Que horas ela volta? (Anna Muylaert, 2015)

Por Vlademir Lazo

Assistir Que Horas ela Volta? traz à tona a lembrança da Vera Cruz a rondar como um espectro o cinema brasileiro décadas depois de sua precoce extinção.  A Vera Cruz, na verdade, nunca deixou de existir, com os nossos filmes que se pretendem neo-realistas, mas conseguem ser pouco mais que um melodrama barato com pano de fundo social. Assim foi com a maioria dos que conciliaram sucesso popular e de crítica e êxito internacional que tivemos desde O Cangaceiro (que espelhava uma realidade relativamente recente à época, a do terror do banditismo do sertão envolto em lendas), passando por O Pagador de Promessas, Pixote, Central do Brasil, Cidade de Deus, O Som ao Redor até chegar ao filme de Anna Muylaert.

Um sucesso condenado a se repetir a cada dez ou vinte anos (e, pelo visto, com um intervalo cada vez menor), assimilando as modas estéticas de seu tempo e refletindo na tela as contradições sociais de um país, ganhando prêmios e colhendo elogios aqui e no exterior.  Filmes que não ajudaram na evolução de uma cinematografia, mas na sua estagnação; pois nenhum deles rendeu frutos na influência de obras relevantes feitas posteriormente (o movimento do Cinema Novo, por exemplo, seria muito mais uma reação a filmes como O Cangaceiro e O Pagador, ainda que parcialmente incorporado depois ao cinema oficialesco), tampouco a carreira de seus realizadores (com a exceção de Babenco, que mantém uma filmografia mais ou menos consistente). Pode-se dizer que ainda é cedo para se prever o legado de um O Som ao Redor e Que Horas Ela Volta?, mas não é um pecado, e sim um dever, pensar no que ficará de uma obra daqui a dez ou cinquenta anos.

Um dos desafios de Que Horas ela Volta? é o de convencer que Regina Casé pode estrelar um melodrama, acostumado que estamos a vê-la em comédias escrachadas e programas de auditório na TV. Encaixa-se, então, o seu tipo um tanto exótico, fora dos padrões de beleza, no papel da empregada doméstica, uma das obsessões temáticas do novo cinema brasileiro, que permite tornar o cinema um campo para debates sociológicos e empatia fácil. O que Muylaert se esmera em conseguir através de uma dramaturgia mal-ajambrada, especialmente por uma série de vinhetas no começo apresentando a personagem em meio à casa dos patrões, onde ela mora, de forma a provocar comiseração e constrangimento em torno de sua figura.

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O que deflagra uma arejada na narrativa é a entrada em cena da filha Jéssica (Camila Márdila), que de Pernambuco chega em São Paulo para prestar vestibular, e provoca um curto a desestabilizar um ambiente carregado por demais de estereótipos. Em que muito é sublinhado em excesso, explicitado desde cedo, de modo que a maioria dos espectadores pode adivinhar facilmente que é Jéssica, e não o filho do patrão, que vai passar no vestibular, e despertar o desejo tanto do filho quanto do homem mais velho da casa, e o ódio da esposa, simbolizado com muitas caras e bocas. O filme dada a sua previsibilidade faz com que estas revelações passem longe de serem spoilers.

Estivéssemos num Pasolini dos anos sessenta um elemento intruso como Jéssica deflagraria a destruição da família devorando um por um de seus membros. Não se trata de defender como o filme deveria ser feito ou não, porém o de mostrar o quanto Que Horas ela Volta? é conformista e com um olhar a partir da Casa Grande. O filho mimado terá a compensação da viagem para a Austrália, e o patrão ao ser rejeitado pela menina, na patética cena do pedido de casamento (que se levada a sério só o poderá com, mais do que cumplicidade, a condescendência do público), se safa da situação dizendo, com gaguejos, que só estava de brincadeira. O que é uma entre outras resoluções de roteiro simplistas demais, que inclui facilidades como o gesto final de libertação da protagonista-empregada, cuja atitude não se desenvolve paulatinamente desde um certo ponto da narrativa, e sem preparação nenhuma irrompe como catarse no desfecho. De resto, ideias ficam pela metade, precisando serem preenchidas na mente do espectador, não por uma ambiguidade ou mistério estimulados pelo filme, mas pela incompletude de seus alicerces.

O filme de Muylaert é a representação de uma nação conservadora, mas não há espírito crítico, apenas uma aceitação por os mais pobres romperem barreiras como a falta de inclusão na universidade (em O Som ao Redor era a inclusão pelo consumo, sintetizada pela compra dos modernos e grandes aparelhos de TV). Se não há secura existencial em sua escolha pelo melodrama, tampouco existe subversão na suposta crítica social pelo qual tem sido louvado, e que serviu para alimentar debates, pois nas assimilações de costume, concretizadas de tempos em tempos numa sociedade, nem sempre mudanças acontecem para impedir que as coisas continuem como sempre foram. Que Horas Ela Volta?, nos seus riscos calculados, funciona como um exercício para a consciência culpada do espectador frente ao país em que nos encontramos, enquanto é entretido num melodrama beirando o novelesco e supostamente bem-filmado. Se depender dos filmes, de Central do Brasil até Que Horas Ela Volta?, em termos cinematográficos o país não mudou muito.

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Estrada Perdida (David Lynch, 1997)

Por Vlademir Lazo

Se existe algo em comum entre os fãs e detratores do cineasta David Lynch é o de que a sua filmografia se divide entre antes e depois de Estrada Perdida. Talvez não tanto um divisor de águas em sua obra, mas um ponto de equilíbrio entre essas duas “fases”. Um ponto de chegada decorrente de tudo que havia feito até então, representando uma evidente depuração plástica e até conceitual do que ele vinha construindo desde os seus primeiros curtas, e também um novo ponto de partida como uma espécie de recomeço para o que ele poderia realizar dali em diante. É também possivelmente o seu filme mais bem-acabado — junto com Uma História Real —, com uma maturidade que atinge uma plenitude que apenas se esboçava em trabalhos pregressos, e que formam a síntese, não tanto das obras anteriores, mas sobretudo dos filmes seguintes, das questões narrativas e estéticas do seu cinema. E também sem uma certa irregularidade que os não-fãs poderiam apontar em seus dois mais recentes, Cidade dos Sonhos e Império dos Sonhos, que a despeito de poderem ser considerados belos filmes, apresentam em suas estruturas notas dissonantes e auto-indulgência por parte do realizador (especialmente o último).

Jean-Luc Godard costumava dizer que um filme deveria ter começo, meio e fim — mas não necessariamente nessa ordem. Não são muitas as obras a que a sentença acima se aplicaria tão perfeitamente quanto Estrada Perdida, que corre de maneira aparentemente linear, mas com passado e presente suspensos no tempo. Muitos poderiam apontar como confusa a sua história, em contrapartida ela também pode ser considerada muito simples, só que trabalhando relativamente fora de certa ordem cronológica em torno de elementos pulps corriqueiros em qualquer narrativa policial de literatura barata, que não por acaso serviram de base para o cinema americano formular o gênero noir.

Com alguma frequência somos apresentados a algum filme contemporâneo dito neo-noir, por repetir em sua trama características do gênero dentro de uma roupagem moderna. Estrada Perdida viaja mais longe com o procedimento, não tratando o gênero apenas como homenagem e reverência, ao subverter e levar a uma dimensão outra as regras básicas da escola clássica do noir (Femme Fatale, de Brian De Palma, à sua maneira, também faria algo semelhante). Temos no filme de Lynch os principais ingredientes que conhecemos do noir: uma atmosfera marcante e sombria, o predomínio de uma narrativa escura, um universo amoral, sensualismo, femmes fatales, longas estradas, homens enganados, investigação policial, identidades duplas, vilões caricaturalmente durões, etc.

O que Estrada Perdida recupera é o que há de absurdo dentro da própria essência dos noir, cujas características foram ao longo dos anos tão repetidas e assimiladas pelo cinema que acabaram se tornando críveis demais nos fazendo esquecer o quanto aqueles filmes eram fantasiosos e pouco realistas. O filme de Lynch nos devolve esse olhar e sensação construindo um filme-sonho como poderiam ser chamados muitos dos noirs, não no sentido de algum dos personagens estar sonhando, mas do filme em si como um grande sonho para o espectador que o assiste, e que precisa atar as pontas dele para formar o quebra-cabeça de um labirinto sem fim que se fecha e ao mesmo tempo se abre em várias direções (e gêneros) como esse Estrada Perdida.

O filme começa e termina na estrada vazia, em meio à espessa noite, e percorrida por um carro cujos faróis iluminam o pouco que nos é permitido ver naquela escuridão. Conhecemos Fred (Bill Pullman) e Renne (Patricia Arquette) casados e com o relacionamento em crise, com ele suspeitando de traições dela, e a situação se agravando com as fitas de vídeo que misteriosamente recebem. Voyeurismo, incertezas, mistérios, invasão de privacidade, a câmera intrusa: as fitas reproduzem imagens feitas dentro da própria casa deles, filmadas não se sabe por quem e sem pistas também de como houve os acessos à residência. As circunstâncias levam ao aparecimento da esposa morta; ele é preso e condenado, sofrendo uma metamorfose física e psicológica que restituirá em seu lugar Pete (Balthazar Getty), bem mais jovem, e que longe da prisão se envolverá com Alice (Patricia Arquette de novo, agora loira), noiva de um gângster sanguinolento.

O que seria uma premissa comum de qualquer thriller irrelevante vai além com David Lynch construindo clichês para depois desmontá-los e acrescentando signos no decorrer de sua narrativa. Espectador e personagens geralmente são apresentados a imagens/figuras que não são o que aparentam e precisam descobrir o que está por trás delas. Próximo de ambos os protagonistas masculinos a acompanhá-los em suas intrigas uma figura esquisita e de identidade não revelada (que parece deter a maioria dos segredos que pairam em torno do filme), com um rosto que lembra o da Morte em O Sétimo Selo, e que também remete muito à figura de Mefisto no genial Filme Demência, a versão livre de Carlos Reichenbach sobre Fausto, o homem que vende a alma ao diabo e rejuvenesce (seria Fausto de Goethe uma das inspirações de Lynch para o seu filme/personagem?). Outra das chaves do filme possivelmente seja Dick Laurent (Robert Loggia), que no começo é mencionado como morto e mais adiante surge como o mafioso que divide Alice com Pete, o que sugere distensões temporais que explicam em parte a narrativa intrincada, com o que é mostrado depois da troca de identidade tendo de fato se passado antes (com a mesma cena final se ligando a de abertura).

Mas que não fiquemos obcecados com lógica e resoluções, nem em decifrar ou interpretar o filme por completo. Lynch simplesmente elimina as sequências que só existiriam para explicar a história, as junções narrativas que nos levariam pela mão para não nos perder dos acontecimentos, tornando Estrada Perdida muito além de uma história convencional e clara, mas sim perturbadoramente elíptica e não menos envolvente, “cuja lógica própria é a de uma máquina produtora de imagens e de um espiral de tempos internos a estas mesmas imagens” (Thierry Jousse, Cahiers Du Cinèma).

É o cinema como uma experiência de fluxos rítmicos e sensoriais quase musical, mas sempre fortemente imagético, pontuado com um espetacular uso da trilha sonora, desde David Bowie no começo e no fim, passando por “This magic moment” (Lou Reed) na cena em que Alice surge para Pete, “Insensatez” (Tom Jobim), e os temas compostos por Trent Reznor (colaborador dos filmes mais recentes de David Fincher). Lynch como brilhante orquestrador de imagens trabalha num terreno que adere ao artifício, estímulos sensoriais, aos jogos de ilusionismo, a provocação, sedução, o disfarce, com uma sofisticação visual (como esquecer da cena de amor na areia do deserto, com a luz dos faróis do automóvel sobre Alice e Pete?) que mistura gêneros diversos: suspense, terror, romance, narrativa policial, etc. Os personagens de Estrada Perdida (e da filmografia de Lynch em geral) transitam num universo que só pode existir na tela de cinema.

