Godzilla ontem e hoje

Por Flavio C. von Sperling

Seria frágil uma análise de Godzilla (Gojira, 1954, Ishirô Honda) que não levasse em conta o contexto de sua recepção no Japão. A fita foi lançada apenas nove anos depois das explosões nucleares de Hiroshima e Nagasaki e do bombardeio de Tóquio em março de 1945 – que destruiu quase metade da cidade, ceifou mais de 100 mil vidas japonesas e alijou milhões de suas casas, apenas dois anos após o fim da ocupação estadunidense no Japão, marcada por estupros e pilhagens, e em pleno preamar dos testes nucleares no Pacífico. Em março de 1954, o barco pesqueiro Lucky Dragon N. 5 foi atingido por poeira radioativa resultante da detonação da bomba estadunidense Castle Bravo, à época a mais potente explosão causada por seres humanos (um erro de cálculo previa 6 megatoneladas, a explosão liberou 15). Toda a tripulação foi contaminada e os atuns pescados chegaram aos mercados de Tóquio. Os Estados Unidos, embora negassem os riscos de consumo destes peixes, suspenderam as importações de atuns japoneses. Concluiu-se que mais de 800 outras embarcações japonesas foram expostas à radiação da explosão e, entre março e dezembro de 1954, as autoridades destruíram dezenas de toneladas de peixes radioativos. É neste contexto apocalíptico que o filme foi lançado em outubro de 1954, um mês após a morte do operador de rádio do Lucky Dragon N. 5, e sua primeira cena faz alusão explícita ao incidente (que seria referenciado em dezenas de outros filmes, e é acontecimento central em pelo menos dois – Daigo Fukuryu-Maru, 1959, de Kaneto Shindô, e O monstro da bomba H, 1958, de Ishirô Honda). Em Godzilla, fatores extra e intra-fílmicos se emaranham de tal maneira que se tornam indissociáveis.

A década de 1950, considerada a era de ouro da ficção científica no cinema, já havia visto o medo e a angústia atômica nas telas, ora de maneira metafórica, ora literal. Embora inspirado em alguns filmes estadunidenses, especialmente O monstro do mar (The beast from 20,000 fathoms, 1953, de Eugène Lourié), Godzilla carrega uma pungência única no cinema.

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Godzilla, encarnação do apocalipse nuclear que para o Japão parecia iminente – se não em curso constante -, transcende a metáfora, e torna-se também símbolo de uma identidade nacional retalhada. O público ainda marcado pela guerra viu-se na pele do monstro, uma pele que, como a de muitos espectadores ali, carrega cicatrizes, queimaduras, deformidades advindas da violência nuclear. Godzilla, ao mesmo tempo em que amedronta, é passível de empatia. Essa ambivalência, esse caráter dual de vítima e algoz, que é da própria ontologia dos monstros, encontra sua potência máxima em Godzilla, talvez comparável apenas ao monstro de Frankenstein, e está impressa inclusive no seu rugido metálico, carregado de dor e raiva. O rugido do monstro, manifestação sonora de um páthos rudimentar, só é menos aterrorizante que seu silêncio, o de uma força descomunal, impassível, inconsciente da destruição que causa. São numerosos os relatos que fazem menção ao silêncio sepulcral que sucede o estouro de uma bomba atômica.

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Godzilla é o mais sombrio dos filmes de ficção científica. Apesar do filme ter seu arcabouço baseado na fantasia e de sua implausibilidade científica (tanto do monstro quanto da arma que o elimina), caros ao gênero, Shindô, veterano da Segunda Guerra, imprime na forma do filme um realismo quase documental, praticamente sem paralelo no gênero até então, distanciando-o de seus contemporâneos estadunidenses e aproximando-o de filmes como Hiroshima (1953, Hideo Sekigawa) e documentários de guerra. As cenas noturnas de destruição parecem filmadas in loco na noite de 9 de março de 1945 – a noite do famigerado bombardeio de Tóquio. As cenas de hospital de Godzilla e, por exemplo, do assustadoramente realista Catástrofe nuclear (Threads, 1984, de Mick Jackson), são mais próximas do que a distância de três décadas entre elas poderia sugerir. Há relatos de que, durante a cena na qual Godzilla destrói o Toho Theater, parte dos espectadores presentes no cinema real tentou fugir da sala, o que nos lembra a anedota do público amedrontado pela vinda do trem dos Lumière, quando o cinema ainda era coisa nova.

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Godzilla é permeado por diversas relações de dualidade, desde a já mencionada ambivalência fulcral do monstro, até a de um Japão tradicional e um Japão moderno, encarnada no dilema de Emiko entre o casamento arranjado com Dr. Serizawa e sua paixão por Ogata. Uma das dualidades mais marcantes do filme é apresentada nas diferenças entre Dr. Serizawa e Dr. Yamane. Este, paleontólogo, representa uma aproximação mais humanista da ciência. Dr. Yamane insiste que Godzilla não deve ser exterminado, mas estudado a fim de mitigar os efeitos oriundos da atividade nuclear. Na última cena do filme, é ele quem nos diz que, caso os testes nucleares não sejam interrompidos, em breve outro Godzilla surgirá, nos admoestando num final típico das cautionary tales – narrativas que nos servem de alerta ou reprimenda. Dr. Serizawa, uma encarnação do trauma da guerra, considera-se mais monstruoso que Godzilla, uma vez que ele criou uma arma que, em mãos erradas, seguramente seria usada para destruição em massa. Serizawa, veterano da guerra, mutilado, com um olho arrancado pela invenção de algum outro cientista, recusa-se veementemente a utilizar o Destruidor de Oxigênio contra Godzilla. No entanto, após ver o rastro de destruição deixado pelo monstro e um coral de garotas cantando em luto na televisão, ele decide destruir sua pesquisa e utilizar o Destruidor de Oxigênio apenas uma vez, para por fim às agruras sofridas pelo seu povo. A cena do coral, das mais poderosas do filme, é uma quase mística evocação de um espírito coletivo japonês que marca o ponto de virada para Dr. Serizawa, a personagem humana mais emblemática de toda a franquia. Serizawa sabe que ele deve morrer junto com sua criação. É seu dever moral sacrificar-se e levar seu conhecimento de potencial destrutivo para o túmulo. Nos filmes de ficção científica, é comum os cientistas morrerem vítimas de sua própria criação, mas o suicídio determinado de Serizawa destaca-se entre os filmes da época.  Em The phantom from 10,000 leagues (1955, de Dan Milner), por exemplo, o cientista mergulha no mar a fim de destruir a arma que criara (numa cena possivelmente inspirada no final de Godzilla) e acaba morto, mas não por algum gesto suicida. O monstro ressurge e o agarra, impedindo-o de fugir da explosão – monstrum ex machina. É possível, nesta comparação, identificar traços culturais diferentes entre os Estados Unidos e o Japão que se evidenciam nestes filmes.

Embora o monstro seja derrotado e haja algum alívio momentâneo, não há nenhum clima de vitória no final de Godzilla. Não há celebração, ao contrário da maioria dos filmes de ficção científica estadunidenses da época. A necessária morte de Godzilla é também a morte de uma vítima, e os testes nucleares, souvenirs da tara bélica americana, continuam acontecendo ali naquele mesmo mar onde estão as personagens.

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Esta ambivalência vítima x algoz de Godzilla praticamente se perde nos demais filmes da franquia, nos quais, a cada um deles, o monstro oscila mais próximo dos extremos desse espectro – embora na maior parte dos filmes ele seja tido como um herói nacional, protetor do Japão, uma figura quase paternal (algo que permanece até hoje na figura de Godzilla como ícone da cultura popular japonesa). Gosto de pensar que estes filmes (1955-2004) formam uma espécie de necrológio em painel do monstro original de 1954, onde a cada hora ele é evocado de uma forma diferente, destacando diferentes características suas.

Em Shin Godzilla (2016, Hideaki Anno e Shinji Higuchi), contudo, há uma forte reaproximação do monstro com sua versão original. É o único dos filmes, depois do primeiro, no qual o Japão ainda não conhece Godzilla, o que faz do filme mais uma refeitura do original do que realmente uma sequência.

Shin Godzilla tem o mesmo tom austero do primeiro filme e resgata vários atributos dele. Após décadas, Godzilla aparece aqui sozinho novamente, sem os demais monstros que povoavam as telas em quase todos os filmes depois de 1955 (a única exceção sendo O retorno de Godzilla, de 1984, pensado como uma continuação do filme de 1954). O realismo do primeiro Godzilla também volta e é marcante o uso de diferentes dispositivos e meios de intermediação de imagens empregados (celulares, câmeras de segurança, computadores, etc). Aqui temos de volta a ”câmera à altura do homem”, enquanto os demais filmes (exceto o primeiro) privilegiavam a “câmera à altura do monstro”.

O trauma coletivo do tsunami de 2011 e do acidente nuclear de Fukushima se soma às feridas ainda abertas da Segunda Guerra e à dominação estadunidense que se articula de outra maneira, muda de forma, mas se perpetua sobre o Japão. “O Japão do pós-guerra é um estado tributário”, comenta uma personagem. “O pós-guerra se estende para sempre”, arremata outra. Pouco mudou no estado de espírito do povo japonês desde o contexto do primeiro filme para Shin Godzilla.

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O filme apresenta uma espécie de protagonismo em painel. É o coletivo e o processo de cooperação que fazem às vezes de protagonista. Após o surgimento do monstro, o poder público é incapaz de oferecer resposta imediata. Não se sabe qual é o departamento responsável pelo inédito aparecimento de um monstro. Especialistas são reticentes em dar diagnósticos e indicar medidas a serem tomadas, com medo de ferir suas reputações e toda determinação passa por três ou quatro pessoas antes de ser posta em prática. Os centros de operação parecem um formigueiro desarticulado, nos planos gerais. Repetições enfadonhas de travellings em reuniões recheadas de desorientados homens velhos trajando ternos iguais sublinham a letargia do Estado. Novos rostos, funções, cargos, comitês e forças-tarefas aparecem a todo momento numa cacofonia que opera na chave da sátira (uma das reuniões é interrompida por uma cartela sobre tela preta que nos indica que fomos poupados de parte dela). Estes ministros, oficiais e funcionários públicos não são, no entanto, vilanizados hora nenhuma; são indivíduos que tentam colaborar para o bem comum, mas são travados pela burocracia do Estado e por alguma inaptidão. O princípio da colaboração é central em Shin Godzilla.

Um comitê paralelo, formado por párias, lobos solitários, nerds, hereges da academia, luta contra o tempo enquanto Godzilla destrói Tóquio e os EUA planejam soltar uma terceira bomba atômica sobre o Japão a fim de dar cabo ao monstro (e, obviamente, lucrar com a reconstrução da cidade). O comitê tem em mãos um enigmático mapa genético do monstro, deixado por um cientista desaparecido, que pode conter informações que levem a uma solução menos trágica do que a proposta pelo País da Liberdade. Este comitê representa uma crença na superioridade do pensamento científico sobre a violência bélica e a aniquilação. É interessante que a solução para decifrar o mapa genético se encontre na milenar arte japonesa do origami, aliando o conhecimento popular japonês ao saber científico e simbolizando um certo espírito nacional que o filme parece querer promover (vale notar que o integrante do grupo de outcasts que indica o origami como solução é representado por Shin’ya Tsukamoto, diretor de Tetsuo, Bullet ballet, entre outros).

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Shin Godzilla é o único filme da franquia no qual o monstro muda de forma. Assim como o Japão no filme, ele também é obrigado a se adaptar a situações adversas. Em sua primeira aparição, de aparência anfíbia, ele se move de maneira caótica pelos rios de Tóquio, arrastando barcos, quebrando pontes e deixando um cenário de destruição muito semelhante ao que o mundo viu e o Japão sentiu após o tsunami de 2011. Quando Godzilla pisa (ou se arrasta) em terra, ele ainda não consegue suportar o próprio peso nas pernas e se debate entre os prédios convulsivamente, em evidente desespero. Seus olhos de peixe, esbugalhados e ainda sem pálpebras, reforçam sua agonia e, como acontece com o monstro de 54, temos franca empatia por ele. Quando Godzilla atinge sua forma terrestre, a rigidez de seu corpo e seus punhos contraídos parecem indicar uma excruciante e constante dor, assim como sua carne exposta, sua pele rasgada, seus dentes deformados – marcas da violência que o originou. É, na história de Godzilla, a representação mais devastadora do monstro como vítima dos pecados humanos.

As sequências externas, salvo as de ataques aéreos, geralmente privilegiam o ponto de vista humano, do nível do chão, exacerbando o aspecto colossal e horrífico do monstro. No entanto, vez ou outra temos uma mudança de perspectiva que nos apresenta um Godzilla diminuto, em planos abertíssimos, em aparente continência perante o cosmos. Estes planos, por sua vez, rimam em sua composição com outros recorrentes planos abertos de seres humanos pequenos e sozinhos em quadro – talvez o que nos distancie dos monstros seja apenas uma questão de escala.

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“A humanidade deve coexistir com Godzilla”, diz uma personagem. O Godzilla congelado ao fim do filme, no meio de Tóquio, talvez seja a imagem mais marcante de Shin Godzilla; é o lembrete de um perigo latente, de natureza cíclica, que nunca será de fato extirpado – memória constante de que o apocalipse não acaba, mas vem em ondas, e é também um monumento de tributo ao Japão e ao viço de seu povo que sobrevive ao longo de uma história maculada por tragédias, de causas humanas e naturais; repetidos “fins do mundo”. Embora este não seja um filme exatamente otimista, ele fecha com a sensação de que se aprendeu algo com a tragédia de hoje, e exalta um espírito coletivo japonês que, embora não sem perdas, conseguiu, dessa vez, transpor suas adversidades. O Japão de Shin Godzilla é agora um país mais seguro de si.

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A festa do fim do mundo e sua nostalgia sexual em Estranhos Prazeres

Por Gabriel Papaléo

“Há uma batida de ritmo de selva embaixo de mim; o som de cassetetes batendo em escudos de choque, tradição da polícia quando a coisa fica feia. (…) Porque vai haver sangue de transientes derramado por todo esse lugar.”

Warren Ellis, Transmetropolitan 3

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Como vivemos no totalitarismo da imagem? O cotidiano pode ser mediado pelo controle absoluto dos dispositivos digitais que nos cercam?

A repressão do governo nas ruas através do uso da força policial como contenção da ebulição de pensamento de descontentamentos é o contexto das ruas de Los Angeles nesse 1999 alternativo cyberpunk concebido por Kathryn Bigelow, em Estranhos Prazeres. A população inflamada apanha sem nem ao menos sabermos o porquê e a indiferença do protagonista Lenny Nero, ao passar pelas ruas na sua Mercedes, parece deixar claro que aquela paisagem há muito é palco de confrontos. Sua jornada é no contrabando de imagens, de um dispositivo chamado SQUID – criado para acessar memórias alheias em primeira pessoa, como um videogame em realidade virtual – e seu contato com a realidade é através dessas imagens alienantes da nostalgia, do gradual descarrilamento do presente como abrigo do pensamento. A televisão mostra o rapper morto misteriosamente, as ruas sangram sua insatisfação, mas, para Lenny, as imagens digitais e seus prazeres bastam nesse estado de letargia desacreditada com o mundo típico dos detetives de noir que o filme dialoga.

Na explosiva cena de abertura, sentimos de imediato o objeto de desejo de tantos personagens ao acompanhar a ação em primeira pessoa do dispositivo, numa perseguição atordoante que termina em morte das muitas pulsões que Lenny almeja aqui. Quando o ex-detetive busca as memórias de sua ex, fica claro que o passado atormentado é sobretudo uma relação desapaixonada com as instituições e é nesse sentimento que Bigelow concentra toda a primeira hora de filme, investindo no pano de fundo, nas interações entre os personagens, em como funciona a máquina cyberpunk do pré-apocalipse da virada do milênio. O conflito racial surge nesse setting como o grande preço que as pessoas pagam ao tentar lutar no tempo presente.

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O estado policial de opressão sentido a cada interação, no abandono das interações sociais, nas vizinhanças sitiadas – devidamente ignorados pela nostalgia digital do protagonista, claro. Essas vizinhanças, por sua vez, só surgem de início em flashback, para apresentar o contato inicial entre ele e Mace, vivida por Angela Bassett. Que Bassett dê uma fisicalidade à Mace que expande cena por cena o papel da personagem é algo perceptível até no olhar da atriz e cabe a essa personagem, bem mais afinada com os dilemas sociais e com a resistência urbana direta diária, a quebra do feitiço digital de Lenny. Que Mace seja uma motorista de limusine dos ricaços, como no Cosmópolis, de Cronenberg, só evidencia seu papel mais íntimo com a cidade, de um conhecimento das ruas pelo dever direto que exerce e observa pela janela.

O conceito de explosão sensorial via realidade virtual é algo que Cronenberg viria a trabalhar diretamente em Existenz, um dos seus melhores filmes, e o título brasileiro do filme de Bigelow chega até a ser o mesmo do Crash do diretor canadense. As perversões da alma sexual do cinema do canadense aqui se tornam ponte para um discurso de privilégios, com foco outro além das inquietudes psicológicas – e aí a comparação mais afinada me parece com o já citado Cosmópolis, um filme que ocorre na pressão entre o ar condicionado da limusine de Robert Pattinson e o ar digital do lado de fora. Aqui em Estranhos Prazeres, o ar não é propriamente digital e as manifestações não exemplificam as virtualidades, as vulnerabilidades e as flutuações delirantes do mercado financeiro; o ar daqui é poluído como a geografia de Los Angeles, a segregação e suas vozes ativas diante das culturas alternativas. O embate do hip hop na televisão, atacado como símbolo político, nas tentativas de despolitizar a cultura de periferia. A motorista dos ricaços numa cidade sitiada e cosmopolita tenta sobreviver com o psicológico intacto à medida que dá, mas sem ignorar os problemas ao redor sob a égide do cinismo e da derrota. É sobretudo um ritual de disciplina, exemplificado na recusa da utilização do SQUID por parte de Mace, que exala da presença da personagem. É da dificuldade em balancear o desejo e o dever, o condicionamento da realidade sob pulsões duvidosas. Escapando de uma premissa reacionária de escapismo, Bigelow no entanto cria a virada da personagem ao fazê-la usar o dispositivo para algo que falaria com seu âmago sob a urgência do levante popular. Mace acessa as imagens, quase com medo, e tem sua realidade aumentada justamente pelo dispositivo que vemos ser anestesiante para o resto dos personagens. É como usar a ferramenta, sobretudo, e sem a inocência de negar o peso rústico do que ela pode causar – e a verdade que Mace vê é filmada como o ataque agressivo aos sentidos que é.

