Ecos de um Império Sombrio (Werner Herzog, 1990)

Por Fernanda Canofre

Paul Rotha, um documentarista britânico, disse certa vez que documentários não podem ser de maneira alguma uma reconstrução histórica e que aqueles que tiverem esta ambição já estão fadados ao fracasso. Para Rotha, o filme documental era um fato contemporâneo expresso através de associações humanas. Nos documentários de Werner Herzog, temos a teoria de Rotha colocada em prática. O diretor alemão sempre rejeitou a distinção técnica entre filmes de ficção e documentário, declarando inclusive que, o vocábulo “documentário” era apenas uma forma disfarçada de dizer feature film (filmes que, segundo o dicionário Oxford, trazem uma história, mas não são documentários). No universo de documentários de Herzog, a experiência humana vale mais do que os fatos, do que aquilo que entendemos por “real” ou “verdade”. Assim, para compreender a mensagem contida em cada frame de uma produção herzoguiana, temos de ir além daquilo que está contido no view finder da câmera. Mesmo que a história mostrada na tela seja compartilhada com os personagens do filme (quem de fato a viveu) e com outros espectadores, a experiência fílmica que cada indivíduo-espectador vive é sempre algo pessoal e intransferível, uma vez que só ganha significação através de sua psique.

Em Echoes from a sombre empire (1990), Herzog retoma a estrutura de outros trabalhos, usando um personagem-guia para conduzir o roteiro. Acompanhamos a trajetória de Michael Goldsmith, jornalista suíço e cidadão britânico, em sua busca para desvendar quem foi Jean-Bedel Bokassa, o homem responsável por um dos piores momentos de sua vida. Em um encontro com uma das esposas de Bokassa, o jornalista explica calmamente suas razões para estar ali, dizendo: “Eu tenho uma razão especial para estar interessado no Imperador. Ele quase me matou uma vez”. Em 1977, ano em que Bokassa resolveu criar para si mesmo uma cerimônia de coroação, Goldsmith era correspondente de uma agência de notícias na África do Sul. Enviado para cobrir o evento onde o presidente golpista assumiria o título de imperador, o jornalista partiu para Bangui, na época a capital da República da África Central. O texto de Goldsmith, falando sobre os exageros da cerimônia, acabou sendo interceptado pela polícia local quando era transmitido por telex para a agência. Bokassa, além de não ter gostado do tom de deboche utilizado pelo repórter, ainda concordou com a análise de seus soldados, para quem, os erros de datilografia eram na verdade uma mensagem secreta transmitida por um espião. Michael foi então levado a presença do Imperador Bokassa I, onde, sem tempo ou direito de explicar o engano, foi condenado a pena de morte. O filme de Herzog é a escolha de Michael de revisitar o local onde esteve preso e foi torturado, como uma forma de recuperar peças perdidas de sua memória. Echoes inicia com Herzog na frente da câmera lendo uma carta escrita pelo seu personagem, direcionada a ele. O diretor explica que naquele momento, Michael Goldsmith está desaparecido e a equipe não consegue nenhum contato com ele. Na carta, vem a explicação de que a razão do filme não é apaziguar uma consciência ferida por um regime totalitário ou servir de consolo para noites sem dormir, mas sim, um sonho que atormentou Michael duas vezes. Nele, caranguejos alaranjados saem do mar e começam a invadir a terra. Logo, Herzog e seu escritório desaparecem. As imagens dos caranguejos ocupam seu lugar. Aos poucos eles vão dominando paisagens em diversos planos. Porém, somos atingidos pela força deste domínio, que a princípio parecia apenas a representação de uma ação surreal, quando nos deparamos com um plano curto, mostrando trilhos de uma ferrovia tomados pelos animais. Ao fundo, um trem vem se aproximando e apitando como que lançando um apelo para que os bichos se afastem. Não parece funcionar. O trem, grande o bastante para esmagar os caranguejos invasores, parece impotente diante deles. A ideia que imediatamente nos vem a cabeça é: “Os caranguejos já foram longe demais”.