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O Som ao Redor (Kleber Mendonça Filho, 2012)

Por Vlademir Lazo

Deve-se buscar ao se assistir qualquer filme novo uma postura não de querer descobrir uma obra-prima pela frente, mas de se preciso desmascarar uma que possam tentar nos vender. Digo por que os exageros de recepção, elogios sem medida, as vibes passageiras e opiniões sob influências às vezes inescapáveis pululam em tempos em que possuímos acesso a tantos comentários e diálogos desde um primeiro momento, muita coisa podendo levar a erros precipitados de julgamento, mesmo que carregados das melhores intenções, e a oferta de supostos grandes filmes discutíveis pedem por essa cautela e confronto, com um olhar desconfiado e sempre que possível mais severo (ainda que também passível de erro, é preciso dizer).

Se o filme sobreviver a esse necessário olhar severo, então há maiores e grandes chances dele realmente ser muito bom. O Som ao Redor não só surpreende mesmo quem possa se dirigir a ele com grandes receios ou altas expectativas, como sobretudo nos desarma diante de sua espontaneidade. Ainda assim, o filme de Kleber Mendonça Filho parece justamente pedir por esse confronto com o nosso olhar como componente indispensável da experiência de lidar com ele, de pensar o país numa perspectiva histórica e do presente.

Como muitos devem saber (e sem entregar muito a quem ainda não viu), o filme se passa num quarteirão de prédios altos e condomínios fechados numa subdivisão de um bairro da praia de Boa Viagem em Recife, tendo como proprietário desses edifícios um fazendeiro decadente e em crise, Francisco, velho e déspota esclarecido, que mora e passeia por ali, e comanda aquele espaço urbano como um pequeno feudo. Elemento soberano típico das relações de poder de casa grande & senzala, no fundo controlando a todos como se fosse o coronel em seu latifúndio, com o filme expondo uma convivência forçada por grades e muros, janelas e sacadas. Cinema é arquitetura, parecia dizer Fritz Lang logo nos seus primeiros filmes na Alemanha, e a (má-) arquitetura nociva e um tanto opressora de O Som ao Redor entrega que pode já não haver perspectivas e horizontes num mundo em contínuo processo de verticalização, demarcando uma distância considerável num espaço de terra proporcionalmente menor que o passado histórico, entre ricos e pobres (ou os novos ricos), patrões e empregados, além de toda a questão de um conflito latente pronto a aflorar, a partir de quando um grupo de seguranças particulares vem oferecer os seus serviços.

O Som ao Redor ensaia tocar questões como a relação homem-máquina, a dependência com os eletrodomésticos e outros apetrechos e parafernálias que supostamente existem para preencher nosso tempo e nos oferecer todo conforto, muitas dessas questões já exploradas em curtas do diretor, como Eletrodoméstica, que trazia uma versão mais elaborada da cena da masturbação feminina vista nesse seu primeiro longa de ficção. Ou histórias a dois que mal começam, e terminam sem maiores explicações, antes de atingir uma plenitude na relação – como a de um dos netos do patriarca, o corretor imobiliário João, e a garota por quem pode estar ou não apaixonado (algumas das melhores sequências são a do casal passeando entre as ruínas do que restou de um velho cinema assombrado por antigas lembranças e filmes, ou um dos pesadelos em que o banho de cachoeira se converte numa infinidade de sangue jorrando). Ou ainda a vigilância severa com os recursos tecnológicos disponíveis a julgar a eficiência dos subordinados (como o porteiro prestes a se aposentar cujo desleixo é centro de uma reunião de uma maioria com visão fascista no condomínio).

Há o trabalho com gêneros, no excelente uso do espaço e do som que nos entorpece os sentidos, o que é privilegiado e instigado pela montagem no todo, por vezes dando a idéia de um filme de horror (muito se tem falado em Carpenter, com grande razão, além de ser uma das influências confessas de Kleber Mendonça Filho), e não é difícil senti-lo também com algo próximo da estrutura de um western (gênero marcado por um estágio de civilização ainda em desenvolvimento), com a tensão se acumulando em personagens que no fundo são arquétipos de um passado rural nem tão distante (latifundiários, pistoleiros, os súditos e a gente comum cheia de medo e reservas), e que invoca uma violência pairando como ameaça constante prestes a tomar conta. O que levou a comparações deslocadas na imprensa com os filmes de cangaço de Glauber Rocha. O drama social de Kleber Mendonça está mesmo numa chave mais próxima do já citado John Carpenter − há uma escola que aparece no filme cujo nome “homenageia” o cineasta americano −, cujas obras por vezes sugerem um faroeste urbano relido como filme de horror em direção a um colapso iminente, o que em alguns momentos equivale ao trabalho do diretor pernambucano em O Som ao Redor, numa perspectiva, e espaço-tempo, tipicamente regional.

Outras influências, estrangeiras e brasileiras, também podem ser apontadas. O próprio Kleber é o primeiro a mencionar Trabalhar Cansa, de Juliana Rojas e Marco Dutra, um outro drama social com toques de horror e suspense, e que tinha o mérito de buscar, ir ao encontro de uma dramaturgia (algo que outros cineastas jovens brasileiros parecem fugir ou não lidar muito bem), ainda que não permanecendo depois tão forte na memória, e que o fantástico pareça (ou ressoe) meio bobo, além de provocar mais estranhamento do que envolvimento. Dentre outras aproximações recentes com o gênero horror feitas no país, há também o interessante Histórias Que Só Existem Quando Lembradas, de Julia Murat, que trabalha num registro entre a fábula e o documental, também em torno de uma comunidade especifica, e com um grande senso de observação contando uma história de retratos e fantasmas. O Som ao Redor, mais que um exemplo isolado que pode aparentar a quem não acompanha a safra recente do cinema nacional, representa um avanço no trabalho com essa dramaturgia e com o que dela se pode extrair.

Os críticos, de maneira geral, preferiram lembrar Cronicamente Inviável, pelo que possui de crônica social, porém o seu cinismo e ironia corrosiva não poderiam estar mais distantes do filme de Kleber Mendonça Filho. Na realidade, O Som ao Redor é o complemento, vindo do próprio Recife, de Cabra Marcado Para Morrer (quase como se Kleber sentisse que alguém precisaria fazer uma continuação das histórias daquela gente que compõem a obra-prima de Eduardo Coutinho), que contava as lutas entre senhores de terra e os mais desfavorecidos em Pernambucano num espaço de vinte anos entre as décadas de sessenta e oitenta, antes e ao final do regime militar brasileiro. Pois o filme de Kleber Mendonça dá conta das transformações que aconteceriam nos vinte anos posteriores, com o seu palco se transpondo em definitivo do campo para a cidade, entre o patriarcado e o encastelamento, como a tratar da transição do velho para o novo, inclusive com o confronto final aludindo aos conflitos de Cabra Marcado Para Morrer, e o desfecho se ligando ao começo, com fotografias tiradas exatamente de Cabra Marcado. Um ajuste de contas de séculos de atraso e exploração, dessa vez numa microssociedade urbana e sempre em mudanças (muitas delas relativas às transformações que ocorrem com o Tempo para que as coisas continuem como sempre foram).

Mas não há catarse possível para O Som ao Redor: se não existe lugar para conciliação, a elipse no final dissipa o que poderia ser o efeito catártico do clímax, que ainda que pudesse ser um pouco mais prolongado, prefere se encerrar com um estopim do que um derrame de sangue, visto que no todo essa é uma história cuja conclusão está longe de vermos chegar (a ultima elipse corta para uma cena que remete à dos meninos se divertindo sadicamente com o fim dos escorpiões na abertura de Meu Ódio Será Tua Herança). Na revisão, suas virtudes se impõem firmemente, porém os defeitos, que por vezes arranham o brilho da obra, se reforçam um pouco mais – um certo prosaísmo nas situações, algumas pontas soltas, uma simbologia fácil no seu gosto pela alegoria, como a chegada de aparelhos de TV de tela grande como objetos de consumo, ou o menino negro cuja figura recorrente como um vulto misterioso só impressiona em uma ou duas sequências. Conseqüências naturais em um primeiro longa de ficção, deste que sem dúvida já é a mais notável estréia no formato no Brasil em muito tempo, podendo nem sempre conservar um rigor estético e narrativo, mas o que tem de melhor dá para o gasto. E com sobras.

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Um Lobisomem na Amazônia (Ivan Cardoso, 2005)

Por Vlademir Lazo

Um Lobisomem na Amazônia talvez fosse mais bem considerado hoje em dia caso tivesse sido realizado trinta, quarenta anos atrás. Um hipotético lançamento nos anos 70 ou 80 poderia fazer com que despertasse um interesse maior nas platéias menos preconceituosas da época, contando hoje então com o mesmo status de clássico que ao longo do tempo os filmes mais antigos de Ivan Cardoso mereceram angariar. Que não haja lugar a Um Lobisomem na Amazônia na atual conjuntura do cinema brasileiro (antes tão variado e vasto em suas tendências, hoje circunscrito em poucas divisas, sejam estas comerciais ou autorais), diz mais sobre este cinema agora produzido no país do que supostamente ser esta uma obra datada. Ledo engano: embora não seja uma obra-prima como O Gerente, de Paulo Cesar Saraceni, e Cleópatra, de Julio Bressane, o de Ivan Cardoso é destes filmes vitais que, com acertos e falhas, é um cinema para gerações futuras (ao invés de preocupado com a bilheteria da semana, as resenhas dos grandes jornais, e com Oscar ou festivais), como costumam ser os bons e grandes filmes para os cinéfilos de qualquer época.

Isso porque para um realizador do cinema brasileiro como Ivan Cardoso, a expressão mais importante será sempre “cinema”, e só depois “brasileiro”. Mesmo que não seja genial como O Segredo da Múmia (ainda sua obra-prima), Um Lobisomem na Amazônia, como os demais trabalhos do diretor, é movido sobretudo por uma enorme vontade de cinema. Tomando como ponto de partida o romance A Amazônia Misteriosa (do médico e escritor Gastão Cruls), ficção baseada em A Ilha do Dr. Moreau, de H. G. Wells e publicada em 1925, o roteiro do lendário Rubens Francisco Luchetti (colaborador habitual de José Mojica Marins e do próprio Ivan Cardoso) atualiza a história com um grupo de jovens (Danielle Winits, Karina Bacchi, Pedro Neschling, Bruno de Luca, Djin Sganzerla) num formato slasher movies anos 80 que se embrenha pela Floresta Amazônica (recriada em cenários artificiais bastante convincentes), tendo a ajuda de um misterioso guia turístico (Evandro Mesquita). Paralelamente, um cientista maluco (Paul Naschy, de clássicos europeus de terror dos anos 60 e 70) faz experiências genéticas com cobaias humanas, auxiliado por seu servo animalesco (Guará Rodrigues) e por uma raça de Amazonas, num local atacado por um lobisomem, o que atrai a investigação de um delegado (Tony Tornado) e um biólogo (Nuno Leal Maia), que formam uma dupla bastante desajeitada.