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Conforme a violência vai se tornando mais próxima, mais brutais ficam as cenas que as mostram – e há duas cenas de estupro fortíssimas no filme, em primeira pessoa, abordando diretamente uma questão sensorial da brutalidade superficial da imagem e da linguagem nela inserida. A visão em primeira pessoa nos faz quase cúmplices do crime, e Bigelow sabe disso, mas não na exposição de culpa, o que seria uma iniciativa cínica, e sim de exposição do ponto sem retorno sensorial causado pelo dispositivo. “A paranoia é apenas a realidade numa escala reduzida”, como um personagem diz no filme, e fica difícil estar a par das nuances da realidade quando as imagens obliteram suas córneas. A articulação da conspiração parte então da perversidade explosiva das imagens, do que a memória tornada viva expressa e, com isso, muito da miopia social de Lenny é explicada; é através de Mace, e do snuff da prostituta assassinada, que ele começa a ter relação com aqueles fatos – uma relação moral, de dever ético claro, mas que passa primeiro pelo campo do afeto pessoal, uma vez que é nele que a imagem mais ataca nesse universo.

Talvez por isso a trama de traição importa tão pouco – até mesmo para Bigelow, que encena o clímax no quarto de hotel com cortes bruscos e parecendo mais interessada em experimentar com aquele tempo que de fato resolver dramaticamente aqueles arcos -, porque no limite são atos de crueldade de pessoas ricas e brancas que estão paranoicas porque presenciaram a morte pela primeira vez. Philo Gant, personagem central vivido com a vilania dos gestos calculados e expansivos de Michael Wincott, já servira de bom grado ao papel de homem branco apropriador ao lidar com Jericho One sob o filtro das fortunas, mas é apenas quando se sente ameaçado pela primeira vez pela conspiração em curso que ele se torna não apenas paranóico com seu círculo de influência, como viciado ao extremo no uso das imagens digitais do SQUID. É quase como se a falta de tato ao lidar com situações de pressão e de cerceamento geográfico e social pelas castas mais ricas fosse diretamente culpada pelos grandes atos de destruição e pela proporção inesperada dos movimentos de mudança. Resta a autodestruição, seja na música, seja fritando o cérebro com vídeos.

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Como em um presente de imagens inúmeras, de catalogação complexa e estufada, a paranoia se intensifica e as desconfianças aumentam – as relações perigosas e sexuais surgem exatamente no nível de overdose representativa proposto por Abel Ferrara em outro clássico cyberpunk, Enigma do Poder. Ferrara também lidava com a virada do milênio como dispositivo estrutural para dialogar com videoclipes e a imaterialidade das imagens, a fragilidade da plataforma, refletindo diretamente o psicológico em xeque do triângulo amoroso devido a paranoia de encarar cada representação como a faca de dois gumes da interpretação duvidosa. A espionagem virava intriga sexual, e a perdição nos ambientes exige o total isolamento para alguma organização de pensamento. A diferença central é que, enquanto aquela trama de noir tornava-se a própria overdose de imagens orquestradas por Ferrara na meia-hora final, no confinamento do hotel vertical concebido por William Gibson, aqui em Estranhos Prazeres as imagens nunca dominam inteiramente os heróis tortos. É sobretudo na figura de Mace, sensível ao contexto político que busca as ruas para propor uma mudança significativa, que há o embate contra o império das imagens, imagens a ruir nas manifestações, contra a brutalidade policial, em nada dialogando com intrigas do ego.

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O comentário de ambientação da tensão racial e a trama principal andam sugeridos mas não interligados por mais da metade do filme e, quando eles se atravessam, é culminando todo o ponto de vista estético e emocional que Bigelow vinha conduzindo: a experiência em primeira pessoal da testemunha da brutalidade do Estado, da violência diretamente ligada a uma pulsão sexual do voyeurismo, da importância do combate. As imagens do assassinato de Jericho One surgem com o diálogo direto ao vídeo das agressões sofridas por Rodney King em 1992, que desencadearam nas manifestações pelas ruas de Los Angeles e mostraram o fascismo agindo sobre o homem comum no seu viés mais racista e segregatório. O assunto fora algo amplamente discutido por Bigelow na hora de construir sua distopia, ao aliar essa temática política à intriga romântica do roteiro original de James Cameron e Jay Cocks, e redimensiona de fato os acontecimentos daquele mundo, traz o peso do ambiente interferindo no psicológico de quem há muito luta. Toda representação a partir daí começa a contar e toda a virtualidade dos encontros com o passado de Lenny e seus clientes perdem a força diante do chamado das ruas das palavras de Jericho One, dos punhos cerrados de Mace ao enfrentar quem a persegue. Não por acaso Mace desconfia da integridade do comissário ao lhe entregar as imagens que provam o assassinato de Jericho; os algozes da lei trouxeram esse estado das coisas ao lidar com o presente sob o filtro do afastamento social.

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Ao final, o comissário é inocente e Bigelow propõe que a resistência envolve algum tipo de diálogo, até mesmo de conciliação, e então o roteiro abraça soluções que envolvem a fé na lei e na manutenção das ideias em determinadas situações. No entanto, o que move o policial inocente, no limite, não é sua integridade; é o medo, como Lenny diz, porque a opressão das castas sociais também atinge os empregados mais poderosos do maquinário fascista. As diretrizes ameaçadoras agem no sistema que se deglute pelo estado de opressão e a desconfiança da vigilância. Essa ambiguidade, em uma tentativa de jogar com o medo a seu favor, evita Bigelow de impedir o foco na pulsão pelo revide, das pessoas que aprenderam a estar atentas ao tempo presente, sem esquecer que as resoluções até são possíveis, mas a violência policial é causada por estruturas e não pela galeria de perversos que causam as atrocidades muitas de gênero e raciais. A população se revolta na festa do milênio, enquanto ouve o Skunk Anansie gritar que “Eles estão vendendo Jesus”, porque a pulsão da violência racista dos dois policiais pode ter causado os assassinatos, mas não causou o espancamento de Mace diante da multidão.

A chegada do milênio surge como prenúncio do apocalipse, do grande evento. O principal privilégio cyberpunk é buscar realidades de memórias para fugir do momento à beira do colapso, da tensão das ruas, dos anos 2000 em uma cidade com ânsia pelo fim do mundo. Esse fim do mundo é desejado como um sinal da mudança dos tempos, de que talvez as lutas sejam fortes o suficiente para desafiar e obliterar os sistemas presentes de governo e da economia, mas para as camadas privilegiadas com delírios de grandeza sobre seus problemas emocionais e suas intrigas afetivas, o apocalipse é apenas um desejo cínico de pulsão autodestrutiva de quem não tem o apreço pelo próprio corpo presente, e portanto parece o destino natural da violência, das pistas do crime, da paranoia. Mas como diz o personagem de Tom Sizemore no clímax: “não é nada; nunca é nada”. A grande conspiração megalomaníaca é apenas a forma delirante de auto importância que as camadas de cima veem para fugir da violência policial que os segregados sofrem diariamente.

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Entre templos e ruínas: fim do mundo e continuidade do cosmos

Por Luís Flores

Bato à porta da pedra.

– Sou eu, me deixa entrar.
– Não tenho porta – diz a pedra.

(Wislawa Szymborska)

 

    Na tela, uma pedra. Uma pedra no meio do caminho. Ela encara de frente, ou é antes encarada pelo olhar da câmera, com sua parte humana e sua parte de máquina, crédula de poder perscrutar o conteúdo do universo por completo, conhecer cada partícula que compõe a superfície do visível. A pedra é mostrada de perto, em um close acirrado que não permite identificar seu objeto senão por atributos menos categóricos, como a cor e a textura. Sobre essa pedra planificada, em todo caso, que ocupa a tela sem função aparente, sem fundação, surge a palavra Bassae. Trata-se do título de um curta-metragem de Jean-Daniel Pollet, lançado em 1964, no qual ele realiza justamente uma incursão poética ao templo de Apolo Epicuro no sítio arqueológico de Bassae, na Grécia. Ali, diante dessa edificação em estado de ruínas, são lançadas interrogações teórico-existenciais que tangem o cerne da experiência humana e sua percepção do tempo. O pensamento, ativado sob a forma de imagens, rigorosamente enquadradas, decompõe a matéria em fragmentos elusivos, sondando-a de perto sem jamais tocá-la.

    Ainda que tomando certa liberdade em relação a universos distintos, gostaria de confrontar os escombros do templo em Bassae, abordados por Pollet com ênfase ensaística, a outra aparição das ruínas, bastante diversa, em um filme de origem mbyá-guarani. Duas aldeias, uma caminhada (2009), dirigido por Germano Benites, Ariel Duarte Ortega e Jorge Ramos Morinico, traz uma concepção imagética aberta, feita em proximidade com os personagens filmados e com o dia-a-dia na aldeia. As mediações técnicas, irredutíveis às convenções usuais do cinema, não coincidem com um discurso narrativo ou ensaístico fechado, estando vinculadas a uma reflexão mitológica que reescreve, cotidianamente, os elementos de ordem histórica. Em dado momento, os indígenas visitam a Tava de São Miguel Arcanjo, espaço sagrado construído por seus ancestrais a pedido da divindade Nhanderu. Mas, diferentemente de Bassae, onde o substrato temporal não abandona o centro humano da razão, as ruínas surgem aí em conexão com uma série de fundamentos cosmológicos que o filme elabora, dando a ver uma maneira alternativa de ordenar o tempo e a imagem.

    Em Bassae, que exibe um forte grau de estilização, a coluna de pedra é mostrada em plano médio, logo após o título, com a paisagem vazando pelas laterais. A câmera se aproxima lentamente do pilar, cujas marcas de desgaste são vistas entrecruzadas às linhas verticais da arquitetura helenística. Quando a coluna ocupa todo o quadro, um plano geral vem situar o conjunto das ruínas no centro da paisagem. Um novo corte, então, traz de volta a pele pétrea da coluna, seguida por um plano ainda mais geral que ressalta a pequenez do templo em meio às montanhas. Pollet alterna entre diferentes escalas, jogando com a percepção do espaço, ao som de uma música metalizada que lembra as badaladas de um sino – como se dessem concretude à passagem do tempo. Finalmente, enquanto a câmera circunda lentamente a coluna, entra em cena a voz over de Jean Negróni (o mesmo narrador da viagem no tempo de La Jetée, 1962, de Chris Marker) lendo um texto escrito por Alexandre Astruc e dando início a um magnífico vai-e-vem entre palavra e imagem.

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Muito se falou desse ensaio fílmico condensado, de nove minutos de duração, como uma simples meditação sobre as ruínas, com perguntas lançadas às vozes do passado que ecoam no presente. Foram raros os pensadores que captaram, para além de uma concepção histórica ou arqueológica, o sentido profundo da reflexão de Bassae sobre o tempo humano. Serge Daney, em um artigo publicado na revista Cahiers du Cinèma, foi um dos poucos que chegou perto de apreender esse gesto: “O que sabemos, nós, das civilizações? Sabemos que são mortais. Pollet nos confirma que estão mortas. (…) O homem talvez seja apenas um acidente da paisagem, bastante imperfeito, vulnerável e provisório”. O crítico francês apresenta Pollet como “o cineasta dos últimos momentos”, que “filma entre a condenação e a morte”. Ele chama atenção para o questionamento do conceito de humano operado ao longo do cinema de Pollet, seja nas ruínas e nos vestígios do Mediterranée (1963), no banimento dos leprosos em L’ordre (1973), co-dirigido com Malo Aguettant e Maurice Born, ou na solidão e no delírio de Le horla. “A loucura de Terzieff é a chegada da Horla e, portanto, a desaparição do Homem. A morte é o melhor álibi”.

    Divisamos, assim, três zonas abissais para a ordenação humana do tempo, não necessariamente segmentadas: a história, a alteridade e a mortalidade. O que Daney tateia, ainda sem chegar às últimas consequências, é o limite físico e conceitual do homem, sua insuficiência no sentido cósmico. Pollet, que tomou conhecimento do templo durante as filmagens de Meditarranée, dizia se interessar principalmente pelo seu duplo caráter de “fim do mundo” e de “centro do mundo”, uma espécie de princípio e limite de tudo, entre criação e destruição. A construção do filme, todavia, não deixa de lançar suspeitas sobre essas próprias noções de fim e de centro, preservando certa zona de opacidade sobre a suposta realidade histórica das ruínas. “Queria fazer um filme sobre esse objeto que perdeu toda a significação, mas possui um potencial misterioso, fantástico”, afirma o diretor.

    Bassae (1964), que não possui, a rigor, objetividade documental, privilegia imagens que flertam com o desconhecido e assumem, como princípio especulativo, um franco desejo de exploração espaço-temporal. Há, na visualidade da câmera, um misto de fascínio e de espanto, resultando em planos fechadíssimos, ávidos por se aproximar da matéria, e também em movimentos de deriva ou recuo, quando o olho parece titubear. Entre planos gerais e close-ups, o filme apreende as ruínas tanto no contexto amplo (paisagem, nuvens, céu do Mediterrâneo, montanhas, pedras ao redor) quanto nas particularidades (chão despedaçado, pilares quebrados, fileiras de colunas), criando contrastes não cartesianos entre o efêmero e o duradouro. Em certos enquadramentos, o templo é excluído do campo de visão, evidenciando a importância do entorno (montanhas, nuvens, pedras). Nessa disputa entre ordem e desordem, entre humano e divino, os fragmentos antes organizados em arquitetura são agora tomados pela relva, e retornam lentamente, “como mastros de um navio fantasma, à sua lenta passagem pelo reino mineral, que em momento algum havia deixado de ser o deles”.

    A multiplicação dos ângulos e pontos de vista reflete, assim, uma tentativa de pensar os fundamentos do visível, sendo complementada, nessa caméra-stylo a quatro mãos, pelos comentários tecidos por Astruc. As peças extraídas filmicamente do espaço já são, de certa forma, “estratos” da antiga ordenação do templo, remetidos agora ao âmbito assombroso de uma pré-história, afinal, “estamos ainda no primeiro dia, antes do começo de tudo”. A natureza retoma seu domínio sobre as coisas, no qual as “árvores petrificadas imitaram a forma clássica de um templo somente pelo tempo de um bocejo”. O homem é devolvido à condição biológica, pois “nada neste cemitério mineral, evoca a possibilidade mesmo acidental em favor da vida humana”. Esse templo, antigamente destinado a um deus antropomórfico, é recapturado pelo “velho deus do tempo, de quando não havia homens e nem mesmo o próprio tempo”. A humanidade, com suas maneiras costumeiras de pensar a história e construir relações temporais, é colocada em questão diante desses pedaços de pedra para os quais, em última instância, “não há história própria. Não há lugar”.

    Bassae introduz fissuras nas cronologias usadas pelo chamado gênero humano para se orientar no tempo, cronologias que privilegiam as bases ontológicas e perceptivas de um sujeito específico, em detrimento de outras formas de vida humanas e não-humanas. Como aponta o filósofo argentino Fabián Romandini, nada garante sequer que o vivente humano seja o limite e o correlato necessário da história, sendo que esta talvez precise ser reformulada de maneira mais aberta, digamos, mais “imprópria”, como a história dos ecossistemas da vida cujas relações com uma história cósmica do Universo antes mesmo de qualquer substrato biológico não devem ser ignoradas. Talvez, afugentados pelo potencial devastador dessa tarefa, muitos filósofos a tenham evitado ao longo dos séculos, preferindo alimentar ilusões mais positivas sobre a humanidade.

Fig. 3 Fig. 4

    A questão da temporalidade, em todo caso, “essa física aparentada com os fenômenos do cosmos”, está inevitavelmente ligada à questão da ontologia da imagem, para além do reflexo no espelho e da insistência narcísica. Na ontologia Yanomami, por exemplo, segundo Davi Kopenawa, ser é imagem, é existir por outrem. Sem dúvida, Bassae é um filme atípico dentro da tradição visual euro-ocidental, na medida em que não reproduz por completo o problema do ser e do tempo, produzindo nele algumas tensões. A câmera, em especial, não tenta estabelecer uma zona de conforto, optando por sublinhar certo estado de desintegração do templo, abandonado, desapossado, desprovido de função. Porém, no tocante ao texto, ainda que reforce frequentemente uma poética das ruínas, ele não deixa de enunciar um “eu” que parece remeter ao cineasta-narrador (“eu multiplico os pontos de vista”), e que se autoproclama, no desfecho da obra, “o Verbo”, tudo leva a crer, na modalidade escrita. Além disso, o aspecto mais enfático e tradicional do comentário de Astruc propicia uma relação de organicidade com as imagens, corroborando uma perspectiva logocêntrica. Algo observável, em menor escala, na utilização da música que, se por um lado cadencia a ideia do tempo, por outro confere ao templo certa ilusão sonora de majestade.

    Correndo o risco de fazer um salto brusco, tento olhar agora para Duas aldeias, uma caminhada, em busca de uma forma de ordenação imagética e temporal não restrita aos estilhaços da tradição eurocêntrica. No começo do filme, uma mulher e uma criança mbyá-guaranis caminham na beira da rodovia, essa via de traslado que, assim como o templo de Bassae, constitui um dos marcos da civilização ocidental. Do asfalto, passando pela estrada de terra, somos levados em deriva até Tekoá Anhetenguá, a “Aldeia Verdadeira”, em Porto Alegre (RS). Nela, acompanhamos homens e mulheres indígenas em atividades cotidianas, como o despertar, a cantoria (de cunho político), a caça, a procura do mel, a roda de chimarrão, a confecção do artesanato, a ida à cidade. Em cada momento, há um ímpeto de reestruturação temporal no qual a imbricação das palavras, dos gestos e dos movimentos de câmera transborda tanto a duração do filme quanto o corte cronológico, abrigando outras relações possíveis.

    Diferentemente de Bassae, onde o tensionamento da história depende dos deslizamentos ensaísticos entre palavra e imagem, a imbricação dos tempos em Duas aldeias se dá na própria cena, como um tipo de cinema direto, não apenas porque o tempo do mito e o de hoje são contemporâneos, mas porque a própria ideia de mundo pressupõe, para citar Viveiros de Castro e Déborah Danowski, “um gigantesco acordo discordante, mutável e contingente das intencionalidades múltiplas e distribuídas por todos os agentes”, humanos e não-humanos. Nesse sentido, as operações fílmicas ressaltam um uma dimensão cosmopolítica que implica, para cada gesto cotidiano, relações latentes com o invisível, de modo que o espírito da humanidade apresenta afinidades significativas com o espírito das abelhas ou dos deuses, em um tipo de “platonismo às avessas”.

