How much wood would a woodchuck chuck… (Werner Herzog, 1978)

Por Fernanda Canofre

Os primeiros leilões, realizados na Grécia Antiga, tinham como principal produto as mulheres oferecidas para casamento. Os mercadores começavam os lances com um valor alto, para depois ir baixando-o até chegar perto ou no valor mínimo estipulado pelo “dono”. Fechava a compra quem fosse o último a dar lance. A popularidade dos leilões teve seus altos e baixos nos séculos seguintes, mesmo assim o homem foi descobrindo que tudo tinha seu preço e poderia sim ser colocado a venda. No final do século XVIII, depois da Revolução Francesa, os salões e cafés que serviam como espaços para troca de valores ideológicos, de repente passaram também a servir para a troca de valores comerciais, com os leilões de arte. A esta altura, as coisas já haviam se invertido há muito tempo. Não se sabe se antes ou depois de a palavra “capital” ter sido cunhada, mas o valor de um lance não poderia mais decrescer. Tinha de ser um número sempre em ascensão. O produto a venda ia para as mãos do comprador que pagasse o valor mais alto por ele. Analisando de perto a história dos leilões, podemos encontrar uma metáfora para a própria História. Em um mundo paralelo, com código de comportamento e linguagem próprios, encontramos uma micro-sociedade regida pelas leis do capitalismo, mesmo antes de este ter sido batizado. Em How much wood would a woodchuck chuck, Herzog nos concede sua versão documental desta sociedade, já trabalhada na ficção com Stroszek (1977). No filme, a história de um alcoólatra, recém-saído da prisão, que deixa sua terra natal em busca de uma oportunidade nos Estados Unidos, mas acaba descobrindo que o crédito fácil e a felicidade instantânea têm seu preço no sistema, é contada através do drama. Porém, em How much wood, temos Herzog oferecendo uma visão satírica deste mesmo sistema, mostrando que os valores oferecidos por ele são tão superficiais, que deixam o indivíduo social beirar a estupidez.

O roteiro do documentário é estruturado em cima do acontecimento do campeonato mundial de leiloeiros de gado, que acontece em uma pequena cidade no interior dos EUA. Sem narração, apenas colando entrevistas e cenas gerais, não temos aqui a voz de Herzog em off, quase uma marca de seus documentários. Mesmo assim, ao apresentar os depoimentos dos leiloeiros, com seus pensamentos “profundos” sobre a profissão, podemos (quase) ouvir a risada do diretor ao pintar um retrato sobre a superficialidade de um mundo que gira explicitamente em torno do dinheiro. Tudo é tão vazio de conteúdo neste mundo que, mesmo o discurso do vencedor, acaba mostrando que, fora do microfone, sem lances a serem cantados ou produtos a serem vendidos, não há nada mais para ser dito. O campeão faz seu discurso de agradecimento intercalando risadas artificiais, com frases como “that’s nice” ou “it’s been great”. Nada mais a declarar. Realizado para a TV alemã, no mercado norte-americano, How much wood acabou recebendo o subtítulo de: “observations on a new language”. Na tradução para o português, “language” pode significar tanto “linguagem” quanto “idioma” e no filme de Herzog, a palavra serve aos dois propósitos. No mundo paralelo dos leilões, o diretor alemão nos apresenta ao surgimento de uma nova forma de comunicação, onde as sílabas não são compreensíveis, mas o som delas produz sentido para o público que participa do jogo de lances. É uma nova língua falada através dos números, que dispensa quase totalmente as palavras. Dos quarenta minutos de duração do documentário, cerca de vinte são preenchidos com imagens da competição, mostrando os leiloeiros em exercício. Nenhuma trilha, nenhuma narração, nenhum outro som a não ser o das vozes dos homens que comandam o leilão. Temos a sensação de estar em um território cuja língua oficial obedece aos padrões dos números binários, aqueles mesmo utilizados na programação de computadores. Se olhando os números separados, nós, pobres leigos, não conseguimos compreender nada, a programação, produto final criado a partir deles, nos é enfim acessível. Em um ponto do filme, Herzog deixa claro que a compreensão literal não é uma de suas intenções aqui. Aproveitando o fato de que alguns habitantes locais falam um dialeto alemão (conhecido como Pennsylvania Deutch), ele passa a fazer as entrevistas em sua língua, sem se importar com dublagem, legenda ou qualquer outra forma de tradução. Não é necessário, a mensagem do retrato abstrato filmado pelo diretor já está clara.

