Ressonâncias e (Não)Escutas: Sementes: mulheres pretas no poder (Éthel Oliveira e Júlia Mariano, 2020) e #eagoraoque (Jean-Claude Bernardet e Rubens Rewald, 2020) 

Por Kênia Freitas

Ouvir é, nesse sentido, o ato de autorização em direção à/ao falante. Alguém pode falar (somente) quando sua voz é ouvida. Nesta dialética, aqueles(as) que são ouvidos(as) são também aqueles(as) que “pertencem”. E aqueles(as) que não são ouvidos(as), tornam-se aqueles(as) que “não pertencem”.

(Grada Kilomba)

Não serei interrompida! Não aturo o interrompimento dos vereadores dessa casa, não aturarei de um cidadão que vem aqui e não sabe ouvir a posição de uma mulher eleita!

(Marielle Franco)

Cosmopoética não é nem um fetiche nem uma marca registrada, apenas um termo, um modo entre outros de apontar para uma outra relação com o mundo que privilegie a escuta – o sentido de ressonâncias e de correspondências – mais do que a visão.

(Dénètem Touam Bona)

As cenas iniciais de Sementes: mulheres pretas no poder (Éthel Oliveira e Júlia Mariano, 2020) são fotografias e imagens em branco em preto de uma grande manifestação no centro do Rio de Janeiro cobrando justiça pelo assassinato da vereadora Marielle Franco. O bloco é também composto pela montagem de áudios de jornais sobre a execução da vereadora e do motorista Anderson Gomes, assim como por manchetes que destacam mulheres pretas ocupando posições de poder. Essa montagem estabelece a prerrogativa do filme de Éthel Oliveira e Júlia Mariano: o trauma causado pelo assassinato de Marielle Franco e os desdobramente políticos desse trauma – com o aumento significativo de candidaturas de mulheres autodeclaradas negras a cargos legislativos nas eleições de 2018.

Prerrogativa posta, o filme entra em sua jornada acompanhando as campanhas e posses (no caso das eleitas) de seis mulheres pretas: Mônica Francisco, Rose Cipriano, Renata Souza, Jaqueline de Jesus, Tainá de Paula e Talíria Petrone – candidatas a deputada estadual ou federal pelo estado do Rio de Janeiro por partidos de esquerda (PSOL, PT e PCdoB). A partir daí, o tom histórico e mais distanciado dá lugar a um documentário observativo filmado de forma íntima e cúmplice com as personagens e os seus posicionamentos políticos. Uma cumplicidade que se desdobra na câmera presente e de escuta atenta, nos momentos banais (deslocamentos nos carros, os cabelos sendo trançados, as compras no supermercado para o novo apartamento) e nos mais marcantes (grandes manifestações, a apuração dos votos e a posse) das campanhas.

Além da câmera observativa, a composição do filme é atravessada de materiais de texturas e origens midiáticas diversas: o registro amador de abordagens policiais abusivas, os videoclipes de campanha e o seu making off, os bastidores de uma entrevista para uma equipe internacional, stories do Instagram e posts do Twitter das candidatas. Materiais montados a partir do protagonismo compartilhado pelas seis candidatas em uma estrutura de fluxo contínuo e linear estabelecida pelo passar dos meses.

A pluralidade do título informa assim a coletividade posicional que interessa ao filme como organizadora da ação – as mulheres pretas de esquerda atuando na política partidária. Ainda que ao longo da narrativa, a singularização de cada uma das candidatas possa ser perceptível (por suas trajetórias, locais de atuação e formas de se expressar), o trabalho que as diretoras se propõem política e esteticamente é o de amalgamar essa vivências em um corpo multifacetado mas único.

Dessa forma, a apresentação das candidatas vai enfocar momentos de encontro e comunhão, como Mônica Francisco (que é pastora) no culto da Nossa Igreja Brasileira, Tainá de Paula no lançamento da pré-candidatura aberta por uma apresentação de dança afro, Rose Cipriano, Renata Souza e Talíria Petrone participando da 4ª Marcha das Mulheres Negras. Nesses encontros, a escuta se volta tanto para o discurso das candidatas, quanto para vozes, músicas e sons dos ambientes – tambor, orações e abraços.

Como uma boa parte do filme se faz dentro das fronteiras desse corpo coletivo – entre rodas de conversa da militância, reuniões das equipes de campanha e atos de esquerda -, a entrega dos santinhos faz chocar esse corpo com outros, com um fora. Sequências cruciais na constituição desse corpo comum pela repetição de gestos e modos de falar, e também pela repetição de experiências menos controladas – encontros às vezes breves e felizes, e outras vezes desencontros e não escutas. Isso culmina na cena em que uma ambulante diz para Jaqueline de Jesus que já tem candidato e ele é do Partido Novo e o diálogo se encerra de imediato com um “boa sorte!”. De ambas as partes, não há o que dizer – da parte do filme cúmplice também. 

Nesse sentido, Sementes é um filme sobre a criação de um novo pertencimento (o político partidário para as mulheres pretas) a partir do trauma. Um pertencimento que se faz, no filme e para fora, centrando a posicionalidade dessas mulheres pretas como ponto de vista e de escuta. Dentro desse corpo coletivo tudo ressoa e germina, o fora dele (os “novos”, a família Bolsonaro e os quebradores de placa) é uma contagem de votos que emudece os comitês estarrecidos. 

Politicamente #eagoraoque (Jean-Claude Bernardet e Rubens Rewald, 2020) se situa no mesmo momento em que Sementes (Éthel Oliveira e Júlia Mariano, 2020), ambos próximos a avassaladora vitória da extrema direita nas eleições de 2018. O ponto de partida do filme de Bernardet e Rewald é da crise da esquerda – do “esgotamento profundo dos modos de organização das lutas e das mobilizações” ou da sua “incapacidade de sair da reatividade e propor pautas” – como diagnostica o artigo escrito por Vladimir Safatle e lido por Bernardet no começo do filme. A estratégia narrativa do filme passa longe da cumplicidade e da criação de pertencimento, sendo a de incitar e ampliar essa crise e os seus efeitos de incertezas. A pergunta “e agora o que?” do título é ao mesmo tempo um ponto de partida e um ponto de chegada para filme que se firma na impossibilidade de qualquer resolução.

Estratégia já posta na própria forma do filme – uma auto-ficção ou ficção feita a partir de personagens reais (bem no estilo Bernardet de jogar com os limites entre ficção, documentário, filme experimental e ensaio). Vladimir Safatle interpreta o intelectual paralisado pela crise; Bernardet seu pai, um militante saudosista e Palomaris Mathias a interlocutora política da dupla. A partir disso, o filme passa a propor uma série de situações e encontros – mais ou menos estruturados, às vezes totalmente ficcionalizados e outras atravessados pela não ficção – para provocar ainda mais a situação de crise.

Essas situações são em grande parte atravessadas pela impossibilidade de comunicação entre os diversos grupos dentro da esquerda – grupos de geração, de gênero, de classe, de raça, etc. Uma comunicação impossibilitada não pela ausência da fala (os muitos trechos de entrevistas, palestras e discursos públicos de Safatle incorporados ao filme ressaltam a eloquência verborrágica do filósofo), mas marcada sobretudo pela incapacidade de escuta. Uma não escuta encenada de inúmeras maneiras no filme: a impassividade de Safatle com a performance perturbadora do ator do Teatro Oficina que grita na sua cara; na cena em que o trio de protagonistas finge normalidade enquanto tem a sua conversa atravessada pela faxineira que liga o aspirador de pó; a briga com a filha estudante universitária pela recusa do intelectual em crise de participar da assembleia.

Ancorando-se na incapacidade de ouvir desse intelectual em crise, a não-escuta é assumida pelos diretores como uma performance estética e política para o filme. A performance da não-escuta da personagem principal parece inicialmente uma estratégia auto-depreciativa para questionar a posicionalidade normativa do seu protagonista – homem, branco, cis, hétero, de classe média alta. Isso sobretudo quando essa não escuta é assumida enquanto encenação – a cena da reunião com a enceradeira, o comentário aleatório da atendente no café, o embate entre pai e filha ou pai e filho. 

No entanto, mais do que a auto-depreciação, o que ocorre neste dispositivo fílmico é o centramento desse homem, cis e branco. A coletividade “esquerda” que o filme apresenta em crise e para a qual lança a pergunta “E agora o que?” mostra-se na narrativa menos atravessada por uma multiplicidade de raça, gênero e classe dos personagens reais e ficcionais que passam pelo filme, e mais alicerçada nessa experiência normativa do homem branco como o ponto de vista e de (não) escuta. Ao mesmo tempo em que ancora, essa experiência apaga a existência de sua própria posicionalidade.

Nesse sentido, a decisão de não identificar de maneira explícita no filme ou nos créditos quem são as personagens reais e as personagens fictícias que os atores interpretam não equaciona de forma anônima os participantes. Ao contrário, reforça as desigualdades de status sociais e de notoriedade pública previamente existentes. Uma cena que marca a decisão deliberada de não posicionalidade do protagonista é do recital de piano, em que após apresentação o intelectual encontra seus pares (outros homens e mulheres brancos de classe alta) e começa a fazer perguntas constrangedoras e hostis sobre posicionamentos políticos e financeiros que os seus pares estruturam. Como o indagador impertinente, o personagem se coloca fora do seu pertencimento de classe e raça.

Em termos narrativos, a invisibilização dessa posicionalidade específica parece contar com a associação automática da experiência do homem branco com a do sujeito neutro e universal – o seu pertencimento não precisa ser criado, foi herdado. E, isso posto, as premissas que atravessam o filme são reforçadas: a não-escuta vira não diálogo, a incapacidade de conversar vira reatividade da esquerda, que vira falência generalizada dos processos de organização e luta.

    Não por acaso, o filme se encerra na conversa tensa entre Safatle e os moradores do Capão Redondo, em que os militantes da quebrada recusam a aliança proposta pelo intelectual – “nós aqui e vocês lá”, diz um dos jovens. De um ponto de vista narrativo, essa seria a cena que poderia sustentar a hipótese do não diálogo e da reatividade da esquerda fraturada pelo identitarismo neoliberal individualista. Porém, se a escutarmos a partir da afirmação de um “nós” e um “vocês”, a recusa pode ser ouvida não como uma aversão ao diálogo, e sim como um dissenso à persistência da naturalização da posicionalidade normativa (branca, cis e masculina) como neutra e universal.

FacebookTwitter

Atlantique (Mati Diop, 2019): paixões (des)possuídas

“Essa febre é um invasor noturno que atinge o paciente durante o sono profundo.
Ele pula da cama e corre para a ponte.
Lá, ele acredita ver além das ondas,
árvores, florestas, prados floridos.
Sua alegria explode em mil exclamações.
Ele sente o desejo mais ardente de fluir para dentro do oceano”

(Atlantiques, Mati Diop, 2009)

 

I – Despossessão

atlantique1

As cenas iniciais de Atlantique (Mati Diop, 2019) nos jogam em uma briga dentro de um canteiro de obras. Souleiman e seus companheiros de trabalho exigem dos encarregados o pagamento atrasado há três meses, e os encarregados argumentam que o patrão viajou e não deixou o dinheiro. Para os jovens trabalhadores, não há o que fazer, apenas pegar o transporte de volta à cidade e abandonar a obra. Da caçamba do carro, as torres imensas em construção são o símbolo de uma derrota anunciada, de uma negociação impossível, de distâncias intransponíveis. Indiferente, explorando outros trabalhadores, as torres continuarão a crescer.

A montagem por oposição dos rostos derrotados dos jovens trabalhadores e da torre futurista inacabada é uma apresentação quase direta demais do conceito de acumulação por despossessão, proposto por David Harvey para descrever o funcionamento do novo imperialismo neoliberal. Se a expropriação das terras e do direito sobre os próprios corpos das pessoas originárias de África e de América pelos colonizadores europeus foi o sustentáculo inicial do capitalismo, o neocolonialismo contemporâneo mantém e expande a despossessão fundadora. Contratos de trabalho, direitos trabalhistas, bem estar social são promessas ilusórias, enquanto a torre é concreta (e cada vez maior). Mas estamos no quase, pois entre os rapazes e as torres, a montagem nos mostra o mar de Dakar. E o desânimo vira cantoria e excitação entre os jovens.

Essa é a primeira faceta das múltiplas do mar em Atlantique: entre os despossuídos (de terras, de direitos, de dinheiro, de perspectiva…), o mar é também uma fuga. O sonho do emprego melhor na Espanha, de uma vida a recomeçar – além das ondas. O Atlântico evocado pelo título é então uma presença constante no filme: dessa incerta esperança, ao temido pesadelo do naufrágio, passando pelo enigma do retorno assombroso. Mais do que uma paisagem, o mar funciona no filme de Diop como um recorrente contraponto, descontinuando a especialidade do filme para uma imagem de imensidão simbólica – um portal do tempo-espaço de África e da afro-diáspora.

Atlantics: A Ghost Love Story - Image Courtesy of Netflix

Com Souleiman encontramos Ada. Entre Ada e Suleiman, a paixão.

Mas… “Você só fica olhando para o mar”.

