Terra do Silêncio e da Escuridão (Werner Herzog, 1971)

Por Kênia Freitas

O documentário narra a história da cego-surda Fini Straubinger. Fini, que no filme já é uma senhora idosa, sofreu um acidente aos nove anos — caindo da escada do terceiro para o segundo andar e sofrendo um grande impacto nas costas e na cabeça. Desde então, ela passou a sentir uma constante dor e a perder a visão aos poucos. Aos 15 anos, a garota passa a ser obrigada a ficar na cama direto. E, três anos depois, começou a ter problemas para escutar. Sem um tratamento específico, Fini ficou na cama por quase 30 anos – até ser “acordada” e passar a atuar na instrução e cuidado de outros deficientes auditivo e visuais.

Sim, esse poderia ser um documentário apelativo e piegas, no qual a deficiência física dos seus personagens fosse apenas um caminho simples para o sentimentalismo fácil. Por sorte, as marcas do cinema de Werner Herzog levam essa história para outras dimensões. Mais do que um filme sobre a sofrida trajetória dessa mulher excepcional, da quase vegetação ao ativismo constante na luta pelo tratamento de outros cego-surdos por toda a Alemanha, o diretor faz também um filme sobre o tato como experiência. Assim, tocar o mundo (os animais, as plantas, o avião) e tocar aos outros (os toques das mãos como forma de comunicação e de contato privilegiado) passam a ser questões vitais para a câmera do diretor. A sua âncora é a presença de Fini (do seu corpo e acima de tudo da sua voz) e o seu guia é a maneira da personagem lidar com o mundo.

Uma escolha nem sempre bem sucedida em termos fílmicos, porque o cinema acaba sendo um dispositivo que não contempla o assunto, pois não é tátil — é justamente sonoro e visual — não fazendo parte daquele universo. Apesar dessas dificuldades de apropriação e tradução, Herzog consegue fazer um mergulho nesse mundo que não é exatamente triste e nem piedoso, mas bastante desconcertante.

É a própria Fini quem nos diz que a terra da escuridão e do silêncio é multicolorida e barulhenta, ao contrário do que poderíamos supor, mas também é extremamente solitária. Por isso, o uso constante do toque como uma compensação, inclusive como uma espécie de língua construída pelo deslizamento dos dedos na superfície da mão. “Quando você solta a minha mão, é como se estivéssemos a quilômetros de distância”, é o tipo da explicação de Fini que nos faz compreender o quão pouco poderemos saber sobre o seu mundo e a sua existência. Distância que se torna ainda mais pulsante com a experiência fílmica.

Para além das imagens e sons que precisam se converter em vivência tátil — o que Herzog consegue resolver com a presença marcante de Fini, sobretudo com a voz over compartilhada entre ela e o diretor na narração do filme —, é preciso lidar com outras questões conceituais. Para começar, cego-surdos de nascença têm dificuldades de aprender ideias abstratas.

É assim que encontramos em determinado momento das viagens de Fini um rapaz que viveu até os 22 anos sem ser “acordado”: cego e surdo de nascença com o contato social restrito ao seu pai. Estamos no terreno do quase não-humano, questão tão cara em diversos filmes de Herzog. A imagem daquele corpo isolado se debatendo dentro de si nos remete imediatamente às cenas inicias do O Enigma de Kaspar Hauser (1974), filme que o diretor viria a realizar três anos depois.

Um pouco como Hauser e os acorrentados do Mito da Caverna de Platão, cada uma dessas pessoas precisam ser trazidas à luz. Mas nesse caso, uma luz que só pode ser compartilhada pelo toque e não pelas imagens. Temos, então, um documentário que não funciona como um espelho ou uma troca, pois se a imagem que Herzog captura de Fini — e tantos outros cego-surdos – nos toca profundamente, nós continuaremos sempre a quilômetros de distância.

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