que filma com beleza e humor e leveza, mesmo quando tudo parece perdido ou arruinado, desamparado, desprotegido. No final das contas tudo se arruma, e os caminhos se vão modificando na mesma medida que nossas cabeças vão adquirindo novas percepções e nossos desejos, outras formas e vontades.

Em Rohmer, a moralidade das convenções aparece sublimada nas decisões que impelem os comportamentos a se sujeitarem antes a uma força de vontade que a uma inércia social. Em outras palavras, suas personagens procuram o que é bom para elas, pouco se importando com os efeitos disso e as adequações de seus atos na comunidade que habitam. São espíritos livres, que buscam a felicidade e para isso se movimentam ao encontro de suas chances, ainda que por vezes, como neste filme, pareçam resvalar para a volubilidade, para a imaturidade emocional, o egoísmo sentimental. Tudo engano: nas imagens que Rohmer tece, esses equívocos são apenas avatares, disfarçando na imagem a fundamental razão de tudo haver e pulsar.

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Valente (Mark Andrews, Brenda Chapman e Steve Purcell, 2012)

Por Filipe Chamy

A primeira coisa que parece digna de observação em Valente é como ele é muito mais um filme da Disney que da Pixar.

Dialogando com décadas de uma tradição (quase) irretocável, Valente a todo instante lembra os longas animados disneyanos: o cabelo da simpática protagonista Merida é vermelho e ondulante como o de Ariel, a pequena sereia; o rei expansivo e boêmio faz recordar os alegres monarcas de A bela adormecida; há certos elementos de ambientes e personagens que recriam Irmão urso etc.

É claro que a Pixar pertence à Disney. E mesmo quando não o era seus projetos eram feitos em parceria com a Disney, que possui um aparato de divulgação e distribuição bem mais poderoso. Mas é curioso que justo agora, que John Lasseter é o chefe da animação Disney, a Pixar tenha procurado se voltar para esse lado. Porque Valente parece prenunciar alguma tendência de mudança no modo Pixar de se fazer um filme, e não só por ter colocado pela primeira vez o foco das atenções em uma garota: Carros 2, o longa anterior da empresa, soava muito mais como um veículo (sem trocadilho) de promoção de bonequinhos, roupas e todo tipo de tralhas do que uma obra de expressão autoral, e nesse sentido Valente é que aparentemente demonstra com mais segurança o que vem preocupando e inspirando os artistas pixarianos.

Portanto, Merida já pode muito bem figurar como uma legítima princesa Disney. E é nítida também a evolução das jovens reinantes: da totalmente ingênua Branca de Neve à reprimida Rapunzel, todas elas haviam demonstrado uma evolução no retrato do agir feminino, deixando aos poucos a submissão imposta por seculares tradições e procurando elas mesmas redefinirem seus caminhos em suas vidas. Se Branca de Neve, Cinderela e Aurora (a bela adormecida) dependiam em seus destinos da conjunção entre a sorte mágica do acaso e a boa vontade e coragem de um príncipe encantado, Ariel, a rebelde, começou a se distanciar desse pedestal e contrariou os desígnios do rei seu pai; Belle, a decidida, modifica com seu caráter e inteligência toda uma situação de maldição e desesperança; Jasmine, a voluntariosa, reescreve as leis de uma sociedade arcaica e instaura o feminismo de igualdade de escolhas. Essas princesas deram a tônica para mudanças que refletem certos anseios sociais, étnicos e humanos “lato sensu”, com mais abrangência racial, menos estereótipos de gênero, maior ambição narrativa ao deixar de usar clichês de princesas literárias como muletas para a estrutura dos filmes seguintes.

Merida dá a sua contribuição e pela primeira vez vemos uma princesa Disney que não só discorda dos pais (no caso, a mãe) como ainda faz das suas para literalmente mudá-los. De Branca de Neve a ela, foi adicionado um caminhão de força, de decisão, de maturidade.