Ada está às vésperas de um casamento arranjado com outro homem. Pressionada pelos pais, a negociação parece ser simples: esquecer a paixão adolescente, manter-se virgem até o casamento e submeter-se a uma união sem amor e/ou afetos com Omar. Ainda mais despossuída na cena do capitalismo global, o desejo de Ada está fora da transação comercial, assim como qualquer vislumbre no contrato econômico, social e familiar da possibilidade de possessão dela de seu próprio futuro e corpo. Como o quarto nupcial branco cenograficamente decorado para ostentar uma negociação fria e calculada do matrimônio de Ada e Omar, não há lugar para a vida e suas pulsões nesse arranjo – no máximo para algumas selfies posadas.

Se a paixão de Ada está fora dos cálculos de risco, os contratos sociais, econômicos e familiares se dissolvem quando esta arde: queimando a cama não usada na transação jamais consumada. A partir de então algo se conjura na narrativa do filme, no momento que esse intenso desejo não pode mais ser contido. E ainda que uma parte do enredo dedique-se a uma investigação policial do que não pode ser explicado (com a sordidez de exames médicos para aferir virgindade e interrogatórios abusivos), Atlantique é um filme devotado a atmosferas e sensações – a febre como invasora noturna e devaneio (e não como sintoma). Ao fim, diante do inverificável, o investigador não pode mais do que apenas (e já) encontrar a si mesmo.

II – Possessão

“Alguns pescadores voltaram do mar com a rede tão cheia que todos correram para ver o que eles tinham pescado. As pessoas gritavam que haviam pescado um peixe enorme. As crianças e toda vizinhança foram ver. Mas, quando se aproximaram da rede, não viram um peixe, mas o corpo sem vida de Souleiman”.

No momento de virada do filme, os jovens despossuídos (agora também da própria vida) retornam para enfim obterem as suas possessões – de vinganças e de paixão.

Sem mais promessas, o mar é então apenas um perigo no contracampo de cada sonho, cuspindo de volta o espírito dos despossuídos. Conclamados por aquilo que na expropriação capitalista não se pode conter – a raiva pela exploração e humilhação cotidiana, a paixão não consumada – os jovens retornam como assombrações febris.

atlatique2

E então, algo se complica na ficção especulativa proposta por Mati Diop, pois as fronteiras de morte em vida e da vida na morte são borradas. Afinal, como podem em morte possuir aqueles que em vida não possuíam nada? Um corpo, uma vingança, a consumação da paixão: quais os limites da possessão despossuída?… Essas assombrações não são zumbis ou fantasmas tradicionais desse gênero narrativo. Com exceção de Souleiman, os jovens rapazes tomam posse dos corpos das suas amigas, irmãs e namoradas. É assim que esse corpo feminino possuído pelos espíritos dos rapazes pode enfim reverter (ainda que temporariamente) o sentido da expropriação – e fazer o patrão cavar a cova para seus corpos perdidos no fundo do oceano. O topo da torre é também o fundo do mar.

Em Atlantique, a possessão é assim, ao mesmo tempo, assombro e triste reencontro, acerto de contas com o patrão explorador e reparação financeira para as que ficaram. O sobrenatural que o filme mobiliza não é então marcado pelo terror ou pelo medo, mas por paixões incontroláveis que não se podem evitar: irão queimar.

III – Exorcismo e Renascimento

“(…) o corpo da mulher negra conserva a possibilidade de um Outro desejo. Um desejo que não pode alimentar a maquinaria do capitalismo global ou as críticas ao mesmo tempo porque o texto político fundamental aos dois campos não a contempla. Fora do Patriarcado e fora da História (as narrativas do sujeito transparente [a coisa da interioridade e da liberdade]), o desejo prometido pelo corpo sexual feminino continua como um guia ainda por ser delineado para uma práxis radical (…)” (Denise Ferreira da Silva, A Dívida Impagável, p. 77)

atlantics-image

O reencontro de Ada e Souleiman marca por fim a última possessão do filme: a do sexo. Temos uma comunhão que é a entrega e a despedida de duas trajetórias: o espírito que pode enfim partir e da adolescente que assume sua autonomia na vida adulta. Uma posse de si para Ada que constrói-se lenta, mas continuamente: na recusa de entrar no carro de Omar, na negociação persistente da venda do iphone, na atenção às instruções do novo trabalho no bar. Não é irrelevante que esses reposicionamentos digam respeito ao seu (não lugar) na acumulação por despossessão capitalista – ocupando as fendas de informalidade e da precariedade do trabalho, mas também da amizade, do amor e dos experimentos de beleza (para lembrarmos da expressão da Saidiya Hartman).

Ada: a quem o futuro pertence, olha enfim para a câmera. Afinal, possuir a si é possuir sua própria imagem. Um olhar desconcertante para exorcizar também o filme como possessão.

atlatique3

O mar é também renascimento.

FacebookTwitter

PretEspaço: as cidades não imaginadas

Por Kênia Freitas

“Aspiramos aos cosmos pela simples possibilidade de sonhar. Aspiramos ao espaço sideral para além do etéreo e longínquo. Mas também ao espaço em sua forma mais literal. Espaço.”

(Manifesto pelo Espaço, NEGRUM3, Diego Paulino, 2018)

“O que não tem espaço está em todo lugar”

(Filme Jota Mombaça, 2020)

Esse texto nasce do abismo entre essas duas ideias:

_ Espaço sideral & literal + (não) Espaço que está (sempre-já) em-todo-lugar.

E nasce do movimento brusco de cortar e juntar filmes díspares, a partir das cidades que eles percorrem, tomam para si e, simultaneamente, recusam a imaginar – em um gesto de reciprocidade.

Criação do PretoEspaço em NEGRUM3 (Diego Paulino, 2018)
Criação do PretoEspaço em NEGRUM3 (Diego Paulino, 2018)

E se faz no gesto ainda mais bruto de reivindicá-los em e para um PretEspaço:

_ entre a explosão cosmológica de corpos pretos iluminados em um telhado de São Paulo de Paulino e as imagens tremidas da janela do avião do relato de viagem/desabafo de Mombaça.

_ entre a luta “pela individualidade de nossos corpos e a pluralidade da nossa negritude ao exercer as múltiplas formas de ser” (Paulino) e as “144 páginas da Wikipedia de escritorxs que escolherem a saída. (…) aquelas listadas e aquelas que o Google não nomeou” (Mombaça).

_ entre reinventar-se e compor “um poema sobre morte e desaparição”, como complementos da mesma coreografia de impossibilidades.

Não é Lisboa. Não é Berlim. Não é Natal. Não é Roterdã. Não é Paris.

A condensação do PretEspaço em “O que não tem espaço está em todo lugar” (Jota Mombaça, 2020)
A condensação do PretEspaço em “O que não tem espaço está em todo lugar” (Jota Mombaça, 2020)

Delírio das imagens na “dança do fim dos tempos”. O que pode ser ouvido invertendo a flecha do dizer no tempo. E é  o que se desenha do movimento entre as mãos, e da sua penetração/fricção no cu.

PretEspaço que também não é Fortaleza, mas sim é“lá onde as luzes artificiais ainda não apagaram as estrelas e tu conhece as ruas fora dos mapas de papel” em Cartuchos de Super Nintendo em Anéis de Saturno (Leon Reis, 2018). Antes, a cidade zoneada em níveis de acessos raciais e sociais é para o jovem preto na madrugada o lugar do terror e do perigo – os lanternas brancas estão ali em cada esquina à espreita e os amigos brancos de carro já (sempre?) estão longe demais.

A volta para casa no PretEspaço_1
A volta para casa no PretEspaço: “O buraco negro da tua pele rodopia todo cosmos em ti”.

A cidade só é, então, enquanto encruzilhada. Bifurcações e duplos da volta para a casa e/volta para si – mas são quatro pontas.

Neste percurso, os imaginários de cinema são obliteração (pedagogia centenária das imagens de inversão da flecha de quem atira primeiro). Nele, o controle do videogame pode ser uma retomada para a casa/cosmos de reintegração de si no Aqui – “onde se ouve estrelas e se vê dor, é onde tuas cascas podem cair”. Aqui.

PretEspaço também é um avião em que “todas as pessoas são negras – pela primeira vez” (e sempre-já), em NoirBLUE – deslocamentos de uma dança (Ana Pi, 2018).

“O piloto. Sua equipe.

As pessoas da primeira classe”.

O PretEspaço sonha e abençoa_1
O PretEspaço sonha e abençoa as que vieram depois e antes, NoirBLUE – deslocamentos de uma dança (Ana Pi, 2018).

É o viajar com Ana Pi para África subsaariana pela primeira vez – e sempre-já.

Travessia entre “Mas você é daqui” e o “Seja bem-vinda de volta” ouvidos no controle de passaporte – nesta cidade zoneada se pode passar.

Também é Ana Pi que se coloca no espaço junto, se integra, dois pés firmes no chão… e a cor da terra, o rio preto, a tempestade tropical, a dança que faz “Ano bom” na ponte (e os trabalhos invisíveis abaixo dela), os gestos que sempre-já eram conhecidos pelo corpo, o cheiro de dendê na vendinha… em Contagem, Betim, Niamey, Ouagadougou, Bamako, Lagos, Enugu, Luanda, Malabo, Addis Ababa, Abidjan, Nouakchott…

O PretEspaço inventa o visível-invisível-visível_1
O PretEspaço inventa o visível-invisível-visível em NoirBLUE – deslocamentos de uma dança (Ana Pi, 2018).

Cada uma dessas cidades. E nenhuma delas. Não cidades imaginadas, mas originárias e integradas: “eu vim de todos esses lugares”, já sabe Ana Pi. É o corpo-azul-preto na cidade, a cidade sobre o corpo-azul-preto e o corpo-azul-preto reinscrito na imagem dele próprio.

Mas não é São Paulo.

É o gozo que não se quer (se pode?) controlar e destrói a cidade em A Felicidade Delas (Carol Rodrigues, 2019). Gozo de tesão e medo. De fuga e fuga na fuga.

O PretEspaço descobre o amor_1
O PretEspaço descobre o amor em A Felicidade Delas (Carol Rodrigues, 2019)

Antes é a penumbra, os becos, as vielas, os caminhos interrompidos e os labirintos de ruínas, o pixo. Na imagem escura e no silêncio, o pretEspaço se expande e apalpa. Não é necessário ver mais para sentir arder os sorrisos trocados, a respiração partilhada queimando os rostos tão próximos (mas ainda não). E, finalmente, no pretEspaço: as mãos se entrelaçam, as bocas se comem. A cidade que morra submersa no prazer e nos fluídos delas.

O PretEspaço jorra o amor
O PretEspaço jorra o amor, em A Felicidade Delas (Carol Rodrigues, 2019)

O PretEspaço não cabe (na cidade, no cinema, nos filmes e nesse texto) e inunda.

Não precisa ser imaginado.

FacebookTwitter

Vaga Carne: o corpo (r)existe

Por Kênia Freitas

Vozes existem
Vorazes
Pelas matérias

Com essas palavras ditas sobre uma tela preta, Vaga Carne (Grace Passô e Ricardo Alves Jr., 2019) se anuncia. Uma voz se apresenta como nossa interlocutora. Ela se declara independente das matérias que ocupa, vagando por carnes vivas e objetos inanimados. A voz nos diz não apenas que existe (indiferente à nossa capacidade de compreendê-la como algo além do humano), mas que sua existência é voraz e prazerosa. É uma existência plena pois desconectada do tempo, ilimitada pois não atrelada a nenhuma língua.

O filme estabelece um jogo de convencimento e sedução entre nós espectadores e espectadoras e essa voz: ela deseja acima de tudo nos fazer crer em sua existência. E nos convida para uma conversa:“Eu não sou um bicho, portanto não posso falar por vocês. Respeito vossas existências. Não tenho a prepotência em entendê-los. Mas vamos tentar dialogar, vamos? De diferente para diferente.” Uma conversa que portanto só pode transcorrer, como a voz sugere, em princípios de opacidades glissanianos: sem a prepotência de entender e assumindo a diferença como basilar e intransponível. Uma voz é uma voz e um bicho humano é um bicho humano. No jogo criado por Grace e Ricardo Alves Jr., a primeira provocação desse convite de conversa da voz é que façamos esse deslocamento do paradigma do humano, do orgânico, do material, do antropomórfico para o inumano, inorgânico, imaterial, disforme: “Sei também que vocês tem dificuldade de entender o que não é vocês mesmos, mas eu vou tentar explicar. Sou uma voz. Só isso. E mesmo sabendo que vocês não acreditam nesse tipo de existência, que não é humana, vim até aqui proferir sons de vossas línguas limitadas, línguas que não se decidem”.

Mas há algo no tom dessa voz.

Ela fala de dentro da matéria – e também de cima. Há um tom de avaliação superior pelos corpos, patos, café, cães, mostarda, estátuas… Às vezes, é uma manifestação de nojo ou desprezo, outras de admiração ou desejo. O marcador da nossa subalternidade como interlocutoras e interlocutores pelas palavras da voz (humanos são “egoístas”, “limitados”) complica esse jogo de convencimento e sedução. Não há encontro ou troca nessa conversa entre diferentes, mas subjugação, penetração e invasão. Nesse sentido, a escolha feita pelos diretores pela manutenção do dispositivo palco/plateia na adaptação da peça para o cinema reforça a importância de um distanciamento entre essa performance voz-e-carne-invadida e quem assiste (de fora e de dentro da narrativa).