Florestas costumam ser por excelência um espaço privilegiado para filmes de horror. Um Lobisomem na Amazônia funciona porque os cenários são preenchidos com imaginação e dados concretos, e pela inteligente disposição dos elementos e atores no quadro. Não se trata de um lugar nenhum em que os atores surgem, conversam e as mortes acontecem, como num buraco qualquer no qual muitos filmes de terror naufragam. Ivan Cardoso é um cineasta autoral, mas também um artesão, e esta é uma de suas principais qualidades ao fazer com que todo o talento de seu artesanato tome a tela. Como em Encarnação do Demônio, de José Mojica Marins (também desprezado nas bilheterias, mas com maior visibilidade e culto por causa de um nome forte como Zé do Caixão), há aqui uma quantidade considerável de sangue, cabeças cortadas, torturas, violências em geral, porem é tudo artesanal demais. Não confundir com amador, pois o filme contou com uma produção caprichada e altamente profissional; o estilo de Cardoso que é artesanal, e ai que existe um charme nos efeitos visuais que passem longe da computação gráfica, que não sejam tão perfeitos. A beleza do cinema é saber que a sua magia provém de um truque, da materialização de uma fantasia, o que completa a experiência do filme, ao invés de dominá-lo e esmagá-lo. Uma condição que faz com que outros valores se imponham, em oposição a uma tendência reinante no cinema de horror atual que parece vedar todas as lacunas, nos entregando algo tão hiper-realista onde não há lugar para o encanto e a fantasia. E que valores são estes os de Um Lobisomem na Amazônia?

A primeira meia hora pode sugerir que Ivan Cardoso não conseguiria adequar seu estilo, sua visão ao modelo de produção atual, com suas qualidades de outrora se tornando ainda mais toscas e infames. Mas o filme vai se impondo muito bem. O elenco jovem composto de algumas figuras globais oferece interpretações fracas de acordo com o estereótipo de vitimas prestes a serem trucidadas pelo assassino (no caso, o lobisomem). Por outro lado, ao contrário de novelas ou outros filmes em que está caricato e afetado, Evandro Mesquita surpreendentemente se mostra no tom certo como o herói, com quem os outros personagem mantém uma relação ambígua por não saberem se nele podem confiar. Se Evandro Mesquita (esse ator que comprova que pode ser legal quando bem controlado em cena) não estivesse tão bem, o filme seria arruinado junto com a performance dele.

Um Lobisomem na Amazônia se sustenta muito na tensão entre o clima dos slashers movies aos quais inevitavelmente remete em nossa memória cinéfila, e sua relação com um cinema artesanal (mencionado acima) mais clássico de horror, como os da Universal dos anos 30 ou os de Roger Corman, William Castle e da Hammer nas décadas seguintes. Além de uma presença significativa de elementos do folclore brasileiro, como o das guerreiras amazonas, o lobisomem, etc. E o humor. Muitos podem estranhar este humor no qual existe uma diferença quase ontológica em relação a muitas comédias brasileiras recentes que parecem ter certa nulidade como fim. Um Lobisomem na Amazônia é uma comédia de terror na qual há o cuidado de desenvolver uma linha de raciocínio de acordo com as convenções clássicas dos gêneros aqui trabalhados. Esse humor do filme de Ivan Cardoso não é o mesmo que se encontra nos besteiróis ou os que remetem aos sitcoms, e sim ao que obedece a uma tradição cômica digna das antigas chanchadas brasileiras, no tom, nas situações, nos trejeitos de alguns dos atores veteranos (especialmente Nuno Leal Maia), todos ótimos em cena. A ressonância da chanchada na obra de cineastas como Ivan Cardoso, Rogério Sganzerla e Julio Bressane (todos saídos do dito cinema marginal − Ivan começou como assistente destes dois últimos) merecia ser mais amplamente reconhecida.

Há alguns momentos irregulares, certo desvario que nem sempre lhe faz muito bem, ou piadas dispensáveis como a muito gasta referência à cena do chuveiro de Psicose na abertura. Mas o que Um Lobisomem na Amazônia, dentre outras coisas, possui de melhor, é o sabor de uma velha e boa aventura conhecida. Como a dos seriados antigos que tanto alimentaram a juventude de Ivan Cardoso ou de muitos de nós, as fitas de horror, os filmes B, as matinês. Perto do final, a personagem de Danielle Winits (que não compromete) é sequestrada para substituir a Rainha das Amazonas, sendo lhe repassado um cetro de prata que serve para restituir o equilíbrio da floresta. É quando percebemos estar diante do filme brasileiro mais próximo já feito, guardada às devidas proporções, de Os Aventureiros do Bairro Proibido, com o herói interpretado por Evandro Mesquita como um equivalente ao de Kurt Russell naquele filme, o sujeito solitário saído não se sabe de onde sem nada a ver com a história, tentando resgatar a mocinha de uma intriga milenar e fantasiosa. Filme bacana.

 

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O mundo em preto-e-branco e desesperado de Philippe Garrel

Por Vlademir Lazo

Existem os filmes coloridos, menos frequentes (como o mais recente, em cartaz nos cinemas brasileiros, Um Verão Escaldante), mais prosaicos (ou de uma poesia dura e escondida), e os preto-e-branco, que parecem mais livres, com a seu modo uma ternura que nos atinge em cheio, e os olhares de compaixão dos personagens um com o outro, a câmera flutuante, que perambula com esses personagens. Os raros filmes coloridos de Garrel podem nos deixar com uma impressão errônea de cálculo, de uma câmera que se movimenta a esmo pelos cenários, e aos atores personagens que parecem existir para justificar uma grife criada por em torno deles pelo cinema contemporâneo.

De qualquer forma, embora se deva fazer justiça a muitos dos filmes coloridos de Philippe Garrel, não restam dúvidas de que os seus trabalhos em preto-e-branco é que ficaram marcados num imaginário cinematográfico contemporâneo. Não que seja uma tendência que constitua regra, visto que um de seus títulos mais recentes, Sauvage innocence (2001), deixa muito a desejar, mas foi com Amantes Constantes e A Fronteira da Alvorada que grande parte de um público (não só o brasileiro, vale dizer) foi apresentado ao diretor, e com eles pôde fazer a ponte e redescobrir a filmografia do francês que remonta aos seus primeiros títulos no final dos anos sessenta. Justamente na época em que Amantes Constantes se volta.

A primeira meia hora de Amantes Constantes é um filme de guerra. Mostra o maio de 1968 como acredito que nunca tenha sido visto na tela: uma verdadeira batalha campal entre policiais e estudantes nas barricadas de Paris, uma luta inglória e exaustiva entre pedras e cassetetes, carros destruídos e corpos em estado de tensão e desespero, como se a câmera estivesse registrando aquele momento na mesma época em que aconteceu, e não numa encenação quatro décadas depois.

Um registro aparentemente documental, que aos poucos adquire dimensões épicas que só a melhor ficção costuma proporcionar, mas sem recorrer aos clichês ou as necessidades de glamourizar e tornar bonito aquele evento histórico. É como um misto de poesia e farsa, sonho e desmistificação. Depois desses trinta minutos iniciais, surge a ressaca dos jovens insurgentes, que caminham rumo à exaustão de maneira mais lenta e demorada do que nas barricadas, num trajeto que em longo prazo se revela bem mais destruidor dos sonhos de impossíveis revoluções, até o momento que se passa a se desacreditar delas, por mais que se tenha buscado a generosidade e a compaixão pelo que esmaga os seus semelhantes.

Philippe Garrel construiu esse retrato da dissolução dos ideais de mudança coletiva com uma aproximação completa e radical pelas experiências dos personagens, num processo de total imersão durante as três horas de duração da película, no qual os personagens contemplam o vazio, fogem das obrigações civis, escrevem ou declamam poemas e perdem-se em amores que a vida há de desfazer. Todo mundo afirma que é a antítese de Os Sonhadores (o que não deixa de ser verdade, visto que o filme de Garrel parece uma resposta direta ao de Bernardo Bertolucci). Porém, ele é bem mais que isso, e reduzi-lo a tanto seria não dar conta de toda a sua dimensão. O mais apropriado talvez seja pensá-lo em conjunto com obras como A Chinesa, de Jean-Luc Godard, e A Mãe e a Puta, de Jean Eustache, para então com os três filmes compreender o ocaso da década revolucionária dos anos sessenta.

Já o longa seguinte de Garrel, A Fronteira da Alvorada, flerta com o fantástico, mas se impõe pelos toques de melodrama e tragédia. Ainda assim, os amor fou de um fotógrafo dão origem a um quase filme de terror, embora não possa ser tido como tal. Tampouco seria justo reduzi-lo a tanto, porém há alguns fortes elementos de filme de horror que perpassam por boa parte da projeção, não somente pelas referências mais óbvias mas também pelas mais insuspeitas, como as cenasem que Louis Garrel é assombrado pelo seu inconsciente ou a magnífica fotografia em P&B que remete aos mais antigos filmes de fantasmas, e que concede ao filme uma aura de mistério que emana de suas ásperas imagens. Mas também os confinamentos a que os personagens vão se entregando, primeiro em espaços físicos, mais adiante em níveis mentais.

Estes são alguns dos temas de A Fronteira da Alvorada, em que Louis Garrel é o fotógrafo encarregado de uma sessão de fotos com uma atriz tempestuosa, que mais tarde revelará problemas mentais e tendências suicidas – mas com a qual ele acaba se apaixonando e se envolvendo. Há uma guinada inesperada na segunda metade, que nos mostra que trocar um amor por outro é sempre complicado, como tem que experimentar na própria pele o protagonista, e essa circunstância o faz entrar num processo intrincado e amargo que se desloca da realidade para a imaginação.

É sobre os contrastes entre a vida e a imagem da vida, aprisionada e estática no quadro de uma fotografia, e exatamente por isso idealizada e ambígua, nos gestos e movimentos capturados pela câmera do profissional. O desejo nasce da vontade de apropriar-se de uma imagem, mas cujo controle nos escapa no mundo real. É um filme com um quê de Vertigo, por mais que suas superfícies sejam tão distintas, e que suas (muitas) diferenças sejam bem mais acentuadas. Cabe destacar a presença marcante (e, sobretudo, inesquecível) de Laura Smet, a musa cuja lembrança o protagonista não apagaria tão cedo da memória. Com A Fronteira da Alvorada e o imediatamente anterior Amantes Constantes, Philippe Garrel nos entrega dois romances condenados que forma um díptico impressionante no cinema moderno.

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Werner Herzog e o Novo Cinema Alemão

Por Vlademir Lazo

Hoje em dia já não faz tanto sentido, mas se quisermos compreender as origens do surgimento de Werner Herzog, devemos localizá-lo dentro do chamado Novo Cinema alemão que apareceu nos anos 60 e tomaria força na década seguinte. Quem averiguar muito rapidamente a historiografia oficial do cinema na Alemanha perceberá que entre o celebrado movimento Expressionista nos anos 20 (e de uma produção muito forte durante o período nazista antes da eclosão da Segunda Guerra) e o tal Novo Cinema existe um hiato de quase trinta anos marcado pela estagnação quase que total.

O ressurgimento com grande força da cinematografia no país pegou carona com os cinemas novos de todo o mundo na época, dos quais sofreria profunda influência, como um equivalente ao que a Nova Hollywood seria para a América quase nesse mesmo período. Em sua Introdução a uma Verdadeira História do Cinema, Jean-Luc Godard comenta que em relação a sétima arte as coisas se dão quando um grupo se reúne e fazem as coisas acontecerem, citando sua própria experiência dentre os membros da Nouvelle Vague, além dos americanos da Nova Hollywood, os integrantes do Novo Cinema alemão… Godard completa que depois de um tempo esses grupos costumam se separar e as coisas de certa forma desandam em torno de suas filmografias. Em parte ele pode ter razão.