Valente tem bons coadjuvantes, boa cenografia, encenação, figurino, bons diálogos e direção, bons planos, boa música e boa concepção e roteiro. Mas se nele há algo de ótimo é a garota dos cabelos ruivos revoltos, a figura que quando os esconde sob os trajes de costume é uma menina e quando rasga o aperto da roupa e os liberta é mulher. É Merida, uma figura bastante crível e que afinal a encontramos em uma idealização, um sonho. É preciso aceitar que o cinema de animação pode apresentar gente muito real também.

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Ao Abismo – Um conto de vida e de morte (Werner Herzog, 2011)

Por Filipe Chamy

Claro que os heróis de Herzog já enfrentaram a morte de várias maneiras: ou se entregando a ela (O homem urso) ou procurando-a (in)voluntariamente (Fitzcarraldo, Aguirre, a Cólera dos Deuses) ou mesmo negando-a, vivendo numa espécie de limbo metafísico (o Drácula de Nosferatu). Mas neste dolorosíssimo Ao abismo – Um conto de vida e de morte a experiência é ainda mais dramática: Herzog vai ao mais profundo da ferida e, sem amenizar a jornada, despeja no espectador a dura realidade de que está tratando: o corredor da morte.

Ou, mais propriamente, tudo que o cerca: os crimes que levaram vidas humanas a esperarem seu fim numa sala triste e solitária, as pessoas envolvidas nos acontecimentos, a filosofia, a religião, a política, a incoerência. Não faltam personagens nessa tragédia da pena de morte legalizada e institucionalizada e exercida pelo Estado.

Desde o começo fica claro como Herzog é contra essa prática. O que não significa, ele deixa bem claro, que isso o obrigue a simpatizar com as pessoas que serão executadas. Mas, reforça, elas também são humanas, e nessa condição merecem respeito. É um posicionamento franco, honesto e corajoso. É não apontar o dedo e reconhecer-se com falhas, mas também disposto a compreender as coisas da vida, por mais erradas ou malignas que pareçam. É, por fim, entender que a humanidade se construiu e constrói com certos sobressaltos, desde sempre, e a “higienização” das execuções oficiais não apenas é moralmente estúpida como totalmente inadequada e ineficiente do ponto de vista prático: é como querer acabar com uma doença matando um homem que está infectado. Trata-se da quintessência da ignorância, aplaudida por muitos.

Herzog acompanha o caso de um jovem que será executado em poucos dias, seu “parceiro de crime” — que, graças ao apelo do pai (também criminoso gabaritado), teve a pena revertida para prisão perpétua —, uma mulher cuja família foi vítima dos dois rapazes, parentes desse pessoal, um carcereiro, um padre e várias outras figuras que se relacionam com o ocorrido. Relatos, depoimentos e momentos introspectivos, de singeleza e de arrependimento ou doçura, nada faltará ao filme, documentário exemplar por se posicionar com sobriedade sobre tema delicado e controverso, mesmo declaradamente expondo as idiossincrasias de seu realizador logo de início. Afinal de contas não é errado ter opinião: o problema é ser extremista, superficial, radical; e essa pecha não podem imputar a Herzog, que se revela acima de tudo um diretor com compromisso ético e uma grande humanidade.

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O Sobrevivente (Werner Herzog, 2006)

Por Filipe Chamy

Não é segredo para ninguém que Werner Herzog, assim como alguns ilustres colegas seus (Agnès Varda, por exemplo), divide sua filmografia de maneira mais ou menos rígida entre suas ambições “ficcionais” e suas ambições “documentais”. Ora, O sobrevivente não é um documentário, mas é baseado em um acontecimento real — que Herzog havia relatado em um documentário poucos anos antes! —, então como classificá-lo?