Nesta transposição, a inscrição na encenação da primeira parte do filme de uma plateia de pessoas negras que observam de longe a relação voz-carne penetrada é fundamental para mobilizar essa distância na interlocução. A devolução do olhar desses espectadores negros é uma das pistas para nos instalarmos na desconfiança e incerteza diante do jogo proposto no filme – afinal, como a própria voz parece saber: o olhar dos outros é um bicho feroz. Farol e faca.

olhos da plateia

Parte da fruição do filme baseia-se em aceitar a sua especulatividade narrativa e inumana: vozes existem vorazes, e nossas coexistências são possíveis mas não redutíveis a uma única perspectiva. Outra parte, parece-nos estar na desconfiança dessa instância narradora e protagonista dessa voz. Voz que de saída assume uma postura de superioridade relacional. Pois é ela quem nos conduz pelos seus percursos, transformações, descobertas e afecções dentro da carne invadida. Ela é a principal ancoragem discursiva no filme, e o que nos cabe é sermos espectadores desconfiados – ainda que seduzidos pela performance. Há uma linha tênue criada pelo jogo proposto por Passô e Alves Jr. entre não refutar a existência da voz em sua diferença radical mas também não aderir de forma acrítica a sua narrativa de exploração, penetração e invasão. E aqui cabe olhar mais atentamente para a outra personagem nessa narrativa: a carne invadida.

A virada na relação voz-carne acontece quando a intrusa deseja sair e já não consegue mais. Está presa à carne. E, nesse momento, pela primeira vez o diálogo não é mais com essa espectatorialidade externa, mas internamente no amálgama carne-voz. Um acoplado que move-se de forma esquisita a princípio, que se estranha, mas permanece unido. Esse acoplado estranho voz-carne, aliás, nos lembra as figuras quebradas internamente de Corra (Get Out, Jordan Peele, 2017): filme no qual corpos negros são invadidos por subjetividades brancas. Algo não se encaixa. E aqui nos parece que o jogo inicial implode e um outro começa. Nesse momento também se desfaz a separação palco plateia e as delimitações estruturadas do espaço cênico. Os olhos das/dos artistas negras/os espreitam mais de perto. As peles se tocam. E a desconfiança segue. Agora não apenas direcionada à voz mas a esse bloco unido carne-voz, que começa talvez a delinear um corpo.

xvaga-carne-filme.jpg.pagespeed.ic.Pcy7x1UnyC

E aqui a diferença entre carne e corpo feita por Hortense J. Spillers é crucial[1]. Para entender as fundamentações gramaticais racistas que marcam ainda hoje a existência das mulheres negras diaspóricas, Spillers volta-se para explicar o pensamento filosófico-ideológico que sustenta o processo de colonização e escravização. E olhando especificamente para o que pode separar os sujeitos cativos dos sujeitos livres nesse paradigma colonizador (ou seja, o que pode “justificar” a captura, tortura, violação, etc. de pessoas africanas), ela dirá que aos cativos cabe a ideia da carne e aos livres do corpo. Nesse sentido, a carne seria o grau zero do corpo, em outras palavras o corpo sem conceituação social, sem subjetividade e agência. É preciso considerar o corpo como carne para escravizá-lo.

É preciso considerar o corpo como carne para invadi-lo: “Essa mulher aqui é só microfone, não tem nada a dizer”, nos diz a voz.

Mas o corpo assujeitado sempre se revolta.

fumano

A revolta desse corpo invadido é o que marca o arco final de Vaga Carne. Como o gesto de resistência possível, esse corpo não permite que a voz parta impunemente – mesmo que isso signifique o seu próprio sacrifício. Ele aprisiona e de alguma forma afecta a voz – e em algum ponto ela percebe que não quer mais partir. A carne já não é considerada pela voz um espaço vazio a ser preenchido. O ponto chave dessa virada é a descoberta de uma gestação em curso. A carne é corpo, é vitalismo, gera vida.

Então, na última rodada desse jogo conduzido por Passô e Alves Jr., a voz nos chama de volta para testemunhar o seu ato vertiginoso de olhar para o abismo de sua existência fundada em processos violentos de invasão, penetração, subjugação: “(…) se eu levanto a mão eu sou responsável. O que eu falo eu sou responsável e se nada falo eu sou responsável. E que nada tem o direito de invadir o seu corpo. E que se alguma coisa invadir o seu corpo, que lhe peça licença”. Processo sem escapatória e reconciliação, que passa pelo reconhecimento do corpo não mais como carne, mas como uma mulher negra.

Ela está aqui diante de vocês”.

Ela, assim como as vozes vorazes, existe.

[1] Spillers, Hortense J. “Mama’s Baby, Papa’s Maybe: An American Grammar Book.” Diacritics, vol. 17, no. 2, 1987, pp. 65–81.

FacebookTwitter

Nós (Us, Jordan Peele, 2019): apocalipse subterrâneo

Por Kênia Freitas

No conto “Aqueles Que Se Afastam de Omelas”, Ursula Le Guin descreve uma cidade paradisíaca e feliz: com festivais de verão, prosperidade, bela arquitetura, sem soldados e sem clero, sem reis e ditadores, com orgia e drogas e sem culpa. Omelas pulsa arte e inteligência em uma felicidade não pueril. Há, no entanto, um grande porém: toda essa felicidade é dependente da manutenção de uma criança com problemas mentais suja, doente, subnutrida, e constantemente maltratada, em um porão imundo. E a narração não deixa dúvida:

“Todos eles sabem que está lá, todo o povo de Omelas. Alguns deles chegaram a vê-la, outros se contentam apenas em saber que está lá. Todos eles sabem que tem que estar lá. Alguns deles entendem o porquê, outros não, mas todos entendem que a sua felicidade, a beleza de sua cidade, a ternura de suas amizades, a saúde de seus filhos, a sabedoria dos seus estudiosos, a habilidade de seus fabricantes, mesmo a abundância da sua colheita e o clima agradável de seus céus, dependem inteiramente do sofrimento abominável desta criança” (Ursula K. Le Guin).

A felicidade descrita no início do conto e a ciência da criança torturada como a sua base de manutenção criam a complexidade ética da história de Le Guin: é possível ser feliz às custas da desumanização brutal de uma pessoa? Ou se é mais feliz ainda sabendo-se do sofrimento e da dor de Outro, que poderiam ser mas não são suas? A salvação de uma única criança valeria pela infelicidade de milhares de pessoas e de toda uma população? Se não, mais uma vez, é possível ser feliz em Omelas? Como?

Sem mais respostas, a última parte do conto apenas nos diz que alguns jovens e algumas pessoas mais velhas eventualmente partem em linha reta (não se sabe bem para onde, embora eles pareçam saber) e se afastam de Omelas.

***

Em Nós (Us, Jordan Peele, 2019) o apocalipse se mostra justamente com a ressurgência de seres subterrâneos e maltratados – os acorrentados (Tethered). Diferentes da criança de Omelas, eles não são um Outro distante na aparência, mas cópias dos seres da superfície: ligados por um espelhamento corporal, eles repetem de forma tosca mas inevitável as ações dos seus duplos do lado de cima. Dois corpos presos pelo compartilhamento de apenas uma alma, como Red – a chefe da rebelião dos acorrentados – explicará para Adelaide (a sua cópia que vive na superfície).

us_familia

Nós não é construído, no entanto, em uma chave comum de filmes apocalípticos de grandes eventos – nos quais o fim do mundo (ou do mundo como conhecemos ou o fim dos EUA lido como o fim de todo o planeta) é contado de uma perspectiva dos macro poderes e dos seus agentes (governantes, cientistas, mídia, forças policiais, etc.). Jordan Peele ancora o seu filme a partir de uma narrativa do trauma e da sobrevivência de uma mulher negra de classe média comum, Adelaide: ex-bailarina, mãe de dois filhos, levando uma vida aparentemente tranquila e próspera com o marido. Como heroína desse apocalipse, Adelaide não pretende salvar o mundo ou encontrar alguma solução de convivência com os duplos, mas apenas seguir viva (matando quantos acorrentados forem necessários para isso).

Us_criança

O fim da vida como se conhece em Nós chega pela rememoração do trauma de infância de Adelaide, ao voltar para a casa de férias e para a praia em que tudo aconteceu. Imageticamente o filme trabalha com sinais de um alinhamento cósmico: a simetria do 11:11, um círculo que se encaixa perfeitamente sobre o outro, repetições e duplos. Sinais que anunciam que algo excepcional está por acontecer.

Us-praia

Nesse sentido, vale retomar a ideia de apocalipse não apenas como um sinônimo para o fim do mundo, mas como uma revelação (na sua etimologia original): a palavra faz mais referência a uma ideia de desvelamento, de iluminação de um segredo divino. Na bíblia, o livro do apocalipse descreve visões terríveis da luta final entre o Bem e Mal como uma revelação (em algumas interpretações, um aviso) aos humanos para que se alinhem e confiem na força de Deus  (que sempre triunfa ao fim). Ou haverá consequências…

A ideia de um Deus punitivista paira sobre a narrativa de Nós. De forma mais evidente com as menções do versículo bíblico Jeremias 11:11: “Portanto assim diz o Senhor: Eis que trarei mal sobre eles, de que não poderão escapar; e clamarão a mim, mas eu não os ouvirei”. E na referência ao mito “Das 4 Criações” do povo nativo americano Hopi, que aparece como uma narração na casa assombrada quando Adelaide e Red (o seu duplo acorrentado) encontram-se crianças pela primeira vez. Nas duas narrativas originárias, as passagens evocadas falam de um Deus que pune aos humanos por estes terem esquecido das suas origens e espiritualidade. Esse esquecimento das origens e as suas consequências se mostram peças chaves para pensar a relação entre Adelaide e Red[1] e a rebelião dos acorrentados liderada pela segunda. O trauma criado quando a acorrentada rouba o lugar de seu duplo na superfície desdobra-se em Adelaide em um apagamento/esquecimento e em Red em uma pulsão vingativa e punitivista (tal qual dos Deuses…). Se o apagamento/esquecimento é o que permite a sobrevivência (e a felicidade?) de Adelaide, é ele quem impulsiona a ira de Red.

Editorial use only. No book cover usage. Mandatory Credit: Photo by Universal/ILM/Kobal/Shutterstock (10162635c) Lupita Nyong'o as Adelaide Wilson/Red 'Us' Film - 2019 A family's serenity turns to chaos when a group of doppelgängers begins to terrorize them.

Assim como no conto de Le Guin, o que me move no filme de Peele não é encontrar equivalências concretas às metáforas e alegorias propostas nas narrativas especulativas. Os acorrentados (e a criança) são e não são ao mesmo tempo toda uma gama de grupos oprimidos: os povos de África escravizados, os povos indígenas dizimados pela colonização, os operários sacrificados no capitalismo industrial, os pobres, os imigrantes, as pessoas racializadas em um mundo organizado pela supremacia branca, etc., etc.[2]. O que assombra em Nós e “Aqueles Que Se Afastam de Omelas” são as implicações éticas internas às narrativas e o seu desdobramento no mundo.

E um dos atravessamentos principais das duas narrativas é a linha divisória entre os que são considerados parte da humanidade e os que não. O título do filme aponta para esse pertencimento de forma dúbia. De um lado, “Us” como “United States” abreviação comum entre os estadunidenses para se referir aos EUA – importante aqui lembrar quando Adelaide pergunta à Red quem eles são, e ela responde “nós somos americanos”. De outro, “Us” como “nós”, essa terceira pessoa do plural que agrega um conjunto incerto de pessoas e/ou grupos: Nós da superfície? Nós a família de Adelaide? Nós humanos?

A linha entre humano e não humano que o filme invoca implica em uma estruturação justificada de opressões. Assim, se os acorrentados são criaturas não humanas e sem alma, apenas cópias rudimentares dos humanos da superfície, então é aceitável o seu aprisionamento nos subterrâneos e o seu extermínio durante a sua rebelião (?). E se Red pode se tornar Adelaide como lidar com essa divisão?

E essa linha imaginária das humanidades também implica em um questionamento de quando as engrenagens do apocalipse entraram em ação. Quando os acorrentados foram criados em uma tentativa humana de assumir o lugar de criação divina? Quando o projeto fracassou e os acorrentados foram abandonados à própria sorte? Quando Adelaide e Red nasceram com uma ligação acima do comum? Quando a criança do subterrâneo trocou de lugar com a da superfície? Ou quando, por fim, Red buscou à sua redenção junto com os demais acorrentados à categoria humana?

O que o apocalipse filmado por meio do trauma de Nós nos indica é que na linha divisória entre o humano e o não-humano fins de mundos estão sempre em ação – em Omelas, na Califórnia, ou em qualquer porão imundo. E esquecer disso pode despertar iras divinas ou subterrâneas.

[1] Seguirei chamando de Adelaide a cópia que inicia a narrativa na superfície e de Red a acorrentada, pois isso facilita o entendimento. Ainda que tecnicamente pela troca ocorrida na infância os nomes estejam invertidos.

[2] Esse fio no Twitter traz algumas dessas possibilidades de leitura do filme: https://twitter.com/kenialice/status/1111105047142825985

FacebookTwitter

No coração do mundo: Contagem é o motherfucking Texas!