No cinema alemão da época, apesar do Manifesto de Oberhausen assinado por 26 jovens cineastas em 1962 (dentre os quais bem poucos seguiriam uma carreira bastante notabilizada, um deles sendo Alexander Kluge), mais que uma tentativa de formação de um movimento, ocorreu que um determinado número de cineastas foi surgindo aqui e ali aproveitando certas facilidades da época (baixos custos de produção, trabalho com câmera na mão e equipe reduzida, filmagens fora dos estúdios, etc − algo similar a uma certa revolução do cinema digital que ainda se espera que dê frutos nesse começo de século XXI), e que depois de um tempo se encontraram, e juntos, formaram uma cinematografia de respeito. Nomes como o próprio Kluge, Edgar Reitz, Wim Wenders, Volker Schlöndorff, Hans-Jürgen Syberberg, Werner Schroeter e Rainer Werner Fassbinder, entre outros. Auxiliados também pelo surgimento de escolas superiores de cinema e salas de exibição, além de publicações mais séries sobre cinema e a consolidação do cinema como uma arte importante na consciência de um público interessado por cultura, fatores todos que fomentaram à produção cinematográfica do país.

Dentre as influências todas pelo mundo absorvidas por esses jovens diretores, houve quem chamasse o Novo Cinema alemão de descendente direto do Cinema Novo brasileiro (pensar aqui na maioria dos filmes brasileiros dos anos 60 quase como um todo, sem as cisões que não são muito conhecidas lá fora). De fato havia um certo interesse dos alemães pelos nossos filmes naquele momento. Fassbinder deu o título de um de seus primeiros filmes (Rio das Mortes) em homenagem a Antonio das Mortes (o título internacional de O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, de Glauber Rocha), e o titulo original de O Enigma de Kaspar Hauser é tirado de uma frase de Macunaíma (Cada um por si e Deus contra todos). Em seu livro de memórias, o recém falecido Paulo Cesar Saraceni em relação à curiosidade dos alemães em conhecer o cinema do Brasil, escreveu: “Mandaram equipes e críticos, estudaram tudo, não só os filmes mas como se bebia e comia, como se jogava futebol, tudo. Filmavam tudo. Onde quer que você fosse, havia um Peter Schuman te filmando, te entrevistando”.

Fruto de uma visão cosmopolita de mundo, do empenho de saciar uma curiosidade e interesse por todos os lugares, o que se encontra ao longo de toda a filmografia de um diretor como Werner Herzog. Nascido com o nome de Werner H. Stipetic, filho de pais croatas, seu pai abandonou a família logo após voltar de um campo de prisioneiros de guerra depois da Segunda Guerra. Estudou história e literatura em sua Munique natal, e aos quinze anos escreveu seu primeiro roteiro. Mas pensava que a única maneira de aprender cinema era de fato fazendo, então aos quinze anos roubou uma câmera 35 mm da Munich Film School, e no começo dos anos 60 chegou a trabalhar como metalúrgico numa fábrica de aço como forma de obter um auxilio para realizar seu primeiro filme, o curta Herakles (1962), seguidos ao longo da década por A Defesa Sem Precedentes Do Forte Deutschkretz (1967) e A Última Palavra (1968), além de um outro jamais lançado ou exibido publicamente, Spiel im Sand (1964), cujas descrições que nos chegaram conta de quatro crianças tripudiando com um galo numa caixa de papelão, que parece prenunciar um pouco de Também Os Anões Começaram Pequenos (1970), o mais bizarro de seus filmes. O primeiro longa, entretanto, seria Sinais de Vida (1968), sobre o drama de três soldados alemães perdidos na Grécia, e que embora cresça muito com a tensão no final, é bem pouco expressivo visto atualmente.

Na mesma época, começa a rodar seus primeiros documentários, a principio como encomenda para amigos, mas não demorou a se tornar uma vertente importante em sua carreira, vertente essa que jamais abandonaria e que inclusive se imbrica em seus trabalhos de ficção. Esses rumos seriam tomados a partir de Terra Do Silêncio E Da Escuridão (1971) e do excepcional Fata Morgana (1971), feito simultaneamente a Também Os Anões Começaram Pequenos (ambos rodados na África), e em que importantes questões são levadas num cinema de fluxos, de amplos momentos sensoriais e poéticos, como baladas progressivas que arrastam as imagens para um terreno especulativo que se completa e toma forma em nossa mente ao som dos temas de Leonard Cohen e Mozart. O melhor do cinema de toda a filmografia de Herzog já pode ser entrevisto em Fata Morgana, que de acordo com o próprio diretor, é um filme de ficção cientifica, com suas imagens como que filmadas por alienígenas que tivessem vindos a Terra. O reconhecimento internacional viria com Aguirre, a Cólera dos Deuses (1972), filmado na América do Sul, um dos mais populares de seus filmes, e em que encontra o que se tornou o seu ator-emblemático Klaus Kinski. Juntos, rodaram ainda Woyzec (1978), Nosferatu, o Vampiro da Noite (1979), Fitzcarraldo (1982) e Cobra Verde (1987).

À esta altura Herzog já havia assumido uma posição de respeito no cinema mundial. Basta observar certas semelhanças de Aguirre com um filme como Apocalypse Now (a cena do barco subindo o rio, o militar enlouquecido se rebelando e se assumindo como um Deus perante um exército particular sob seu comando entre selvagens numa floresta, etc.). A carreira do diretor alemão prossegue entre seus documentários e filmes de ficção com maior repercussão, como os que fez com Bruno S. (O Enigma de Kaspar Hauser e Strozsec) e o elogiado Coração de Cristal (1976). Em Onde Sonham as Formigas Verdes (1983) faz uma tomada de defesa dos aborígines da Austrália contra as companhias de mineração. Não é um grande filme (nem mesmo para a maioria dos fãs de Herzog), mas algumas imagens com os aborígenes impressionam. A passagem dos anos 70 para os 80, entretanto, seria difícil para todo o cinema autoral, e na Alemanha não foi diferente: Fassbinder nos deixou precocemente, Wenders atingiu seu apogeu para logo depois decair sem nunca mais se reerguer, enquanto que outros dos melhores diretores alemães continuariam suas carreiras subterrâneas (Kluge, Syberberg,  Schroeter). O fracasso em todos os sentidos de Cobra Verde fez com que Herzog se decidisse a não filmar mais com Kinski e largar os filmes de ficção para se dedicar exclusivamente aos documentários, o que se prolongou por exatos vinte anos.

Lições da Escuridão (1992) é um exemplo que ilustra muito bem a veia do Herzog documentarista, com seu olhar contemplativo em torno de uma sinfonia poética de imagens e sons, sem cair no didatismo ou redundâncias explicativas. O que nem sempre acontece em todos os seus documentários: um dos mais recentes, A Caverna dos Sonhos Esquecidos (2011), sua primeira incursão na tecnologia do 3-D, é excelente quando se lança diretamente nas imagens da caverna em questão, porém sofre com um excesso de depoimentos e entrevistas que o aproxima de algum History Channel qualquer. Mas a reputação de Herzog como documentarista há muito está firmada e garantida, tendo sido ainda mais valorizada com títulos de grande visibilidade como Meu Melhor Inimigo (1999) − em que refaz suas experiências de trabalho e de vida com o amigo-inimigo Klaus Kinski − O Diamante Branco (2004) e O Homem Urso (2005). A volta aos trabalhos de ficção se deu com sua ida para Hollywood, onde fez fitas de guerra (O Sobrevivente) e policial urbano (Vicio Frenético) que dividiram a crítica entre a desconfiança e a franca rejeição ou o entusiasmo amplo e absoluto. Sem esquecer o um pouco subestimado Meu Filho Olha O Que Fizeste! (2009), que começa como um filme de cerco para progressivamente ir se tornando menos um filme sobre uma situação policial do que o progressivo desencadeamento de um processo de loucura a partir da paranóia de um protagonista que passa a misturar realidade com ficção. Nesse ano de 2012 em que completa setenta anos de idade (em 5 de setembro), Herzog prossegue como um dos mais prolíficos entre os veteranos em atividade: recentemente tem sido exibido pelo mundo o seu documentário Ao Abismo (2011), que gira em torno de conversas com um condenado a morte(e com aquele afetados por seus crimes), e em março último foi lançado nos Estados Unidos um outro, On Death Row (2012), que com suas mais de três horas de duração lança um olhar para dentro de um presídio de segurança máxima no Texas entrevistando os que estão esperando no corredor da morte. Um percurso natural a que chega uma filmografia de cinco décadas como a de Herzog sempre preocupada, no fundo, com o destino dos homens, sejam eles condenados ou sobreviventes.

Filmografia

Hércules [Herakles; Alemanha, 1962]. 12 min.

Game in the Sand [Spiel im Sand; Alemanha, 1964]. 14 min.

A Defesa sem Precedentes do Forte Deutschkreuz [Die beispiellose Verteidigung der Festung Deutschkreuz; Alemanha, 1967]. 14 min.

Últimas Palavras [Letzte Worte; Alemanha, 1968]. 13 min.

Sinais de Vida [Lebenszeichen; Alemanha, 1968]. 91 min.

The Flying Doctors of East Africa [Die fliegenden Ärzte von Ostafrika; Alemanha, 1969]. 45 min. TV.

Precauções contra Fanáticos [Massnahmen gegen Fanatiker; Alemanha, 1969]. 12 min.

Também os Anões Começaram Pequenos [Auch Zwerge haben klein angefangen; Alemanha, 1970]. 96 min.

Handicapped Future [Behinderte Zukunft?; Alemanha, 1971]. 62 min. TV.

Fata Morgana [idem; Alemanha, 1971]. 79 min.

Terra do Silêncio e da Escuridão [Land des Schweigens und der Dunkelheit; Alemanha, 1971]. 85 min.

Aguirre, a Cólera dos Deuses [Aguirre, der Zorn Gottes; Alemanha, 1972]. 93 min.

O Grande Êxtase do Escultor Steiner [Die große Ekstase des Bildschnitzers Steiner; Alemanha, 1974]. 45 min.

O Enigma de Kaspar Hauser [Jeder für sich und Gott gegen alle; Alemanha, 1974]. 110 min.

Ninguém Quer Brincar Comigo [Mit mir will keiner spielen; Alemanha, 1976]. 14 min.

Coração de Cristal [Herz aus Glas; Alemanha, 1976]. 94 min.

Stroszek [idem; Alemanha, 1977]. 115 min.

La Soufrière [La Soufrière — Warten auf eine unausweichliche Katastrophe; Alemanha, 1977]. 30 min.

How Much Wood Would a Woodchuck Chuck [Beobachtungen zu einer neuen Sprache; Alemanha, 1978]. 44 min. TV.

Nosferatu: O Vampiro da Noite [Nosferatu: Phantom der Nacht; Alemanha/França, 1979]. 107 min.

Woyzeck [idem; Alemanha, 1979]. 74 min.

Fitzcarraldo [idem; Alemanha/Peru, 1982]. 158 min.

O Sermão de Huie [Huie’s Predigt; Alemanha, 1983]. 43 min. TV.

God’s Angry Man [Glaube und Währung — Dr. Gene Scott, Fernsehprediger; Alemanha, 1983]. 44 min. TV.

Onde Sonham as Formigas Verdes [Wo die grünen Ameisen träumen; Alemanha/Austrália, 1984]. 100 min.

Ballad of the Little Soldier [Ballade vom kleinen Soldaten; Alemanha, 1984]. 46 min. TV.

The Dark Glow of the Mountains [Gasherbrum — Der leuchtende Berg; Alemanha, 1985]. 45 min. TV.

Portrait Werner Herzog [idem; Alemanha, 1986]. 28 min.

Cobra Verde [idem; Alemanha/Gana, 1987]. 111 min.