Não há a menor necessidade de se proceder à rotulação deste filme. O filme passeia muito bem por essa “indefinição”, inclusive. Christian Bale, o protagonista, sofre uma mutação física impressionante, chegando a quase um extremo cadavérico; ora, se o filme é totalmente ficção, como há esse realismo no físico transformado do ator vivendo a personagem? Não se trata da reles imitação, o mimetismo que é no mais das vezes condenável: é o physique du rôle que obriga o ator a se metamorfosear diante da tela. E ao contrário: as cenas com o ator em avançado estado de aparente desnutrição foram filmadas antes, e o começo do filme, com o rapaz vigoroso e em forma, é na verdade o final da jornada. Parece que brincando com esses tempos trocados, Herzog insiste na inutilidade de se pensar seu filme necessariamente como uma coisa (ficção) ou como outra (documentário). Qual é a ordem das coisas na vida?

O que fica claro é que o filme se posiciona de maneira bastante segura contra certa visão de mundo. E se engana quem acha que é um libelo pró-EUA, a favor do intervencionismo no Vietnã ou uma louvação ao espírito intrépido e desbravador dos heróis de guerra americanos. Nada mais longe da verdade. Fica evidente a exposição do horror da guerra, e O sobrevivente não faz nenhuma concessão à franca depreciação dos símbolos (como atesta o final, também entendido erradamente por muita gente), da conduta dita de bravura, da “necessidade e pertinência” da guerra. Não: a guerra é estúpida, atroz, suja, podre. Herzog filma os conflitos de maneira visceral, de modo a não deixar dúvidas de que aquilo é horrível. Não são apenas os vietcongues que são animais brutalizados pelos conflitos, mas também os corajosos ianques que, do alto de seus helicópteros, metralhavam crianças, velhos e mulheres em suas aldeias humildes. Não são apenas os homens brutos e violentos da aldeia que merecem punição pelos crimes de guerra, tanto mais que é sabido que o animal ameaçado tem força duplicada — e aí como não considerar toda a miséria, toda a opressão, toda a falta de perspectiva, apoio, ajuda e consideração humanas que negaram sempre àquela gente, e que a guerra potencializou até virar o quadro em um mar de descontrole e tensões?

Então é crasso erro considerar que há um alívio de clímax quando ocorre certo evento que parece extinguir o perigo, em determinado momento da narrativa. Tanto o é que Herzog ainda faz um último aviso, tirando de cena uma figura importante da aventura, como a nos lembrar de como é tolo achar que tudo é resolvido assim de maneira superficial.

O que se tira de uma experiência assim é uma dor na pele, física mesmo, pois Herzog leva o espectador a matas fechadas, sem qualquer traço de “civilização”, “higiene” ou qualquer outro conceito mais próximo a nós; vemos o horror daquela prisão, a extrema imbecilidade de um conflito como esse e a desesperadora ausência de sentido, que dá uma incômoda incoerência àquelas vidas. E não se pode negar a vitória de um filme que joga uma problemática como a estupidez das guerras numa história onde qualquer cineasta menos lúcido que Herzog veria uma desculpa para fazer apologia a um vil patriotismo.

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O Homem Urso (Werner Herzog, 2005)

Por Filipe Chamy

Em parte expressiva de sua filmografia, Werner Herzog persegue personagens que empenham o corpo e a alma na procura, na busca ou na execução de uma tarefa maior que suas forças, ou mesmo impossível. O homem urso não é exatamente exemplar nesse sentido, mas sem hesitação pode ser colocado no rol dos heróis herzoguianos — trata-se de um sujeito que dedicou mais de uma década de sua vida a viver em comunidade com ferozes e reclusos ursos pardos selvagens.

Suas intenções são nobres: proteger os animais e despertar a atenção das autoridades para problemas ecológicos de tal monta, além de conscientizar as crianças e fazê-las entender quem são os ursos e por que sua preservação é tão importante ao mundo.

Mas ele também padece de uma obsessão que margeia a loucura, a exemplo de um Fitzcarraldo. Então quando se isola e vai de fato estudar e conviver com os ursos, parece simplesmente uma missão suicida, um projeto de tolo, empresa fadada não só ao fracasso mas ao ridículo.

