Valente (Mark Andrews, Brenda Chapman e Steve Purcell, 2012)

Por Filipe Chamy

A primeira coisa que parece digna de observação em Valente é como ele é muito mais um filme da Disney que da Pixar.

Dialogando com décadas de uma tradição (quase) irretocável, Valente a todo instante lembra os longas animados disneyanos: o cabelo da simpática protagonista Merida é vermelho e ondulante como o de Ariel, a pequena sereia; o rei expansivo e boêmio faz recordar os alegres monarcas de A bela adormecida; há certos elementos de ambientes e personagens que recriam Irmão urso etc.

É claro que a Pixar pertence à Disney. E mesmo quando não o era seus projetos eram feitos em parceria com a Disney, que possui um aparato de divulgação e distribuição bem mais poderoso. Mas é curioso que justo agora, que John Lasseter é o chefe da animação Disney, a Pixar tenha procurado se voltar para esse lado. Porque Valente parece prenunciar alguma tendência de mudança no modo Pixar de se fazer um filme, e não só por ter colocado pela primeira vez o foco das atenções em uma garota: Carros 2, o longa anterior da empresa, soava muito mais como um veículo (sem trocadilho) de promoção de bonequinhos, roupas e todo tipo de tralhas do que uma obra de expressão autoral, e nesse sentido Valente é que aparentemente demonstra com mais segurança o que vem preocupando e inspirando os artistas pixarianos.

Portanto, Merida já pode muito bem figurar como uma legítima princesa Disney. E é nítida também a evolução das jovens reinantes: da totalmente ingênua Branca de Neve à reprimida Rapunzel, todas elas haviam demonstrado uma evolução no retrato do agir feminino, deixando aos poucos a submissão imposta por seculares tradições e procurando elas mesmas redefinirem seus caminhos em suas vidas. Se Branca de Neve, Cinderela e Aurora (a bela adormecida) dependiam em seus destinos da conjunção entre a sorte mágica do acaso e a boa vontade e coragem de um príncipe encantado, Ariel, a rebelde, começou a se distanciar desse pedestal e contrariou os desígnios do rei seu pai; Belle, a decidida, modifica com seu caráter e inteligência toda uma situação de maldição e desesperança; Jasmine, a voluntariosa, reescreve as leis de uma sociedade arcaica e instaura o feminismo de igualdade de escolhas. Essas princesas deram a tônica para mudanças que refletem certos anseios sociais, étnicos e humanos “lato sensu”, com mais abrangência racial, menos estereótipos de gênero, maior ambição narrativa ao deixar de usar clichês de princesas literárias como muletas para a estrutura dos filmes seguintes.

Merida dá a sua contribuição e pela primeira vez vemos uma princesa Disney que não só discorda dos pais (no caso, a mãe) como ainda faz das suas para literalmente mudá-los. De Branca de Neve a ela, foi adicionado um caminhão de força, de decisão, de maturidade.

Valente tem bons coadjuvantes, boa cenografia, encenação, figurino, bons diálogos e direção, bons planos, boa música e boa concepção e roteiro. Mas se nele há algo de ótimo é a garota dos cabelos ruivos revoltos, a figura que quando os esconde sob os trajes de costume é uma menina e quando rasga o aperto da roupa e os liberta é mulher. É Merida, uma figura bastante crível e que afinal a encontramos em uma idealização, um sonho. É preciso aceitar que o cinema de animação pode apresentar gente muito real também.

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