Mesmo quando os lances do jogo ainda não foram definidos por Herzog, temos já uma clara visão de onde ele pretende nos levar. A primeira cena do filme mostra o depoimento de um leiloeiro, que conta como escolheu a profissão, quais são suas técnicas de treinamento e passa a recitar trava-línguas, seu instrumento de trabalho. É de um deles que vem o título do documentário. Em seguida, acompanhamos praticamente o mesmo depoimento dado por outros competidores. É como se todos os leiloeiros tivessem uma história parecida (para não dizer a mesma) para contar. Herzog não se dá ao trabalho nem de nomeá-los. Se em outros documentários, vemos o diretor usar uma pequena introdução, ou mesmo uma menção aos seus personagens através de narração ou de alguma fala, aqui, ele apresenta perguntas, mas nunca o entrevistado. Só descobrimos o nome do campeão, porque este é anunciado no microfone durante uma festa que está sendo registrada por suas câmeras. Depois de conhecermos os leiloeiros, somos apresentados, através de imagens acompanhadas de uma trilha de música folk americana, à pequena cidade onde o evento acontece. Essencialmente rural, o lugar é também terra de uma tradicional comunidade amish. Conhecidos por renunciar aos confortos da vida moderna, os amishes vivem em grupos fechados, evitam utilizar eletricidade e quase não consomem produtos industrializados. Para eles, a praticidade da tecnologia, faz com que um indivíduo dependa menos da comunidade. Assim, trocam os automóveis por carroças, produzem o próprio alimento, tem escolas fechadas para seus filhos, vestem-se com roupas feitas de tecidos manufaturados. Em um primeiro momento, a presença dos amishes no filme parece servir para lembrar que existe alternativa ao sistema. Logo na cena de apresentação da cidade, a câmera acompanha uma carruagem passeando nas ruas. O plano seguinte começa mostrando vários carros estacionados em frente a uma lanchonete com placa da Coca-Cola e a uma revendedora da New Holland. Aos poucos, o campo vai abrindo e revela uma espécie de garagem de carruagens mais a frente, onde a carruagem que acompanhamos no início é guardada. Uma imagem que contém, além de uma viagem no tempo em 24 frames, a contradição. Nos deparamos com uma nova questão: até quando a alternativa pode resistir ao sistema? Corta para a próxima cena. Dentro do pavilhão onde acontecem os leilões, a plateia parece ansiosa. Em meio aos típicos americanos, de chapéu de cowboy, observamos a presença de alguns homens de barba longa, chapéus de palha, que se vestem um pouco diferente dos outros. Os amishes estão no meio do público, prontos para dar seus lances. Sim, eles também fazem parte do meio capitalista.

How much wood é uma crônica de Herzog em cima da sociedade do consumismo que acaba também nos consumindo. Um exercício intimista, que usa a forma para transmitir o conteúdo que o diretor não encontrou na fala oca de seus personagens. Talvez a melhor expressão do que Herzog parece tentar dizer aqui esteja mesmo nos personagens que não falam. Durante os vinte minutos onde acompanhamos a exibição dos talentos dos leiloeiros, narração frenética correndo na garganta treinada, temos o vídeo preenchido também por algumas imagens dos animais que estão sendo colocados a leilão. Planos de animais são recorrentos no universo documental herzoguiano. Enquanto a plateia se divide entre avaliar os produtos e os homens que batem o martelo, os animais só obedecem as guias de portão de entrada e saída no circo que não compreendem. O leiloeiro tenta fazer uma média melhor do que seu concorrente em letras emitidas por segundo, sem nem prestar atenção ao que está sendo oferecido. Os bezerros correm meio sem direção pela pequena arena, tentando escapar do barulho produzido pela verborragia que se despeja alguns metros acima deles, do local onde foram fechados, da superpopulação das arquibancadas que abafa o lugar. Obviamente, como animais, eles não têm idéia de que naquele mundo são um produto e hoje estão exibindo seu valor a quem interessar possa. Não, caro espectador, isso já não é mais uma metáfora.

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