    Isso pode ser observado, por exemplo, na cena da busca pelo mel. Após o plano paisagem da aldeia cercada pela cidade em expansão, um garoto mbyá-guarani segura uma colmeia e tenta explicar o motivo das abelhas terem abandonado suas casas. “Algo estava incomodando elas. (…) São que nem os mbyá-guarani. Não foram embora porque queriam. Às vezes, os mbyá-guarani se mudam porque tem alguém incomodando”. A montagem, então, parece ressaltar essa associação, ao conferir agência às abelhas e colocá-los logo após o plano da paisagem, além do mel retornar no mito cosmogônico do filho de deus, Papa Mirĩ. E também a caça, ao longo do filme, acolhe relações que vinculam tempo histórico e tempo cosmológico. O jovem mbyá-guarani conferindo se o gambá está na fissura de um tronco, o buraco do tatu sendo cutucado pelo mesmo jovem, um grupo de indígenas assando passarinho no meio da mata, o garoto fazendo armadilha de pegar passarinho e, por fim, o mbyá-guarani mais velho lamentando a escassez de animais para serem capturados na atualidade. “Se estivéssemos num lugar com mais mata, os deuses teriam muitas coisas para nos dar de comer. (…) O Javali tem um deus, um dono com morada aqui na terra. Se você meditar para esse deus, ele vai permitir que o Javali pise na armadilha para você comer”.

Fig. 5Fig. 6Fig. 7 Fig. 8

    Na parte final do filme, os indígenas vão vender artesanatos na Tava de São Miguel Arcanjo, um espaço sagrado, construído e habitado por seus ancestrais mbyá-guarani a pedido da divindade Nhanderu. De um ponto de vista histórico-político, ela é crucial para a memória e a afirmação da identidade, mas não é nesse aspecto que nos concentraremos. Para além dos limites históricos, a Tava está inserida em uma concepção temporal capaz de abrigar oposições entre os mundos celestes e terrestres, mortais e imortais, imperecíveis e perecíveis. Após uma série de contatos com os brancos, visitantes “espaçosos” que adentram o território com postura turística, fazendo perguntas incômodas ou manifestando preconceitos, um grupo de indígenas começa a caminhar em direção às ruínas. Um deles conta a história das violências que seus antepassados sofriam nas mãos de missionários e colonizadores. Com efeito, para os povos indígenas na pós-colonização ou para negros e negras submetidos à diáspora – como reflete Kênia Freitas – o mundo de certo modo já acabou, o apocalipse aconteceu e eles continuam aqui. Por isso, Ailton Krenak pode dizer com firmeza: “Não é a primeira vez que profetizam nosso fim, já assistimos a várias profecias. Enterramos todos os profetas.”

    Na narrativa mítica da Tava, portanto, um mbyá-guarani teria escapado dos carrascos e voltado depois, quando as coisas estavam mais calmas, sentando-se no pátio com as crianças. “Foi aí que apareceu a Cobra Grande”. Nesse momento, a cena evidencia a importância do invisível, e a força mítico-cosmológica da palavra, de valor predominantemente oral, vem tomar conta das imagens. Como que reforçando o transbordamento do relato, a tela, ocupada até então pelo registro direto da realidade, é tomada por uma série sutil de quatro imagens divergentes – três fotografias quase pictóricas das ruínas e um desenho de ordem “sobrenatural” – sublinhando o rompimento com uma sensibilidade prévia. Esse operação da montagem, que acompanha a oralidade da cena, produz uma conversão imagética tão profunda quanto intangível: ela não abala as aparências do visível, mas desloca contundentemente seus sentidos. Toda a temporalidade do filme, narrativa ou histórica, é como que ressignificada pela força do mito.

Fig. 9Fig. 10Fig. 11Fig. 12

    Nas paredes internas da Tava, o grupo aponta as manchas de sangue e gordura da Cobra Grande, esmagada pela intervenção de Tupã. “Algumas vezes, quando você olha, a gordura fica mais visível”. Algo que o olhar do branco, condicionado por certa formatação da história e por certa recusa da “sobrenatureza”, não logra alcançar. Se até então o filme havia sustentado uma simultaneidade entre o índio e o branco, que partilhariam o mesmo presente no espaço das ruínas, agora, a partir dessa fenda cosmológica, “nós” brancos somos remetidos a um passado fossilizado, enquanto os indígenas ressurgem como o futuro de uma história reescrita, “a contrapelo”, na tessitura do mito. Sem o intuito de generalizar, é curioso notar uma dinâmica semelhante em outro filme mbyá-guarani, Ava Yvy Vera, dirigido por Genito Gomes, Valmir Gonçalves Cabreira, Jhonn Nara Gomes, Jhonaton Gomes, Edina Ximenes, Dulcídio Gomes, Sarah Brites e Joilson Brites. Após operar, por quase 45 minutos, uma documentação atenta da vida em comunidade, atravessada por reencenações do passado recente, o filme é tomado pela energia cósmica dos relâmpagos, que surgem indomáveis em meio à escuridão. “Cheguei no lugar do raio sem fim”, afirma a voz de um dos personagens. “O tempo é assim”.

Fig. 13 Fig. 14

    “Nenhuma história antiga nossa, nenhuma, admite que a gente vai acabar. Temos uma narrativa que é cósmica, uma cosmogonia. Nós não estamos aqui”. Com essas palavras, Ailton Krenak fala a verdade que a filosofia ocidental, aterrorizada pela própria loucura, tentou constantemente ocultar com a falácia da razão: não estamos sozinhos. Estamos, isso sim, ensimesmados em uma perspectiva especista e racista, de um mundo supostamente neutro, pretensamente universal, aniquilando as outras possibilidades de mundo, os mundos dos outros. Não pretendo, com isso, desmerecer o trabalho de Pollet, esse “cineasta dos últimos momentos”, que cumpre renovações estéticas e investigações fundamentais para se repensar criticamente determinada tradição da imagem e da história. Apenas indicar que essa visão, fundada em ontologias eurocêntricas, talvez se beneficie do reconhecimento de pontos de vista discrepantes, como é o caso dos cinemas indígenas. O fim do mundo, afinal, depende de qual mundo falamos, e não passa de um estado provisório para quem entende o cosmos como uma “guerra dos mundos” (indígenas contra brancos, animais contra humanos, Gaia contra a civilização). Guerra essa que, para convocar a noção usada por Bruce Albert ao descrever a politização do xamanismo Yanomami, toma a forma de uma “guerra das imagens”. As imagens, aliás, continuam a viver, especialmente para os que constroem a existência nos reflexos do imperecível e buscam estabelecer, nos limites temporais do mundo visível, abordagens cosmológicas mais porosas.

Fig. 15

Lista de leituras

Ailton Krenak. Entrevista disponível em https://amazoniareal.com.br/nao-e-a-primeira-vez-que-profetizam-nosso-fim-enterramos-todos-os-profetas-diz-ailton-krenak/.

Bruce Albert. “Yanomami : retour sur image(s)”. Publicado em Fondation Cartier Trente ans pour l’art contemporain, vol 2, pp. 237-248. Paris : Fondation Cartier pour l’Art Contemporain, outubro de 2014.

Daniel Calazans Pierri. O perecível e o imperecível. Livro publicado pela editora Elefante.

Davi Kopenawa e Bruce Albert. A queda do céu. Livro publicado pela editora Companhia das Letras.

Fabián Ludueña Romandini. A ascenção de Atlas: Glosas sobre Aby Warburg. Livro publicado no Brasil pela editora Cultura e Barbárie.

Serge Daney. “Pollet: Le Horla”. Texto publicado na revista Cahiers du Cinèma, número 188, de março de 1967.

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Um outro destino para o tempo em O sacrifício, de Tarkovski

Por Chico Torres

“Através da imagem mantém-se uma consciência do infinito: o eterno dentro do finito, o espiritual no interior da matéria, a inexaurível forma dada”

(Tarkovski, Esculpir o tempo)

(imagem de abertura)

Questões sobre destruição, ruína e catástrofe são constantes na obra de Tarkovski. Como bem apontou Adalberto Müller, em artigo para a revista Cult: “A destruição e a catástrofe são temas centrais no pensamento de Tarkovski, constituem uma de suas ambiências fundamentais: a destruição da inocência e da infância de Ivan; a destruição da arte em Rublev; a destruição do planeta Solaris; a destruição da Zona em Stalker; a destruição da fé em Nostalgia; a destruição do nosso próprio planeta em O sacrifício”.

Trago aqui algumas reflexões sobre o tempo no sentido histórico e, mais especificamente, sobre alterações de padrões comportamentais que podem ser concebidos também sob uma mudança (muitas vezes radical) na percepção do tempo e da história. Irresponsavelmente, ponho em diálogo algumas frentes filosóficas antagônicas, como é o caso de Santo Agostinho e Nietzsche. Também estabeleço uma conversa entre Walter Benjamin e Tarkovski, além de trazer algumas concepções sobre a filosofia da história. O que pretendo aqui, através de Tarkovski e da filosofia, é pensar novos modos de vida que podem surgir através de uma outra vivência do tempo histórico e, por que não, subjetivo.

Na Grécia Antiga, o tempo não era concebido de modo linear. Havia uma concepção cosmológica que fazia com que os gregos definissem o Universo (Cosmos) como um processo fechado e interdependente. Essa tendência está muito presente na filosofia pré-socrática, mas temos ideia do seu alcance se observarmos, alguns séculos depois, a noção de causa em Aristóteles, em que todo o processo que constitui isso que chamamos de realidade funciona através de um logos que “orienta” as causas, em que todos os fenômenos estão conectados a uma “causa final” e necessária. No cristianismo e posteriormente no mundo moderno, representado especialmente pela filosofia de Kant, a noção linear do tempo se estabelece, assim como um ideal de progresso humano. O plano iluminista começa a cair por terra no século XIX, mas é no século XX que se desenvolvem críticas consistentes sobre todo o ideário progressista. No cinema, Tarkovski é um de seus críticos mais fervorosos.

Em O sacrifício, o tema do fim do mundo pode ser compreendido sob diversos aspectos, mas pelo menos dois deles me parecem evidentes: uma crítica à sociedade moderna e ao ideal de progresso propalado pela mesma, já que no filme o fim do mundo é produzido pelo avanço técnico responsável, entre tantos outros malefícios, pela bomba nuclear; e o rompimento com essa sociedade através de um ato de fé, um sacrifício de uma vida inteira realizado através da vivência de um milagre. Todos nós sabemos da ligação de Tarkovski com o cristianismo e o modo como ele transporta para a arte seus ideais de fé, moral, verdade e espiritualidade. Apesar disso, Tarkovski nunca produziu obras moralistas, mas sempre polissêmicas e carregadas de um misticismo que está além de algum tipo de cartilha religiosa institucional, pois o olhar místico leva, em última instância, para a salvação pela arte, pela imagem sacralizada.

No início do filme, Tarkovski apresenta o protagonista, Alexander, realizando uma tarefa curiosa: ele planta uma árvore morta, seca. O personagem nos fala, enquanto realiza a atividade, sobre uma fábula oriental na qual um homem faz o mesmo que ele: planta e cuida de uma árvore morta. Depois de três anos fazendo diariamente aquela mesma coisa, o homem da fábula nota que a árvore renasce e dá flores. Após contar essa anedota, Alexander afirma que uma simples ação repetida cotidianamente deve, de algum modo, mudar algo no mundo. Mudança não em sentido metafórico, mas uma mudança concreta, como se houvesse uma força holística a reger os fenômenos. Após essa cena, surge a figura enigmática do carteiro (Otto), que divaga junto a Alexander sobre o conceito nietzschiano do eterno retorno. Penso que toda essa cena inicial, filmada magistralmente em um único plano, abarca significativamente as intenções mais fundamentais do filme, já que todo o seu desenvolvimento terá como princípio esse conflito entre a ordem “natural” das coisas, em sua temporalidade linear, e um tempo que rompe com essa estrutura e transcende os limites do cotidiano.

(imagem I)

imagem II

Nietzsche, voltando seu pensamento para a filosofia pré-socrática, considera o universo não como infinito, mas como um sistema fechado, cíclico. Nessa perspectiva, todo o movimento, tudo o que existe e é experienciado, irá se repetir infinitamente, visto que as trocas entre os elementos são limitadas. Além de pensar o eterno retorno como a repetição das forças cósmicas, expressadas em qualquer aspecto da vida, há também a perspectiva de pensar esse conceito como uma nova forma de lidar com a temporalidade, expressa em condutas libertadoras e de desapego. É assim que Otto se expressa a Alexander, afirmando que o mesmo, apesar de todo o seu sucesso como intelectual, ainda é um ser angustiado e cheio de expectativas. Nietzsche possui uma noção na qual presente, passado e futuro são exterminadas em nome de uma vivência mais autêntica no agora (pois apenas o agora existe), em que o esquecimento, e não a memória, tem muito mais forças propulsoras de transformações efetivas. Ironicamente, a mudança parece vir da aceitação de um ciclo que se repete e, consequentemente, tal ideia deve gerar um esvaziamento libertador, quase um estoicismo.

Essa concepção corrobora com a filosofia amoral de Nietzsche e da sua transvaloração dos valores. Se tudo é troca infinita de forças (e nada mais do que isso), então todo o projeto humano calcado no ideal de progresso, evolução e superação precisa ser revisto, assim como todas as instituições, todos os conceitos básicos que constitui isso que chamamos de civilização, incluindo aqui o que entendemos por ciência, arte, técnica, história, etc. Em O sacrifício, a crítica ao progresso é evidente, mas Tarkovski faz também uma reflexão mais profunda sobre outra possibilidade de existência calcada na radicalização da compreensão de um rompimento com a marcha do progresso e das convenções sociais, que no filme se concretiza com o personagem incendiando a própria casa e “abandonando” a família, caindo em processo de enlouquecimento, evidentemente julgado por outrem. Em Agostinho, em suas reflexões sobre o tempo, ainda que se estabeleça um tipo de tempo cronológico, há uma belíssima consideração sobre o “eterno agora”, que seria o “tempo” de Deus, mais precisamente, a Eternidade que antecede qualquer tempo. A meu ver, o eterno retorno nietzschiano se assemelha com esse eterno agora agostiniano, mas a ambição de Nietzsche é muito maior: tirá-lo de Deus e torná-lo humano, ainda que o preço por isso seja alto demais. Não é em vão que Alexander toma atitudes extremas, como tantos outros personagens de Tarkovski que se sacrificaram em nome de uma vivência que “atingiu a transcendência”: basta pensarmos no Stalker e no personagem que incendeia a si mesmo em Nostalgia. A construção temporal de Tarkovski, exposta em sua obra cinematográfica e em seu livro Esculpir o tempo, revelam uma preocupação em capturar o instante em sua pureza, através de uma suspensão do tempo e seus entraves cotidianos. O ideal de Tarkovski é capturar na imagem a eternidade, o agora em sua singularidade, em busca de uma revelação mística através da contemplação do plano.

(imagem III)

Outro pensador, agora contemporâneo, também pensou sobre novas e radicais possibilidades de experiência através de reflexões sobre o tempo. Walter Benjamin, vinculado estreitamente ao aspecto fragmentário e ao poder das imagens e da ruína, cunhou o conceito de tempo-do-agora, nas famosas teses sobre o conceito de história. Uma proposta ousada que une messianismo judaico e marxismo. No judaísmo, esse tempo-do-agora seria uma interrupção do tempo concebido como homogêneo e vazio, para uma reestruturação da vida através de uma noção de redenção. No marxismo, essa interrupção e redenção não se dariam pela volta do Messias, mas pela atividade revolucionária que deve estar atenta as convulsões sociopolíticas provocadas pelo ideal de progresso. É famosa a imagem criada por Benjamin do anjo da história, em que é arrastado por todos os entulhos e ruínas que são o resultado da cultura que “progride” na medida em que acumula injustiças e exploração. Benjamin quer, portanto, acertar contas com o passado, vendo em uma reparação social uma nova maneira de estimular a emancipação humana. Mais uma vez a temporalidade convencional é colocada em cheque em nome de uma vida mais autêntica.

A atitude de Alexander me leva a pensar em semelhanças entre essa concepção de Benjamin e Tarkovski. Em ambos, há uma explícita crítica ao progresso e à técnica usada para fins nefastos. Se em Benjamin há um impulso revolucionário e ao mesmo tempo messiânico de interrupção da história e sua temporalidade tendenciosa, em Tarkovski, há o mesmo impulso, mas sempre manifestado na atitude isolada, deslocada da organização política e, portanto, oprimida e silenciada. O que se vê em Tarkovski é uma utopia que se concentra em apenas um sujeito e se expande, diante de nós, como sonho irrealizável, apenas presente na imagem artística. Se Benjamin acreditava em mudanças concretas, Tarkovski nos diz que é tarde demais, nos restando simplesmente contemplar aquilo que se perdeu.

Eterno retorno; eterno agora; tempo-do-agora; tempo cíclico e interrupção messiânica através da ação política e da arte, não são poucas as perspectivas lançadas por artistas e pensadores para propor novos e desafiadores olhares sobre a cultura ocidental. O sacrifício, com Alexander ateando fogo em sua própria casa, abrindo mão de tudo diante de um novo e redentor significado da vida, acaba por representar, no cinema, uma das mais potentes críticas a uma sociedade há muito adoecida pelo ritmo de Kronos. Ao esculpir outro destino para o tempo, Tarkovski nos mostra o quanto precisamos morrer para que surja, mesmo que em sonho, uma nova vida.

Referências:

Ambiências do sagrado (2017), de Adalberto Müller.

Confissões (2011), de Santo Agostinho;

Assim falou Zaratustra (2011), de Friederich Nietzsche;

Sobre o conceito de história (2012), de Walter Benjamin ;

Esculpir o tempo (2010), de Andrei Tarkovski.