Por Kênia Freitas

“O trabalho é a essência do homem porra nenhuma” (Pichação) – Mais do que um resumo, esta frase é uma possível porta de entrada para No Coração do mundo (Gabriel Martins, Maurílio Martins, 2019). O filme se constrói a partir de duas espacialidades de natureza diferentes: a concretude da vizinhança do Laguna, na periferia de Contagem, região metropolitana de Belo Horizonte/MG; e o desejo por um novo lugar de plenitude da existência, o sonhado Coração do Mundo. Entre um e outro, os atravessadores das relações tornam-se o trabalho e o dinheiro.

E o trabalho aqui é entendido mais próximo de sua origem no latim, na palavra  “Tripallium”: um instrumento de tortura para fazer os escravos e pobres produzirem. As múltiplas dimensões do trabalho no filme passam pela sobrevivência, pela busca de emancipação (principalmente a feminina), por uma possibilidade de afirmação de si. Mas o trabalho das personagens constitui sobretudo um sistema brutalizante do cotidiano: das micro agressões (a dona da loja que ainda desconfia de Miro [Robert Frank], o seu empregado como vendedor há sete anos), até as macros (a passageira que fisicamente agride Ana [Kelly Crifer] por não possuir o troco para a passagem de ônibus). Em suas flexíveis e porosas reconfigurações no século XXI, as linhas são tênues e os corres são muitos – é salão e Uber ao mesmo tempo, inventando tempo ainda para o marido e os esquemas de encontrar o amante.“Meu nome é trabalho, meu sobrenome é dinheiro”, é como explica Rose (Bárbara Colen) a impossibilidade cotidiana de suas atividades. É também, ao mesmo tempo, vender foto na escola e planejar um assalto.

Nesse sentido, os corres direta ou indiretamente ligados ao crime (pequenos golpes, o empréstimo de uma arma, etc.) não estão desconectados dos trabalhos lícitos formais e informais. Mas, mesmo na porosidade, as fronteiras existem e parte do dilema do filme é nos confrontar com os pontos de não retorno. Na lógica do poder operante do neoliberalismo, sustentada na criação de máquinas de moer gente e os seus desejos, quem sobrevive (e às vezes até vive) são aquelas e aqueles com mais maleabilidade para driblar as engrenagens dentro das regras dos jogos aos quais se propõem ou se submetem – seja no capitalismo ou no crime. O que a vacilação de Beto (Renato Novaes) logo no início do filme deixa evidente é que não basta atirar, mas é necessário saber o momento certo e, sobretudo, acertar a boa. Lição que voltará para assombrar o trio Ana, Marquinhos (Leo Pyrata) e Selma (Grace Passô) em seu plano de assalto cheio de pontas soltas – não há perdão.

Na estrutura capitalista de exploração sem limites das forças vitais, dos desejos e das formas de vida, a violência dos pequenos e grandes golpes e dos assassinatos é assim, também, parte das fronteiras indefinidas do trabalho – mostrando uma faceta do seu potencial de extração e exploração máxima e direta. “Contagem é o motherfucking Texas!”, como anuncia a música do Mc Papo que abre o filme. A cena inicial já começa por trazer os entrecruzamentos desta porosidade de relações, conjugando no mesmo acontecimento e espacialidade: o trabalho de entrega de mensagens românticas presenciais de uma pequena empresa, a declaração de amor de Ana para Marquinhos em seu aniversário, e uma execução, na qual Beto usando a arma emprestada por Marquinhos mata a pessoa errada.

Marquinhos e Ana no ponto de não retorno

Fica evidente também as intersecções das relações de gênero com o trabalho. O filme opera quase sempre por contrastes pedagógicos na apresentação dessa dinâmica: a inércia de Marquinhos, tentando se virar com pequenos esquemas (como ajudando Selma no negócio das fotos para as escolas), em oposição à sua mãe, Dona Fia (Gláucia Vandeveld), que com persistência vende diariamente os seus produtos caseiros batendo de porta em porta e à irmã Fernanda (Malu Ramos), com 17 anos e já contribuindo nas contas da casa. Um contraste semelhante é mostrado entre os amantes Rose e Miro: enquanto ela articula-se para somar mais uma renda como motorista de Uber, ele permanece no mesmo emprego há sete anos. Em ambos os casos, para Fernanda e Rose, a autonomia financeira desdobra-se em uma emancipação sexual: Rose com segurança comanda Miro durante a cena de sexo, Fernanda tem a permissão e a cumplicidade da mãe para dormir na casa do namorado.

As amigas Rose e Selma falam da vida e tratam de negócios.

Em seus vários arranjos familiares, o filme ressalta a falência das figuras masculinas como referência de autoridade ou de compasso moral – e uma intrínseca relação entre esse deslocamento e as novas fontes de renda e trabalho das mulheres. Se ao final do filme, Brenda (Mc Carol), que está a caminho do novo trabalho arranjado pela a avó, dá a letra para Marquinhos, o seu amigo das antigas – “não dá mais pra ficar nessa vagabundagem” -, é o olhar de decepção para o filho de Dona Fia (enquanto empurra o seu carrinho cheio de garrafa pet) que termina por condená-lo.

As relações que compõem o trio Ana, Marquinhos e Selma no assalto do desfecho do filme se configuram de formas mais complexas. Selma é construída no filme também na linha mulher-emancipada-e-autoconsciente, como Fernanda e Rose, mas já em outra fase da vida. É ela que enuncia o desejo de partir para o Coração do mundo – o lugar em que se quer pisar, o lugar do desejo e da vida plena. Esta explicação para Marquinhos, desse desejo pulsante por recomeço, é o que constrói discursivamente o desfecho da narrativa. No entanto, há um evidente descompasso entre o desenvolvimento da personagem na trama e a sua importância enunciativa. Com as outras personagens centrais há um processo de mostrar as relações cotidianas familiares e amorosas em ato, mas de Selma nos aproximamos apenas por seu longo relato para Marquinhos (o mesmo que enuncia o Coração do mundo) e por algumas fotos vistas no celular. Por brilhante que seja a atuação de Grace Passô, a estratégia do filme acaba por criar mais uma desconfiança do que uma adesão ao conflito da trama. Selma, nesse sentido, funciona quase como um dispositivo narrativo para catalisar a ação do casal.

Selma explica o que é o Coração do Mundo, enquanto arruma o cenário para as fotos de escola.

Já entre o casal Ana e Marquinhos há um acordo implícito que se quebra quando ele a convida para participar da fita (por exigência de Selma). O não dito entre eles é falado pela primeira vez, e as fronteiras não delimitadas dos corres de Marquinhos ganham nome e demarcação. Não mais a porosidade entre pequenos delitos e trabalho precarizado, o novo arranjo com a concordância de Ana gera uma ruptura. É acertar a boa ou nada: “Agora não tem mais volta”, como Selma avisa minutos antes do assalto.

O desastre após a fita e a melancolia de Marquinhos e Ana seguindo com a sua rotina depois de cruzarem um ponto de não retorno acabam com qualquer expectativa de resolução da trama pela catarse ou pela fuga. Um pouco traído pelas promessas de um ritmo inicial vibrante do filme, ao espectador cabe lidar com o fato de que Contagem é o Texas, não Hollywood. E que, em se estabelecendo a trama sobre uma dinâmica de mundo estruturada em um sistema econômico, social e racial que é uma máquina de moer as forças vitais e os desejos, não há negociação possível com um final feliz – não importa o quanto a construção da narrativa tenha nos prometido outra coisa.

FacebookTwitter

Bacurau: desequilíbrios e assimetrias

Por Kênia Freitas

Antes

Uma das bases das discussões racializadas contemporâneas sobre os gêneros narrativos – em campos como o afrofuturismo e o horror noire (ou terror negro) – é a ideia de que gêneros como a ficção científica e o terror se fundam na projeção do medo branco da vingança dos povos e etnias historicamente escravizados, subjugados, desumanizados e colonizados. Invertendo de forma perversa a flecha da violência na produção simbólica, os filmes e livros de gênero tornam as pessoas brancas vítimas resistentes às opressões, perseguições e ocupações. Ataques vindos de um Outro imaginário/mágico/fantástico (as invasões alienígenas, os zumbis comedores de gente, os fantasmas e toda uma fauna de monstros). E também de um Outro localizado nos povos fora da codificação civilizatória branca – os bárbaros, os selvagens. O surgimento do western no cinema hollywoodiano realiza um processo semelhante de inversão histórica, colocando os povos indígenas como os selvagens/malvados dos seus primeiros filmes.

            Em Bacurau (2019), de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, a narrativa de gênero (entre o western, o terror e a ficção especulativa de futuro próximo) é retomada agora em consonância com uma visão histórica de mundo pós-colonial: que localiza no colonizador branco, no caso o europeu-estadunidense, a figura do invasor violento. Desse ponto de vista, o filme é pedagogicamente literal e maniqueísta. Os personagens brancos são maus. São os vilões. Os invasores. Eles perturbam o curso da existência e da narrativa sobre o pequeno vilarejo de Bacurau. Seu signo principal e a justificativa de suas ações se forjam a partir de um discurso de subjugação racializada hierarquizante – em que os moradores de Bacurau estão aquém do estatuto de humano e alguns brancos são mais brancos do que os outros.

            Ao mesmo tempo (e essa sincronicidade de perspectiva é fundamental), dentro da tradição dos gêneros narrativos cinematográficos aos quais se filia, Bacurau é um filme que subverte o lugar do medo branco como premissa. Há na composição enunciativa do filme ao mesmo tempo uma literalidade da representação histórica pós-colonial e uma subversão da perversão das localização dos gêneros do cinema normativo.

            Desequilibrio e assimetria[1]

Essas são palavras importantes para se pensar Bacurau em sua construção interna de tempo e de encenação. O desenvolvimento fílmico do vilarejo e dos seus moradores parte de uma ideia de profundidade, de uma densidade da imagem e de histórias. À Bacurau não se chega com facilidade, é preciso estar no caminhão pipa com Teresa e Erivaldo, percorrer a via acidentada com caixões, sacolejar na estrada de terra. Há a projeção de uma vida, de relações familiares e de comunidade, de arcos e trajetórias pessoais em pleno curso: como seguirá o curso da vida comunitária sem Dona Carmelita?  Por que Teresa regressou? Acácio conseguirá de fato deixar de ser Pacote? Lunga e o seu bando sobreviverão à perseguição policial? Com essas aberturas de enredo, o início do filme demora-se então não apenas em nos apresentar e contextualizar a cidadezinha, mas também em criar essa atmosfera de densidade.

bacurau_comunidade

            Aos poucos essa espessura narrativa será atacada por imagens e sons de outra natureza – não mais da profundidade, mas da superfície: a caravana do prefeito Tony Jr com o seu jingle eleitoral chiclete, as imagens do drone/disco voador ou os sintetizadores roubados dos filmes de John Carpenter. Uma composição planificada que começa a se sobrepor como uma ameaça de compressão a espessura da encenação até então constituída, e que anuncia a chegada do elemento desestabilizador definitivo: o grupo de estrangeiros invasores brancos.

            Se para chegarmos à Bacurau vamos de caminhão pipa, até o acampamento dos gringos chega-se de drone. Sem sutileza, sem tempo de apresentação, sem arco, sem espessura. O grupo é acima de tudo uma imagem clichê: uma matriz pré-moldada na iconografia do cinema para reprodução, um amálgama das representações de homens e mulheres brancos, estadunidenses fascinados por armas, pelo extermínio, pela destruição de tudo o que não é espelho (e, às vezes, do espelho também).

bacurau-drone

            Da superfície à densidade, o filme engendra uma série de formas e regimes de representação e encenação: das atuações de atores não profissionais, passando pelas relações comunais, matutas e codificadas encenadas pelo núcleo de Bacurau à corporificação da imagem videogame dos gringos. Entre esses lugares, ficam personagens como o prefeito Tony Jr e o casal de forasteiros paulista-carioca. A chegada do casal ao bunker gringo marca um dos momentos de choque entre os universos (antes do confronto final). Em um mesmo espaço estão os dois, a senhora moradora local que serve ao grupo e os gringos. Cada um desses conjuntos existe e atua em regimes de representação diversos e as comunicações mostram-se truncadas, imprecisas. O gesto da senhora para oferecer água, a tentativa do casal de justificar as suas ações e o estabelecimento da hierarquia racial pelos gringos: nada disso está dado como consenso mínimo entre os conjuntos. Há um abismo de humanidades intransponível na diferença entre “people we pay” e “local contractors”. As formas de apreender e comunicar entre essas humanidades são diversas e, como o final da sequência nos mostra, não passíveis de sintetização.

            O ataque é então o encontro final da espessura densa da representação e tramas de Bacurau e da imagem de superfície dos invasores brancos. A estratégia de guerrilha da comunidade para não ser aniquilada passa justamente por saber desaparecer, esconder-se, retrair-se para dentro de si (para dentro da espessura). A comunidade retira-se do terreno de confronto aberto, faz com que os invasores esperem – tomando conta da temporalidade da ação.