Não sendo uma criação ficcional, o homem é totalmente responsável por suas ações. Aliás, mais: são deles os registros que Herzog reúne para dar uma ideia do trabalho efetuado, dos anos decorridos e das pessoas envolvidas na história. E Herzog o respeita plenamente — apesar de evidentemente (e às vezes de modo verbalizado, explícito) discordar de muitas de suas atitudes, nunca zomba de seus credos, diminuindo seus esforços. Compreende-o, ou procura fazê-lo.

Herzog sai afetado pessoalmente dessa pesquisa. Em um momento tocante, chega a se emocionar de maneira flagrante (mesmo estando de costas para a câmera isso é facilmente observado) ao ouvir um arquivo de áudio de um momento particularmente doloroso na biografia do seu retratado. Mais que curiosidade, há um interesse humano. Uma vida desregrada, mas com um propósito. E registrar esse propósito e seus êxitos e eventuais fracassos é o que interessa ao diretor-documentarista. Portanto, ele vai atrás de fontes, de ocorrências, e chega a visitar locais envolvidos no caso todo. Alguém duvidava que ele não teria essa iniciativa? A obra de Herzog é um viajar pelo mundo, desbravar áreas inóspitas e conhecer culturas e gentes independentemente de barreiras de língua, geografia, etnia. Então ele vai atrás, segue as “pegadas” do homem urso (também um amante de raposas) e não se resume à burocracia do retrato: empreende uma verdadeira reconstituição de um momento de rebeldia inserido em certa contracultura, um grito por uma mudança de estado e de consciência. Chega a ser sintomático perceber que de fato há um desejo de simbiose, de metamorfose: o homem urso quer virar urso. Como em lendas indígenas, ele decide ser mais nobre se aliar ao indomável, e pouco a pouco se afasta do que temos por “civilização”. Temos com isso um filme de “vida real” em que o real é na verdade um avatar de uma fantasia praticada em nome de um ideal.

Herzog entende que a matéria-prima para a obra funcionar é uma visceral sinceridade, o que explica sua opção de pouco mexer no material bruto a que tem acesso. É como se exprimisse este óbvio: julgamentos são inúteis, mas é de todo modo improvável permanecer indiferente a essa vida um pouco “abençoada” por uma inconsciência algo poética.

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No Coração da Montanha (Werner Herzog, 1991)

Por Filipe Chamy

A princípio, No coração da montanha é um filme igual a tantos outros de Herzog: trata-se do clássico embate homem versus natureza, com as adequadas discussões sobre a megalomania mundana e a perenidade das forças naturais.

Ocorre que essa leitura se verifica além da superficialidade — de fato, o filme possui esse mote.

Claro que isso não é tudo: caso Herzog fosse um cineasta acomodado, limitar-se-ia a uma zona de conforto e não procuraria sair nunca dali, sem qualquer razão que desmotivasse sua inércia.

Neste No coração da montanha Herzog acaba se voltando mais para um comentário social do que para um simples relato de viagem. Claro, ela está lá; e da maneira predileta do diretor, numa terra distante e de desafios intrínsecos. Há neve, há montanhas, há a imensidão geográfica. Mas há, além disso, a crônica intrusiva contemporânea, a televisão e o registro incessante dos passos fúteis das pessoas. Uma pitada de realidade numa fábula de superação, de desafio. Qual pico é mais inacessível, o de um monte gelado e de altura assombrosa ou o do sucesso pessoal respaldado pela imprensa? Como Herzog prova a todo instante (pelos dramas encenados por suas personagens), não basta estar num lugar, é preciso registrar (e portanto documentar) essa atividade. Daí o momento-chave em que uma elipse insinua a dúvida sobre um feito alegado mas nunca realmente esclarecido.

Resgatando sempre a cada obra a admirabilíssima habilidade de forçar o espectador a partilhar os sentidos e dores das pessoas que segue (inclusive em seu cinema de documentário), Herzog abrasa o gelo com intensidade precisa e demonstra sensatez ao não se deixar perturbar pela tentação de virar um “paisagista”, mostrando o oco de um cenário sem alma, árido por constituição; não, aqui se trabalha o palco de um drama em que as figuras humanas não se deixam ofuscar pela grandeza das proporções do ambiente com que se relacionam — e com isso o filme fica forte como o imponente Cerro Torre, mas infinitamente menos frio.