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O céu é uma massa horrenda de videocassetes rodopiantes e videogames Magnavox

Por Natália Reis

And those who expected lightning and thunder
Are disappointed.
And those who expected signs and archangels’ trumps
Do not believe it is happening now.
As long as the sun and the moon are above,
As long as the bumblebee visits a rose,
As long as rosy infants are born
No one believes it is happening now.
(A Song on the End of the World, CZESLAW MILOSZ)

 

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Phillipe Dubois, teórico que, entre outras coisas, percorreu as possibilidades do vídeo enquanto imagem e dispositivo, fala de um “lugar dilacerado na história” ocupado pelo formato, condicionador de uma imagem transitória, que pende entre o cinema e o digital: é como “um banco de areia, entre dois rios, que correntes contrárias vêm apagar progressiva e rapidamente”, “um parêntese”, “um interstício ou um intervalo”, “uma ilha destinada a submergir”. Nesse não-lugar da analogia de Dubois, uma figura antes difusa entra em foco: num motel de beira de estrada, um homem branco de meia-idade espreita através das cortinas o céu escurecer e ser preenchido por nuvens carregadas, tv e rádio ligados anunciando a tempestade iminente, dias de espera. Em Weather Diary 1 (1986), primeiro filme da extensa série de “diários climáticos” de George Kuchar, a imagem ilhada é a esperança nunca concretizada de testemunhar um fenômeno meteorológico de magnitude e captá-lo na câmera de vídeo.

Por quase trinta anos, Kuchar manteve as idas periódicas ao estado de Oklahoma, coração da região conhecida como Tornado Alley (“alameda dos tornados”), no intuito de observar o clima e suas reverberações. Primeiramente instalou-se numa YMCA, associação para jovens cristãos na cidade de Oklahoma, e posteriormente no pequeno município de El Reno, onde realizou em 1977, Wild Night in El Reno, curta de pouco mais de 5 minutos de duração e de certa forma gênese dos Weather Diaries. O interesse por meteorologia nutrido desde a juventude – para além de um fascínio pela “tapeçaria colorida do céu que pairava sobre os cortiços de onde morava” como descreveria mais tarde, o diretor também já havia trabalhado fazendo mapas climáticos para o noticiário local – vem ao encontro de um potencial criador igualmente prematuro: desde os 12 anos de idade, George e o irmão gêmeo Mike produziam filmes em super-8 que replicavam, à sua maneira, os melodramas comerciais hollywoodianos e filmes B de terror consumidos por sua família de classe trabalhadora do Bronx. Com a naturalização das câmeras de vídeo nos anos 80, o fluxo (sempre considerável) das produções é amplificado, a comodidade e o baixo custo somados a uma estética por vezes considerada de filmes caseiros e/ou pouco artísticos, se tornam material basilar para os trabalhos posteriores de George Kuchar, incluindo seus diários.

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O filme-catástrofe como gênero, na sua essência, conclama pelo esforço coletivo em prol de um bem maior, seja o cumprimento de uma missão (Twister, 1996) ou a própria salvação (O dia depois de amanhã, 2004; 2012, 2009). A fuga e o deslocamento também figuram como forças motoras do gesto de sobrevivência, uma vez que a imobilidade significaria o fim (afinal um fenômeno natural só se torna catastrófico no momento que irrompe no cenário urbano, humanizado). O que Kuchar faz nos seus Weather Diaries, e sobretudo no primeiro filme, é justamente subverter essas abordagens partindo da calamidade como rotina solitária, uma espera permeada pelas previsões e notícias que chegam do mundo externo através do rádio e da tv, e mediada pela paisagem desgastada na janela do quarto no Motel Reno. Uma forma de existência no porvir.

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Em Gummo (1997), de Harmony Korine, crianças e adolescentes perambulam entre as ruínas de uma cidade devastada após a passagem de um furacão. Se o filme é por vezes tratado como apocalíptico, é possível que seja menos pela destruição causada pelo tornado e mais pelo que ela escancara: uma classe de pessoas fragilizadas, subnutridas e semialfabetizadas, cuja condição de vida precária numa área de risco a coloca sempre perto do fim. Numa mesma chave em determinado momento de Weather Diary 1, Kuchar conversa com uma mulher de traços indígenas sobre um alerta de tempestade. A mulher é filmada de costas olhando para o céu com preocupação, e é questionada se teria algum lugar onde se abrigar. A resposta – ela mora em um trailer estacionado perto dali – vem com palavras apaziguadoras (e no fundo temerosas) de ambos interlocutores de que, afinal, o evento não deve ser tão avassalador assim. Mais tarde, enquanto o céu parece desabar, o diretor se lembra da breve companhia

O medo e o desejo estão ali, mas o que transborda em Weather Diary 1 é o tempo e as transformações suscitadas na natureza (nos elementos humanos e não-humanos) e no corpo do diretor. Com o decorrer dos dias, poças e insetos se acumulam, quedas de energia se tornam frequentes, aparelhos eletrodomésticos começam a ranger, a pia entope e brotoejas se espalham sobre a pele de Kuchar. Lá fora, rostos conhecidos dizem adeus, algumas crianças brincam em um córrego poluído e os cães rondam animais mortos. A montagem, realizada na própria câmera, é quase toda composta por inserts, por meio de um método que consiste em retomar cenas antes gravadas e criar e simultaneamente preencher fissuras com novas cenas, novos comentários. Nesse processo, o que se experiencia é uma cronologia que obedece apenas à própria ordenação, como o fluxo da programação da tv que Kuchar goteja pelo filme inteiro, ou o vortex que escapa da descarga do vaso sanitário, no ralo da pia e no café mexido, sucedendo um ciclo de deterioração do universo pessoal do diretor.

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Nos últimos filmes da série, o motel habitualmente ocupado por Kuchar é transformado em casa de repouso – o que não o impede de continuar frequentando e muito menos de se tornar o único hóspede posto em um quarto inalterado enquanto reformam tudo ao redor. Essa imagem talvez seja a sumarização do lugar do realizador nos seus diários: um “storm squatter”[1] (se dizia) em oposição aos storm chasers, um ponto fixo num estado das coisas retido na incerteza. Se a câmera, como afirmava, era o que o protegia no vislumbre do mundo que parecia ruir sob a ameaça de tempestade, ela também é ancoragem da sua presença, uma alternativa preciosa para tempos nos quais só é possível olhar pelas telas e janelas.

Referências

Dubois, P. (2014). Cinema, vídeo, godard. Editora Cosac Naify.

MacDonald, S., & Kuchar, G. (1985). George Kuchar: An Interview. Film Quarterly, 2-15.

Ziemons, U. (2014). Aufzeichnungen eines Storm Squatters: George Kuchars Weather Diaries (Vol. 15). transcript Verlag.

[1] Algo como “sedentário de tempestades”

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CINEMA E APOCALIPSE

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Nós (Us, Jordan Peele, 2019): apocalipse subterrâneo
Kênia Freitas

Shyamalan e a iminência
Bernardo Oliveira

O apocalipse filmo eu: Sogobi, de James Benning
Pedro Tavares

O céu é uma massa horrenda de videocassetes rodopiantes e videogames Magnavox
Natália Reis

À beira do abismo: Miracle Mile, de Steve De Jarnatt
João Pedro Faro

A nostalgia e pulsão sexual em Estranhos Prazeres de Kathryn Bigelow
Gabriel Papaléo

Saindo de férias durante o apocalipse: Mad Max e o negacionismo
Bernardo Moraes Chacur

O Sertão como meio e o Sertão como fim
João Lucas Pedrosa

Entre templos e ruínas: fim do mundo e continuidade do cosmos
Luís Flores

Alegoria e corpo em Medo do Escuro
Camila Vieira

Godzilla ontem e hoje
Flavio C. von Sperling

Há um olho que me observa
Felipe Leal

Circuitos ao vento: a solidão no fim do mundo de Kairo (2001), de Kiyoshi Kurosawa
Diogo Serafim

Pode até que isto seja um grito
Lucas Saturnino

Um outro destino para o tempo em O Sacrifício, de Tarkovski
Chico Torres

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Shyamalan e a iminência

Por Bernardo Oliveira

shyamalan

I. (tomorrow is the question)

Os alienígenas em Twin Peaks — The Return estão bolados: demonstram preocupação extrema com o destino aparentemente inevitável da Terra. Com o advento dos testes nucleares, isto é, através de sua própria atividade, o “tipo Homem” atravessou um perigoso limiar, tornando concreta a possibilidade de sua própria extinção. Na antessala onde ocorre o bizarro parlamento, projetam-se imagens do acontecimento que pode determinar a destruição do planetinha vagabundo e da corja desalmada que o habita. As imagens incidem sobre uma tela instalada no hall, cuja aparência lembra a de uma sala de cinema, mas sem as poltronas. Seres antropomórficos assistem ao espetáculo da destruição como quem vê a realidade cósmica através da tela de cinema. Como no processo aterrador do Apocalipse bíblico, o Cinema também encontra sua potência em tramas de afetos e afecções, em articulações fantasmáticas entre imagem, som e palavra. A nós, espectadores terrenos e mortais, resta embarcar em um dos mais intensos fluxos audiovisuais da cinematografia recente. Invenção e escatologia se imbricam no imaginário apocalíptico criado por David Lynch.

Apocalipse, do verbo grego clássico apokálupsis (ἀποκάλυψις) — que é a junção do prefixo de negativo ápó (ἀπό) com o verbo kalúptô (καλύπτω, esconder), dando forma ao sentido de algo que se descobre, se revela, se torna público. O sentido mais literal do termo não se relacionaria somente à destruição, mas à ideia de algo que se descobre ao fim de um processo. Apocalipse, isto é, uma “revelação”. Em termos literários, o Apocalipse canônico teria, como uma de suas características, a proliferação de acontecimentos terríveis, carregados em imagens absurdas, que embaralham as dimensões da linguagem e das sensações. Redigido pelo profeta  João de Patmos, o Apocalipse descreve um cortejo de criaturas extravagantes revirando o Planeta de alto a baixo. Um espetáculo carnavalesco, trágica representação do acerto de contas divino com a humanidade vacilona. Bodes degolados com sete olhos e sete chifres, sete anjos que nos lançam sete pragas, “miríades de miríades e milhares e milhares” de anciãos, taças douradas, incensos, raios de fogo e lava, choros e gemidos suplicantes, mares de vidro e fogo. A colheita maldita separa os puros e os impuros, os sagrados e os degradados, “morte, miséria e fome”. Imagens de um filme-catástrofe que tira proveito do esgotamento para fazer transbordar um sentimento delirante de vingança divina.

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A catástrofe apocalíptica teria por função varrer do mapa o mundo tal como o conhecemos, expondo a todos — a todos, mesmo! — o conteúdo derradeiro do processo, isto é, o valor e o poder verdadeiros. O poder revelador da catástrofe é, portanto, um poder que evoca o sentimento generalizado de pavor diante da finitude humana, pavor que é produzido pela sensação de que o fim do mundo, tal como o conhecemos, é inescapável. O fim do mundo corresponde ao desmascaramento de todas as ilusões de sobrevivência, particularmente da raça humana. E, no intervalo entre a destruição e a revelação, pode-se flagrar a oscilação apocalíptica, as múltiplas forças da dúvida e do movimento, que incidem sobre os viventes e que rebatem o pavor, redistribuindo as cartas.

Shyamalan tematiza diretamente o fim do mundo em Fim dos Tempos e Sinais, operando também a tensão revelatória em praticamente todos os seus filmes. O conteúdo derradeiro, porém, nunca é exposto ou resolvido em sua totalidade, ficando espaço-tempo e personagens à mercê de uma realidade descontinuada. O Apocalipse shyamalânico não se concretiza, mas funciona como pressuposto para a manipulação das atmosferas que envolvem seus personagens. Seu ponto de vista se vê oscilando entre a descoberta e a destruição, sempre sob a perspectiva da Iminência — “pois o tempo está próximo…” (Apocalipse, 1). O foco não reside no fim, na destruição de toda a ordem, tampouco na revelação da nova ordem, mas nas variações particulares provocadas pela situação de suspensão. O conteúdo revelado — místico, misterioso ou escatológico — corresponde à suspensão da ordem universal, natural ou restrita, sem que sejam substituídas imediatamente por outras ordens. Se há um registro apocalíptico na obra de Shyamalan, não se trata nem de um apocalipse derradeiro ou terminal, nem do anúncio de uma verdade; mas desse espaço de suspensão entre a destruição e a renovação.

Lemos no escrito canônico do Apocalipse, que integra o Novo Testamento, algo que nos remete diretamente à potência revelatória que o Cinema manifesta em Twin Peaks. Após uma primeira anunciação divina, o profeta assiste a uma cena inusitada: “eis que se mostrou uma porta aberta no céu; e a voz […] falando comigo, dizendo: ‘Sobe até aqui e eu te mostrarei as coisas que é preciso que aconteçam depois dessas’.” O céu se abre como a tela de cinema alienígena e, através dela, recebemos, a um só tempo, um comando decisivo, um testemunho do devir e uma convocação para a ação. Na situação revelatória, deserdados pelo destino dos ingênuos, somos forçados a traçar uma linha de fuga e agir a todo custo.

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Assistimos aos nossos próprios traumas se dissolverem ante ao espetáculo da destruição. O horizonte de expectativas é borrado pela dúvida: o que virá? Como em praticamente todos os seus filmes, trata-se também de um elogio e de uma operação sobre a hesitação: duvidar daquilo que se vê e crê; paulatinamente tomar consciência da enrascada em que nos metemos. A dúvida — que fazer? — empurra a trama adiante e mantém o processo irresoluto entre a realidade deste e a de outros mundos possíveis. Em meio à iminência, ocorre também a intermitência da catástrofe, os fragmentos do conflito que se espalham e se depositam pelo seu entorno. O terror, como subproduto da dúvida, advém de uma realidade envolta nas consequências imprevistas da suspensão revelatória: o mito comunitário e opressor descortinado em A Vila; a trama invisível que incide sobre os humanos em Fim dos Tempos (melhor seria tomarmos pelo seu título original: “O Acontecimento”…); a ameaça alienígena como escravização do humano em Sinais; a esperança de reconduzir a “Dama da Água” de volta ao seu mundo. Manter a dúvida é fundamental. Assim, o autor não dissolve, mas torna fluido o limite entre a luz e a escuridão. Seu cinema é apocalíptico, porque se autodetermina no limiar entre finito e infinito, ciência e subjetividade, magia e realidade, mantendo em aberto o espaço da iminência. Entre a iminência e o interdito, há mais do que uma diferença de grau, mas a emergência de uma nova ordem, que permanecerá desconhecida. Shyamalan não pretende iluminar a escuridão, mas posicionar seus personagens em uma fronteira cinzenta, de modo que eles testemunhem e reajam à catástrofe inevitável.

II. (broken shadows)

“Cresci hindu”, afirma Shyamalan em uma entrevista. Naturalizado norte-americano aos 18 anos, substituiu o Nelliyattu pelo Night e abreviou Manoj.: M. Night Shyamalan. Nasceu em Mahé, pequena cidade em Pondicherry, Distrito Nacional da Índia, migrando para a Pensilvânia com seis anos de idade e naturalizando-se norte-americano durante a Faculdade. Ainda jovem, realizou dezenas de filmes em Super-8, sob a influência de Steven Spielberg, o cineasta judeu responsável por um dos filmes mais ofensivos de que se tem notícia contra a religião Hindu: Indiana Jones e o Templo da Perdição (1984). Isso não impediu Shyamalan de tomar Spielberg como referência, mas, também, de forma inequívoca, de subverter a máquina spielberguiana, sabotando-a por dentro. Digo isso, pois, não tendo a competência para uma análise breve da diferença entre Protestantismo e Hinduísmo, assim como das relações de aproximação entre Judaísmo e Protestantismo, gostaria apenas de observar que o Protestantismo opera por redução, ao máximo, dos caminhos que conduzem à divindade, tendo as restrições prescritas pelas “Cinco Solas”, critérios de estreitamento simbólico. Só há um caminho e a disputa é o termo exclusivo. Sobre esse aspecto, o Hinduísmo é duplamente contrário ao Protestantismo e ao Judaísmo: não há apenas um só caminho a percorrer ou uma divindade a adorar, tampouco uma divisão tão rígida entre a imanência e a transcendência.

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O preconceito norte-americano é o subproduto direto da ganância nacional: a ética protestante preside o espírito do Capitalismo. A ética da competição, a educação para o sucesso e para o fracasso, o peso de ser um loser… Mas é também uma resposta formulada pelo medo do futuro. Shyamalan nos oferece uma cartografia ambígua do medo norte-americano, cultivado inclusive por uma cinematografia milionária. Em seus filmes industriais, as ameaças surgem sob a forma de alienígenas, do fim do mundo, da morte e do além-morte, dos mutantes, dos superpoderes e da tecnologia que não dominamos. Os imigrantes são sempre representados como subalternos ou ameaça. Shyamalan reverte o esquema: a ameaça serve como meio de exposição dos preconceitos — e não seria a sociedade representada em A Vila, eventualmente terraplanista e antivacina, a mais forte caracterização do olhar crítico que Shyamalan lança sobre a sociedade norte-americana?

Inverte-se a lógica triunfalista do drama hollywoodiano e desdobram-se possibilidades intensivas, outros tipos de relação com o clichê e o gênero, ambos expositivos e marcados por um estilo preciso no enquadramento e nos movimentos de câmera: de um lado, “o universo em desencanto cósmico”; de outro, “a natureza em suspensão mística”.

Quando o Universo se encontra em desencanto cósmico, o processo de desmoronamento definitivo ou provisório é o grande tema. Como em A Vila, Fragmentado, Sinais, Fim dos Tempos, Olhos Abertos, o presente é deformado por forças do passado, atualizadas por acontecimentos misteriosos e traumas insuperáveis. Marcado por seu sofrimento particular, os personagens se veem na necessidade de suspender provisoriamente o trauma e superar a personalidade, por força da necessidade urgente de ação e mudança. Em Fragmentado, a besta perdoa somente os cindidos, os quebrados, os que sofrem e superam. O sofrimento é o que sublima as potências próprias de Crumb e Elijah. O indivíduo é impelido à desfragmentação, perde sua individualidade e busca reconstruir-se a partir das forças atemporais do Cosmos. Em A Vila, por exemplo, abre-se a caixa do passado no exato momento em que a menina, através de um esforço descomunal, atravessa a fronteira em direção ao “fora”, independente da catástrofe que este “fora” determinará na vida daquela comunidade. Em Sinais, o inesperado ocorre justamente em uma fazenda isolada do mundo, onde o luto e o desencanto plantaram raízes e se instalaram definitivamente. O acontecimento misterioso, que impele os humanos a cometerem suicídio inconsciente, obriga o professor do high school a usar seus conhecimentos científicos para salvar a si e aos seus. A revelação reside na instalação de uma simultaneidade, onde presente e passado incidem misteriosamente, um sobre o outro, se iluminam mutuamente e exigem mudança e superação.