O sonho que assombrou Goldsmith parece a metáfora da ascensão de Jean-Bedel Bokassa. Filho de um camponês, Bokassa teve o pai assassinado quando ainda era criança. O alistamento voluntário no Exército francês, aos 18 anos, foi a forma encontrada por ele para superar a perda e trazer orgulho a família. Depois de vinte anos servindo sob a bandeira da França, em grandes conflitos como a Segunda Guerra Mundial, a Primeira Guerra da Indochina, entre outros, Bokassa retornou a sua terra natal. A ex-colônia francesa, já havia se tornado uma nação independente com o nome de República da África Central, e era então presidida pelo seu primo, David Dacko. Este havia convidado Bokassa para participar do projeto que deveria criar um Exército nacional para o país. Bokassa, porém, depois de algumas discordâncias com a política de Dacko e seu gabinete, preparou o golpe militar que o colocaria no poder pelos próximos treze anos. Seguindo os passos de Napoleão Bonaparte, seu grande ídolo, primeiro ele fazia parte de um governo de transição, que ganhou reconhecimento de grande parte da comunidade internacional. Bokassa foi recebido em Assembleias da Organização das Nações Unidas e em uma audiência com o Papa. Mas em 1976, para se consolidar no poder, Bokassa baixou um decreto transformando a república em Império. Um ano depois, em uma cerimônia que teria custado 20 milhões de dólares, ele se coroou Imperador com o título de Bokassa I. Nessa época, a comunidade internacional havia começado a ter problemas para definir onde terminava sua a excentricidade e onde começava o comportamento de um líder insano. Até a coroação, a França ainda mantinha contatos com sua ex-colônia, tendo inclusive ajudado na cerimônia, enviando um batalhão para reforçar a segurança e dezessete aeronaves para o desfile. Mas isso não durou muito tempo. Menos de dois anos depois, seria a própria França quem organizaria o golpe responsável por derrubar Bokassa. As denúncias de violações de direitos humanos que aconteciam sob seu governo, não deixaram que ele permanecesse no poder. Porém, por mais bizarros que a personalidade e o comportamento de Bokassa soem, quando um de seus advogados de defesa, cita no filme uma frase de Saint-Just, lembramos que os tiranos só existem porque a humanidade inteira o permite: “O poder absoluto corrompe absolutamente”. Ou seja, Bokassa e seu Império bizarro, só foram realidade porque o mundo civilizado o reconheceu e legitimou.  Mas não é na discussão política que Herzog está interessado. Partes dessa história são contadas no filme através de imagens de arquivo, depoimentos de pessoas que viveram o antes, durante e depois dos anos Bokassa, porém a maneira como ele chegou e como foi derrubado do poder não entram no roteiro. Herzog tentou entrevistar o ex-líder, que na época do filme se encontrava preso na República da África Central, mas não conseguiu. Assim, sobrou-lhe a alternativa de usar imagens de arquivo de entrevistas de Bokassa e dos momentos mais importantes de seu governo. O que acaba por ajudar a alimentar o caráter folclórico de seu personagem. Bokassa em vídeo, se defendendo através de uma fala exacerbadamente patriótica, é a personificação de um personagem de opereta, como o próprio Goldsmith o define. No seu mundo tudo parece falso, as peças não parecem pertencer ao cenário onde são forçosamente dispostas. O que torna o homem, que se dizia descendente de faraós, ainda mais intrigante, para nós e mesmo para aqueles que conviveram com ele e que parecem nunca ter conseguido compreendê-lo.

Sem a entrevista com Bokassa, o percurso de Michael para responder suas grandes questões sobre o ditador é preenchido com a presença de personagens que viveram e testemunharam as grandes histórias ligadas ao nome dele. Essas histórias, aliás, transformam Bokassa em uma figura ainda mais contraditória e bizarra. Em um momento do filme, por exemplo, acompanhamos o caso das duas Martines. Enquanto servia como soldado francês no Vietnã, Bokassa casou-se com uma vietnamita com quem teve uma filha. Tendo sido relocado, acabou tendo de deixar as duas para trás. Porém, assim que se tornou presidente da África Central, uma de suas primeiras ações foi entrar em contato com o Embaixador francês para que localizasse sua filha. Para agradar o novo presidente, importante aliado, a França apresentou rapidamente uma garota, dizendo ser a filha perdida que ele buscava. Pouco tempo depois, a mãe da verdadeira Martine decidiu aparecer e levar sua filha para junto do pai. Ela provou ser a verdadeira mulher com quem Bokassa se relacionou enquanto esteve no Vietnã, ao falar sobre o dedo quebrado que o ditador sempre tentou esconder com um anel. Bokassa reconheceu a filha verdadeira, mas não desamparou a falsa Martine. As duas casaram-se no mesmo dia, na mesma festa e receberam do pai o mesmo presente para evitar qualquer problema de ciúmes. A parte intrigante da história é que, o mesmo homem capaz de acolher quem tentou dar-lhe um golpe, acabou sendo o responsável pelas mortes dos maridos das duas filhas. O marido da falsa Martine, Capitão Oubrou, foi acusado de estar por trás de um golpe de Estado que pretendia derrubar Bokassa e restituir Dacko no poder. Quando o golpe foi escancarado, Oubrou foi preso, torturado e condenado à morte. Não satisfeito, Bokassa ainda teria ordenado a morte do filho recém-nascido de Oubrou, encarregando para isso o marido da outra Martine, Dédé Abodé. Assim que o crime foi descoberto, Abodé também foi condenado a morte. Se para seu país Bokassa foi um assassino cruel, capaz de práticas como arrancar orelhas de ladrões, torturá-los e expôr os cadáveres daqueles que acabavam morrendo, para seus filhos ele parece ter deixado boas memórias. Dos 54 filhos que o ditador reconheceu, conhecemos menos de dez no filme. Em um trecho, Herzog e Goldsmith conversam com as crianças que vivem no Chatêau da família, nos subúrbios de Paris. Elas contam o que sabem sobre as mães com quem não conviveram, riem dos boatos de que seriam canibais e parecem saber pouco sobre quem o pai fora publicamente. De uma destas entrevistas, aliás, vemos surgir um traço importante dos documentários “históricos” de Herzog. Uma das meninas começa a contar sobre sua mãe que a deixou com dois meses de vida. Diz que ela foi uma dançarina romena por quem o pai se apaixonou. Segundo ela, a mãe queria se tornar imperatriz ao lado de Bokassa, porém, como não era natural da África Central a lei não permitia. Assim, ela acabou partindo. O relato parece encerrar a história, que não é contestada pelo diretor, nem contraposta com o que diz a História oficial. Ele dá voz ao personagem, entregando-lhe o direito de criar a sua verdade dos fatos. Porém, mais adiante, quando já nos esquecemos da esposa romena, duas outras fontes acabam ressuscitando no filme uma das lendas mais famosas de Bokassa. Dacko e o advogado de defesa, Szpiner, contam que depois de levar a romena para viver em seu país, Bokassa a teria colocado viver em uma casa afastada, onde não ia muito frequentemente. Para se vingar por sua negligência e ganhar sua atenção, a dançarina teria seduzido todos os seguranças e dormido com todos eles na cama do ditador. Assim que ele descobriu mandou que prendessem e executassem todos aqueles que o traíram. Para a romena, teria sobrado apenas a deportação. Porém, tempos depois, descobriu-se que ela era na verdade uma agente da Securitate, polícia secreta romena, que foi trazida de volta para o país quando seu disfarce estava prestes a ser desvendado.