Les gauloises [idem; França, 1988]. 13 min. TV [episódio de Les Français vus par].

Giovanna D’Arco [idem; Itália/Reino Unido/Portugal/Finlândia, 1989]. 127 min. TV.

Wodaabe: Herdsmen of the Sun [Wodaabe — Die Hirten der Sonne. Nomaden am Südrand der Sahara; França/Alemanha, 1989]. 43 min. TV.

Ecos de um Império Sombrio [Echos aus einem düsteren Reich; França/Alemanha, 1990]. 91 min.

Jag Mandir [Jag Mandir: Das exzentrische Privattheater des Maharadscha von Udaipur; Áustria/Alemanha, 1991]. 82 min. TV.

No Coração da Montanha [Cerro Torre: Schrei aus Stein; Alemanha/França/Canadá/Itália/Argentina, 1991]. 105 min.

Lições das Trevas [Lektionen in Finsternis; França/Reino Unido/Alemanha, 1992]. 55 min.

Sinos do Abismo: Fé e Superstição na Rússia [Glocken aus der Tiefe — Glaube und Aberglaube in Rußland; Alemanha/EUA, 1993]. 60 min.

Death for Five Voices [Tod für fünf Stimmen; Alemanha, 1995]. 59 min. TV.

The Transformation of the World into Music [Die Verwandlung der Welt in Musik: Bayreuth vor der Premiere; Alemanha, 1996]. 90 min. TV.

Little Dieter Needs to Fly [idem; Alemanha/Reino Unido/França, 1998]. 80 min.

Christ and Demons in New Spain [Gott and die Beladenen; Alemanha, 1999]. 45 min. TV.

Meu Melhor Inimigo [Mein liebster Feind — Klaus Kinski; Alemanha/Reino Unido/Finlândia/EUA, 1999]. 95 min.

Wings of Hope [Julianes Sturz in den Dschungel; Alemanha/Reino Unido, 2000]. 65 min. TV.

Pilgrimage [idem; Reino Unido/Alemanha, 2001]. 18 min.

Invencível [Invincible; Reino Unido/Alemanha/Irlanda/EUA, 2001]. 133 min.

Wheel of Time [idem; Alemanha/Áustria/Itália, 2003]. 81 min.

O Diamante Branco [The White Diamond; Alemanha/Japão/Reino Unido, 2004]. 88 min.

O Homem Urso [Grizzly Man; EUA, 2005]. 103 min.

Além do Azul Selvagem [The Wild Blue Yonder; Alemanha/França/Áustria/Reino Unido, 2005]. 80 min.

O Sobrevivente [Rescue Dawn; EUA, 2006]. 126 min.

Encontros no Fim do Mundo [Encounters at the End of the World; EUA, 2007]. 99 min.

Vício Frenético [The Bad Lieutenant: Port of Call — New Orleans; EUA, 2009]. 122 min.

La bohème [idem; Reino Unido, 2009]. 4 min.

Meu Filho, Olha o Que Fizeste! [My Son, My Son, What Have Ye Done; EUA/Alemanha, 2009]. 91 min.

A Caverna dos Sonhos Esquecidos [Cave of Forgotten Dreams; Canadá/EUA/França/Alemanha/Reino Unido, 2010]. 90 min.

Ode to the Dawn of Man [idem; EUA, 2011]. 39 min.

Ao Abismo [Into the Abyss; EUA/Reino Unido/Alemanha, 2011]. 107 min.

On Death Row [idem; EUA/Reino Unido/Áustria, 2012]. 188 min.

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Meu Melhor Inimigo (Werner Herzog, 1999)

Por Vlademir Lazo

Mais que uma cinebiografia, o relato de um caso de amor e ódio entre Werner Herzog e Klaus Kinski, diretor e intérprete. Criador e criatura. Muitas parceiras foram estabelecidas no cinema, mas nenhuma tão turbulenta quanto à desses dois. Meu Melhor Inimigo vai na contracorrente de filmes sobre artistas em que a tendência é elogiá-los e prestar as maiores lembranças à figura em questão. Herzog, entretanto, com seu documentário não pretende enterrar a memória de Kinski, mas reverenciá-lo da maneira que ele merece, num filme-homenagem sem uma postura hipócrita ou enganadora, mas relembrando o louco que o ator fora em vida. E isso só um amigo de verdade é capaz de fazer.

Costuma-se dizer que é preciso saber escolher seus inimigos. Pois então Herzog o soube muito bem. A própria vida de Kinski já parece parte de um filme de Herzog. Na abertura, vemos o ator numa apresentação em um palco como um Jesus do mal ofendendo uma platéia (o que repetiu com frequência durante um ano inteiro). O diretor, por sua vez, prefere se concentrar nos episódios relacionados a eles os dois, voltando-se para o futuro para recuar no passado, visitando ele próprio a moderna casa que servia de pensão em que moraram Herzog, ainda adolescente, e Kinski, antes da fama. Diante dos donos do local, Herzog desfia as lembranças do seu amigo-inimigo naquele período em especifico, os acessos de raiva (quando, por exemplo, trancou-se num banheiro por 48 horas despedaçando tudo), a megalomania, etc. Em dado momento, os proprietários, curiosos, conduzem algumas perguntas ao diretor, já definitivamente personagem e narrador do documentário.

Depois Herzog retorna às locações de três dos cinco filmes que fez com Kinski num espaço de quinze anos. As discussões tempestuosas em meio às tensões na natureza hostil das selvas sul-americanas durante as filmagens de Aguirre, a Cólera dos Deuses (1972) e Fitzcarraldo (1982) ocupam a maior parte da narrativa, especialmente o conhecido episódio em que Kinski ameaçou abandonar as filmagens em pleno andamento, voltando atrás na decisão quando Herzog lhe respondeu que, se fosse embora, o mataria com um tiro de espingarda quando ele estivesse cruzando a curva do rio na lancha que o levaria. Era sabido que Kinski desistira de vários projetos na metade das produções (arruinando muitas turnês teatrais, inclusive), e Herzog garante: “E eu teria mesmo atirado”.

Os entreveros de Kinski não se restringem aos travados com o cineasta. O ator vociferava contra membros da equipe técnica, fazia escândalos quando irrompiam problemas nos quais ele não era o centro das atenções, e se indispunha com os índios da América, que se ofereceram a Herzog para matá-lo. Só não o fizeram porque o cineasta advertiu-os de que precisava do ator para terminar o filme. Ao reencontrar o nativo que serviu como guia da equipe de Aguirre (que Herzog não via há mais de duas décadas), e que fora um dos figurantes na produção, o nativo já um senhor de idade recorda de quando Kinski durante uma filmagem o golpeou com grande força na cabeça com a espada que empunhava, não o ferindo mortalmente por causa do capacete usado pelos personagens, mas deixando uma cicatriz para sempre visível que no documentário o pobre homem compartilha à visão do espectador.

Meu Melhor Inimigo é tanto sobre Kinski quanto sobre o próprio Herzog. É possível apreender um bocado do Herzog-cineasta no documentário. Ele relembra que, durante as filmagens de Aguirre, Kinski insistira para que filmassem algumas cenas aproveitando no plano toda a grandiosidade das paisagens peruanas como decoração, que nem num espetáculo hollywoodiano. Como um cartão-postal, completa Herzog, que preferia os travellings circulares e planos-sequências em volta dos personagens, do rio e objetos em cena. Herzog também se detém sobre a técnica de Kinski, e no documentário agradece ao ator pelo magnífico final de Aguirre.

Há também os momentos de descontração, em que Kinski encontra-se calmo e afável, sem a violência agressiva quase folclorizada no decorrer de tantos anos. É possível vê-lo num festival de cinema junto com Herzog, quando ambos riem juntos, e o ator declara que se davam bem e trabalhavam juntos por que eram loucos. Quando entrevistada, Eva Mattes (sua parceira em Woyzeck) o relembra como capaz de grandes cortesias, o que é reiterado por Claudia Cardinale, que esteve presente em Fitzcarraldo. Pena ser tão pouco mencionado o remake de Murnau Nosferatu: O Vampiro da Noite (talvez a obra-prima de ficção do diretor), que surge em cena no documentário somente através de alguns de seus fragmentos. Perto do final, uma rápida descrição em torno das filmagens de Cobra Verde, um relativo fracasso que praticamente encerrou a carreira do ator e fez com que Herzog interrompesse os seus trabalhos de ficção. O cineasta conta que naquele momento já não sentia mais vontade de trabalhar com Kinski, que morreria quatro anos depois. Herzog prefere mesmo é recordar do velho amigo-inimigo por momentos como o da borboleta brincando ao seu redor, um dos tantos captados com talento e sensibilidade em Meu Melhor Inimigo. Não poderia haver título mais apropriado a esse ótimo documentário.

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Woyzeck (Werner Herzog, 1979)

Por Vlademir Lazo

Durante muito tempo, Woyzeck foi um dos títulos de maior prestígio dentre os dirigidos por Werner Herzog, ao menos no Brasil, onde era um dos poucos do diretor alemão disponíveis em home vídeo no país nos anos 80/90. Mas também por ser um dos cinco estrelados pelo que se tornaria o ator-símbolo da carreira do cineasta na época, um de nossos malucos preferidos no cinema, Klaus Kinski.

Não sendo uma de suas obras mais inventivas, Woyzeck ao menos se encaixava dentro do espaço do chamado cinema de arte, com todo o peso que apresenta do começo ao fim. Pesado não como sinônimo de desagradável ou chocante, nem de muito forte, e sim no sentido de que termina sufocado pelos seus próprios contornos. Um pouco como uma continuidade estética e temática de O Enigma de Kaspar Hauser (que talvez não por coincidência também não seja dos melhores trabalhos do seu realizador), em torno do deslocamento de um individuo animalizado e tornado selvagem por não se adaptar a um meio social.

O filme é uma transposição ao pé-da-letra da famosa peça de George Buchner, muitas vezes encenada, em torno de um simplório fuzileiro ridicularizado e atacado por todos os lados na sociedade em que vive. Por mais clássica que seja a obra original, e toda força e potência que pudesse ter num palco, a adaptação excessivamente literal de Herzog nem sempre acrescenta muito ao texto.

O filme se escora demais na atuação afetada de Kinski, que normalmente funcionava nos papéis de loucos amedrontadores de outros títulos de Herzog, mas que como um pobre-diabo vítima de uma série de humilhações (e traições), equiparado pelos demais personagens como a um cão ou outro animal qualquer, só serve para os que têm fetiche pela sua presença em cena, repleta de caras e bocas em Woyzeck, para muito além da capacidade do filme se sustentar por si próprio.

Os maiores trunfos acabam sendo a fotografia (prejudicada pelas cópias de qualidade duvidosa em circulação) e a direção de arte ─ ambas precisas e especificas sem a necessidade de parecerem suntuosas. O que é pouco em se tratando de um cineasta com a reputação do tamanho da de Herzog. Mas deve-se dizer alguns elogios ao trabalho de Eva Mattes (premiada em Cannes), como a esposa que deixa Woyzeck (Kinski) atormentado por não saber se a mulher é ou não infiel. Ela é a sutileza em cena que se contrapõe ao histrionismo de Kinski. Desse contraste o filme inteiro parece uma longa preparação para o seu grand finale, um dos momentos mais furiosos e impressionantes na filmografia do diretor.

No geral, fica a impressão de que os méritos que restam são do texto de Buchner, e de alguns aspectos técnicos ou interpretações, não do filme em conjunto, como se um espírito livre como Herzog se sentisse de mãos atadas sem saber muito que fazer além de adaptar com o devido respeito que a obra original merece. Não espanta que como consequência Woyzeck tenha somente 74 minutos, bem abaixo da média de um longa-metragem. Herzog não tinha mesmo como ir muito alem deles.