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A Natureza em suspensão mística corresponde à suspensão do tempo-espaço convencional, abrindo a realidade para o além e o aquém do humano; e, em alguns casos, para as volatilidades das formas orgânicas e inorgânicas. Futuro, presente e passado coincidem, tornam-se simultâneos, ainda que assimétricos, em seus graus de manifestação intensiva. Os poderes especiais dos personagens, seus mundos específicos, suas características divergentes, tudo conduz ao alargamento do horizonte de atividades: a trilogia dos heróis opera diretamente essa desnaturalização da potência, em força cega interiorizada. O mesmo ocorre também com o menino-médium em Sexto Sentido, o menino desafiado por uma natureza alienígena em Depois da Terra, o surgimento de uma ninfa intraterrena em A Dama da Água, os poderes de outro menino extraordinário em O Último Mestre do Ar (aliás, remeto a presença forte das crianças às “Três Metamorfoses” de Zaratustra: de camelo a leão e, por fim, à criança, ou seja, a inocência do devir, o Amor Fati…) Em Sexto Sentido, a intuição mediúnica tem o poder de reparar o passado, pois, conversando com os mortos, o menino remedia e atualiza suas dores. A força e a fraqueza de Elijah Price e David Dunn nunca se colocam como absolutas; parecem obedecer a graus de atualização por interdependência, fornecendo a base dialética para a ampliação da individualidade — para cada herói, um duplo: a mãe, a amiga e o filho. A revelação reside na descoberta do transindividual, expondo tanto a condição provisória do humano, como também as potências ocultas e os poderes impróprios.

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Vale notar que muitos dos filmes reúnem os dois registros. Sinais, por exemplo: universo em desencanto cósmico, oscilando brutalmente entre o trauma e a dúvida; mas também a Natureza em suspensão mística, revelando seres extraterrenos e, com eles, um desdobramento da impotência humana diante do que virá, não importa se o caos ou o destino. Fim dos Tempos também comporta a volatilização da Natureza e a superação do humano. Em A Vila, esse limiar entre humano e inumano é motivo de oscilação; assim como em Corpo Fechado e Fragmentado — em Vidro, essa dúvida torna-se o epicentro da questão, servindo como base ao extraordinário diálogo entre a psiquiatra e os heróis. A Visita constituiria o caso divergente, pois não sendo nem cósmico, nem místico, mantém-se no domínio da hesitação privada.

III. (skies of america)

Não há personagem nos filmes de Shyamalan capaz de provocar o mesmo grau de desencantamento do que o planejado pela psiquiatra Ellie Staple e seu poder científico, institucional e policial. Olhar penetrante como uma dose de Pentobarbital, enquadra os pacientes enquanto distúrbios clínicos, reações naturais — e não sobrenaturais — aos traumas que atravessaram. A psiquiatra não esconde um afeto perverso por seus casos, comunicando-se com eles através de seu rosto calmo e voz segura. Dra. Staple representa a responsabilidade fria do Capital, o poder policial da Ciência, mais voltado para a estabilização do status quo — representado por um restaurante metido a besta — do que por sua transformação. Usando métodos semelhantes aos da terapia familiar e, eventualmente, aos da tortura, Dra. Staple encara suas preciosas anomalias com firmeza de propósito e autocontrole. Como toda psiquiatra, ela cobra dos casos a prova do desencanto, a confissão voluntária e o voto pela normalidade. Dra. Staples representa a força do establishment, a força da violência normalizadora, incomparável à violência perpetrada pelo vigilante, pelo gênio do mal e pelo assassino fragmentado.

A resposta dos heróis fortalece a aliança anômala e, sustentando a dúvida, permanece tão ambígua quando evidente. Apesar do projeto de normalização, sempre persiste um master plan, nem que seja um plano suicida. Apesar da realidade vigente que constrange os superpoderes, apesar de se autodestruírem, apesar de vulneráveis às armas policiais, o trio insiste: “nós existimos”. A interrupção da proliferação anômala pode ser compreendida tanto como uma vitória parcial do poder despótico, como um lamento diante da morte da diversidade. O que suscita o pavor não são os superpoderes, mas a descrença radical nas potências pré-individuais, potências de renovação do presente. Em suma, a descrença no presente enquanto portador de élan vital, devido ao baixo grau de diversidade humana, vegetal e animal — como adverte Pascal Picq em seu livro A Diversidade em Perigo, chamando a atenção para “os desenraizados pelos avanços da civilização são cada vez mais numerosos”.

(from left) Samuel L. Jackson as Elijah Price/Mr. Glass, James McAvoy as Kevin Wendell Crumb/The Horde, Bruce Willis as David Dunn/The Overseer, and Sarah Paulson as Dr. Ellie Staple in "Glass," written and directed by M. Night Shyamalan.

Escrevendo sobre o conteúdo apocalíptico e o Milenialismo do cinema norte-americano na virada do século, Kirsten Moana Thompson mostra que a atmosfera apocalíptica é engendrada por ansiedades, provocadas pela instabilidade da opressão presente:

“Repetidamente, quando o desastre ocorreu, o pensamento escatológico entendeu a ruptura política, social ou física como presságios do começo do fim do mundo; a enorme devastação causada pela praga bubônica nos Séculos XIV e XV e a ameaça de invasão islâmica no Século XVI, provocaram o retorno dessas ansiedades”.

Thompson complementa o que escreve Eva Horn em The Future As Catastrophe:

“O valor político das profecias bíblicas, portanto, estava diretamente nas imagens da queda dos impérios, da destruição dos emblemas do poder terrestre e da punição dos poderosos. Essa destruição é uma promessa de que o poder mundano terminará e que o mundo atual estará sujeito a um final”.

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A força motriz desse acontecimento é o presente indefensável. Assim como as narrativas proféticas, que acorrem a um diagnóstico implacável do presente, Shyamalan problematiza seu próprio tempo através de uma crítica velada, às vezes imperceptível, a conceitos e valores caros ao léxico político da Modernidade — nação, território, fronteiras, defesa, soberania. Convém, então, dizer com todas as letras: os filmes de Shyamalan operam a partir do fluxo de imagens extraídos da décadence americana, a decadência dos Estados Unidos da América. Hackeando os mecanismos redutores de representação da alteridade do Cinema norte-americano, seus filmes parecem sugerir que a hegemonia dos Estados Unidos se encontra em processo de dissolução.

Como consequência, seu cinema também capta a decadência de um certo modelo épico, racista e autossuficiente. Edward Walker não corresponde, necessariamente, a sua aparência superficial, o pai dedicado e líder responsável. Antes, eu o percebo como um alt-right bizarro que dispõe abusivamente dos destinos da comunidade. Da mesma forma, estamos acostumados a encarar o vigilante no cinema como um herói inequívoco, tal como personificado por David Dunn. Mas podemos considerar igualmente que a descrença do justiceiro na política e no Direito é tão nociva quanto os abusos conduzidos pela instabilidade do “fragmentado” e o genocídio que a hiperinteligência do Sr. Vidro pode provocar.  São narrativas que nos situam justamente no limiar entre o mundo competitivo vendido pelo American Way of Life — AKA Capetalismo — e a abertura que ele propicia para reações catastróficas, geradas pela fé-cega no “mercado”, no indivíduo e no fim da política.

Referências:

BÍBLIA: Novo Testamento: os quatro Evangelhos. Tradução do grego, apresentação e notas por Frederico Lourenço. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

HORN, Eva. The Future as Catastrophe. Imagining disaster in the modern age. Translated by Valentine Pakis. New York: Columbia University Press, 2018.

PICQ, Pascal. A diversidade em perigo : de Darwin a Lévi-Strauss. Rio de Janeiro : Valentina, 2016.

THOMPSON, Kirsten M. Apocalyptic Dread: American Film at the Turn of the Millennium. Albany, N.Y.: State University of New York Press, 2007.

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JEAN COCTEAU SE DIRIGE AOS ANOS 2020

Por Bárbara Bergamaschi

     Jean Cocteau previa que, nos anos 2000, os jovens artistas não estariam sentados e muito menos entre duas cadeiras*[1]. De fato esta parece ser a pré-condição de existência do artista no Brasil de 2019 (em breve, 2020). Hoje, mais do que nunca, vive-se sob a ponta dos pés em um constante estado de emergência, prontos para o devir-desvio da torrencial chuva de descalabros vertiginososo preferidas por um (des)governante digno de Ubu-Rei. Como pierrots tragicômicos, os artistas se equilibram de maneira peri-patética no ar, sendo lufados de um lado para o outro pelos furacões do mau-tempo. Os ataques convocam defesas, e assim vemos poetas – se me permitem uma imagem “ao estilo” da veia mitológica de Cocteau – com de escudos de Perseu, tentando lutar contra os monstro ctônicos contemporâneos.

            A retórica se baseia em um espelhamento, é preciso trabalhar dentro da lógica do “inimigo” que impera: justifica-se a existência da arte por números e cifras. É o que se vê na cartela de encerramento de Bacurau (2019), de Kleber Mendonça Filho, por exemplo: ”Este filme produziu cerca de XYZ… quantidade de empregos, de renda, de lucro… Veja como a nossa arte gira a roda da economia!” Ora, não desmerecendo o mérito e o esforço do argumento, mas não haveria um perigo inerente à essa lógica? Filmes de baixo orçamento e que não mobilizam um grande número de profissionais e público pagante não tem valor para sociedade? Devem ser descartados? Não tem razão de existir?

            Tendo este panorama distópico em mente, me pergunto: como produzir algum tipo de pensamento sobre o valor da arte para além de um discurso da rentabilidade alinhado à lógica do capital? Em tempos de ataque à cultura e aos artistas, como pensar o trabalho de um poeta- para além das justificativas financeiras e industriais? Como produzir uma nova forma de pensar a  “economia das imagens”[2]?  É isso que investigarei nessa crítica do filme “Orfeu” (1950)  de Jean Cocteau, retomado recentemente no Brasil pela montagem dirigida por Felipe Hirsh da Opera-adaptação de Philip Glass, encenada no Theatro Municipal do Rio de Janeiro no final do mês de Outubro desse ano.

Tudo que não invento é falso. – Manoel de Barros

            Jean Cocteau, o cineasta surrealista, representante mais notável da avant-garde francesa, dizia que sempre preferiu a mitologia à história porque: “a história é feita de verdades  que eventualmente se transforma em mentiras , enquanto a mitologia é composta de mentiras que eventualmente se tornam verdades”. O mito de Orfeu foi a narrativa privilegiada escolhida por Cocteau para servir de parábola sobre o papel do poeta na sociedade – e por poeta aqui entende-se todos aqueles que fabricam algo da ordem da aesthesis, obras que agenciam os cinco sentidos, em suma qualquer artista, aí incluso músicos, pintores e cineastas. Cocteau adapta o mito grego para o seu tempo na trilogia orféica composta por: Sangue de um Poeta (1932),  Orfeu (1950) e enfim no Testamento de Orfeu (1960).

            O mito original conta a tragédia do poeta e tocador de lira homônimo, que a todos emocionava com suas composições e cantos. Orfeu perde sua amada, Eurídice, e resolve descer ao Inferno para trazê-la de volta à vida. Após ultrapassar todos os obstáculos do submundo com sua cítara – sendo inclusive capaz de adormecer e amansar a temida besta-fera Cérbero, cão de três cabeças, guardião do portão do Inferno –  Perséfone, mulher de Hades e rainha do submundo, concede ao poeta à alma de Eurídice. Ela autoriza que retorne ao mundo dos vivos com sua esposa, desde que não olhe para trás durante o percurso. Orfeu não consegue manter sua promessa, pois no último segundo se vira para ver se alma de Eurídice o acompanha. Neste momento ela é rapidamente puxada de volta para o mundo dos mortos, sumindo em um piscar de olhos. Resulta em um fim melancólico a Orfeu que, desolado, termina despedaçado no rio Hebro pelas Bacantes (também conhecidas como Ménades), mulheres do séquito de Dionísio, que não se conformam com a indiferença que o poeta reserva à sua lascividade e erotismo.

            Na nova visão cinematográfica do mestre francês, o famoso poeta “Orfeu” (Jean Marais) encontra-se em uma fase madura, já reconhecido por seus pares e, por isso, vive enfastiado com sua mulher e vida burguesa. Em meio a uma briga de bar, apaixona-se de forma obsedante por uma personagem misteriosa, a rica Princesa (Maria Casares), patrona dos jovens poetas da cidade, que descobrimos se tratar, com efeito, da própria Morte. A paixão é reciproca, e a Princesa orquestra o sequestro do poeta para a dimensão dos mortos, arquitetando também a morte prematura de Eurídice (Marie Déa), esposa de Orfeu, por quem nutre um terrível ciúmes. Dividido entre o amor terreno e o etéreo, Orfeu se aventura nas profundezas do inferno, a princípio com a motivação de salvar sua esposa, porém, vê-se que sua real intenção é explorar o próprio inferno interior e por fim unir-se com o seu verdadeiro amor: a morte, que oferece-o vida eterna – desejo, em última instância, de todo poeta.

            Uma primeira indagação que o filme de Cocteau nos propõe é pensar a da figura do poeta. Afinal o que é um poeta? Para que existe? Qual sua função na sociedade?  Na Grécia antiga acreditava-se que os poetas eram aqueles que eram visitados (geralmente em seu sono) por uma das nove musas[3]. Nesse encontro mítico era o momento no qual ocorria o que hoje nós nomearíamos como a “inspiração”. Assim, o produto artístico chegavam aos homens como resultado da união do divino e do profano. As obras de arte eram, dessa forma, consideradas como algo da ordem do sagrado. Os poetas na Grécia, eram seres escolhidos pelos deuses, ponto de contato entre dois mundos, eram, portanto, extremamente respeitados. Na narrativa de Cocteau, esta função “relacional” do poeta é bastante evidente na misé-en-scène em que Jean Marais se torna obcecado pelo rádio que sintoniza a frequência do submundo onde mora Maria Casares. O rádio seria uma analogia para essa espécie de labor artístico. Como uma espécie de “antena” de sua geração o poeta estaria a todo tempo “a serviço”, conversando com os poetas do passado, desvendando  e atualizando as mensagens cifradas nos tempos presente em uma nova forma ou linguagem. Como uma espécie de fio que conecta as pontas do tempo, o mundo mítico ao mundo secular, em suma, o artista seria uma ponte entre a vida e a morte.

“O poeta é de certa forma um trabalhador, de um modo é mais profundo que ele mesmo e que mal conhece as forças que o habitam. Eu diria até: um esquizofrênico que habita a todos nós, e de que quase todos os adultos têm vergonha, de quem só os heróis, as crianças e os poetas não se constrangem. Os poetas são os intermediários entre esses  “esquizofrênicos” e o exterior, eles tentam tornar isso viável. (…) Não sou responsável por meus personagens e por meus poemas, sou apenas um intermediário, como um médium, uma mão de obra. Todos os poetas são pontes e trabalhadores braçais dessas forças misteriosas que os habitam” – Jean Cocteau em S’adresse à l’an 2000 (1962)

            Os poetas eram também conhecidos na Grécia republicana como aedos, aqueles que declamavam as tragédias e as comédias para um grande público, de forma decorada. O poeta eleito como vencedor pelos espectadores era aquele que conseguia imprimir melhor emoção às histórias que todos já sabiam de cor, ou seja, o valor de um poeta não residia na sua originalidade (lembremos que o “gênio criativo” é um mito burguês moderno) mas na sua capacidade de interpretação. Artista era portanto não apenas um mero “imitador”, mas sim um tradutor, quem melhor permitia que as expressões e paixões dos deuses chegassem aos homem de uma maneira inteligível.

            A expressão “de “Cor”, no original do latim corresponde a palavra coração pois antigamente se pensava que o coração era o órgão da memória. Os poetas eram portanto aqueles que tinham as narrativas – ou, em grego, os mythos – guardados no coração. Eram os guardiões da história de um povo. Aristóteles inclusive, em sua Poética, afirma que o poeta seria mais importante que o historiador, pois enquanto o historiador apenas registra e produz documentos, o poeta organiza o tecido da memória, em um linha causal linear (com começo, meio e fim), dando enfim sentido à vida coletiva experimentada por todos os cidadãos. Ao contrário de Platão que desconfiava e via um perigo no potencial farsesco do poeta, para Aristóteles, a capacidade fabuladora do artista permitiria a criação de um princípio de identidade e coletividade, transformando-o em um ator social de suma importância para a polis grega.

HOLY MOTORS

            Há muitas interpretações possíveis para o fim trágico do mito de Orfeu. Em uma análise primeva poderíamos dizer que a moral da história é que não deve-se olhar para o passado afim de não perder o que se conquistou no presente. Uma outra leitura alternativa seria a de não se questionar as determinações divinas e do destino, questionar a autoridade e duvidar das ordem dos deuses é algo que não ocorre sem sofrimento e punições. Uma das interpretações que acho mais interessantes é a que está presente em O Banquete de Platão, em que Fedro discursa sobre amor usando como caso exemplar o de Orfeu:

“(…) A Orfeu, o filho de Eagro, eles o fizeram voltar sem o seu objetivo, pois foi um espectro o que eles lhe mostraram da mulher a que vinha, e não lha deram, por lhes parecer que ele se acovardava, citaredo que era, e não ousava por seu amor morrer, mas maquinava um meio de penetrar vivo no Hades. Foi realmente por isso que lhe fizeram justiça, e determinaram que sua morte ocorresse pelas mulheres; “.

            Orfeu, nesta interpretação, é punido pelos deuses por desconfiar do amor terreno dos homens. Assim, ao se virar para trás, expõe para si mesmo e para os outros que no âmago do seu ser não estava verdadeiramente compromissado com sua amada, não tinha fé no seu amor. Cocteau também expõem este lado perverso de todo artista, que no afã de adentrar a imortalidade, se sobrepõe aos outros “reles mortais’. O desejo de se preservar na História com H maiúsculo faz com que fique cego para o seu semelhante, a assim, se torna autocentrado, extremamente cruel e egoísta.  No filme, Orfeu não dá ouvidos ao ‘chofer’ da Morte – Heurtebise (François Périer) quando ele lhe revela que sua ‘Eurídice’ (Marie Déa) está prestes a morrer. Orfeu também não consegue perceber que a sua passagem para imortalidade está garantida e “ bem debaixo do seu nariz” – quando ele ignora todos os sinais de que Eurídice está grávida.