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Jag Mandir (Werner Herzog, 1991)

Por Filipe Chamy

Já se cantou que o Brasil nunca foi ao Brazil; segregações sociais à parte, diversos fenômenos históricos e culturais também nos impedem de ir a outras paragens mais distantes. O “Oriente”, por exemplo, ainda nos parece tão exótico quanto nos romances de Emilio Salgari. Não entendemos seus códigos, suas tradições, sua cultura. Ficamos meio anestesiados quando confrontados com certas demonstrações de suas gentes, seus povos. Isso é devido a milhares de fatores desenvolvidos ao longo da história, mas o fato é que, na verdade, com certas diferenças de língua e geografia, não somos assim tão diferentes de nossos irmãos do outro lado do globo.

É um pouco abstrato observar este registro que Herzog fez de uma cerimônia em honra de uma celebridade política indiana; mas não o são também nossos concertos de música, arte performática, circos? É tão difícil considerar-se próximo a representações de movimentos, cantos e danças que evocam sentimentos e certas considerações sobre a sociedade que se habita?

Estamos junto aos indianos no esforço em viver em áreas superpopulosas, quentes, com natureza abundante e por vezes selvagem, agressiva. Macunaíma bem pode ser tido como um irmão de criação de Mowgli, e é no carnaval brasileiro onde se tem a chance de perder um pouco do velho ranço xenofóbico deixado em nós pelos colonizadores e perceber que, afinal de contas, nossos costumes são tão “exóticos” quanto o de qualquer país.

Talvez para deixar a experiência mais “palatável”, Herzog investe aqui em uma pequena narração (seguida a uma introdução), em que explica um pouco dos motivos do evento que filmou e alguma coisa de suas origens e especificidades. Nada muito acadêmico, contudo: acredita-se que boa parte do relato foi inventado pelo diretor, inclusive.

Então ficamos por pouco mais de uma hora por dentro de um balé especial feito artesanalmente por um povo de pele morena curtida do sol, roupas coloridas e marcantes, filosofia e religião abundante em símbolos, imagens sugestivas, fortes marcas de uma expressão serena em sua convicção. É com admiração que se nota o empenho no arregimentar de forças para o espetáculo: não é apenas aqui, também reconheçamos, que marajás dispõem de dinheiro para suntuosas comemorações.

É nas comemorações, portanto, que se estabelece o símbolo da unidade e da fragmentação: o poderio de um homem, a explicitação das mazelas de desigualdades de classes (sempre notadas na Índia), uma certa rigidez nas regras de conduta e convívio; ao mesmo tempo, o desejo de se perpetuar uma cultura em vias de extinção (talvez a grande ambição de Herzog ao topar o projeto), a fraternidade que iguala as pessoas que participam do teatro, o escapismo dessa farsa (no sentido cênico).

Jag mandir não foi o único filme de Herzog em terras algo menosprezadas pela cartografia ocidental; fica clara a posição do cineasta de mostrar em seus trabalhos locais desolados mas de vivo pulsar de experiências humanas, pois no final somos todos modificadores de ambientes inóspitos e nossos passos na Terra significam uma contribuição a esse espaço — o que este documentário parece reforçar a cada quadro, de uma maneira ou de outra.

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As Aventuras de Tintim (Steven Spielberg, 2011)

Uma adaptação de Tintim (ou Tintin, no original) feita por Steven Spielberg era algo que eu temia.

Já sabemos há muitos anos de sua paixão pela criação de Hergé — da qual comprou certos direitos já nos anos 1980 —, e também conhecemos de cor e salteado sua louvável peregrinação pelos meandros da infância, bem como seu fascínio por aventuras que só recentemente foram respaldadas pela intelectualidade crítica, a exemplo das assinadas por gente como Carl Barks e James Barrie.