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Stroszek (Werner Herzog, 1977)

Por Vlademir Lazo

Como nos filmes com Klaus Kinski, os que Herzog quase na mesma época fez em parceria com Bruno S também assumem à imagem e semelhança de seu ator principal, como uma fusão entre intérprete e personagem em cada uma das obras em questão. No lugar do irascível e doidão intérprete de Aguirre e Nosferatu, os trabalhos com Bruno S se contaminam com a calma loucura muito prestes a estourar, interiorizada quase todo o tempo, mais como um desajuste social do que como opção (como recorrente em Kinski). Bruno fora um achado na escolha de representar o personagem-título de O Enigma de Kaspar Hauser: dotado de leve deficiência mental, tendo passado grande parte de infância e adolescência em reformatórios, ou apanhando da mãe em casa, depois de conhecê-lo em um documentário sobre músicos de rua Herzog quis fazer um prolongamento a Kasper Hauser dedicando outro filme de ficção a ele, e transformando Bruno S. em Bruno Stroszek, criando um fio narrativo muito tênue em que se desenvolve este personagem e outros dois que lhe acompanharão em um e outro lado do mundo.

São eles a prostituta Eva (Eva Mattes) e Scheitz (Clemens Scheitz), um velho também esquisito, seu vizinho. Stroszek os encontra logo após sair da cadeia. Passa seu tempo tocando acordeon pelas ruas, e sua ingenuidade e distante noção de mundo o deixam ser enganado por quem quer que seja. O trio parte para os Estados Unidos em busca do sonho americano, o que ao chegarem lá se mostra como uma realidade gracial e inatingível. Não é crítica a uma suposta sociedade norte-americana, é mais uma volubilidade dos sonhos, presentes em nossa mente se vistos de uma perspectiva relativamente distante, mas que se desfazem como brumas ao vento perdendo sua espessura quando muito próximos.

Se há critica em Stroszek, ela é a da realidade do homem afogado em um universo com o homem sucumbindo numa mesma matemática de números e capital. O roteiro foi escrito em quatro dias, o que mais que uma prova da genialidade de Herzog, indica na verdade que para muitos dos grandes diretores um filme vai se fazendo mesmo enquanto ele é filmado, com o script servindo como linhas gerais para o que se está sendo feito (o que não serve para os que submetem um filme acima de tudo ao trabalho de roteiro). Portanto, quem esperar historinha em Stroszek vai quebrar a cara. O filme é muito lento, se desenvolvendo em situações em torno dos três personagens, entre a esperança e a desesperança, a alienação e o sonho. As paisagens gélidas também dão o tom de todo o filme.

Não é dos filmes mais empolgantes de Herzog, porém se revela dos melhores com sua sequência final. Não somente pelo momento em si, mas pelo que ele ilumina (e completa) tudo o que veio antes, no que o filme tem de circular em sua estrutura, de um movimento constantemente girando ao redor de si mesmo sem sair do lugar. É quando Stroszek é tomado de grande emoção. Herzog considera esta a melhor cena que ele já filmou, dizendo se tratar de uma metáfora (o que é bem óbvio), mas sem exatamente saber do quê, o que por sua vez só expande o sentido que ela pode ter sem encerrá-la num único significado. O Joy Division citaria essa cena em diversas faixas que compõem o álbum póstumo “Still”, lançado em 1981 (aliás, impossível não mencionar que é o famoso filme que Ian Curtis reviu no dia em que se suicidou, inclusive às vésperas da primeira turnê da banda nos Estados Unidos, o que tem muito a dizer com a situação retratada no filme de Herzog). Se faz pensar melhor no filme como um todo, por outro lado não saberia dizer se nos leva a decidir tão convictamente revê-lo inteiro para sua melhor compreensão (e apreciação). Ai vai depender do interesse de cada um.

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Também os Anões Começaram Pequenos (Werner Herzog, 1970)

Por Vlademir Lazo

O mundo sob o ponto de vista dos anões. Em seu segundo longa de ficção, Werner Herzog reduz seu universo a um reformatório constituído somente por pigmeus, todos com comportamento semelhantes à delinquentes, retardados ou desajustados sociais. Num ambiente com ares de colônia penal isolada, em resposta a um simples pedido negado pelo pedagogo da instituição, o grupo de internos esboça uma fuga. Enquanto um deles é pego pelo diretor-responsável, os demais iniciam uma rebelião, tomando conta do local e confinando o diretor (o próprio pedagogo) num canto do seu gabinete.

A partir de então Também os Anões Começaram Pequenos se converte na maior coleção de bizarrices e estripulias na filmografia de Herzog, num processo orgíaco de vandalismo e irresponsabilidade, um ciclo de violência contra animais ou objetos da instituição (ou de uns contra os outros), instaurando um mundo sem regras ou ordem, entre o grotesco e a crueldade, o choque e o ridículo.

Vemos os anões rebeldes numa procissão em que carregam um macaco crucificado por eles próprios. Organizam rinhas de galos para testemunharem os animais se digladiando até a morte. E degolam galinhas e as jogam pelo ar, ou arremessam-nas através dos vidros das janelas. Uma sequência se repete ao longo do filme: a caminhonete girando perpetuamente em círculos, sem que ninguém esteja em seu volante, como que a representar um mundo sem direção e controle que anda ao redor apenas de si próprio, sem recuar ou evoluir além de seus limites.

O filme inteiro se esmera em sequências de destruição, nas quais a ação descontrolada do elenco de anões causou o atropelamento real de um deles, o mesmo que se incendiaria numa das cenas com fogo, sendo salvo pelo próprio Herzog que se atirou em cima dele. Conta-se inclusive que Herzog prometeu aos anões que pularia num campo de cactos se eles conseguissem fazer o filme. Promessa cumprida pelo cineasta.

As coisas não param por ai: alguns anões cegos que mal conseguem se defender são sacaneados e vilipendiados pelos demais. Cortam as linhas telefônicas, apedrejam por todos os lados. Fazem guerra de comida e flores são regadas com gasolina e incendiadas. E escolhem entre eles próprios os dois mais frágeis e pequenos e forçam-nos a um casamento e noite de núpcias à vista de todos, quando o noivo é ridicularizado, pois muito velho, pequeno e débil não consegue subir para a cama. Tenta escalar, e subir em pilha de revistas masculinas. Até que terminam por folhear as revistas pornôs.

A câmera de Herzog também registra e incorpora ao filme momentos que não constavam no roteiro, mas ocorreram de imprevisto durante as filmagens e o cineasta não pôde deixá-los de fora: o canibalismo das galinhas, que devoram e carregam ratos em seus bicos, e perseguem uma outra de sua espécie (já sem uma das patas) até a morte. Ou os filhotinhos de porcos ainda mamando na mãe que morrera, com os anões ao redor.

As acusações de blasfêmia e de animais explorados fizeram com que Também os Anões Começaram Pequenos fosse banido em alguns paises e pouco exibido na época do seu lançamento. Rodado numa das ilhas Canária (no mesmo local onde Herzog filmaria no mesmo período alguns documentários, entre os quais Fata Morgana), numa paisagem árida que parece afastada do mundo (o que é reforçado pela textura da fotografia em preto-e-branco), faz pensar num encontro de um Zero em Comportamento (1933) trocando a poesia do filme anárquico de Jean Vigo pelas aberrações de Freaks (1932), de Tod Browning.

Embora não seja genial como o de Browning, o filme de Herzog vai além ao apresentar todos os seus personagens como diminutos, feios, esquisitos e aberrantes, alguns quase com a aparência de deformados. O universo é somente deles, e não há o contraponto para impedi-los de se destruírem a si próprios. O alemão com que vociferam suas falas, e as risadas que lançam, os tornam mais monstruosos, ao mesmo tempo em que acentua o que possuem de engraçados.

Não deve haver filme de Werner Herzog que provoque mais gargalhada (ainda que sempre com uma carga de sobressalto) do que essa comédia de humor negro do começo de sua carreira, sem que ele se reduza somente a uma piada em cima de um ponto de partida bastante bizarro. Revê-lo, entretanto, faz com que ele não resulte num impacto semelhante ao da descoberta. Sua loucura toda provoca um afastamento, ficando aquela coisa incessante que só desperta interesse de longe. Mas o espanto jamais cessa defronte de suas imagens. No desfecho, justamente o que deveria ser o mais lúcido de todos os personagens joga a pá de cal e comete as loucuras finais que coroam Também os Anões Começaram Pequenos como o trabalho mais inclassificável de Werner Herzog.

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Breves apontamentos sobre alguns filmes em cartaz: L’Apollonide, Sleeping Beauty e Slovenian Girl

Acompanhar o circuito de estréias de nossos cinemas nos permite empreender uma relação entre alguns filmes que nos últimos cinco, seis meses foram lançados nas telas brasileiras tendo o tema da prostituição como eixo principal. Ainda que sejam filmes distintos, nem sempre coincidentes nos tons e personagens, ou na maneira de olhar/filmar o espaço, certos pontos em comum podem ser encontrados nos seus desejos de utilizarem-se das sagas bastante particulares de suas personagens femininas para refletir a maneira como o cinema enxerga valores (ou a falta de) no sexo e nas relações entre homens e mulheres quando pautadas pelos encontros amorosos (se é que podem ser chamados assim) quando estes são decorrentes do trabalho e obrigação.

Isso vale para L’Apollonide – Os Amores da Casa de Tolerância  − o melhor dos filmes em questão, diga-se −, Beleza Adormecida e Slovenian Girl, todos filmes relativamente comportados, em que os homens não raro são vistos como doentes ou pérfidos, e as prostitutas frustradas, com um clima pesado se impondo em cada um deles pela recorrência dos momentos mais sórdidos (um pouco menos em Beleza Adormecida, filme mais amorfo, e consequentemente mais inofensivo). Eles giram numa busca e consolidação de um desconforto muito grande pensados como um fim, não como um meio, e com um desconforto existindo de fora pra dentro, não ao contrário, como ocorre em obras de críticos implacáveis das relações sociais como as de um Claude Chabrol. Pensemos aqui, por exemplo, na empregada doméstica interpretada por Sandrine Bonnaire em Mulheres Diabólicas, encarada quase como um bicho perto de seus patrões, mas que vai se impondo como personagem tridimensional e com vontade própria, o que intensifica a plenitude de sua presença, sem que isso signifique escapar da tragédia, que afinal ocorre porque ela assim o quis e decidiu, ao invés de uma protagonista como a de Slovenian Girl que só se move unicamente presa dos fios que seu diretor-titereiro engendra.

Curioso também pensar como o sexo é tratado nessas produções mais recentes citadas acima. São filmes assexuados que por mais que exponham peles e suas mulheres ao natural, tratam de reduzirem-nas a seios e bundas como pedaços de carnes expostos como mercadorias, como se não houvesse possibilidade de sensualismo em ambientes em torno do meretrício (somente um louco se excitaria com as cenas de nudez ou de sexo em L’Apollonide ou no Slovenian Girl, especialmente). Nisso se reconhece um moralismo na escolha de pintar certos ambientes e contextos como degradantes ou doentes. Os filmes de Mizoguchi sobre a prostituição tampouco eram defesas ou apologia desse meio, e se suas personagens pertencessem a ele certamente não era porque o quisessem, porém o cineasta jamais recusou tratá-las com dignidade, em seus filmes não a sentimos como seres inferiores por estarem numa escala mais baixa do quadro social, em nenhum momento é forçado um sentimento de pena, nojo ou desprezo diante delas (não é por nada que eles resultam em alguns dos mais belos filmes feministas já feitos). Enquanto o tal Slovenian Girl está mais para um filhote do cinema do dogma dinamarquês no verniz com que modela suas imagens para torná-lo respeitável e legitimar o vazio com que lida em relação a sua suposta crueza e brutalidade do mundo. Não há descanso ou respiro no filme, e o trabalho da atriz (Nina Ivanisin) que faz a personagem-título é unicamente o de sustentar a mesma expressão trágica e coitada o tempo inteiro. No final das contas o cinema é que sai perdendo.