HOLY MOTORS

            O egocentrismo fatal do artista também se metaforiza na presença do espelho em toda a narrativa. Diz a Heurterbise: “vou te dar o segredo dos segredos. Espelhos são as portas através das quais a Morte vem e vai. Olhe-se no espelho por toda vida… e verá a morte trabalhando, como abelhas numa colmeia de vidro…”. É através do reflexo, do distanciamento de si e da conversão do artista enquanto imagem – ou seja, da visada de si enquanto figura pública, enquanto objeto – que o artista se aproxima da morte. Faca de dois gumes,o Ego é causa e fim do artista, razão de sua glória e decadência. Nessa hora vale lembrarmos do mito de Narciso, que comovido por sua própria beleza no reflexo do lago se apaixona pela própria imagem, e se esquece do real a ponto de se afogar. Na encenação de Felipe Hirsh, a tópica do espelho como porta acesso para o mundo invertido-  a la Alice – é o que orienta toda a movimentação dos atores em cena, pautada pelas saídas e entradas construídas por meio de um enorme paredão de espelho cenográfico fixo durante toda a peça.

            Cocteau, fornece, à sua maneira, uma releitura do mito, fornecendo uma nova chance de redenção de Orfeu, punido pelos deuses pela sua falta de amor ao próximo e pelo seu excesso de ambição. De certa forma, Cocteau busca restaurar a moral do poeta diante da sociedade. Como no filme, Elsa La Rose (1966)[4]  – documentário sobre a musa do poeta surrealista Louis Aragon – Agnès Varda busca demonstrar que a verdadeira imortalidade está nos pequenos gestos, banais e mínimos do amor “comum” e mundano. Este desejo transgressor de re-encantamento do mundo cotidiano seria o cerne do movimento surrealista que desejava utopicamente reestabelecer no coração da vida humana, momentos “mágicos” apagados pela civilização ocidental burguesa. Aos poetas nos cabe a revelação do divino-maravilhoso imperceptível mas ainda assim diante de nós.

[1] Me refiro a expressão idiomática: “avoir le cul entre deux chaises” que o diretor se refere no filme “Jean Cocteau s’adresse à l’an 2000”de 1962. Para ver o filme na integra acesse:  https://www.youtube.com/watch?v=–LR0nd67t8

[2] Segundo Marie-Jose Mondzain a “Economia” viria do conceito Oikonomia que significa justamente um pensamento e não uma prática. Economia se configura como um arranjo ou modo de uma sociedade se relacionar com “o que está em jogo”, uma palavra para se referir a um dispositivo ou um regime de visualidade. A “Economia das Imagens” portanto não reflete o que ela “mostra” pela semelhança mas sim pelo o que ela traz a tona, torna visível (e inversamente torna invisível), ou seja os discursos que ela engendra. Para mais ver o livro “Imagem, Icone e Economia” (2003) da autora.

[3] Sendo elas: Calíope, musa da Eloquência;  Clio ou Kleio musa da História; Erato, musa da Poesia Lírica; Euterpe, musa da Música; Melpomene, musa daTragédia; Polônia, musa da Música Cerimonial (sacra); Tália, musa da Comédia, Terpsícore, musa da           Dança; e por fim, Urânia,musa Astronomia e Astrologia.

[4] Filme disponível online: https://vimeo.com/97016643

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O CINEMA E AS FORMAS DO TRABALHO

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EDITORIAL: O CINEMA E AS FORMAS DO TRABALHO
Camila Vieira

ESTÁTICA E CINÉTICA, SISTEMA E INDIVÍDUO: JEANNE DIELMAN
João Lucas Pedrosa

OITO HORAS NÃO FAZEM UM DIA
Bernardo Moraes Chacur

NO CORAÇÃO DO MUNDO: CONTAGEM É O MOTHERFUCKING TEXAS!
Kênia Freitas

O LAMENTO NOSSO DE CADA DIA: TONSLER PARK
Pedro Tavares

IMAGEM-TRABALHO
Diogo Serafim

ATÉ EXPLODIREM OS PULMÕES
Felipe Leal

A ÉTICA DO TRABALHO INFINITO EM HOLY MOTORS
Gabriel Papaléo

DUAS CENAS DE PESCA: PAULO ROCHA E ROBERTO ROSSELLINI
João Pedro Faro

JUSTINE TRIET, UMA CINEASTA NO SÉCULO XXI
Lucas Saturnino

“A NEGRA DE…” E A ESCRAVIDÃO SILENCIOSA
Chico Torres

JEAN COCTEAU SE DIRIGE AOS ANOS 2020
Bárbara Bergamaschi

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Estática e cinética, sistema e indivíduo: Jeanne Dielman, 23, quai du commerce, 1080 Bruxelles

Por João Lucas Pedrosa

Discorrer sobre Jeanne Dielman, 23, quai du commerce, 1080 Bruxelles (1975), de Chantal Akerman, envolve inevitavelmente discorrer sobre a permanência (e a derrocada) de um sistema que constitui os alicerces do filme. Um sistema, sobretudo, de trabalho. Segundo a Física, o trabalho existe quando uma força exercida sobre um corpo gera o seu deslocamento. A força exercida durante esse deslocamento é a que conhecemos por “cinética”, cuja raiz etimológica é a mesma de “cinema” (kinema, “movimento”; kinein, “mover, deslocar”). Tratar de cinema é, portanto, tratar do movimento, desse deslocamento cujo trabalho aparece como fundamento-motor, como a força que faz mover. Essa força pode tratar-se da vida mesma que passa pelo ser, coisa ou lugar captado pela lente, como pode também tratar-se da força mecânica da câmera que registra os efeitos da força misteriosa primeira, e a obra fílmica surge primordialmente como produto do choque entre essas duas forças.

Em filmes como Um Homem Com Uma Câmera (1929) pode ser estabelecido um preciso contraponto estrutural e histórico a Jeanne Dielman. Em meio à exaltação da industrialização soviética e da consequente articulação entre homem e máquina (como aponta o título de sua obra), Dziga Vertov desenha em cerca de uma hora o funcionamento do dia de uma cidade, guiado pelo percurso de um cinegrafista que registra cidadãos em trabalho e/ou atividades rotineiras, máquinas e construções. A montagem estabelece entre os componentes uma harmonia operacional, como células de um grande organismo, que é a metrópole. Quando os cidadãos repousam, toda a cidade o faz, e a grandiosa geometria dos edifícios reflete o repouso dos corpos dormentes na cama, nos bancos da rua. O despertar é igualmente compartilhado e, numa das sequências iniciais, o enquadramento da chegada de um trem é justaposto a planos-detalhe da agitação de uma moça na cama de sua casa, que eventualmente desperta com o balançar do plano anterior. Os dois eventos tomam lugar em diferentes espaços, mas a edição permite o agito contagiar um espaço indeterminadamente distante. A edição estabelece uma ligação metafísica entre homem e máquina. O que os une é a força do movimento, sendo o filme o campo dessa troca sinérgica.

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A metalinguagem é muito presente em Um Homem Com Uma Câmera e associa o trabalho cinematográfico-criativo aos demais: o filmar e o editar não são diferentes do dirigir caminhões, do lavar roupas ou do costurar (ação, esta, justaposta com o “cerzir” da montadora). O fazer cinema faz parte do fazer a cidade,

faz parte da atividade coletiva que constitui a metrópole mesma. As máquinas trabalham para as pessoas que para elas trabalham (por isso as cadeiras do teatro abrem-se sozinhas para a acomodação dos espectadores que chegam na abertura do filme) e daí se dá o funcionamento coletivo do organismo comunitário soviético. O trabalho funciona aqui como cinética combustível do mundo, como energia vital de um espaço do operariado, que funciona pela e para a operação laboral. Eis a construção da União Soviética como um grande corpo-nação, em que o labor é a entidade que rege o mundo.

Se a obra prima de Akerman e a obra prima de Vertov funcionam como exemplares opostos, é principalmente por serem oriundos de momentos e motivações histórico-estéticas diametralmente diferentes. Na União Soviética de 1929, Vertov procurava desenvolver um cinema independente das demais artes, livre do roteiro e da noção de narrativa. Seu projeto envolvia registrar principalmente acontecimentos ao invés de encenações (salvo exceções como a moça acordando), e ressaltar, dentro da obra, o artifício cinematográfico, lembrando todo o tempo que estamos assistindo a fragmentos deliberadamente ligados, ao que registrou uma câmera, (articulando a emancipação da sétima arte a ambos o entusiasmo construtivista da época e a exaltação operarial da URSS leninista). Já Akerman, na Bélgica de 1975, influenciada pelo movimento feminista e por um crescente ideário da emancipação individual da mulher, trata não do sistema coletivo de trabalho, mas de um microcosmo laboral invisibilizado por séculos de costume: o doméstico, ao qual associará a escravização do corpo feminino. Ela se apropriará dos acontecimentos para criar uma diegese narrativa profundamente imersiva, reduzindo as ações ao mais bruto e banal pela duração quase absoluta do filme.

Jeanne Dielman, 23, quai du commerce, 1080 Bruxelles acompanha três dias na vida da protagonista que dá nome ao filme, quase todo passado dentro da casa cujo endereço também constitui o título (mulher e casa são nele cooptados como homem e câmera em Vertov). Os dias são preenchidos por atividades domésticas: fazer a cama, cozinhar as batatas, botar a mesa, servir a janta, tirar a mesa, fazer a cama do filho. As ações são registradas em tomadas estáticas, geométricas, com profundidade de campo e na integralidade de sua duração, intervaladas por espaços vazios que precedem e sucedem a entrada, ação e saída de Jeanne em cena. Ela se prostitui a um homem por dia, ação que é elipsada: o enquadramento corta seu rosto do queixo para cima, ela pega o casaco do cliente na sala e o pendura na parede, acompanha-o até seu quarto no fundo do corredor e fecha a porta. Um jump cut que baixa as luzes do cenário sugere um lapso temporal no qual teria acontecido o programa. Mesmo as elipses são posicionadas estrategicamente no intuito de manter a sensação estagnada da rotina da personagem ao preservar a duração integral de cada atividade doméstica. Ivone Margulies, em seu capítulo sobre o filme no livro “Nada Acontece”, associa essa escolha estética a uma descrição cumulativa

inspirada na literatura hiperrealista: a dinâmica dos cortes entre longos blocos de ação funcionam como conjunções aditivas, em que ações são enumeradas e empilhadas, e delas é bloqueada qualquer dimensão simbólica ou evasão metafísica. O aqui e agora da rotina de Jeanne é tudo o que há em seu amontoado alienante de tarefas.

Segundo também ressalta Marguiles, é muito caro a Akerman o movimento do cinema estrutural nos EUA dos anos 1960 e seu projeto de centralizar a forma do filme, no qual a narrativa tem importância marginal. Neles, um objetivo formal específico guia a obra (em exemplos mais claros, como em Wavelength (1967) um lento zoom in de mais de 40 minutos, ou em Back and Forth (1969) o movimento de ida e volta da câmera, ambos de Michael Snow), de forma que a encenação narrativa surge de modo fragmentário, no momento em que a câmera, no meio de seu obstinado dispositivo, acabou captando. Voltamos à dupla do início do texto: a força da vida que move o evento prefílmico e a força mecânica que move a câmera que o registra. No cinema estrutural, cada uma tem seu movimento independente friccionado, e o filme, como faísca, surge dos seus atritos e esbarrões.

Em Jeanne Dielman, entretanto, Akerman inspira-se nesse movimento para criar um corpo fílmico que ande em paridade com a narrativa e cause um impacto dual no espectador, construindo tanto uma harmonia sensorial que o embala quanto uma distensão temporal da ação que permite a reflexão sobre ela enquanto acontece. A rígida execução do sistema formal é necessária para que, na metade do filme, ele seja totalmente corrompido. Na noite do segundo dia, Jeanne queima as batatas da janta de seu filho após um programa que demorou um pouco demais, afetando as convenções de seu deslocamento pela casa (num momento de ansiedade e confusão, ela leva a panela de batatas queimadas ao banheiro) e, em consequência, o sistema formal que o rege. A retórica do filme sempre girou em torno do deslocamento (a cinética) de Jeanne pelo espaço, pois são seus passos que preenchem os vazios entre as ações domésticas dentro do plano, seja entre o ato de pegar o café do armário e botá-lo no moedor, seja nos espaços vazios entre os blocos de ação, quando aparecem em extracampo. Desde o início, esse movimento atrita com a estagnação do dispositivo linguístico que a registra. Jeanne desloca-se constantemente, num labor higiênico obsessivo (que Margulies associa à tentativa de limpar os vestígios de sua profissão, “obscena” moral e cenicamente). Uma inquietude estrutural habita as profundidades de seu ser, uma inquietude que era apenas domada pela rotina. Com o queimar das batatas, essa energia não tem mais direção. Ela esparrama-se pelos cantos e causa rachaduras no que estava cimentado pela utilidade. Apenas o acaso que invade essas fendas poderia quebrar o automatismo da rotina de Jeanne e abrir caminho para sua subjetividade como agente das ações. A força primeira (vida) ataca a força segunda (mecânica) e empurra a protagonista em direção à sua emancipação.

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Naturalmente, a quebra desse sistema de contenção existencial envolve o caminho inverso da cooptação homem-aparato de Vertov, à medida que os objetos domésticos passam a recusá-la, a cair das mãos da protagonista (a escova que usa para engraxar os sapatos de seu filho, a colher que acabou de secar e precisa lavar novamente). O rompimento entre Jeanne e sua rotina doméstica se reflete nesse trabalho opositivo ao seu, realizado tanto pelos elementos pontuais desse mundo (os utensílios) quanto pelo mundo em si (no terceiro dia, ela chega à padaria ainda fechada pois acorda uma hora mais cedo). A dinâmica individual é uma, a do trabalho e da cidade é outra. Cada pequeno descompasso que consuma essa cisão indivíduo-sistema gera uma suspensão, gera a antecipação de algo mais extremo à frente. A imersão no fluxo bem sucedido das ações é tão intensa, que os seus transvios tornam-se a chave do drama, ainda que haja um arco narrativo proeminente (que Margulies identifica como tipicamente melodramático). É na dimensão material da narrativa que o drama do filme toma forma.

Para o sucesso dessa empreitada estrutural, Akerman construiu uma série de acontecimentos em benefício de uma experiência diegética fortificada. Como indica Margulies, quando Jeanne/Delphine “descasca as batatas e lava os pratos, as batatas ficam descascadas e os pratos ficam limpos”. Esse pacto de aceitabilidade pelo espectador em relação à consumação real do evento prefílmico cria o choque do desfecho trágico encenado. Ao longo do terceiro dia, Jeanne tem uma hora sobrando (ela acordou muito cedo) e desliga-se totalmente de sua rotina, saindo para procurar um botão que seja o mesmo do tipo que caiu do seu casaco canadense (não encontraria, o fim é sempre o movimento). Quando chega, abre o presente de sua irmã que chegou do correio (mais uma camada para o título?) e é pega desprevenida quando chega o cliente do dia. A câmera agora entra no quarto com ela e vemos num longo take estático o cliente deitado sobre Jeanne, movendo-se muito pouco. Ela se incomoda, agita-se na cama e, em determinado momento, tem um orgasmo, do qual se envergonha. No plano seguinte, sentada de frente para o espelho da penteadeira, ela veste a blusa, pega a tesoura, com a qual tinha aberto a encomenda, e mata o homem deitado em sua cama. São as únicas vezes em que uma ação passa de acontecimento para encenação no filme, mas são ainda homogeneizadas na estrutura do filme (conectadas cumulativamente): Jeanne fez café e abriu o presente de sua irmã e recebeu o cliente e gozou e o matou com uma tesoura no pescoço. Todas as ações são atos de emancipação de Jeanne ao indicarem a ativação de seu corpo como agente de si, e cada ato antecipava o outro pela eficácia da rigidez estrutural do filme e dos seus respectivos glitches. Foi tecida uma rede de subversões que remonta à dinâmica foucaultiana da microfísica do poder, em que um pequeno evento leva a uma teia de outros eventos que desembocam na grande mudança estrutural. A estrutura do filme, assim, faz com que o pequeno evento estopim dessa rede de alterações não seja um motivo psicológico (uma relação edipiana com o filho, presente no filme: ele não suporta pensar nela com outro homem), mas um erro material que descompassaria a estrutura de trabalho doméstico por definitivo, levando ao grande contra ataque de Jeanne ao patriarcado que a construiu. Jeanne Dielman, 23, quai du commerce, 1080 Bruxelles precisar valer-se da precisa construção de um sistema formal e laboral para ser um filme anti-sistêmico por excelência.

O último plano do filme tem sete minutos corridos de Jeanne sentada à mesa da sala, repousando com as mãos ensanguentadas. A queda dos utensílios das mãos de Jeanne, suas hesitações, seus devaneios silenciosos e suas ações-digressões da rotina eram os bloqueios gradativamente mais agressivos do fluxo cinético laboral que se consuma quando seus desejos tomam conta das decisões de seu corpo. A estagnação do último plano não mais briga com Jeanne, mas com ela descansa, na ação mais subversiva possível num sistema do movimento compulsório: o repouso.

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“A Negra de…” e a escravidão silenciosa

Por Chico Torres

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Um filme político, para fazer valer o seu esforço, precisa ser, acima de tudo, didático. Afastando-se de qualquer estado contemplativo ou de apelo emocional, deve indicar sistematicamente suas ideias e críticas, não poupando esforços para transmitir com precisão tudo o que almeja. Por outro lado, para progredir ainda mais em suas funções políticas, deve se propor a elaborar todo o seu arsenal ideológico sob o véu inocente de uma narrativa. Sendo assim, antes de se apresentar como tese ou documento histórico, um filme político irá funcionar plenamente se chegar ao patamar de obra de arte.

E “A negra de…” (La noire de…), de Ousmane Sembene, atinge esse propósito. Um filme objetivo, que possui apenas uma hora de duração, não trazendo consigo nenhuma superficialidade. Um filme pessimista e não condescendente sobre as mazelas do colonialismo francês na alma de uma jovem mulher senegalesa. Na obra, o artifício do trabalho é o elemento principal para se pensar criticamente essa questão. O trabalho faz evidenciar as diversas relações sutis sobre a alienação e suas camadas. Pois não é Diouana cada vez mais incentivada a alienar-se de sua cultura, dos aspectos de seu povo, para cultuar o progresso estrangeiro do colonizador, consumindo sua moda e procurando adotar às suas maneiras? Não é ela quem parte para a França, sonhando com um emprego digno que irá lhe proporcionar os avanços da vida civilizada? Todo o sonho ingênuo de Diouana é apagado quando a personagem descobre que seu trabalho não é cuidar das crianças do casal francês de classe média, mas ser sua empregada doméstica.