Mais forte que a história da romena, eram os boatos de canibalismo cometido dentro do palácio do governo. Goldsmith visita a cozinha do prédio em ruínas e pergunta para o homem que está servindo como seu guia se isso era verdade. Ele confirma. Dacko confirma. Fotos que servem para ilustrar estes trechos parecem confirmar. A existência de uma sala que funcionava como freezer confirma. Bokassa, em entrevista, nega. A questão da antropofagia aqui parece servir para acentuar as tintas de uma personalidade já assustadora pelas suas práticas de tortura. Mesmo no julgamento que condenou Bokassa pela segunda vez a pena de morte, a acusação de que ele preparava e comia carne humana com frequência, acabou virando um pequeno detalhe do júri e ficando quase despercebida perto dos crimes que o condenaram de fato. O evento responsável pela queda de Bokassa, por exemplo, onde 100 estudantes, entre crianças e adolescentes, foram mortos quando protestavam por serem obrigados a pagar uniformes caros que estampavam a foto do ditador, não é mencionado no filme. Mas testemunhas vieram ao tribunal relatar que o próprio imperador havia esmagado o crânio de dezenas de jovens com sua bengala no dia da manifestação. Werner Herzog disse certa vez que faltavam “imagens adequadas” na nossa civilização. O diretor ainda complementou dizendo que a civilização estava condenada ou que poderia ser extinta, como os dinossauros, se não desenvolvesse uma “linguagem adequada” para “imagens adequadas”. Em um mundo onde alguém como Bokassa é autorizado a assumir o papel de Estado e comandar uma nação, o que é adequado? Antes de comandar um governo dos horrores, ele lutou com o uniforme dos Aliados, aqueles homens que o próprio cinema nos ensinou serem os mocinhos, contra os nazistas. Mesmo quando se sentou em um trono todo de ouro, em formato de águia, quando montou um grande teatro tentando reconstruir os dias de glória de Napoleão I, quando estava matando pessoas para manter e legitimar seu poder, Bokassa ainda era uma figura reconhecida pela civilização. Por isso, os planos recorrentes nos filmes de Herzog de animais, talvez nunca tenham se encaixado melhor do que nos minutos finais de Echoes from a sombre empire. Ao visitar o que sobrou do zoológico particular do ditador, Michael Goldsmith para em frente a jaula de um chimpanzé. O macaco estende a mão. O jornalista não entende. O guia explica que ele está pedindo um cigarro. Michael, levemente desconfortável, tira um cigarro do bolso e o entrega para o guia. Este, depois de acendê-lo, alcança para o chimpanzé. Com a desenvoltura de um humano, veterano no vício, o macaco traga e solta a fumaça. Goldsmith diz não aguentar mais ver aquilo, pede para Herzog encerrar o filme e prometer que aquela será a última cena. O diretor cumpre a promessa. O documentário termina nos deixando ainda mais carentes das tais “imagens adequadas”, ainda em falta.

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