Ainda assim, era com pé atrás que eu via os boatos sobre um novo filme de Tintim (que já teve alguns longas décadas atrás, inclusive dois live action) pouco a pouco ganhando peso, até se confirmarem há alguns anos e finalmente, poucos meses atrás, tomarem forma em trailers, fotos de divulgação, propagandas de todo o tipo. E o filme então ficou pronto e foi lançado.

Mas se Spielberg é tão próximo a esse universo e tão apaixonado pelo personagem, por que o inescapável e firme receio?

O caso é que Spielberg sempre me pareceu inadequado nesse tipo de terreno: a aventura “fantasiosa”. Muita empolgação pela pirotecnia, pelo teatral, pelo malabarismo visual, o que afeta a narrativa de uma maneira geralmente bastante incômoda para mim. Nem da série de Indiana Jones eu sou apreciador: para mim, muito barulho por nada. As músicas-tema onipresentes de John Williams, os diálogos de efeito, a estrutura esquemática da ação, seus intervalos e clímaces, tudo sempre soou a mim como um pálido arremedo do que ele sempre admirou nesses campos.

Mas com Tintim Spielberg acerta a mão; e se falei de “arremedo”, essa é uma das chaves do sucesso do filme: sua honestidade. Spielberg não tenta copiar Hergé e se valer disso como blindagem. Pelo contrário: ele mexe nos álbuns mesclando histórias, suprimindo ou introduzindo personagens, alterando fatos, situações, ocorrências. E qual o problema disso?

Devo fazer um aparte aqui: sou enorme admirador de Tintim, tendo lido e assistido a todas as suas aventuras durante anos e anos de minha vida. Então — com certa pena em reconhecer isso — acrescento a meus temores descritos acima a adaptação “fracassada” de tão magníficas obras. Nunca creditarei a uma adaptação livre a qualidade insatisfatória de um filme, mas involuntariamente pensava com desgosto na supressão do professor Girassol (ou Tournesol, ou Calculus), por exemplo: ora, se a base dessa aventura é em grande parte devido à aparição e impulso desse personagem, como um declarado fã dos quadrinhos cogita filmar a história sem sequer mencioná-lo?

A maneira como Spielberg contorna essas “alterações” é exemplar. Não se escora na fama dos personagens (o filme é muito bem recomendado a qualquer neófito no assunto) nem resvala na preguiçosa indulgência covarde dos realizadores acostumados com mimos e flores. A engenhosidade do filme se deve em parte a essa decisão de Spielberg: não copiar Hergé, mas deixar claro a todo instante como respeita seu legado e como cada sugestão dos álbuns é aproveitada por sua força, intensidade e beleza. Desde os créditos iniciais, o amor de Spielberg por Hergé e Tintim é explicitado de mil formas, com várias citações e referências, que não parecem ocas ou exibitórias, mas carinhosas demonstrações de apego e estima. O que ele muda, muda com a consciência de servir a um propósito: o de funcionar no filme. E o filme funciona muito bem, obrigado.

Muito se discutiu sobre a técnica de filmagem, com atores reais sendo depois “digitalizados” (via motion capture) para a forma de animação tal como a vemos, mas essa é mais uma coisa louvável: alguma dúvida da artificialidade dos efeitos especiais caso Spielberg decidisse filmar As Aventuras de Tintim da maneira comum? Seria mais um simples blockbuster de ação, repleto de uma maquinaria tola desesperada para alcançar o realismo, mas que em verdade seria convencionalmente impostora. Ao passo que do jeito como veio à luz, As Aventuras de Tintim beneficia-se de seu caráter particular: não parece desenho animado (fugindo assim também da brilhante adaptação televisiva feita pela Nelvana nos anos 1990) e tampouco perde crédito assemelhando-se a um filme de movimentos “forçados”, indo na contramão da eficiência ao demonstrar a mentira dos perigos, a fragilidade das ações. Com todo o dinheiro envolvido na produção do filme, Spielberg nunca filmaria um filme artesanalmente hergeniano, como Phillipe de Broca fez em algumas fitas estreladas por Jean-Paul Belmondo.