Vemos pouco a pouco as energias de Diouana serem sugadas. O acordo civilizado que garantia o seu sucesso como alguém que se liberta das condições limitadas de seu país, torna-se  escravidão, já que agora ela circula apenas entre as paredes do apartamento dos patrões. Estes, subjugam Diouana seja de forma sutil ou direta: vão dá exotização à humilhação sem o menor constrangimento. O ponto mais sensível da personagem é o modo como aquelas pessoas a enganaram, a rebaixando a um papel que ela não esperava cumprir. Revela-se assim o caráter ambíguo da personagem, já que alienado. O que é ferido em Diouana é, antes de mais nada, o seu orgulho.

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Portanto, o que vemos ao longo do filme é o crescente sofrimento psíquico da personagem, submetida a uma condição de isolamento completo. Ainda que as funções domésticas de Diouana sejam simples, o que a deprime não é a exaustão, mas a clausura, o modo injusto como se dá o seu trabalho e as constantes humilhações que sofre, sobretudo de sua patroa. Diouana vive fechada no apartamento, tendo que sofrer uma série de humilhações da mulher ociosa.

A Clausura é um dos elementos mais relevantes no filme. Não apenas no que se refere à claustrofobia provocada pela presença constante de Diouana no apartamento. Muitas das cenas que se passam em Dakar estão contaminadas pela presença do colonizador, como se o território africano pertencesse a ele, como se as trocas de cenários e ambientações não tivessem quase nenhuma demarcação, nos dando a sensação de que espaços tão distintos, na verdade, integram um único espaço dominado. O exemplo mais didático dessa questão é a cena em que negras se oferecem como mercadoria para serem empregadas pelos brancos. Elas ficam paradas nas calçadas, enquanto mulheres brancas as analisam como peças a serem compradas, referência explícita ao processo de compra de escravizados. Uma cena bastante funcional.

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Se em suas aspirações vemos uma Diouana alienada e fútil, é através de uma narração em off da própria personagem que percebemos suas angústias, coisa que contrasta com sua personalidade de jovem deslumbrada. A narração nos chega como um discurso de revolta, quase existencialista em suas reflexões, impondo à personagem um tipo de sobriedade que acaba por indicar muito mais os pontos de vista do diretor do que consonância com o caráter da personagem. Até o próprio suicídio de Diouana pode ser visto como a adição de uma mensagem política direta. Isso pode artificializar o universo particular da personagem, mas cumpre o papel denunciador do filme. O suicídio de Diouana é exemplar, à medida que revela o aspecto trágico que submerge de um cotidiano que esconde uma série de mazelas estruturais.

Sembene não ameniza em suas escolhas, o que evidencia o seu engajamento. A mensagem carregada de pessimismo surge sempre mais potente do que a narrativa, mas esta continua lá, se desenvolvendo através das pequenas misérias cotidianas, fazendo com que nos emocionemos com o sofrimento da jovem senegalesa.  O filme termina declarando orgulho e resistência, pois nem Diouana e nem sua mãe aceitam o dinheiro que o francês oferece para amenizar a sua culpa. A grande máscara africana que figurava na parede do apartamento do casal francês e que foi um presente de Diouana, volta para sua origem e, através de um menino africano, surge como símbolo fantasmagórico, como se a África e tudo o que ela pode representar, todo a beleza e o todo o horror, assombrassem aqueles que ousam invadir o seu território e retirar a sua liberdade.

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Justine Triet, uma cineasta no século XXI

Por Lucas Saturnino

I.

Dado que “Sur place” (2006) e “Victoria” (2016) compartilham um ponto de partida dramatúrgico em comum, pode-se dizer que Justine Triet passou da videoarte à comédia romântica de modo absolutamente coerente. A francesa Justine Triet nasceu em Fécamp, na Normandia, em 1978. Formou-se em artes plásticas na Escola de Belas Artes de Paris. Seus primeiros trabalhos em vídeo (como “Sur place”) circularam majoritariamente em museus. Em uma década, suas narrativas audiovisuais foram do Centre Pompidou ao Varilux (que exibiu “Victoria” no Brasil) movidas por um mesmo motor: a precarização do trabalho e a mútua erosão das esferas pública e privada na sociedade francesa.

“Sur place” se baseia em filmagens de uma manifestação anti-CPE (“Contrat Première Embauche” = “Contrato do Primeiro Emprego”) em Paris, março de 2006. No início daquele ano, o primeiro-ministro francês Dominique de Villepin havia apresentado um projeto de lei para instituir um novo tipo de contrato laboral, o CPE, cujo objetivo seria combater os altos índices de desemprego na juventude – entre 20% e 25%, número que se mantém até hoje. O CPE seria destinado a menores de 26 anos e tornaria a demissão mais fácil, permitindo ao empregador demitir seu funcionário sem a necessidade de apresentar quaisquer justificativas durante um “período-teste” de 2 anos – duração máxima do contrato.

Argumentava-se que, aos olhos dos empregadores, seria mais fácil contratar caso também fosse mais fácil demitir. Todavia, protestos de larga escala irromperam por todo o país, capitaneados por jovens, estudantes secundaristas e universitários. A enorme oposição ao CPE – 68 universidades públicas foram ocupadas, estima-se que até 3 milhões de pessoas possam ter saído às ruas, em meio a paralisações e ameaças de greve geral – sagrou-se vitoriosa quando o governo recuou, abandonando a proposta menos de um mês após o presidente Jacques Chirac assiná-la.

“Sur place” prenuncia duas décadas politicamente tumultuadas na França. Com efeito, os protestos estudantis de 2006 inauguraram uma nova era de insurreição social no país, junto à revolta que havia eclodido nas periferias francesas em 2005, após o assassinato de dois jovens de origem imigrante em decorrência de uma ação policial – e, no filme de Triet, veem-se muitos negros.

Contudo, nenhum contexto nos é dado: cabe ao espectador projetar nas imagens as razões que ele deseja para a revolta; assistir “Sur place” é uma experiência similar à de ter vivido a década de 2010, acompanhado o surgimento de grandes protestos por todo o planeta e as subsequentes tentativas de decifrar seus significados ou mesmo se apropriar da dor, revolta ou catarse dos outros (ou deslegitimar tudo isso) – da Primavera Árabe ao Chile e Hong Kong, de junho de 2013 no Brasil aos coletes amarelos na própria França.

Triet enquadra a Praça – espaço-símbolo de tantas dentre essas manifestações – e o guião é prontamente reconhecível: o protesto se encaminha ao fim e os participantes se agrupam – ou são agrupados (pelas câmeras da cineasta, mas também pelas da mídia em cena) – em um canto, e a tensão aumenta à medida que se instala a estranha calmaria que precederá a previsível tempestade a ser incitada pela ação da polícia.

“Sur place” contrapõe o niilismo dos jovens manifestantes, dispostos a encarar a repressão, ao niilismo dos patrões, confortavelmente fora de quadro, propensos a bancar a violência que explodirá no espaço diegético. O confronto entre manifestantes e policiais é o choque entre um movimento caótico e outro mecanizado – os policiais, afinal, já foram absorvidos pelo mercado de trabalho. A ambiguidade/transitoriedade das narrativas que buscamos impingir discursivamente nas imagens é reforçada pela presença de policiais à paisana, os quais parecem ser manifestantes constantemente virando a casaca.

O vídeo “Sur place” pertence à Colecção Berardo, além de integrar a coleção new media do Centre Pompidou, em Paris. A Colecção Berardo leva o nome de José “Joe” Berardo, empresário madeirense que fez fortuna explorando ouro na África do Sul, e conta com obras de artistas como Picasso, Bacon, Miró, Duchamp, Warhol, Basquiat e etc.

Em 2006, um comodato (empréstimo gratuito a prazo) de 862 obras entre Berardo e o Estado português deu origem a um museu no Centro Cultural de Belém, em Lisboa. Em 2016, o acordo foi renovado até 2022. Como “Sur place” não está entre as 862 obras inicialmente inventariadas pelo Estado, é de se supor que sua aquisição tenha ocorrido entre 2007 e 2008, quando novas peças foram compradas.

O acordo previa a ampliação anual da coleção: o Ministério da Cultura e Berardo contribuiriam com 500 mil euros cada e formar-se-ia a Coleção Estado-Berardo, a qual poderia ser vendida ou adquirida por uma das partes ao fim do comodato. Compraram-se 214 obras antes de Berardo e do Estado português desistirem da iniciativa em 2008. E, assim, “Sur place” foi parar num museu em Lisboa.

Em 2019, Berardo tornou-se pivô de um escândalo em Portugal: ele deve cerca de 980 milhões de euros a bancos portugueses (inclusive públicos), que desejam aceder à coleção para cobrar a dívida. Convocado a prestar esclarecimentos no parlamento, riu-se ao ser confrontado pelos deputados sobre as suas dívidas. Segundo Pedro Lapa, antigo diretor artístico do Museu Berardo, a Coleção Estado-Berardo teria sido formada de maneira “pouco precisa, pouco estruturada, numa perspetiva museológica e nacional” e as 214 peças (“Sur place” inclusa) adquiridas em conjunto por Berardo e pelo Estado teriam um futuro incerto.

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II.

Triet filmou duas eleições presidenciais francesas seguidas: 2007 e 2012. Em ambas, dirigiu-se à Rue Solférino, em Paris, onde fica a sede do Partido Socialista francês. Em 2007, realizou um documentário de média-metragem, “Solférino” (2009), que registrava a decepção (compartilhada por ela) dos presentes com a derrota de Ségolène Royal frente à Nicolas Sarkozy. Cinco anos depois, retornou ao local para incorporar a ocasião na ficção. Em “La bataille de Solférino” (2013), seu primeiro longa, Laetitia Dosch encarna uma jornalista cobrindo o dia eleitoral enquanto o ex-marido briga com ela para poder ver as filhas dos dois – em suma, ela falha em manter a vida pessoal afastada da profissional.

Ao fim do dia, após serem conhecidos os resultados, tumultos (igualmente descontextualizados) emergem nas ruas e se pressente o enfrentamento com a polícia –momento em que a tensão racial é evidente. A personagem de Dosch funciona como uma extensão das pequenas massas de fotógrafos e jornalistas que víamos cobrindo os protestos em “Sur place”. Ao ex-marido, ela se jacta de ser uma formadora de opinião, alguém a quem o público recorre para construir um ponto de vista.

No entanto, a própria estrutura do filme realça a futilidade de se emitir julgamentos com base em recortes arbitrários e seletivos. Quem se atreve a ser categórico a respeito dos personagens? Por um lado, os ex-cônjuges comportam-se de maneira que corrobora as acusações de um em relação ao outro – a mãe a praticar alienação parental e o pai a ser violento. Por outro, presenciamos uma situação-limite e não sabemos de mais nada sobre os dois – ambos são narradores não-confiáveis; falta-nos, justamente, informação.

No instante da vitória de Hollande, a reação da jornalista à História desenrolando-se à sua volta é de indiferença e, sobretudo, desorientação. Ela se encolhe na massa; e o documentário sufoca a ficção. Triet achava que Sarkozy iria ganhar, de modo que o estado de penúria da personagem seria compartilhado pela multidão. Faltou combinar com os russos, já dizia Garrincha. Mexer com o real pode ser assim imprevisível. Dosch teria até sido confundida com uma verdadeira repórter, sendo cobrada pelo seu posicionamento.

Na obra de Triet, a deterioração das esferas pública e privada é um processo que se intensifica conjuntamente. As relações entre pais e filhos se encontram judicializadas: é o Estado quem define quem estará com quem e quando, organizando os elementos em cena. A luta do pai em “La bataille de Solférino” é para poder permanecer no espaço diegético – e ele o faz exibindo uma decisão judicial.

As protagonistas de “La bataille de Solférino” (uma repórter) e “Victoria” (uma advogada) têm muito comum: o emprego das duas pressupõe uma dose de performatividade pública (manter uma imagem: a maquiagem e o figurino mudam drasticamente quando elas não estão trabalhando) e ambas lidam diretamente com o aparelho estatal. Elas representam canais de comunicação entre o povo e o Estado; nenhuma, porém, está dando conta.

A repórter passa o filme segurando o choro, à sombra da “festa da democracia”, e tentando manter o autocontrole em frente às câmeras, o qual inexiste, na vida privada da formadora de opinião pública, a partir do momento em que ela sai do ar. A advogada também trabalha performando – diante dos representantes do Estado (e os julgamentos são razoavelmente ridículos; representação sintonizada com a crise de confiança na aptidão da democracia).

No início de “Victoria”, a personagem-título surge discursando diante de uma câmera: trata-se de uma mensagem de felicitações a um amigo que está se casando. Ela erra e repete várias vezes. “Mais natural”, diz quem está a filmá-la. “Seja mais natural”. Fora do trabalho, Victoria se mostra extremamente desconfortável em performar. Perdeu o jeito.

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III.

“La bataille de Solférino” é uma ficção imersa no real. “Victoria” também; embora não tenha um “pano de fundo documental”, à exemplo das eleições no filme anterior. Assim como em “Sur place”, o estado das relações trabalhistas na França impulsiona a ação dramática no filme – uma comédia romântica cujo romance só ocorre devido ao desemprego. Em outras palavras, a ficção resulta da teatralização de tensões político-econômicas e sociais. À título de comparação, um movimento semelhante ao realizado em “Les Neiges du Kilimandjaro” (2011) e “La Villa” (2017), dois filmes de Robert Guédiguian que, por sua vez, versam sobre os efeitos da desindustrialização no sul da França.

“Victoria” aborda as relações de Victoria – uma advogada, mãe de duas filhas pequenas – com três homens diferentes: seu ex-marido, um amigo que ela aceita defender em um processo de assédio e um antigo cliente que passou a trabalhar de babá para ela.

No casamento de um conhecido em comum, Victoria reencontra Samuel (Vincent Lacoste), um ex-traficante a quem havia defendido. Ele parou de traficar (ou seja, deixou o mercado informal) e precisa de um emprego; então, tenta convencê-la a aceita-lo como seu assistente pessoal: afinal, ela precisa de uma babá e ele está disposto a tudo; assim, os dois podem unir o útil ao agradável – ou o burnout ao desemprego.

Samuel explica-a que poderia ser útil como uma espécie de faz-tudo, um “homem nas sombras” (a subalternização implica em invisibilidade, à exemplo do que diz o guarda-costas encarregado de proteger Victoria durante o julgamento: “Eu sei como manter certa distância”) capaz de resolver os problemas dela, além de estar disponível a qualquer horário, pois até dormirá – por necessidade dele – no trabalho (i.e., a casa dela).

Ele propõe-na um teste: passará uma semana dormindo no sofá dela e trabalhará de graça em troca de uma oportunidade. Sua saída para se reinserir mercado de trabalho é a sujeição absoluta – direitos trabalhistas inexistem e mesmo o salário, em meio a estágios não-renumerados e jobs por visibilidade, torna-se um luxo, quase um favor do patrão.

A influente youtuber Nathalia Arcuri (dona do que afirma ser o maior canal sobre finanças no YouTube do mundo, e apresentadora do programa “Me Poup!” na Band) recomenda uma conduta semelhante ao desempregado: oferecer-se para trabalhar de graça durante 4 horas por dia em um período de 2 semanas, com a finalidade de poder demonstrar o seu valor e se fazer “presente e insubstituível”.

Samuel se desvaloriza para mostrar que ele – um jovem sem experiência profissional – tem consciência de que, segundo a lógica do contratante, não vale nada até se provar meritocraticamente. Tal figura do jovem psicologicamente e economicamente à deriva entre o desemprego e o subemprego é uma constante no cinema francês contemporâneo e encontrou sua expressão mais marcante em “Jeune femme”, de Léonor Serraille.

Note-se que a vitória de Hollande não serviu para muita coisa, o que ajuda a explicar o colapso da centro-esquerda em países como a França e a Alemanha. “Nada mudou”, declarou Triet um ano após a estreia de “La bataille de Solférino”, atentando para a ironia dos cartazes excessivamente esperançosos com o candidato socialista, os quais logo adquiriram um aspecto de comicidade e cinismo. Diferentemente de quando Miterrand foi eleito nos anos 1980, ela alega que a maioria dos apoiadores de Hollande tinha consciência de que nada mudaria e de que a grande vitória era a derrota de Sarkozy.

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IV.

Se considerarmos que o papel mais famoso do Melvil Poupaud é em “Conte d’été” e que neste filme ele bem poderia estar interpretando a mesma pessoa 20 anos depois, “Victoria” é um filme no qual a protagonista tenta salvar um personagem do Rohmer de uma acusação de assédio sob o argumento de que “Sim, ele é um babaca, um grande merdinha, todos sabemos, mas, afinal e a rigor, isso não é crime”.

O personagem de Poupaud não tem mulher nem filhos. Então, a estratégia para que o júri veja-o como um “cidadão de bem” é focar no trabalho, encenando-o como alguém respeitável mediante suas responsabilidades profissionais – a essência do homem. “As pessoas não veem homens bonitos como assassinos. E pessoas bonitas ganham mais que pessoas feias”, explicam-no – imagem é autoridade é dinheiro é sexo é imagem.

Outra linha narrativa trata da apropriação que o ex-marido de Victoria (um aspirante a escritor) faz da história de sua vida – ele pode, é o homem, o autor, cheio de status e hubris –, criando uma personagem inspirada nela, a qual, informam-nos, ganhou o direito de explorar inclusive no cinema. Ora, mas já estamos vendo um filme!

A história de Victoria, tal qual contada por Triet, inclui o fato de que um homem tentou tomar sua biografia de assalto – e conseguiu. A cineasta se reapropria dessa apropriação; porém, sem omitir as difamações do ex-marido, sejam verdadeiras ou não, muitas das quais até podem ser – Victoria admite ter transado com juízes, por exemplo. Pois Triet afirma não desejar que suas personagens femininas sejam meramente vítimas.

Triet sabe que o modo mais justo de se amar alguém é amando-o de maneira que abarque também os seus defeitos – quanto mais em uma economia regida pela performatividade social. A imperfeição da personagem humaniza-a e engrandece-a; suas falhas não são rebeldia ou pose, mas vulnerabilidade e desorientação: ela, uma advogada bem-sucedida, porém esgotada psicologicamente, é a personificação da sociedade do cansaço e do quão insuficiente e insatisfatório é mesmo o “sucesso” burguês no capitalismo tardio.