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J. Edgar (Clint Eastwood, 2011)

Um dos prazeres de acompanhar J. Edgar decorre da habitual elegância com que Clint Eastwood dirige e conduz os seus filmes. Dizer isso não é mais que chover no molhado. Há um bom tempo que ninguém no cinema americano filma tão bem quanto ele. O que sobra em seu novo trabalho é uma dramaturgia e estrutura narrativas um tanto perdidas e que custam a engrenar. Quem prestar atenção em sua filmografia vai reconhecer que o diretor nunca foi afeito a histórias cheias de idas e vindas no tempo, que transcorram por décadas. Ele sempre se sai bem melhor lidando com um drama restrito a um tempo e contexto específicos.

Pode ser quem alguns reclamem do filme ser muito longo nos seus 136 minutos de duração. Ao que parece, ele na verdade sofre por ser curto demais, com material suficiente para render sete ou oito filmes sobre passagens diferentes da vida do mitológico J. Edgar Hoover, mas como se nos chegasse às mãos cheio de cortes, como uma versão condensada de minissérie de TV (não em termos estéticos, mas de roteiro mesmo). J. Edgar poderia ser bem melhor com quinze horas de metragem, com tempo necessário para desenvolver os fragmentos mostrados da biografia de Hoover. Seria o Berlin Alexanderplatz de Clint Eastwood.

Ainda assim deve-se considerar um filme bem ou mal por o que ele resulta, não pelo que poderia ter sido. J. Edgar é um irregular muito bom filme de Eastwood. A opção do cineasta em passar ao largo da história pública americana na qual Hoover esteve presente por cerca de 50 anos faz com que ele pareça não saber como agir por um determinado momento (especialmente em seu primeiro ato), mas finalmente se ilumina quando revela a verdadeira natureza do seu trabalho: a decrepitude do personagem em seu ocaso. J. Edgar vai evoluindo assim intercalando os últimos anos do protagonista no período 1960/70 com sua juventude nos anos 1920/30.

O desafio é fazer emergir da estampa de Leonardo DiCaprio uma personalidade. Por um bom tempo enxergamos ali o ator, não o personagem. Como Angelina Jolie em A Troca, o intérprete está bem controlado, distante dos cacoetes que se encontram em suas atuações nos filmes de Scorsese, mas não é exatamente um ponto alto de J. Edgar, até que a sua maquiagem o destaque deixando-o mais à vontade em seu papel, calvo e obeso como um elemento natural, nunca forçado ou se ressentindo como um artifício na tela.

Tivesse optado por um viés mais policial, J. Edgar poderia quem sabe ser uma obra-prima (como Inimigos Público, de Michael Mann). Não era a intenção de Eastwood, que vem preferindo encontrar o humano não na ação ou nos tiros, mas circunscrito no drama. Focando-se num personagem que nunca se revelou por completo, que destruiu arquivos pessoais para que saísse vitorioso em vida e carregasse consigo o mistério de sua figura pública, deixando para a posteridade o que ele tratou de moldar em torno de si como um ícone, resultado da construção de uma imagem: a do chefão do FBI perseguidor de assaltantes de bancos ou comunistas e espiões, mas que escondia conflitos edipianos como a sua dependência em relação à própria mãe, ou sua homossexualidade enrustida, abordada com notável sutileza sem que o filme se preocupe em escondê-la ou enfatizá-la exageradamente. O que rende um belo momento fassbinderiano, no qual Hoover se traveste com roupas de mulher, por ocasião da morte de sua mãe. Não é de hoje que o cinema de Clint Eastwood parece habitado por monstros (no caso, o próprio Hoover) e fantasmas (aqui a figura materna, cuja presença ao longo do filme assombra e ao mesmo tempo dialoga com o protagonista).

Não tinha como o filme não ser, que nem o seu personagem, outra coisa se não uma esfinge que não se permite conhecer por inteiro. Quem espera uma cinebiografia que se pretenda completa (ou correta) e responda quem é J. Edgar Hoover estará perdendo o seu verdadeiro foco, caindo numa falsa impressão de incompletude, de insuficiência. Ainda que custe um pouco a entrar nos trilhos, J. Edgar acerta em mostrar o jovem e o velho que há em dois momentos distintos no homem, com o filme indo e voltando no tempo em torno do personagem decrépito e do jovem impetuoso de outra época. Um ciclo que se fecha, mas que leva consigo seus segredos, nos deixando defronte de um enigma, como é, afinal, a vida de todo homem.

Filmes citados

Berlin Alexanderplatz [idem; Alemanha/Itália, 1980], de Rainer Werner Fassbinder. 894 min.

Inimigos Públicos [Public Enemies; EUA, 2009], de Michael Mann. 140 min.

J. Edgar [idem; EUA, 2011], de Clint Eastwood. 137 min.

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Crimes de Paixão (Ken Russell, 1984)

Cult-movie perdido da década de oitenta, Crimes de Paixão foi um dos filmes mais polêmicos (e censurados) produzidos em Hollywood naquele período. Ken Russell era um diretor de obras que prezavam pelos excessos, só que depois do seu auge na Inglaterra muito cedo veio um período de baixa em sua carreira, quando se contentava em fazer filmes malucos sem que fosse muito além dessa condição. Os filmes beiravam o nonsense, mas também o kitsch, e suas estruturas anárquicas mal disfarçavam o que elas tinham de mal-pensadas e desleixadas. Nesse sentido, a ida do diretor para o cinema americano nos anos oitenta representou um ganho, pois ainda que não tenha sido o suficiente para salvar a sua carreira (ou sequer realizar alguma obra memorável), o obrigou a aplicar o seu estilo adaptando-o a uma linha um pouco mais tradicional, com seus habituais delírios nos personagens e histórias (e nas imagens), porém dentro de uma narrativa mais fácil de acompanhar, contando uma história de maneira direta, privilegiando o trabalho dos atores, o desenrolar da trama e os diálogos.

Crimes de Paixão foi o melhor fruto de Russell em sua passagem na América, ainda que não seja um filme que convença algum detrator do diretor inglês. Uma versão hardcore de A Bela da Tarde com uma bela desenhista de modas (Kathleen Turner) que durante as noites se traveste como uma prostituta de nome China Blue, usando uma exótica peruca loira e saindo às ruas para caçar homens e trabalho. Dona de uma vida dupla, durante o dia é Joanna Crane, que leva uma rotina normal em seu emprego, e à noite se transformaem China Blue. Nessa jornada, conhece Bobby (John Laughlin), contratado pelo patrão de Joanna para segui-la e descobrir o que ela vem aparentando de estranho, e também um reverendo louco (Anthony Perkins) que quer convertê-la, com os três personagens formando um triângulo não amoroso, mas de relações, dos mais bizarros.

É uma história relativamente simples contada com alguns dos elementos inusitados típicos de Ken Russell, por vezes de modo bastante exagerado, bem nos seus moldes. Não deixa de ser um amargo retrato da insatisfação de pessoas que peregrinam pelo submundo noturno das grandes cidades. Os viciados, prostitutas, travestis, frequentadores de cinema pornôs ou cabines eróticas. A imundice e escória das ruas estão fortemente representadas na tela, como que numa viagem a uma boate suja dos anos oitenta, fazendo com que outros filmes que também carregam nas tintas nesse sentido pareçam pouco mais que um passeio no parque. Outro dos elementos deflagradores em Crimes de Paixão é o casamento como uma instituição falida, em torno de casais com relações sexualmente frustradas. É a lembrança de um matrimônio infeliz que levou Joanna a se transformarem China Blue, e as dificuldades com a esposa frígida que fazem com que Bobby se apaixone pela prostituta. Outros clientes de China Blue carregam consigo a impossibilidade de uma realização plena com suas esposas.

O filme conta com um trabalho de iluminação primoroso, e sua atmosfera é trágica e engraçada (o que é realçado pela trilha de Rick Wakeman), com Kathleen Turner num ótimo desempenho, atuando em cenas ousadas (ainda que mal apareça nua), muitas vezes beirando o escandaloso (como na sequência em que ela realiza a vontade de um policial que quer ser sodomizado com um cacetete), cenas que dificilmente outras atrizes famosas fariam (e Kathleen era uma das mais badaladas da época). Sua criação de uma prostituta de esquina é absolutamente inesquecível. Outro destaque é Anthony Perkins, que desde muito cedo em sua carreira, após o sucesso de Psicose, nunca se libertou dos tipos desequilibrados, ficando marcado pelos papéis de psicopata. Aqui ele está assustador e patético como o pregador fanático e moralista que frequenta clubes noturnos com shows de garotas nuas, carregando uma bolsa cheia de apetrechos eróticos (incluindo um vibrador). Ele se apaixona por China Blue, e em razão disso pretende destruí-la para salvá-la. Um dos momentos mais bizarros é quando o padre veste a peruca de China Blue e começa a gargalhar, citação direta que Russell parece fazer do próprio Psicose, com uma personagem (o reverendo) incorporando a outra (o da prostituta) para devorá-la de vez e fazer com que não exista a não ser dentro de si próprio.

Certas bobagens do cineasta ainda estão lá, como algumas brincadeiras infames de Bobby, o personagem de John Laughlin, com a esposa num churrasco com outro casal. A maioria das cenas de Laughlin em família destoa completamente do filme, tornando-o mais flácido, além de se tratar de um intérprete bem razoável. Por outro lado, as cenas familiares servem de contraste de todas as vezes que se adentra o universo noturno de China Blue, como numa versão às avessas de O Mágico de Oz. Sete anos depois, Russell faria um outro filme mais bem-comportado que também girava em torno de uma prostituta, Whore, no qual Theresa Russell (que não tem nenhum parentesco com o diretor) dirige-se diretamente ao público para traçar um retrato de sua profissão.

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De mestres do filme B para a tela pequena

“Eu notei, e tenho notado desde então,
como a
maioria das pessoas não se importam
com coisas
autênticas.
Elas preferem misturas e maquiagem”.

(Jean Renoir)

Num período de pouco mais de seis meses entre o final de 2010 e meados do ano que termina agora, tivemos a chegada no Brasil de três filmes de autores que já foram (relativamente) melhor recebidos por estas bandas. São eles: A Ilha dos Mortos (George A. Romero), The Hole 3D (Joe Dante) e Aterrorizada (John Carpenter), lançados não nos cinemas, mas vindos direto para DVD, ocupando uma fatia menos nobre no mercado (e provavelmente vistos mais por downloads na internet do que por vias comerciais). O que de certa forma não nos surpreende, pois se nos detivermos na lista de filmes que há anos povoam o nosso circuito exibidor, vamos nos deparar não somente com centenas de títulos insignificantes que figuram somente para cumprir a meta de um determinado número de estreias que se julga o suficiente para o circuito, como também, entre os lançamentos de maior repercussão, com produtos híbridos que misturam a linguagem cinematográfica com a publicitária, televisiva, dos videogames e videoclipes, etc. Ou com muita perfumaria, produtos de centenas de milhões de dólares maquiados com efeitos fáceis de superfície, repletos de decoração, de lugar comum, de ornamentos, e não com um trabalho sensível por parte do cineasta sobre o seu material, e menos ainda com mise en scène.