É portanto com alegria que se constata que o filme é  um resultado bastante satisfatório de uma experiência algo ousada, restando a nós apenas a torcida para que os próximos filmes da franquia (infelizmente, um dos males agregados ao projeto) sejam tão felizes quanto esta primeira parte.

Filmes citados

As Aventuras de Tintim [The Adventures of Tintin; EUA/Nova Zelândia, 2011], de Steven Spielberg. 107 min.

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No Mundo da Lua (Robert Mulligan, 1991)

Adolescência e infância são duas fases tão singulares na vida de uma pessoa que é difícil alguém chegar à vida adulta lembrando-se de como elas foram. Porque essa é talvez a única razão que explique o descompasso que marca a maioria das obras que retratam esses períodos da existência. A infância é uma idílica peça publicitária em que mini adultos se refestelam num mundo sem máculas (e portanto sem textura), e a adolescência é aquele tempo das bobeiras inconsequentes e constrangedoras.

Essas visões são estigmas que dificilmente são contestados. Mas aos poucos surgem os Robert Mulligans e mudam isso; e se O Sol É para Todos é um incrível (e tremendamente crível) relato sobre a infância de uma menina (Scout), não será uma Scout crescida que protagoniza este No Mundo da Lua, perfeito retrato de uma adolescente em sua jornada de descobertas?

Encarnada por uma jovem Reese Witherspoon, em sua estreia cinematográfica, nossa Scout mocinha se chama Dani e também vive numa comunidade interiorana, que Mulligan descreve com hábil precisão em seu bucolismo, suas regras específicas, seu desenvolvimento “engarrafado” (isto é, dentro de sua própria redoma); parece uma verdadeira viagem quando Dani segue de camioneta para a “cidade”, o que aumenta o fascínio inocente de uma garota que se aventura em sentimentos que nunca se lhe afiguraram possíveis. Parafraseando José Mauro de Vasconcelos em seu pungente Meu pé de laranja lima, esta também é a história de uma menina que um dia conheceu a dor…

A dor de Dani é uma dor espontânea e sincera, misto de medo do ignorado e de curiosidade. O amor com que a moça deparar-se-á é o primeiro e mais doloroso contato com a vida adulta, aquele que lhe desperta a paixão e lhe fere os sentidos, destrói suas prevenções e toma conta de seus pensamentos. O fascínio da jovem moça não é aqui alvo de zombaria ou de um enternecimento em verdade cruel, de quem diz “já fui tolo assim”; não, em absoluto — Dani é como mil outras em sua situação e no entanto suas emoções são únicas.

Há muitos outros méritos no filme: chama a atenção, por exemplo, como Mulligan constrói o núcleo familiar (como de resto já experimentara em fitas como O Preço do Prazer e o próprio O Sol É para Todos), com os membros de uma família funcionando como estabilizadores de uma certa unidade de conflito mas ao mesmo tempo sendo catalisadores de confrontos íntimos que impulsionam certas ações das personagens protagonistas. Não é Dani levada também pelo desejo de fugir um pouco do convencionalismo da mãe que vive a parir e do pai simplório e de moral arcaica? São situações de “falsa estabilidade”, portanto, pois mantêm uma aparência de ordem que configurará a estrutura mutável dessa própria ordem, a necessidade de mudança, o fator de reação.

Disso tudo advém um desejo tão forte de liberdade que o filme se contamina por esse espírito de fuga pelos matos, o cheiro do capim, as águas de um laguinho, tudo isso é forte para ilustrar um pedaço daquele sonho ainda um pouco infantil, porém já feminino e maduro. E o drama poderoso se insinua nesses momentos de descontração, de olhares que escapam, de atrações incontroláveis e selvagens, de euforia, de deslumbramento. A adolescência não é um quadro de imbecilidades, mas um terreno de vivências em que à alegria sucede o desconforto e o terror se mistura com uma inquietante excitação.

Dani, a pequena heroína desta saga cotidiana, aprenderá com o sofrimento a se fazer forte para enfrentar seus receios. A juventude concebida em No Mundo da Lua é de uma intensidade estonteante e de uma honestidade sem rodeios, e nisso está a grande beleza do filme.