            Para fora

            “A violência que presidiu ao arranjo do mundo colonial, que ritmou incansavelmente a destruição das formas sociais indígenas, que arrasou completamente os sistemas de referências da economia, os modos da aparência e do vestuário, será reivindicada e assumida pelo colonizado no momento em que, decidindo ser a história em atos, a massa colonizada se engolfar nas cidades interditas. Fazer explodir o mundo colonial é doravante uma imagem de ação muito clara, muito compreensível e que pode ser retomada por cada um dos indivíduos que constituem o povo colonizado. Desmanchar o mundo colonial não significa que depois da abolição das fronteiras se vão abrir vias de passagem entre as duas zonas. Destruir o mundo colonial é, nem mais nem menos, abolir uma zona, enterrá-la profundamente no solo ou expulsá-la do território” (Frantz Fanon, Os condenados da terra, p. 30).

            Frantz Fanon ao tratar dos territórios colonizados fala de uma configuração espacial de um mundo cindido em dois: o do colono e o do colonizado. Duas zonas geográficas de existência não compartilháveis. O processo de descolonização não passa pela ideia de integração ou síntese de mundos, mas de destruição violenta do colonizador e da sua zona. Enterrá-la profundamente no solo…

            Bacurau é um filme sobre a violência e com imagens violentas. Um posicionamento ético diante dessas imagens passa por se perguntar como a violência se estrutura, quais as suas origens,  os seus agentes e os seus pesos: na fúria do facão de Lunga? No tiro certeiro de Damiano? No assassinato de uma criança? Na eliminação de testemunhas? Na morte por interferência do jogo? Na chacina da fazenda? Na chegada dos brancos assassinos? No sequestro de Ângela pelo prefeito e sua trupe? Na retirada do mapa de um território? Na distribuição feita pelo Estado de mantimentos vencidos? Na criação de barreiras para interromper o fluxo do rio e tornar a água inacessível? Na tentativa de destruir as barreiras? Na perseguição do estado-policial do Brasil do Sul? Nas execuções em massa no Anhangabaú? Na transmissão em tempo real das execuções em massa no Anhangabaú?

bacurau-lungaTodas ações violentas. Porém, não simétricas.

  Ao final de tudo, vencido, cansado, Michael vê a comunidade de Bacurau reunida na frente da calçada da igreja que expõe as cabeças decepadas de seu grupo. Com desprezo e desaprovação, ele diz: So much violence. Há uma força que explode a diegese quando esse corpo de um homem branco, europeu, em tudo normativo, mesmo derrotado se sente capaz de enunciar um juízo de valor, que desautoriza a violência fora dos seus termos e do seu jogo.

Tanta violência.

Bacurau_micSoma

            Em sua junção de mundos, de formas de encenar, de perspectivas, de densidades rasas e profundas de imagens e sons, Bacurau resulta desequilibrado, incompleto, com tramas sobrepostas e outras interrompidas. Há um estranhamento diante de um filme que não é fragmentado, mas que também não se totaliza.

Mais do que uma suspensão ou esvaziamento da narrativa, nessa forma de se compor, o filme assume o corte abrupto diante do choque de perspectivas, de formas de invenção e fruição de mundo. Corte seco de um regime de encenação sobre o outro, da violência racializada, das desigualdades entre as partes, da fricção da invasão colonizadora com a resistência comunal. Assume-se sem síntese, sem neutralidade estabilizadora do encontro assimétrico. Os seus diretores produzem então, nesse desequilíbrio, um desdobramento ético e estético do filme que criam.

[1] Agradecemos ao texto da Carol Almeida pela invocação da ideia de assimetria no filme: https://foradequadro.com/2019/09/10/bacurau-de-kleber-mendonca-filho-e-juliano-dornelles/

FacebookTwitter

Divino Amor: enquadramentos e exclusões de um futuro próximo

Por Kênia Freitas

divinoamor1

Divino Amor (Gabriel Mascaro, 2019) se constrói como uma narrativa de ficção especulativa de futuro próximo. Não há afastamento temporal o bastante para falarmos em distopias ou utopias, e o que se configura é um pequeno deslocamento do presente. Este é grande o suficiente para imaginarmos o declínio do carnaval como a festa mais popular do Brasil (perdendo o posto para uma rave cristã) e o avanço no biocontrole estatal em prol de uma reprodutividade acelerada (dentro da ordem familiar patriarcal), mas pouco significativo em outros aspectos tecnológicos ou ambientais. O 2027 de Divino Amor projeta sobre o Brasil de 2019 intensificações religiosas e políticas que já atravessam o país no momento atual. Se em geral a ficção especulativa aborda essencialmente questões do seu presente, nas ficções de futuro próximo esse vínculo com o agora se torna mais evidente e impactante para o leitor/espectador.

            Nesse sentido, uma das estratégias mais instigantes do filme é a escolha do seu ponto de vista, do seu universo de interesses. Há uma aposta de enquadramento de visão do mundo pelas vivências da protagonista Joana: uma mulher crente em Deus e na burocracia estatal. Casada, frequentadora devota dos encontros do Divino Amor, em contato frequente com o seu pastor (no atendimento via drive-thru), ansiosa por engravidar, funcionária dedicada de um cartório. Joana acredita no projeto de família patriarcal, no direito do Estado de controlar e guiar a vida das pessoas a partir desse projeto cristão-familiar. Joana age nas duas frentes (Estado-Igreja) com a mesma devoção: no cartório, usa a burocracia para dificultar divórcios na tentativa de reconciliação entre os casais; e em seu grupo da igreja, atrai os casais em crise para as práticas religiosas-amorosas-sexuais. A partir do lema “quem ama não trai, quem ama divide”, o grupo pratica um swing abençoado de Deus. Cabe notar como o amor e o sexo, que são pontos fundamentais da experiência religiosa de Joana, são concebidos e vividos a partir de acepções limitadas e orientadas em um sentido produtivista, capitalista, patriarcal. O amor de Joana manifesta-se para Deus, para o seu marido e para o grupo do Divino Amor, mas não estende-se aos filhotes de cachorro, à vizinhança, a uma noção de comunidade, ou às crianças bastardas do orfanato. O sexo do Divino Amor é estritamente reprodutivo, condicionando a temporalidade ao gozo masculino.

divinoamor2

A estratégia de focalização em Joana e na suas vivência cria um jogo instigante na narrativa porque o filme acerta no tom. O adensamento no mundo da personagem não pretende criar um choque cômico ou de repulsa. Ao singularizar um agente do aparato de opressão Estado-Igreja, Mascaro desloca a pergunta de Jean Louis-Comolli “como filmar o inimigo?”, que marca o cinema político contemporâneo. Na construção do filme, Joana não é o inimigo, ainda que haja na manutenção de um aparato de controle religioso e estatal. Porém, Joana acredita no que faz e age com fé. Há na forma de filmar de Mascaro um jogo de aproximação e afastamento da narrativa com essa personagem, com a sua visão de mundo e a sua fé (jogo que se desestabiliza nas sequências finais – junto com a vida e a fé da personagem). Assim, frequentemente, a personagem é enquadrada com alguma distância – de um cômodo para outro, com paredes entre a ação e a câmera. Uma distância que situa Joana nesse futuro próximo com ambientes de cores estranhas (azuis, rosados). Um distanciamento que lembra constantemente de que para além de Joana há uma estrutura maior de mundo, relações, poderes. Uma estrutura que marcaria esse lugar do antagonista oculto, o inimigo, para muito além da personagem.

divinoamor3

            No entanto, esse filtro pela experiência de Joana cria impasses no jogo do filme. Se a focalização funciona para complexificar as vivências da personagem, ela limita o enquadramento da narrativa como um todo. Afinal essa visão de mundo e de futuro próximo é a do filme, a de Joana ou de ambos? Se tudo o que o filme nos mostra é que Joana vive em um mundo sem aparentes conflitos raciais, sociais, de classe e de gênero, isso quer dizer que o futuro próximo do filme é pós-racial, pós-gênero, pós-classe? Ou essa é apenas a experiência singularizada e limitada das vivências e da visão política de Joana? Ao eliminar o conflito da personagem contra uma sociedade opressora e torná-la agente das opressões, como o filme pode dar conta daquilo que Joana não vê? Uma resposta possível é a de que o filme não se interessa pelo que Joana não vê/sente/vivencia. O que resolve a questão da perspectiva fílmica e estrutural, mas o deixa em crise como uma narrativa de futuro próximo feita a partir do Brasil de 2019. Há uma fricção criada pela limitação do enquadramento e o seu desejo especulativo sobre questões políticas, sociais e religiosas nacionais.

divinoamor4

Ao revelar o seu narrador, identificando a voz off metalizada e infantil que conta a história como o filho de Joana, o filme entrega-se à crença e visão do mundo da personagem e se inscreve no regime mitológico cristão do messias salvador. A criança nascida sem um pai identificado (seus genes não são compatíveis nem com o marido, nem com os homens com quem Joana fez sexo no Divino Amor) é vista por Joana como a prova de um milagre divino (um presente de Deus abençoando a sua fé acima da infertilidade do marido). Uma criança não registrada, que encerra o filme nos dizendo que: “quem nasce sem nome, cresce sem medo”.

Ao não se interessar pelo que a personagem não vê, Divino Amor filia-se a um regime de crença no mundo e construção do futuro que só pode se fazer a partir da exclusão. Afinal, se as crianças bastardas do orfanato visitado por Joana (cena que funciona quase como um chiste visual para ela colher a lágrima de um bebê abandonado) também não tem nome e registro, porque apenas o filho de Joana (o escolhido) crescerá sem medo? Na visão de futuro próximo em Divino Amor não parece haver lugar para essas crianças para além de uma piada e um contraponto visual. O enquadramento reforça a visão do mundo dos escolhidos, dos vistos e dos mostrados – que podem até quem sabe rebelar-se e crescer sem medo. O enquadramento reforça o não interesse pelos mostrados mas não vistos. Diante destas imagens de futuro próximo, ficam as questões: quem sumiu junto com o carnaval no universo do Divino Amor? Nesse novo (antigo) projeto de Brasil, essas pessoas foram sumidas para onde? O fora de quadro é imenso demais. E segue crescendo, sem nome, sem narrativa e com medo.

FacebookTwitter

Fabulações críticas em curta-metragens negros brasileiros

Por Kênia Freitas

No livro Afro-Fabulations The Queer Drama of Black Life, Tavia Nyong’o questiona se “uma poética da afro-fabulação poderia suplementar, ou mesmo suplantar, a política da representação?”. Tais estratégias de afro-fabulação para Nyong’o seriam formas de tirar o pesa que as artes negra e queer carregam a partir das lógicas identitárias e representacionais, apontando, no lugar, para formas expressivas mais fugitivas e performáticas. Essa estratégia expressiva passa também pela proposta de fabulação crítica da historiadora Saidiya Hartman.

Partindo de um processo leitura crítica dos arquivos históricos do Atlântico Negro, Hartman diante da incontornável e insuportável violência destes arquivos, assume a impossibilidade da representação (que apenas poderia reproduzir e/ou atualizar o processo violento). A historiadora manifesta assim, como alternativa, a necessidade da encenação na pesquisa e interpretação dos arquivos. O que Hartman incorpora ao processo de veridicção histórica é o elemento imaginativo, o subjuntivo do passado, o “e se” – não em um sentido falsificante (ou seja, oposto ao verdadeiro), mas fabulatório (que não pode e não quer ser verificado).

Mais do que uma resposta, a pergunta de Nyong’o e a abordagem historiográfica de Hartman nos abrem outras relações críticas possíveis com a produção negra contemporânea. E será a partir delas que nos aproximaremos de três trabalhos de artistas negras contemporâneas. Os curtas discutidos neste texto possuem modos de produção e realização bastante diversos entre si, mas cada um à sua maneira, parte de uma relação direta do fazer cinematográfico com os campos da performance e das artes visuais. E os três curtas também afastam-se de estratégias representacionais mais comuns da experiência negra no cinema.

Elekô (Mulheres de Pedra, 2015): corpos especulativos

Na primeira cena do filme coletivo Elekô, cinco mulheres negras movem-se em conjunto e lentamente. Duas luzes de uma construção parecem guiar os gestos das mulheres e ao fundo ouve-se o barulho do mar, metais que tilintam e um canto em lamento. A aproximação da câmera nos revela as lágrimas que escorrem. Esse corpo corpo-conjunto, embora situado nas ruínas das obras em andamento do centro do Rio de Janeiro, é transportado por sons, as vestimentas das mulheres e os seus movimentos para o meio do oceano. Assim, em poucas sequências estamos entre o Rio de Janeiro contemporâneo dos grande eventos (e consequente processos de higienização e remoção das populações pobres e pretas) e a travessia de escravizados no Atlântico Negro. Se concretamente o cenário do Rio contemporâneo se impõe na imagem, a performance desse corpo-conjunto negro fabula um outro tempo e espaço no presente a partir da fusão entre memória e história. O porto que recebia os escravizados no passado projeta-se sobre a região portuária do presente.

valerie

elekô

Em outro momento, duas mulheres negras de torso nu fazem uma performance com um punhado de terra. As mãos com terra erguem-se em direção ao céu, enquanto alguns grãos escorregam. A terra é espalhada nos braços e barrigas, criando uma nova camada de marrom nos corpos. Nesta sequência, se os tambores parecem compor harmoniosamente um ritual sagrado, a leitura da declaração oficial da abolição da escravatura no Brasil coloca novamente em operação uma politemporalidade. Uma temporalidade múltipla que não anula os seus elementos (passado colonial escravocrata e presente da expressão artística negra), mas os sobrepõem.

elekô

Seguindo a lógica dessas duas sequências mais delineadas discursivamente, as outras performances musicais, sonoras e corporais que se somam no filme compõem uma sobreposição de narrativas femininas negras que se articulam no presente, mas apontam para experiências coletivas de passado e de futuro. Os menos de sete minutos da obra manipulam uma experiência sensorial de intensidades e fragmentos de vivências negras femininas múltiplas.

