Onde Sonham as Formigas Verdes (Werner Herzog, 1984)

Por Fernando Mendonça

Onde Sonham as Formigas Verdes é, sem margem de dúvida, o trabalho mais improvável a ser realizado por alguém que acabara de conceber a enormidade cinematográfica que fora Fitzcarraldo (1982). Como um profundo respiro após a exaustão, Werner Herzog retoma aqui um ponto de vista mais discreto do mundo, sem romper com o rigoroso ritmo da jornada anterior, mas investindo numa concepção intimista de narrativa, em que desloca a ambição que antes contaminara as noções elementares do ato fílmico para transferi-la a uma preocupação temática que não se retrai diante da ética e daquilo que seu novo enredo apregoa. Pois também há o lirismo da mensagem, a urgência do que não se pode calar.

 A premissa ecológica agora em questão — talvez aquela que norteie toda a carreira de Herzog —, parte de um acontecimento que o próprio diretor presenciou durante sua estadia na Austrália: a resistência de grupos aborígenes contra a exploração industrial de territórios nativos, ou seja, o desejo de seres que lutam por seu tempo no espaço. Para o filme, no intuito de não tornar muito evidente a relação com os recentes fatos verídicos, foram alteradas algumas variáveis da realidade (o nome da indústria e o produto por ela explorado, no caso do filme, o urânio) e acrescentadas boas doses de invenção, a exemplo do que justifica o empenho dos aborígenes em proteger tão zelosamente aquele pedaço de terra: a crença de que o terreno é lar de uma espécie sagrada de insetos, as formigas verdes. Do recurso imaginativo elaborado por Herzog — que fratura o aspecto documental do roteiro —, irrompe aquilo que eleva seu filme a um patamar além do mero discurso ambiental; confirmam-se nas formigas verdes os anseios de um mundo perdido no tempo, de uma humanidade que já não se lembra das coisas que mais importam, do que não se quantifica ou substitui.

As formigas sonhadas por Herzog, como explica o personagem de um maluco pesquisador que só ganha forma para delimitar verdades mais poéticas do que científicas, são de um nicho especial, que, ao afetar o campo magnético da Terra, modifica paisagens completas. E mais: são formigas que também sonham e rememoram os tempos passados, anteriores ao início do mundo. Assim, o que os guardiões da terra tentam proteger é um estado de memória não compreendido pela lógica do capital, daí ser todo o processo de comunicação entre eles e os homens brancos um percurso desintegrado e impossível de completar. O senso de preservação, mais do que relacionado a aspectos geográficos, procura mesmo o anular das fronteiras, um restabelecimento dos homens com seu meio, seu habitat.

No julgamento encenado para discutir o direito de posse das terras, Herzog insere um dos personagens mais impactantes de seu cinema: um aborígene ancião que fora considerado mudo pelos autos do processo porque a sua língua não é compreendida por nenhum outro ser humano. Último descendente de sua tribo, e, portanto, do dialeto perdido, eis um homem que sobrevive morto para a sociedade, que carrega no corpo uma fantasmagoria muito propícia as imagens que Herzog ordena para representar o caos. Pois se há uma impressão que fica diante de Onde Sonham as Formigas Verdes, ela está essencialmente relacionada ao colapso do mundo, ao caráter apocalíptico já multifacetado por inúmeros momentos na carreira do cineasta.

Não é por acaso que a primeira imagem do presente filme seja a de um redemoinho; e que, próximo ao final do mesmo, repita-se a atmosfera de destruição. O importante, é que nenhuma destas cenas permita a menor sombra de catástrofe, pelo contrário, instaurem uma beleza apaziguadora, restauradora de um equilíbrio sensorial. São, de fato, a moldura que define todo o caminho intermediário da narrativa, confirmando ser este filme um sopro de interlúdio para Herzog. É muito possível considerar Onde Sonham as Formigas Verdes como um movimento filho do que fora iniciado desde Fata Morgana (1971) — a destacar-se o travelling lateral de abertura sobre o deserto, em acompanhamento aos créditos, como um reflexo das longas durações daquela obra-prima —, assim como um movimento pai de Lições da Escuridão (1992) — pois nas perfurações pela busca de urânio todo um presságio do que a exploração petrolífera futuramente fará. Em todos estes casos, é a intromissão de uma dimensão ficcional o que liberta os estados de crise apresentados. Seja num travelling, numa narração em off, ou na ilusão das formigas verdes, há sempre um caminho para que a ficção se estabeleça, para que o cinema se cumpra. É nele que as formigas sonham.

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