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O Garoto da Bicicleta (Jean-Pierre e Luc Dardenne, 2011)

O que mais me interessa em O garoto da bicicleta é sua clareza. Este último (até agora) longa dos irmãos Dardennes é extremamente transparente nas intenções e na abordagem. Não varre a sujeira para debaixo do tapete e não se omite às fraquezas das personagens, às torturas cotidianas que implicam certa exposição dos caracteres das pessoas — não tipos, o que seria frustrante —, naquela maneira de nos fazer ficar com raiva dos impulsos que elas tomam e depois, consternados, percebermos: elas agiram de modo totalmente natural. O contraponto (ou culpa) da eficácia seria uma moralidade forçada, então, pois outras decisões talvez descambassem não para a encenação, mas para a imitação, a idealização hipócrita.

Não que o naturalismo seja um pressuposto para as coisas funcionarem: longe disso, aliás, pois o naturalismo de O garoto da bicicleta é meio estilizado de acordo com seus propósitos — o que serve bem a seu desenvolvimento, aliás. Um exemplo: o jovem traficante, com aquele charme de Huckleberry Finn, um pária desgarrado das convenções sociais, à margem da respeitabilidade burguesa, não será esse mesmo jovem um exemplo desse naturalismo “forçado” que, ao mesmo tempo em que expõe sua crueldade (o rapaz é um aliciador), demonstra seu lado humano (o rapaz cuida dos avós idosos)? Fugindo da caricatura, os Dardennes encontram o que há de mais humano e caloroso.

Então seguimos o pequeno protagonista (um Calvin sem Hobbes/Haroldo) em sua desolação (porque a infância também tem suas agruras), rumo ao completo contrário do que esperava: no lugar do pai sumido, o amor; no lugar do conflito, a paz; no lugar da amizade de barro, o conforto da segurança. Não é um moralismo de fachada, um dedo inquisidor a apontar o bom caminho. Aqui não há essas representações dogmáticas de oposições maldade versus bondade, ou moralidade versus libertinagem. É uma história simples sobre um garoto em descompasso com sua vida, e nisso está a nobreza da jornada.

Não faltou quem incompreendesse os conflitos do menino e sua rebeldia superficial, e no entanto esse é o grande trunfo de O garoto da bicicleta: com seu rosto de indefiníveis reações, fechado, mudo como um monge, a criança possui toda a verdade do mundo para desacreditar qualquer crítica nesse sentido; é fácil de entender seu desconforto e suas dores, compadecer-se de seus problemas. Seus gestos de violência e egoísmos não são condenáveis, errado está quem os demoniza. Sacralizar uma imagem absurda da infância é não querer reconhecer as falhas de um mundo onde existe o abandono, a miséria e a negligência. Se os Dardennes expõem essas chagas, não se pode, em absoluto, acusá-los de “vazios”, a crítica mais comum a seu cinema.

Impressionantes sequências de ação (sim, ação, como correr num bosque ou fugir de um internato) e embates corporais de uma fluidez tão rítmica quanto sagaz (e nem disso o garoto foi poupado) tornam o relato ainda mais forte e vivo, mais pulsante e doloroso, num torpor quase de delírio, de correr sem fôlego, de se extenuar e chegar ao ápice do esgotamento físico e nervoso. Nessa sucessão de imagens e planos claros, com uma fotografia (luz natural?) que não esconde o sofrimento ou a redenção, os Dardennes constroem meticulosamente um mosaico de louvável e fresca beleza, a beleza que comporta a tristeza (o chagrin dos franceses, apesar de os irmãos serem belgas), o risco, o erro e a estupefação, o remorso mais profundo e a melancolia mais pura.

Filme que respeita a infância e dá a ela a dimensão devida do dramático — e eventualmente do trágico —, O garoto da bicicleta, com ciclos que alternam furor e calma, é como a respiração inquieta de seu personagem-título, na angústia de suas inquietações.

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