Se um jogo de coletividade se anuncia na performatividade do corpo-conjunto, os closes e a montagem em paralelo de narrativas múltiplas dispersam ou complicam essa promessa. Assim, no filme, enquanto uma mulher escreve subindo a ladeira, outra anda pelas ruas enchendo sacos de plástico do fôlego de desconhecidas. As duas podem co-habitar a mesma obra, mas seguem existindo em temporalidades próprias, específicas. O filme não parte de um princípio de performances com início, meio e fim, mas por um atravessamento destes momentos. Assim, as narrativas negras que fabulam o/no filme atuam menos no sentido de fechar a obra, mas de abri-la para entradas e experiências espectatorial diversas.

O filme encerra-se em uma roda musical e de dança de celebração das mulheres negras. Dança que se faz a partir de um canto tradicional alegre que pede licença para cantar. A construção dessa celebração nos remete ao que Tavia Nyong’o chamou de criação de um corpo especulativo feito das contra-narrativas que desarranjam as linhas temporais históricas. Os corpos negros especulados na escravização (comprados, vendidos, estuprados, abortados, torturados…) tornaram-se corpos especulativos. Se uma grande maioria das expressividades negras diaspóricas pós-escravização fez-se a partir da necessidade de reconstrução histórica e do realismo, a especulação como expressividade negra coloca-se como uma contraposição constante.

Em Elekô, é possível se estar no Rio de Janeiro e na travessia do Atlântico, na abolição e no presente histórico, em uma roda de gira de ontem e de amanhã. As mulheres negras historicamente especuladas, especulam no cinema os seus corpos (e as relações e sentidos que estes podem e desejam criar). Nesse processo fabular, o filme não apaga os processos históricos ao que remete, mas soma-os a sua criação performativa.

 

Experimentando o Vermelho em Dilúvio II (Michelle Mattiuzzi, 2016): politemporalidade negra

Em Plantation Memories: Episodes of Everyday Racism, Grada Kilomba discute a máscara do silenciamento. O instrumento colonial de tortura era utilizado para tapar a boca dos escravizados, impedindo-os de comer e, sobretudo, Kilomba defende, impedindo-os de  falar. A análise da máscara leva Kilomba ao levantamento de conjecturas no passado “O que poderia o sujeito Negro dizer se ela ou ele não tivesse sua boca selada? E o que o sujeito branco teria que ouvir?” (KILOMBA, 2016 – tradução de Jessica Oliveira de Jesus). O que o falar e ouvir movimentam são relações de poder. E também, como Kilomba esmiúça, o que se operava com o uso da máscara como forma de controle e tortura era o processo psicanalítico de recusa e repressão dos sujeitos brancos. Diante da sua agência violenta no processo colonizador e escravização, os sujeitos brancos não poderiam correr o risco de ouvir.

Em Experimentando o Vermelho em Dilúvio II, Michelle Mattiuzzi nos convoca em seu filme-performance a nos questionar as reminiscência subjetivas e literais da máscara no presente. Na performance do curta, utilizando uma versão da máscara de silenciamento (amarrada por fitas vermelhas e pregadas por alfinetes grandes que perfuram o rosto) e um vestido branco, a artista caminha pelas ruas do centro do Rio de Janeiro em direção à estátua de Zumbi dos Palmares. Visualmente a extrema brancura do vestido e o tom vivo do vermelho ganham intensidade em contato com o tom de pele escuro de Michelle Mattiuzzi. A composição elaborada impecavelmente contrasta com o caos habitual das ruas e dos passantes. Os olhares dos transeuntes fitam a máscara, a artista, suas vestimentas e muitas vezes a câmera que a acompanha a uma curta distância.

elekô

Concluindo a caminhada, a artista pára diante do monumento, alinhando-se à mesma direção de olhar de Zumbi para a avenida. Sem pressa, ela desfaz os nós da fita vermelha e começa a retirar os alfinetes que furam a sua pele. Mais uma vez o vermelho, agora do sangue escorrendo sobre o rosto de Mattiuzzi aparece como elemento de destaque. Sob a máscara, descobrimos ainda mais uma camada de dor: alfinetes que prendem diretamente os extremos da boca da artista.

Neste momento do filme, o desfazer performativo mescla-se com o seu preparar. Sequencialmente, os alfinetes estão sendo retirados e vemos o sangue; colocados e vemos às lágrimas e, novamente, retirados. As temporalidades históricas também mesclam-se: ao fundo o busto de Zumbi dos Palmares, em primeiro plano os punhos cerrados de Mattiuzzi. A ação (performance e filme) opera a ideia de politemporalidade negra. Aqui não apenas sobrepondo o passado no presente, mas complexificando a duração fabular da performance. A linearidade não interessa: colocar e retirar os alfinetes são atos não consequentes, mas cíclicos. A politemporalidade, como um entendimento do tempo mais denso e expandido, assim se contrapõe com uma ideia do tempo universal, neutro e transparente (Nyong’o, 2018).

Neste sentido, é importante pensarmos o vermelho do título. O vermelho aparece não apenas nas fitas que seguram a máscara e caem sobre a cabeça de Mattiuzzi, mas também na transição entre os blocos (no lugar de um fade out preto tradicional). O vermelho assim torna visível a montagem do filme, em um movimento semelhante ao que Ana Pi desenvolverá depois com o azul em NOIRBLUE – Deslocamentos de uma dança (2018). Mais do que apenas uma mudança cromática do preto para o vermelho (ou o azul), o efeito desnaturaliza convenções de (in)visibilidade na linguagem cinematográfica. Em Experimentando o Vermelho em Dilúvio II a cor vermelha como elemento de transição assume um lugar de base, fundamento, da materialidade da obra e do seu processo. E o sangue da artista (o último tom de vermelho a ser mostrado no filme) desloca essa materialidade da obra audiovisual para os corpos negros. Assim, o que a afro-fabulação performativa de Michelle Mattiuzzi coloca em evidência é o sangue como elemento fundante das experiências negras no passado e no presente,

Pontes sobre abismos (Aline Motta, 2017): Reformulando o arquivo familiar

Atos de reformulação (redress), argumenta Hartman, baseiam-se em afetos de dor e fome, em necessidade e desejo. A história crítica (ou o que ela mais tarde chama de “fabulação crítica”) é definida (…) como “atos memoriais a serviço da reformulação”. A reformulação, eu reivindico, é uma teoria e prática psicanalítica e sociogênica negra para lidar com os fantasmas incorporados da cripta. (Nyong’o, 2018)

Em sua origem, Ponte sobre abismos foi uma instalação em multicanais e uma exposição fotográfica. Mas a obra de Aline Motta também foi montada como um filme de telatripartida – e é a essa realização da obra que nos ateremos a seguir.

A sequência final do curta-metragem concentra-se em uma narrativa sobre a origem do leopardo, na mitologia de África. O conto diz que em tempos remotos o leopardo (mostrado como uma animação, um bicho branco sobre um fundo preto) fez amizade com o fogo. Passado um tempo da amizade, a mulher leopardo manifesta o seu desejo de também quer conhecer o fogo e pede que ele convide o amigo para ir a sua casa. O fogo faz a visita. Ao ver sua casa em chamas, a mulher leopardo pergunta: “Este é o seu amigo?”. E foi assim que os leopardos ganharam as suas manchas, o conto conclui.

Este conto que localiza a origem de uma característica marcante do leopardo (as manchas) em uma experiência afetiva traumática e fundante. A origem do leopardo encerra (sem concluir) o percurso do filme (que passa pelas áreas rurais do Rio de Janeiro, Portugal e Serra Leoa) em busca das origens e arquivos familiares da artista. A busca é motivada pela revelação feita por sua avó de nunca haver conhecido o próprio pai. O bisavô da artista era o filho adolescente e branco dos patrões da sua bisavó negra. Na concepção de Nyong’o de afro-fabulação há uma aposta performativa e expressiva de se “viver com a ambivalência” (com a morte, o trauma, as feridas que constituem a experiência negra contemporânea pós-escravização e colonização). Essa ambivalência nos parece se mostrar na obra pelo resgate e reapagamento da figura ausente/presente do bisavô e pela reformulação e afirmação das figuras da avó e bisavó.

Assim, se na breve narrativa familiar e nos arquivos existentes (como a certidão de nascimento assinada pelo tio materno da criança na ausência de um pai) subentende-se o assédio, estupro, abuso e abandono daquela jovem mulher negra e da sua filha, o processo da obra empenham-se na reformulação de suas imagens e dos seus arquivos. Por fotos plotadas em tecidos, papéis e estruturas diversas, as duas mulheres negras, Doralice e sua mãe Mariana Francisca, circulam em águas de continentes diversos (América, Europa e África). As suas imagens e de seus documentos ampliados reivindicam a sua existência. A fluidez das fotos e documentos tremulando na água e no ar, dão novamente uma ideia de movimento vivo ao arquivo e à memória familiar.

Enzo, o bisavô “desconhecido” também é retomado por uma foto ampliada e pela recuperação de suas aparições nas colunas sociais e de esporte dos jornais da época. Como a narração em voz over anuncia,  a descoberta dos rastros dele existentes no jornal marcam o nascimento de uma nova família. Como as manchas do leopardo, ausência (de relação concreta) e presença (pela herança genética) são marcas constitutivas inapagáveis. Mas ao contrário das figuras femininas, o bisavô reencontrado sobretudo nos arquivos de jornais tem o seu registro riscado pela edição do filme. A sua reformulação no arquivo familiar não é pela permanência de uma imagem perdida ou pouco vista, mas pelo apagamento deliberado do arquivo oficial.

Assim, no curta, a busca da bisneta em arquivos históricos por traços de sua presença não se move para um reencontro ou uma resolução (compensação ou reparação). Os seus vestígios são mostrados para serem logo em seguida apagados, riscados. Há portanto no processo performativo da obra mais a ideia de reformulação, do que de compensação ou reparação. Nyong´o definirá esse processo de reformulação como o de “uma articulação da perda” sempre imensurável. Assim, encontrar os resquícios de Enzo no jornal não reestabelece ou cria laços afetivos, mas cria uma agência possível na arte fabular da bisneta sobre ele. Um processo também de fabulação crítica do arquivo familiar que redimensiona (para maior ou menor) a importância dos sujeitos históricos, invertendo a dominância do homem branco para as mulheres negras.

FacebookTwitter

Bush Mama (Haile Gerima, 1979): assimetrias da carne e do corpo

Por Kênia Freitas

I

No enquadramento o olhar de Dorothy. Olhar frontal para a câmera, mas não endereçado ao espectador. Dorothy olha com intensidade para além da câmera, que o contraplano logo nos revela como os detalhes de um pôster. Na imagem observada a mulher angolana que segura o filho em um braço e a arma com o outro. Indo de um lado para o outro do cômodo e colocando-se na frente da imagem, Dorothy parece querer desvendá-la – e, pela frontalidade do olhar da guerrilheira, ser simultaneamente desvendada.

Na montagem do filme de Haile Gerima plano e contraplano, no entanto, não se equivalem. Dorothy não quer ser fixada. A agência do transe e da identificação é sua. Depois do plano fechado no olhar fixo, a câmera se afasta para o plano americano que situa Dorothy em sua casa e na sua possibilidade de questionar a imagem andando de um lado para o outro. Mais do que um contraplano, a câmera torna-se uma subjetiva da personagem. A imagem colada na parede é então mais uma vez recortada pela investigação de Dorothy: da lágrima nos olhos para a arma e de volta aos olhos.

Close nos olhos fixos de DorothyAo lado, detalhes do pôster

Close nos olhos fixos de Dorothy. Ao lado, detalhes do pôster.

A investigação da imagem é interrompida por sons que vem de fora do apartamento. Dorothy corre então para observar pela janela o que se passa na rua. A câmera assume mais uma vez o olhar subjetivo de Dorothy para a cena: um homem negro algemado é conduzido por um policial branco que o empurra. O homem grita para que o policial pare, enquanto tenta afastar-se do policial. Sem hesitação, o policial atira e mata o homem algemado. Dorothy fecha os olhos em desespero e chora.

A montagem mais uma vez joga com uma falsa equivalência entre Dorothy, que observa, e a cena observada. Mas dessa vez, Dorothy quem não terá agência diante do testemunho da violência policial.

II

Além da mãe guerrilheira angolana (a Bush Mama que intitula o filme), outro pôster está colado na parede do apartamento. As imagens foram levadas por Angi, a adolescente que frequenta as manifestações do movimento negro e amiga de Luann (filha de Dorothy). O outro cartaz é de um homem negro morto pela polícia de Los Angeles alvejado com 25 tiros. Ao mostrar o pôster para Luann, Angi conta as marcas de tiro no cadáver. A contagem, o pôster e a violência sofrida pela comunidade negra e pobre de Los Angeles oscilam entre o insuportável e o natural no tratamento do filme.