Nesse panorama, já não há mais lugar para Carpenter, Romero e Dante, alijados da preferência de um público amplo que certamente não desconfia que um plano do último filme de Romero (podemos pensar aqui na mulher cavalgando em disparada, ou a imagem final dos zumbis no horizonte) vale mais que carreiras inteiras de cineastas que prezam pelo “bom cinema”. Sexto filme de zumbis de Romero, A Ilha dos Mortos coloca a temática num outro contexto (o do campo nos limites de uma ilha de refugiados), com pitadas de romance gótico literário do século XIX misturados com elementos políticos e da tecnologia moderna, retomando o personagem de Alan Sprang, do anterior
Diário dos Mortos, como o líder de um pequeno grupo de soldados perdidos, enchendo seu filme de atores de TV canadenses que ninguém conhece e filmando em scope com as novas câmeras digitais disponíveis. Não que A Ilha dos Mortos e os mais recentes de Carpenter e Dante sejam dotados de absoluta perfeição, ou que não possam ter suas qualidades devidamente questionadas e, além do que, é preciso que se evite que o entusiasmo de assistir a esses filmes de autores tão especiais provoque um deslumbramento que não parta dos filmes em si, mas da simples assinatura do nome deles nos créditos de direção. Mas são todos eles parte de um cinema com maior ou menor grau de selvagerias, um cinema ainda não domesticado, e sempre existindo em torno da necessidade de uma expressão concreta, sem subterfúgios, frontal, direta e sem firulas.

São todos eles filmes B, algo que nos parece tão distante e pelo qual o grande público já não nutre grande interesse. Filmes B já não cabem mais na tela de um cinema com plateias viciadas nos multiplex ou IMAX, e que descartam como trash um outro legítimo representante do filme B que foi Piranha 3D (2010), que a despeito de duas ou três cenas patéticas constituía uma interessantíssima releitura de alguns conceitos do cinema exploitation (como foi Machete, de Roberto Rodriguez), abraçando justamente o que, de acordo com o bom gosto institucionalizado da visão de cinema do público contemporâneo, deveria se evitar por se considerado deficiências de um filme, quando na verdade é a razão de ser em qualquer exploitation. Daí não espanta que a maioria dos blockbusters assimile uma ou outra ideia dos filmes B apenas como ponto de partida para fazer valer a sua grandiloquência, quase sempre preocupados que algo grande esteja por ocorrer ou já acontecendo. Carpenter, Dante e Romero são cineastas que lidam com gêneros, e não com filmes-eventos que sejam por si só grandes acontecimentos. Dessa “despretensão” (que nada mais é que uma pretensão com finalidades distintas) surge uma incompreensão ou indiferença, que leva espectadores a equívocos como o de reduzir o recente trabalho de Carpenter como “telefilme” (o que parece a sina de todo filme B contemporâneo que se preza, o que justifica a existência de uma série como Masters of Horror, lançada há poucos anos). Vendo The Ward em algum momento é possível lembrar de Arraste-me para o Inferno, de Sam Raimi (este sim um filme domesticado que dilui todo um gênero para um público de shopping center que dificilmente perderia seu tempo assistindo a um autêntico filme B [como The Ward]): conceitualmente, ambos parecem versões esticadas de um episódio de série de horror de TV, porém o de Carpenter é superior (e mais bem pensado que o de Raimi), esculpindo visões do inferno no seu passeio ao horror de um hospital psiquiátrico e lidando muito bem com espaços claustrofóbicos típicos de algumas de suas melhores obras (O Enigma de Outro Mundo, Príncipe das Sombras, Fantasmas de Marte, entre outros).

Quando soube que o seu Piranha original, dos anos setenta, estava sendo refilmado em 3-D, o velho Joe Dante decidiu também experimentar com a tecnologia nesse formato (os novos projetos de Dario Argento e do próprio George A. Romero também trilharão esse caminho). The Hole é um raro filme de fantasia contemporâneo verdadeiramente imbuído de um espírito de curiosidade e aventura, desde Dane (Chris Massoglia) espiando a sua nova vizinha (Haley Bennett) na abertura (ou as tentativas de aproximação) até os percalços para resolver os conflitos surgidos com a descoberta do misterioso buraco no porão na casa de subúrbio para onde os protagonistas se mudam. O terror no cotidiano, o perigo que ronda na vizinhança, brinquedos como figuras ameaçadoras, todo o cinema de Joe Dante condensado na história dos dois irmãos que vão ao inferno e retornam para superar seus temores pessoais. Um dos poucos filmes recentes a de fato constituir uma fábula, não com lição, mas um sentido moral: a de que os medos e preocupações que alimentamos nos encarceram em grades que erguemos ao nosso redor. The Hole é a materialização desse pavor, dos fantasmas que residem tão somente em nossas mentes (e de onde se libertam e criam vida), seja o trauma decorrente da ausência — ou ameaça — da figura paterna, ou simplesmente o horror ocasionado pelo desconhecido.

Vale lembrar que os três últimos filmes de Dario Argento, mesmo contando com elencos encabeçados por atores de prestigio entre o público, também tiveram no Brasil, onde foram lançados exclusivamente em DVD, o mesmo destino de A Ilha dos Mortos, The Hole e Aterrorizada. São todos trabalhos de autores que cultivam o cinema fantástico, não o do show de técnica e de efeitos especiais (que são utilizados minimamente, não por insuficiência, mas o necessário para dar conta das intenções dos seus autores). Suas estéticas são as decorrentes dos filmes de baixo orçamento, e tampouco aspiram fazer um filme bem feitinho, ou expor uma suposta excelência do roteiro e das interpretações, como se estas virtudes por si só garantissem um produto de qualidade, quando muitas vezes resultam mesmo é em filmes quadradinhos e não raro esquemáticos, e que por si sós geralmente não levam a lugar nenhum. Tudo é feito em um tom pequeno e discreto, numa oposição ao modelo cada vez mais reinante nos blockbusters. Podem até ser considerados trabalhos de final de carreira, porém mesmo que lhes falte algo para incluí-los entre as grandes obras de seus respectivos cineastas, há muito a se aproveitar nesses filmes.

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George Harrison – Living in the Material World (Martin Scorsese, 2011)

Em paralelo aos seus trabalhos de ficção, Martin Scorsese vem dando continuidade há longo tempo a uma interessante série de documentários, sejam em suas viagens cinematográficas pela Hollywood do passado ou pela Itália, ou em No Direction Home, sobre Bob Dylan, isso para não falarmos no registro que fez de uma das turnês do Rolling Stones que também lançou em filme. Uma atividade que constitui um recorte cultural bastante rico do mundo no pós-guerra, que o diretor ítalo-americano, bom stoniano que é, vale lembrar, dedica agora aos Beatles, mas não centrado em sua parceria mais famosa (a de Lennon-McCartney), e sim na figura também mitificada de outro de seus integrantes, o personagem-título de George Harrison – Living in the Material World.

Felizmente, Scorsese em nenhum momento arrisca se lançar no discurso de Beatle negligenciado ou esquecido, o que não corresponderia a realidade. Em um dos depoimentos do filme, Paul McCartney ressalta que não existia melhor ou pior no conjunto, e que os integrantes formavam os quatro cantos de um quadrado em qual todas as partes eram essenciais. A beatlemania, por sinal, ocupa um grande espaço da Parte 1, numa primorosa reconstituição das origens e trajetória do grupo. Até Harrison, aos poucos, ter sua individualidade se sobressaindo no filme de Scorsese. Poucos anos separam momentos como o que Paul relata que uma das canções que ele compusera numa manhã George a melhorou muito (tocando-a de um jeito diferente do que fora originalmente pensando) e de um outro em que Georgesugeriu riffs de guitarra para “Hey, Jude” que Paul recusou, invocando que a música era dele, e cada um decidia a respeito de suas próprias composições. Todos haviam evoluído espantosamente naquele espaço de poucos anos, e a banda se tornara imensa demais e paradoxalmente pequena para conter as personalidades de seus quatro integrantes.

A evolução de Harrison coincide com a sua descoberta da cultura místico-indiana, que o influenciaram espiritual e artisticamente. Gurus e mantras passam a se tornar recorrentes no documentário (infelizmente Scorsese sequer menciona o conhecido episódio em que um dos lideres espirituais amigos de George teria dado em cima de Mia Farrow, que acompanhava o grupo). Era difícil ceder um espaço mais amplo nas faixas dos discos de uma banda que possuía dois dos melhores compositores de todos os tempos (Paul e John). Num primeiro momento, a influência indiana foi responsável por uma fase esquisita de George, que lançou um irregular disco solo, Wonderwall (cuja existência os fãs do cantor preferem simplesmente ignorar) e compôs as possivelmente piores músicas dos Beatles: “The Inner Light” e “Within’ You Without You” (que está justamente no Sgt. Peppers). Assimilada a influência, como sentido espiritual e melódico, mas incorporada ao estilo ocidental de canções pops nas quais George e os Beatles eram mestres (sem o peso de cítaras e outros instrumentos indianos), o biografado atingiu o seu amadurecimento como compositor que logo chegaria a sua plenitude.

A Parte 2 começa não com a dissolução dos Beatles, mas com o surgimento de “While My Guitar Gently Weeps” (tocada com a participação de Eric Clapton), quando George passa a compor em pé de igualdade próxima da de seus colegas de banda. Com a carreira solo, o documentário confere destaque ao ótimo All Things Must Pass, o disco triplo do compositor lançado em 1970, e ao Concerto de Bangladesh que ele organizou no ano seguinte, porém Scorsese dali em diante prefere se concentrar mais no homem e menos no artista. George substitui as drogas pela meditação (chegando a perder sua esposa para o amigo Eric Clapton), Ravi Shankar e Maharishi se tornam seus parceiros mais próximos, cultiva a paixão pelas pistas de automobilismo, a companhia dos krishnas, além de sua carreira de produtor de cinema (especialmente dos trabalhos da turma do Monty Python), que ocupa um longo segmento perto do final. Mas acima de tudo o misticismo e obsessões espirituais do cantor (que numa entrevista chega a chamar os descrentes de ignorante), numa tentativa de Scorsese de compreender a persona particular de George. Alguns discos poderiam ter sido um pouco abordados (como o de 1979, talvez o melhor dele), porém Scorsese prefere pular logo para o Traveling Wilburys, banda que formou com outras celebridades no final dos anos oitenta (o que infelizmente parece coincidir com a atitude de vários dos ditos fãs de Harrison que não ouvem mais que o All Things Must Pass). Nem mesmo são mencionados no documentário os problemas com a autoria do gospel “My Sweet Lord” (seu maior hit na carreira solo), que lhe custou trinta anos de processo por plágio até relançar a canção numa versão descaracterizada em 2000.

Scorsese prefere um recorte na figura simpática do sujeito que pregava um desapego ao “mundo material”, através de um volumoso material de filmagens caseiras ou de suas turnês. Acaba por impressionar o depoimento de sua viúva relatando a luta de ambos contra um jovem maluco que invadira a residência do casal para assassinar o compositor, e que ressoa a trágica morte de John Lennon mostrada anteriormente (ao som de uma bela canção de George dedicada ao amigo morto). Mesmo tendo sobrevivido ao ataque, George Harrison estava com os dias contados, vítima de um câncer que o liquidaria. O seu desaparecimento em Living in the Material World não nos deprime: levado pela morte é como se ele apenas encontrasse a paz espiritual que tanto procurava, com Scorsese fechando o documentário com um plano que aparecera na abertura: Harrison surgindo do nada por entre as tulipas de um canteiro de flores no campo, flertando com a câmera durante uma filmagem caseira. É como um atestado de que a sua presença estará sempre por perto, ainda que em merecido descanso das agruras e emoções do mundo material.

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