Pôster do homem assassinado com 25 tiros pela polícia de Los Angeles.Pôster do homem assassinado com 25 tiros pela polícia de Los Angeles.

Não há gratuidade na violência representada e construída por Gerima. Da não linearidade da narrativa ao papel fundamental do som sobre as imagens (reiterando essa não linearidade pela repetição e sobreposição de vozes, ruídos urbanos e a trilha sonora), passando pelas elipses entre os acontecimentos, o filme não se esquiva da representação da violência sistêmica sobre a carne negra.

II.A

Frank B. Wilderson III defende uma diferença entre carne (flesh) e corpo (body) ao falar do tratamento da violência em Bush Mama. O corpo diz respeito apenas aos policiais brancos, a carne às pessoas negras. O primeiro ocupa uma posição de sujeito e o segundo de objeto. Considerando a experiência negra diaspórica pós-escravização a partir do prisma de uma morte social (Orlando Patterson), a posicionalidade negra em sociedades de supremacia branca e de racismo estrutural é a da não humanidade – a de objeto.

Isso não significa que a carne (os personagens negros) não possam ter eventualmente agência da violência no filme. A sequência final de Dorothy assassinando o policial branco após encontrá-lo estuprando Luann, representaria uma ação da carne sobre o corpo. O que a diferença dos termos coloca é uma assimetria irreparável (dentro e fora da representação) entre carne e corpo no domínio da violência.

O filme de Gerima aponta para essa impossibilidade de simetria ao inverter a sequência dos acontecimentos finais. Vemos primeiro Dorothy presa, apanhando brutalmente ao não assinar a confissão deturpada do assassinato do policial. O sangue no chão denuncia que o aborto tão reivindicado pelo estado via assistência social, foi concretizado pela violência policial. E, só depois, veremos o momento em que Dorothy chega no apartamento para encontrar Luann sendo atacada, reagindo furiosa contra o policial e o matando no local. A desordem importa.

III

Além da não linearidade entre as sequências, opera na montagem do filme as elipses entre os acontecimentos. Isso reforça a assimetria e também quebra o efeito imediato entre causa e consequência da ações das carnes e dos corpos.

O momento mais emblemático dessa descontinuidade acontece quando TC, o companheiro de Dorothy, arranja um emprego. Em uma cena acompanhamos Dorothy e Luann orgulhosas na janela o observando partir para o trabalho. Na próxima, vemos TC sendo conduzido por um guarda dentro de uma penitenciária até a sua cela.

Dorothy e Luann observam TC pela janelaTC é conduzido pelo guarda na penitenciária

Dorothy e Luann observam TC pela janela. TC é conduzido pelo guarda na penitenciária.

Neste momento não trata-se mais de uma assimetria de agência entre Dorothy e o que ela vê (como na sequência do pôster da Bush Mama). Mas de uma inequivalência entre o que ela teria visto e a continuidade do filme. E em um filme que não se esquiva das imagens traumáticas, essa elipse desmonta uma expectativa na narratividade e na representação como reorganizadoras das assimetrias (dos olhares, da carne e dos corpos, da distribuição da violência).

IV

Essa estratégia de montagem (não linear e fragmentada) alinha-se com uma recusa de Gerima de construir o filme como espetáculo ou como uma narratividade ilusionista. O filme pode então falar diretamente para a câmera e interpelar os espectadores.

Um desses momentos é a leitura da carta enviada por TC para Dorothy de dentro do presídio. A carta começa a ser lida em voz alta por Angi dentro do apartamento de Dorothy. Logo o filme se desloca da casa para a penitenciária, da voz de Angi para a do próprio TC, que fala encarando a câmera. A câmera no entanto logo inicia um travelling lateral percorrendo as selas de outros homens negros presos ao lado dele, enquanto continuamos a ouvir a sua voz em off falando pela carta.

TC atrás das grades fala pela carta com DorothyAo lado, os vizinhos de cela 1Ao lado, os vizinhos de cela 2Ao lado, os vizinhos de cela 3Ao lado, os vizinhos de cela 4

TC atrás das grades fala pela carta com Dorothy. Ao lado, os vizinhos de cela.

Nessa cena a centralidade da violência do encarceramento sobre a carne de TC é reconfigurada. O seu discurso militante sobre a tomada de consciência sublinha uma ideia de coletividade imageticamente construída pelo travelling entre as celas.

Essa coletividade atravessa o filme como um todo. Assim, se violência estrutural sobre todos os aspectos da vida e da carne de Dorothy (moradia, filhos nascidos e não nascidos, cabelo, emprego, relacionamento amoroso, amizades…) é um ponto focal de Bush Mama, a personagem é situada continuamente em uma coletividade não individualizante (de vizinhas, amigas, pessoas ao seu redor na fila dos atendimentos públicos).

O plano final do filme de Dorothy, não mais investigando o cartaz da mãe guerrilheira mas enquadrada ao seu lado, desfaz a assimetria construída anteriormente de plano (Dorothy) e contraplano (pôster). O que essa escolha de posicionamentos e deslocamentos da câmera constrói é uma possibilidade de aliança dos personagens negros como carne. O que não desfaz as assimetrias dadas entre carne e corpo na sociedade (fora ou dentro do filme), mas aposta em um realinhamento subversivo dos elementos.

Bush Mama e Dorothy alinhadasBush Mama e Dorothy alinhadas.

FacebookTwitter

A Feiticeira Viúva (Xiao Gua Fu Cheng Xian Ji, Cai Chengjie, 2018)

olhar-de-cinema-1

Por Kênia Freitas

Há em geral no cinema narrativo ficcional um jogo de crença e descrença entre o filme e o espectador. Uma relação que passa pela grande autonomia das obras ficcionais em criarem os seus universos e os seus elementos de entrada e saída da narrativa, mas também pela capacidade destas obras de sustentarem estes universos (ao menos em narrativas ficcionais tradicionais). A Feiticeira Viúva é um filme extremamente dependente do engajamento do espectador nesse jogo de crença e que tenta sustentar essa relação pela construção da sua protagonista.

No filme, a crença está no cerne da trama: Er Hao após perder o seu terceiro marido e sobreviver de forma inexplicável passa a ser tratada como uma feiticeira pelos habitantes de sua pequena aldeia. De início ela recusa o rótulo, mas vê-se levada após uma série de acidentes, confrontos e acontecimentos estranhos a assumir o papel. A sua descrença aos poucos transforma-se em crença que dá vazão a uma autoconfiança que transforma a sua vida e a das pessoas ao seu redor. No entanto, novos acidentes, confrontos e acontecimentos estranhos mudam novamente as relações de poder, condenando por fim o destino de Er Hao.

O filme no entanto é bastante questionável na forma em que se relaciona com a sua protagonista. Logo em seu início há uma cena de estupro de Er Hao filmada do seu ponto de vista. Simulando a visão da personagem no momento da concretização do ato, o filme nos mostra uma tela preta (como se ela estivesse de olhos fechados ou com vista obstruída). A cena é rápida e não mostra no quadro nenhum contato violento. Há ao longo de todo o filme a expectativa de que esse início resulte em algum pagamento, alguma resposta, alguma consequência na trama. No entanto, isso não acontecerá. A cena serve apenas para somar-se as desgraças que deveriam transportar o espectador para um estado de espírito abalado da personagem (efeito que também não se constrói dessa forma). Há um desencaixe enorme entre a violência psicológica e física que a cena sugere e o tom fabular despreocupado que a narrativa adota.

Um efeito semelhante acontece no final do filme, quando após uma série de desventuras Er Hao decide por se autoimolar – um desfecho recorrente para o destino de uma feiticeira. Para além do óbvio da escolha, é mais uma vez uma decisão pouco corajosa da forma de assumir a dor e o destino de sua protagonista: vemos uma cabine de madeira na qual Er Hao acabou de entrar queimar em chamas de forma lenta enquanto os créditos do filme começam, sem jamais vê-la novamente. Mais uma vez uma cena extremamente violenta é filmada de forma a não incorporar essa violência como imagem, mas apenas como efeito da trama. O filme segue limpo de qualquer sangue, mas requerendo uma cruel punição da sua protagonista como preço. Há em A Feiticeira Viúva uma descrença na sua própria narrativa, que se reflete nas imagens que o filme não tem força para sustentar ou assumir consequentemente.

FacebookTwitter

Boa Sorte (Good Luck, Ben Russel, 2017) e A Floricultura (La Fleurière, Rubem Desiere, 2017)

olhar-de-cinema-1

Por Kênia Freitas

Boa Sorte é composto por dois filmes formal e estruturalmente relacionados, mas muito distante entre si pelas imagens que os constituem. Em comum está a proposta de filmar os trabalhadores em minas em condições extremas e/ou adversas de trabalho. A primeira parte filma os homens que buscam cobre em  uma mina estatal da Sérvia; a segunda filma mineiros piratas de ouro no Suriname.

Formalmente o documentário constrói um jogo de espelhos: começa com a apresentação musical na Sérvia e termina com outra no Suriname, entre os dois atos a maior parte do tempo é dedicada a um fazer documentário observativo das atividades de extração e do cotidiano dos trabalhadores. Uma observação paciente que busca a construção de registro do íntimo: nos dois trechos, o ápice sendo uma conversa coletiva entre os homens durante uma refeição que inclui o diretor e a câmera como participantes daquela intimidade.

Em cada um dos blocos essa observação é recortada por um dispositivo de encenação proposto pelo diretor: os trabalhadores entram em um ambiente isolado e devem encarar a câmera em silêncio por um determinado tempo. E nessa proposição o jogo de espelho entre os dois filmes começa a mostrar a sua fragilidade: o isolamento e o silêncio funcionam bem na primeira metade do filme (nada interfere na relação direta entre o espectador e aquele rosto em primeiro plano); na segunda parte porém, os sons ambientes invadem o dispositivo – saímos do confinamento isolado para um ambiente aberto, sem paredes, sem separação possível. Os mineiros do Suriname encaram a câmera, mas também reagem aos sons que atravessam a encenação – corrompendo a proposta do dispositivo.

Assim, ainda que o dispositivo seja o mesmo, são experiências distintas de relação com os trabalhadores e o seu ambiente. E, no geral, a sobreposição destas experiências não cria uma relação de contraposição que acrescenta novas camadas a recepção das imagens, que possibilite a criação de um terceiro filme que surja da relação direta dos dois existentes. Imageticamente a primeira parte é uma experiência de cinema bastante única com o jogo de escuridão e de luz da mina subterrânea e a sensação do confinamento incorporada de forma sensível a montagem do filme. Esta tradução fílmica da experiência dos trabalhadores na segunda parte é bem menos interessante. Se na primeira parte o documentário cria um repertório imagético belo e inventivo de imagens pouco ou jamais vistas, na segunda ele se depara com uma iconografia extensa e incontornável de imagens do século XX – a dos corpos de homens negros trabalhando na terra de forma precária. Diante desta iconografia, as imagens do filme se perdem de forma pouco propositiva diante de uma quase automática reprodução deste imaginário já desgastado.

Se a sobreposição dos dois filmes de Russel em si não se concretiza,  A Floricultura de Rubem Desiere é um filme que se beneficia bastante de ser exibido na mesma mostra que Boa Sorte (os dois filmes fizeram parte da mostra competitiva de longa-metragem). Observando as obras em sequência há uma trajetória delineada das relações capitalistas de trabalho e das suas condições: em ordem observamos a transformação capitalista do trabalho insalubre (parte 1) em trabalho pirata (parte 2) e finalmente em trabalho ilegal organizado socialmente em uma rotina (A floricultura). O cobre e o ouro se desmaterializam e tornam-se bens simbólicos das notas de dinheiro e promissórias guardados em um banco europeu. E o trabalho bruto e físico da mineração torna-se um trabalho de espera, observação, frustração e estratégia de um roubo.

            Assim o roubo a um banco belga executado por três jovens romenos é filmado como um ato trabalho, um processo – fora da tradição da contravenção como ato espetacular fílmico, ela torna-se ato do cotidiano, da repetição, da rotina. A observação documental de Russel dá lugar a uma encenação ficcional naturalista. E, embora grande parte do filme seja composta por diálogos entre os três personagens, não é uma dimensão da intimidade ou mesmo da subjetividade destes personagens que se instala. As conversas são mais um elemento sonoro, de assuntos triviais, que fazem o tempo passar, que marcam uma banalidade das relações.

Deliberadamente a subjetividade dos personagens ganha pouca dimensão no filme. Há dificuldade não de falar (as conversas são constantes), mas de comunicar pela fala. Há uma pista do não pertencimento romeno nômade na organização social europeia contemporânea – mais uma vez no rastro da desmaterialização capitalista em comparação ao Boa Sorte (onde ainda existem relações comunitárias sólidas tanto na Sérvia, quanto no Suriname). Desmaterialização que se reflete como um todo no fazer do filme, se em Boa Sorte estamos diante de imagens densas e formalmente hiper estruturadas, em seus melhores momentos A Floricultura consegue levar o espectador a uma experiência de rarefação e vazio da encenação e da narrativa refletindo o lugar no mundo incerto de seus trabalhadores ladrões.

FacebookTwitter

Meu nome é Daniel (Daniel Gonçalves, 2018) e Travessia (Safira Moreira, 2017)

meu nome é daniel

Por Kênia Freitas

Filme de encerramento do Olhar de Cinema de 2018, Meu nome é Daniel de Daniel Gonçalves coloca em evidência a auto-representação no processo de produção cinematográfica. O documentário em primeira pessoa parte da vivência do diretor como uma pessoa com deficiência física, propondo uma perspectiva subjetiva desta vivência não limitada à doença – mas a múltiplas camadas desta existência. E o dispositivo narrativo utilizado para isso é o do documentário de busca, a procura por um diagnóstico da origem da deficiência.

Há porém em torno dessa busca dois filmes diferentes: o das imagens do presente produzidas para o filme, mostrando o cotidiano do diretor e a sua tentativa de obter o diagnóstico com novos exames e consultas e o das imagens amadoras da infância e da família de Daniel. O contato com esse arquivo move o filme não para a sua missão de descoberta médica, mas para o passado do diretor. O interesse desse segundo filme que se constitui pela revisita e pela montagem das imagens de arquivo é o de repensar pelo cinema às relações familiares e as experiências formativas de Daniel. Os dois regimes de imagem possuem intensidades e forças narrativas variantes: de um lado a pulsão delicada da montagem do filme de arquivo, de outro o dispositivo fílmico da busca no presente.

Ao final do filme, o diretor inicia uma discussão sobre como os privilégios de raça e classe foram fundamentais em seu percurso formativo: no acesso aos tratamentos médicos, às escolas e auxílios educacionais diversos e toda uma base estrutural de suporte. Esse privilégio também se constitui justamente no ponto de força maior do filme: no excesso de imagens familiares produzidas de forma amadora ao longo de décadas – do super-8 ao VHS, passando pelos diversos suportes de captação de imagem e som dos últimos 30 anos. O processo de rememoração e exploração de vivências formativas não se dá apenas por uma memória imaterial de Daniel e da sua família, mas por um amplo acervo de imagens que conformam, confrontam, complementam a memória imaterial na feitura do filme.

E quando estas imagens não existem? Como se constituem processos de rememoração e auto-representação histórica familiar e/ou individual no cinema na ausência desta materialidade imagética? Neste aspecto Meu nome é Daniel compõe uma relação de campo/contracampo com o curta-metragem Travessia, de Safira Moreira (exibido na mostra Pequenos Olhares). Contraposição que só faz sentido se pensarmos os variados processos de construção de auto-representação fílmica a partir da ideia de interseccionalidade que atravessa as identidades múltiplas e sobrepostas em co-relações de poder também nas imagens (ou nas ausências destas).

No início do Travessia somos confrontados com a fotografia em preto e branco de uma mulher negra segurando uma criança branca e a sua legenda: “Tarcisinho e sua babá. Dias D’Ávila, 15-11-63”. A partir desta foto o filme nos questiona sobre a quase completa ausência de imagens das famílias negras em um passado próximo – e a presença negra dessubjetivada (a babá sem nome) em fotografias como a que abre o filme.

Na perspectiva negra apresentada por Travessia não há arquivo familiar afetivo material a ser revisitado. O questionamento coletivo e geracional começa por confrontar e decupar uma imagem que não basta. Diante da ausência desta materialidade histórica da imagem da família negra, o filme assume que é preciso encenar novos acervos de imagens, uma encenação propositadamente anti-naturalista. O tempo esticado da pose e o de encarar a câmera das famílias negras contrapõem o incomensurável tempo de ausências. Neste caso, não se trata de articular dois regimes de filmes: o arquivo e o filme de busca; mas de um único regime a partir do que é possível: o de invenção de um arquivo de futuras imagens.

FacebookTwitter

Homens que jogam (Playing men, Matjaž Ivanišin, 2017)

olhar de cinema

Por Kênia Freitas

    Na sequência final de Homens que jogam o diretor/personagem contempla o horizonte e cantarola a música My pony, my rifle and me. A canção toma conta da cena e segue completa pelos créditos de encerramento do filme. Sua inserção nos remete a famosa interpretação de Dean Martin e Ricky Nelson, em Rio Bravo (Howard Hawks, 1959) e reforça o lugar do cinema e das imagens nos processos de construção da masculinidade que o filme investiga. Afinal, após a sua exploração, sua crise com e a sua desconstrução da masculinidade, Homens que jogam encerra o filme fazendo referência a um dos fundadores do cinema clássico dos EUA.

Através da imagem sonora citada o cinema de Howard Hawks entra no filme trazendo a sua construção de uma postura de masculinidade ideal. Em muitas das suas obras ecoa o questionamento sobre quais as condutas e escolhas difíceis fazem parte da constituição de um homem justo, honrado, de um herói. A criação dessas imagens e narrativas de masculinidade idealizadas atravessa toda a história do cinema narrativo. O  maior ponto de inflexão de Homens que jogam neste longo debate é o de situar a constituição da experiência masculina ocidental não pela perspectiva do universal, mas pelo que essa experiência possui de singular e específico em sua constituição.

    Em uma primeira camada a investigação sobre a performance da masculinidade é feita de forma direta por uma câmera documental que observa e/ou ouve as explicações de diversos homens no ato de jogar. Há uma evidente escolha pelo inusitado na seleção dos jogos: as lutas de azeite na Turquia, o rolamento de queijo pelas ladeiras da Itália, a Morra jogada com passionalidade hipnotizante na Croácia e na Eslovênia, entre tantos outros. O filme se entrega e nos guia a esses universos de convivência lúdica exclusivamente masculinos. Universos que são ao mesmo tempo de competitividade, de relações de poder e de domínio, mas também de prazer do contato e do encontro. A forma de filmar é a do encantamento, da vibração e do gozo conjunto dos espectadores com os homens filmados em seus múltiplos jogos.

Grande parte desta performance de construção da masculinidade é demonstrada pela disputa e contato dos corpos filmados nos jogos: quem tem mais força, quem lança melhor, quem permanece no círculo de dança por mais tempo, etc. Mas trata-se também como explicam os  jogadores da Morra de “entrar na cabeça do outro”, da disputa por poder também por jogos mentais de quem emana com mais convencimento a projeção ideal de masculinidade. O lúdico e o violento tornam-se elementos inseparáveis nestes processos.

Então, valendo-se de todo artifício meta-narrativo do documentário performático contemporâneo, o filme propositadamente se quebra diante do espectador: mudando o dispositivo do seu funcionamento até aquele momento. Com um intencional e descarado cinismo o narrador anuncia ao público que o diretor está em crise e não sabe mais o que filmar. E, para que nenhum espectador tenha dúvidas, a crise é filmada da forma mais exemplar possível: o homem branco sozinho, prostrado e pensativo diante da sua cerveja. A partir dessa quebra o filme assume o cinema também como mais um jogo performativo entre os outros filmados anteriormente. O documentário vira a câmera para si, encenando a fragilidade destas construções de masculinidade impostas e as suas consequências sobre os homens. A primeira parte vibra com os jogos e embala o espectador na investigação. Começando pelo próprio filme, a segunda torna-se artifício de desconstrução do ato de jogar (e também do ato de interpretar e atuar, como sugere o sentido da palavra em inglês no título original do filme).

Assim o fazer cinema, o ato de construir ou montar imagens narrativas é pensado como parte desta performance de construção de masculinidade. A ideia de uma crise de criatividade ressitua o filme de forma crítica na discussão do imaginário de uma performance de artista homem também idealizada e limitadora: o imaginário do artista/diretor que deve ser genial, um grande homem (e não somente um realizador de imagens). O não saber como seguir o filme (que leva as não-imagens) torna-se uma tradução da impotência expressiva masculina.

E diante da impotência de performar o jogo, o filme passa a investigar o substituto possível: o prazer não de jogar, mas de assistir a outro homem jogando. Ou seja, o lugar da pulsão escópica como parte ativa na construção desse papel de masculinidade e do seu gozo. Esse assistir pode ser tanto individual: o relembrar de uma partida histórica de tênis; quanto coletivo: a recepção de uma multidão em transe (multidão majoritariamente masculina) do atleta vitorioso. Neste ponto, a primeira parte do filme é ressignificada dentro da narrativa. O espectador do documentário é implicado na observação sobre o prazer escópico que o filme de início proporcionou e agora esmiúça como parte constitutiva de uma forma de ver que corrobora na constituição de ideais de masculinidade insustentáveis.

E voltamos as sequências finais com esse diretor/personagem prostrado, impotente para seguir com o processo de investigação deste tornar-se homem coletivo e singular pelos jogos e pelas imagens dos jogos. A letra de My pony, my rifle and me fala justamente sobre um sonho de um vaqueiro solitário (acompanhado apenas por seu cavalo, seu rifle e por si) de chegar a um lugar idílico, um lugar inalcançável  e imaginário sem as obrigações sociais e de trabalho. No filme, um lugar talvez em que não seja mais necessário aos homens fazerem papel de homem nos jogos pitorescos, nas relações da vida e, especificamente, no jogo cinema.

FacebookTwitter

O Chalé é Uma Ilha Batida de Vento e Chuva (Letícia Simões, 2018)

ochaleeumailha

Por Kênia Freitas

O Chalé é Uma Ilha Batida de Vento e Chuva parte da premissa de transformar o universo literário do escritor paraense Dalcídio Jurandir em uma experiência cinematográfica. Para isso o filme utiliza como elemento de construção os registros de uma viagem a trabalho que Dalcídio fez à ilha de Marajó inspecionando escolas (cartas enviadas aos familiares, relatórios de trabalho e anotações em seu diário pessoal, etc.). Não se trata de usar o material para se fazer um documentário biográfico, ou de recorrer aos livros ficcionais do escritor para adaptar diretamente as suas histórias. O que o filme ambiciona, com a sua premissa simples, é operar uma tradução intersemiótica do universo de percepção e criação do autor paraense – não apenas as suas obras, não apenas a sua vida, mas a imbricação obra e vida como elemento de expressão artística particular.

Os registros escritos deixados por Dalcídio tornam-se então ao mesmo tempo portas de entrada geográficas e subjetivas do filme ao arquipélago de Marajó e elemento de ficcionalização da diretora, e também escritora, Letícia Simões – criando de sua escrita real retrabalhada o Dalcídio personagem do filme. O Dalcídio do filme existe apenas na dimensão da narração pelas cartas lidas em voz over. Este Dalcídio também inspeciona escolas em Marajó e escreve incessantemente a sua esposa Guiomarina sobre o seu cotidiano solitário, os problemas no trabalho, os encontros felizes com desconhecidos, a sua solidão e cansaço e as saudades que sente dela, de casa e do filho, Alfredo. O campo sonoro do filme é composto pelo trabalho de som do coletivo O Grivo e, em grande parte,  pela narração em off que mescla essas experiências reais ficcionalizadas, em um roteiro que organiza as impressões diversas da viagem até esta ser interrompida por uma tragédia familiar.

A dimensão imagética do filme é guiada também por essa fabulação dos registros escritos transformados em narração e opera um deslocamento temporal dos anos 1930 para o presente. Assim, a diretora percorre as ilhas de Marajó refazendo os percursos de barco e caminhada de Dalcídio, inspecionando escolas, hospedando-se em fazendas, percorrendo os caminhos descritos pelo autor. O filme deixa pistas nesse refazer de seu ato de criação narrativa livre: em algumas cenas é o texto que conforma as imagens; em outras, as imagens moldam o texto – em geral, não podemos saber e não importa.

Pelos registros de Dalcídio as imagens do filme começam a operar um percurso de fora para dentro, do distante para o próximo, do coletivo para o singular. Assim, aos poucos, a narrativa encontra e entrevista moradores de diversas ilhas, dando ao espectador um vislumbre cada vez mais concreto e demorado das subjetividades encontradas: os adolescentes que querem e/ou precisam ir estudar em Belém, dos professores e as suas pelejas para continuarem o trabalho, do pai que sonha com os filhos formados, etc. A vida é úmida e difícil, a vida de Dalcídio longe de casa também.

O tempo no filme apresenta uma duplicidade, ele é a marcação permanente do transcorrer cotidiano dos dias pela precisa datação das cartas e também a permanência do que pouco ou nada se altera dos anos 1930 até 2018. A sobreposição proposta pelo filme dos registros escritos de Dalcídio no passado e das gravações da diretora no presente é feita geranda muito mais sentidos de complementaridade do que de estranhamento por uma passagem temporal. A paisagem do rio tão presente marca esse lugar de uma permanência imponente, mas falsa: sem grandes agitações ou avisos o tempo transcorre sem cessar; sem avisos e na trivialidade da troca de cartas, as tragédias acontecem.

Seguindo o fluxo narrativo do filme de lenta mas constante aproximação ao universo literário de Dalcídio e as vidas em Marajó, quando essa tragédia é narrada já estamos dentro, próximos e na história singular. As palavras do escritor que nos guiaram e confortaram até o momento na vida árdua mas singela dão lugar a um necessário longo silêncio. Essa é uma bela demonstração do filme do seu entendimento da potência das palavras também quando ausentes, quando impossíveis de serem ditas. Enfim, uma demonstração da confiança na realização de sua premissa de que o espectador já está completamente dentro do universo expressivo de Dalcídio Jurandir proposto pela experiência fílmica, até quando faltam palavras.

FacebookTwitter