Simbólico que o personagem de Lacoste seja um traficante – ocupação-chave da vida contemporânea – e que seja o traficante a virar o apoio psicológico dela. Só cheirando ela se põe de pé para a última missão. A vida à base de fármacos – medicinais ou recreativos.

Igualmente emblemático que Victoria tenha comprado um celular inquebrável, que pode ser arremessado no chão ou contra a parede porque foi “feito para militares” (vide Les combattants, de Thomas Cailley, em que a personagem de Adèle Haenel busca se militarizar para sobreviver ao apocalipse vindouro). O celular toca a todo momento com questões de trabalho – até quando ela está transando. Ele põe-na acessível o tempo todo, pulverizando a noção de expediente e tornando-a refém de sua disponibilidade.

Victoria não para de pensar em trabalho nem mesmo durante o sexo. Os homens que ela conhece na internet chegam à sua casa nos horários combinados, mas sua mente ainda não está no mesmo lugar que o corpo. Ela não consegue se fazer presente e estar ali para o outro. A relação dela com o tempo das coisas é esquizofrênica: no trabalho, está pensando no terapeuta; no terapeuta, em sexo; no sexo, em trabalho.

Após ser suspensa da advocacia por alguns meses, uma montagem sua “aproveitando o tempo” com as filhas mostra-nos o quão desconectada ela está de tudo: sem trabalhar, fica vazia, não consegue recanalizar as energias, não sabe tirar prazer de mais nada, sua vida entra numa pausa. O trabalho colonizou o modo dela estar no mundo: “Eu preciso do meu trabalho, não posso viver assim, preciso me reconectar com as pessoas”, ela diz – a vida profissional substituiu outras formas de sociabilidade.

O cenário doméstico possui um aspecto caótico: o quadro preenchido ao máximo, não há espaço, brinquedos e coisas estão por toda a parte. As crianças representam o real (em ambos os longas, interpretadas uma pela filha dela e a outra pela de sua melhor amiga), uma vez que, explica Triet, eram crianças tão pequenas que os atores é que tinham de se adaptar a elas e não o contrário. As crianças – o real – embaralhavam o set, dando origem a uma tensão crua e genuína e gerando a necessidade dos atores efetivamente virarem babás das pequenas (cf: “Poto and Cabengo”, de Jean-Pierre Gorin).

As babás nos filmes de Triet são sempre homens, invertendo a divisão sexual do trabalho clássica, que delega as tarefas domésticas às mulheres, enquanto os maridos passam o dia fora de casa no emprego. Victoria, divorciada, cria as filhas sozinha, mas não tem tempo para elas por causa do trabalho, o qual, porém, paga as despesas de criá-las. O dinheiro que ela ganha trabalhando permite-a contratar ajuda para suprir sua ausência enquanto ela trabalha para ganhar o dinheiro que suprirá sua ausência.

E o pai? Nada. É uma figura infantil, que ademais não paga pensão alimentícia há 7 meses. Já Victoria é uma mulher que triunfou no mercado de trabalho. E do que chama-a o ex-marido? “Mulher fálica”, de “sexualidade cerebral” – como se o trabalho a tivesse masculinizado. Ela afirma que seu ex-marido nasceu em uma família burguesa e não possui preocupações financeiras, tendo tempo para bancar o moralista. Por outro lado, ela não teria tido escolha exceto cometer muitos erros. Questão de classe. No capitalismo neoliberal, ascender socialmente requer certa dose de amoralidade.

Da vidente ao psicólogo, sua conduta é errante mesmo na busca por ajuda. Ela não sabe o que quer e abre-se a tudo. O flerte com o esoterismo revela uma dupla desconfiança: a ajuda não virá nem dos homens nem dos deuses; então, ela procura o oculto, um que a informe de um futuro já escrito, sobre o qual ela nada poderá fazer – os infortúnios serão obra do destino, não é culpa dela, e, bem ou mal, isso é uma espécie de conforto.

Victoria não teve tempo – essa commodity – para se perceber apaixonada e descobrir que existe outra vida além da profissional. E o que se pode oferecer à pessoa amada no capitalismo tardio? Ela declara o seu amor oferecendo ajuda para capacitá-lo profissionalmente – e apresentá-lo a todos os advogados de Paris, pois, como alertam os gurus das finanças, networking é o mais importante….

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A ética do trabalho infinito em Holy Motors

Por Gabriel Papaléo

“Nos dias de hoje, uma das igrejas de Tlön sustentam platonicamente que tal dor, que tal matiz esverdeado do amarelo, que tal temperatura, que tal som, são a única realidade. (…) Todos os homens que repetem uma linha de Shakespeare, são William Shakespeare.”

                                        Jorge Luís Borges, Ficções.

 

Como se define a ética de um trabalho infinito, se o que legitima os limites do labor é o tempo? Em Holy Motors, Oscar parte da mansão onde dormiu para um dia de trabalho na sua limusine branca de rico economista (ou bancário, ou chefe no mercado financeiro, ou outra coisa), já fazendo ligações profissionais no caminho até o centro de Paris, e a partir daí serão muitas as profissões do protagonista, sempre partindo dos mistérios; de possível excêntrico milionário a encontrar vidas menos luxuosas a confirmado ator do destino invisível de uma corporação nunca vista. O único lugar onde Oscar reflete sobre o que faz é no trânsito, onde podemos acessar mais de suas ambições, frustrações e desejos; o único lugar onde vemos alguém acordar em casa é no prólogo com o despertar do diretor Leos Carax, a entrar num cinema cuja plateia dorme. O artista só reflete sobre seu tempo infinito quando acorda e quando se desloca. Pés em solo firme e consciência recuperada, é tempo de intuição, sentimentos, e sobretudo ação.

Dos elementos que mais estrutura Holy Motors como um travelogue por Paris, pelo imaginário do Cinema, pelas vidas muitas de Oscar, pelo iconográfico de personagens burgueses no Ocidente, é o ludismo no qual encara a atuação. A cada nova troca de cenários, pessoas e memórias, o mistério paira pela superfície digital que só permite sonhos em glitch. Carax nos convida a vagarosamente reconfigurar nossas expectativas, colocando contexto e personagens com simplicidade para imergir na ação e buscar rapidamente empatia diante daquelas novas vidas. Estariam essas vidas em conflito? Falta algo ao ator das muitas vidas?

HOLY MOTORS

O passeio pelos gêneros, portanto, também configura as disparidades sociais nele embutidas, como uma carta ao potencial plural de fissão e guerra da narrativa. O filme começa com um banqueiro, mas no meio Oscar assassina a si mesmo para pontuar a disparidade. Em dado momento, os violinos graves sobem para adornar o drama burguês do velho que morre; pouco antes, um pai ausente busca a filha adolescente numa festa onde era preterida, em seu carro modesto e roupas simples, na situação de drama social que passeia por um subúrbio de pedras inconciliável com os vastos jardins da mansão do primeiro Oscar. O que lhe espera é sempre a limusine, a certeza do trânsito, a companhia via relação de trabalho com Édith Scob, os olhos sem rosto que aqui são o traço de harmonia mais próximo do protagonista.

Claro que por conter passeios tão breves Holy Motors abraça a disposição a personagens arquetípicos, e na hora de satirizar comportamentos Carax mira onde lhe é mais caro, enquanto francês. O fotógrafo esteta que fala inglês entra em cena como caricatura barata, difuso nas metáforas, ridículo nos encantamentos. Grita histriônico a Merde, o mendigo comedor de flores que Oscar vive na invasão ao cemitério, e explora sua miséria quando lhe parece devido. Esses holofotes da fama e do glamour que a arte emana nesse trecho do ensaio fotográfico é usado em contrapartida ao isolamento do estúdio, da relação animalesca entre ator e atriz no motion capture, do ritual de aproximação que gera o gesto computadorizado – que também é cena, também é toque -, e encontra paralelo nos silêncios entre Merde e a modelo vivida por Eva Mendes, recriando seu desfile particular na caverna, sua Pietà farsesca diante do homem que caminha na linha da veneração e objetificação. (não que sejam coisas distintas, mas enfim.)

HOLY MOTORS

Onde está o espectador diante de câmeras agora tão pequenas?, pergunta Oscar, em uma de suas muitas ranhetices sempre respondidas com sabedoria por Céline, a motorista da limusine, que parece não se importar com essa insegurança emocional do ego da atuação; uma câmera está nela o tempo todo, afinal. Essa preocupação com a imagem que retrata, discussão direta por razões óbvias do filme, aparece sobretudo no shopping abandonado que Oscar visita com Eva Grace para uma última canção. O fóssil abandonado de uma antiga civilização comercial, com seus manequins jogados, representam menos o bobo pensamento de uma sociedade de consumo afetada por contemporaneidades, por padrões de beleza, e todos os tipos de crítica mais enfadonhas ao ser retratadas nesses símbolos fáceis, e entram mais como corpos físicos de fantasmas que ali passaram, efeitos do tempo de um passado não tão glorioso, mas que deve ser lembrado de alguma forma, porque é cidade. E a reação com o maravilhamento do trivial na cidade (que Céline ressalta a Oscar mais de uma vez) age como respiro ético diante da insensatez infinita do trabalho, diferente da cidade-bolha de estúdio da limusine de Cosmópolis, por exemplo, na qual o trabalho se estendia à rua das formas mais violentas.

Como homem que passeia, tão ou mais que homem que atua, Oscar aparece como o flaneur de Baudelaire, na cidade que contém muitas historias de Benjamin. É um diálogo sem dúvida antigo o da dedicação ao olhar da pluralidade de fantasias da cidade, suas histórias múltiplas que transcorrem e se perdem no dia-a-dia, mas é raro percebe-la sob essa empolgação imaginativa como no filme de Carax. Paris é fotografada como uma cidade de sonhos terrenos, de vidas cotidianas a se cruzar, prestes a ter tramas desbaratadas e quadros dissolvidos a qualquer momento. Nesse sentido, Holy Motors caminha como um filme que parece sempre ter existido, pela forma que a familiaridade com os temas e fluxos de seu protagonista existem no imaginário cinematográfico do espectador, em algum nível que seja. Não que seja uma construção narrativa de referências e reverências, nem que busque um perigoso e tão empostado universalismo estético, mas que use do Cinema para palcos diversos de jogos cênicos – que revelam mais sobre a política dos corpos nessa Paris, suas memórias e fantasmas, e como o presente guarda tanto.

HOLY MOTORS

A magia desse cotidiano, da trivialidade, é encarada sob a ótica do trânsito, e não necessariamente da reflexão teórica, acadêmica. É ingênuo pensar na vida exercendo sua beleza do gesto, mas aqui o pêndulo do vento parece colocar Oscar onde as histórias precisam dele, e através dela revela-se violências estruturais que passam batidas por nossas vivências porque, como Oscar, não temos tempo para a cidade. As demandas até aparecem como contratos da empresa simbólica na qual Oscar trabalha – da qual nesse texto não entrarei em detalhes, uma vez que acredito nela como ferramenta narrativa de ligação de cenas, mera âncora dramática, não interessando tanto à leitura articulada aqui -, mas as histórias parecem geradas à esmo, como contos reunidos num livro, buscando sentido entre elas através da concisão temática que une todo o filme, na pulsão maníaca e francamente divertida de tentar criar imagens poderosas e efêmeras o suficiente para narrativas que se desafiam e se confundam entre si.

A explosão social do súbito arroubo de violência contra o banqueiro, em praça pública, é um desses exemplos de violência estrutural – e de curto-circuito narrativo que não é esclarecido, e tampouco inspira a resoluções; a Carax, interessa o mistério. Todos os homens, como na citação de Borges, agem e respondem a seus respectivos papeis e sofrem suas consequências, por vezes conflitantes, seja teórica ou socialmente, em tempos simultâneos ou distantes, em legado ou em corpo. O fato da memória de Oscar pouco importar para sua vida, e em nada importar para o trabalho, fala sobre esse tempo suspenso onde o presente é o único que existe, e diante do futuro incerto e oculto, o passado parece apenas obstáculo que complexifica os papeis de seguirem o planejado pelo acaso; a piada do destino, como for.

O trabalho infinito entra como antítese de uma vivência de experiências que duram. O que é fugidio, geralmente o que constroi momentos duradouros e sentimentos sempre interpretados e nunca reproduzidos, acaba sendo vivido, superado, e portanto eclipsado. Os dramas pessoais de Oscar passam sempre pela prisão da convivência artística, seus amores passados distantes pelo fluxo da profissão, seus amores futuros como promessas de um dia atuar novamente. O musical como aceno a um passado de insuficiências, o drama burguês como forma de enganar a morte através da promessa.

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Viver e morrer tantas vezes na cidade de recomeços, nesse filme moderno (e não necessariamente contemporâneo) nas vivências múltiplas do urbano, no qual as historias acontecem, o trabalho corrompe e faz o trânsito acontecer. A beleza do gesto se mantém mesmo que as câmeras tenham sumido, e esse existencialismo de frustração com as motivações úteis do trabalho parece o tipo de vislumbre contemporâneo que Holy Motors toca ocasionalmente para discutir sobre a experiência como commodity, saber que o trabalho está a serviço de alguém invisível e intocável, mas continua sendo feito porque a paixão pelo corpo e pelo movimento existem. “Pelo mesmo motivo que comecei: a beleza do gesto”, Oscar lembra a Michel Piccoli, para que não haja dúvidas.

Essa fina linha entre o desapaixonado e o encantamento pela imagem que fazem o filme de Carax tão especial no olhar para a historia das imagens – e o que os espectadores podem devolver a elas, sendo representados nas muitas historias possíveis dessa Paris utópica, sendo representados no eterno serventilismo do agir diante dos outros; seja para fins profissionais, ou emocionais. Na cidade moderna, até os carros são dotados de sentimentos e elucubrações; não é de se espantar que quem mais trabalha ao infinito sejam as máquinas que dormem juntas, e portanto tem a possibilidade de se organizar para existir além das performances demandadas pela cidade e suas luzes.

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Corpo e Máquina

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MÁQUINAS DE MONITORAMENTO, VIGILÂNCIA E CAPTURA
Camila Vieira

UMA ESPÉCIE DE COMPUTADOR – NOTAS SOBRE TÉCNICA E ESTILO NO CINEMA
Bernardo Oliveira

COMO VIVE O CORPO VIRTUAL – A PRESENÇA FÍSICA EM “O SEGUNDO ROSTO”
Gabriel Papaléo

UM HOMEM É UMA CÂMERA
João Pedro Faro

GHOST IN THE SHELL E A HUMANIDADE NEGOCIADA
Isabel Wittman

A TRILOGIA JOHN WICK E O EPÍLOGO DO HOMEM-RESPOSTA
Pedro Tavares

A MERETRIZ-CIBORGUE DE DAEHAK-RO: OS LIMITES DA VIOLÊNCIA ÉTICA E A EXIGÊNCIA DO NÃO CEGADO
Diogo Serafim

A RELAÇÃO CORPO-MÁQUINA: DE METRÓPOLIS A MATRIX
Natália Alonso

TETSUO E O NIILISMO REVOLUCIONÁRIO
Chico Torres

TRAGAM-ME A CABEÇA DE CARMEN M. – ENTREVISTA COM FELIPE BRAGANÇA E CATARINA WALLENSTEIN
Pedro Tavares

DIVINO AMOR: ENQUADRAMENTOS E EXCLUSÕES DE UM FUTURO PRÓXIMO
Kênia Torres

A SINCRONICIDADE DAS SOMBRAS
Felipe Leal
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Uma espécie de computador – Notas sobre técnica e estilo no Cinema

Por Bernardo Oliveira

Gance La Roue

1.

Em reportagem para a Folha de São Paulo, em 27 de agosto de 1995, o jornalista Alcino Leite Neto perguntou a Julio Bressane e Rogério Sganzerla: — Por que fazer Cinema? E, afinal, o que é o Cinema? Entre as diversas respostas disparadas respectivamente pelo “enfant terrible” e pelo “enfant gâté“, Sganzerla declara que um filme como “O Parque dos Dinossauros”, de Steven Spielberg, apesar de muito bem filmado, não demonstra qualquer preocupação com a “mise en scène”, isto é, com a forma do filme: “o que falta hoje em dia é a ausência de ornamentação, a essencialização da forma que se vê, por exemplo, em Robert Bresson […] o importante é que os filmes tenham uma forma. O filme é uma espécie de computador. Nós não temos ainda esse registro do pensamento humano que poderia ser comparado à definição do Abel Gance. Quer dizer: a música da luz, mas que poderia ser a música da luz e do som— e da fúria”.

2.

Há décadas, essa formulação me intriga: “O filme é uma espécie de computador”. Nada nas frases que envolvem essa sentença nos auxilia a tratá-la como um enigma passível de tradução — pois, a rigor, o que faz o enigma é sua perene insolubilidade a reivindicar respostas variadas, conforme as tendências e desvios de época. 

3.

Duas ideias em particular parecem saltar no entorno da sentença-enigma, sem lançar luzes ou explicá-la propriamente: a primeira afirma que, em algumas obras específicas, a mise en scène e a “essencialização da forma” corresponderiam a um mesmo movimento interno ao filme — e, para sublinhar essa característica, Sganzerla evoca Robert Bresson, deslocando o problema não para o campo do “Cinema” — o teatro filmado, litero-centrado, mais focado na manutenção do drama do que na sensorialidade da experiência —, mas para o Cinematógrafo, com as suas características e potenciais próprios, capaz de organizar a matéria sensorial de maneira irredutível aos primados da linguagem literária ou teatral. Trabalhar a forma dos filmes, em seus registros constitutivos, para fugir às representações mediadoras das outras artes e buscar a especificidade do Cinematógrafo — Bresson observa que “o Cinematógrafo é uma escrita com imagens em movimentos e sons”, cuja força “se dirige a dois sentidos de maneira regulável”. Ausência de ornamentação, quer dizer ausência de artifícios pré-concebidos; ou, nas palavras de Eduardo Coutinho, “refresco visual”, a utilização automática do clichê.

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4.

A segunda ideia se relaciona com uma noção célebre, enunciada pelo cineasta francês Abel Gance, segundo a qual o cinema corresponderia à “música da luz”. Essa ideia pode ser interpretada tanto do ponto de vista de sua realidade técnica — pois, afinal de contas, a luz incide sobre o acetato que, além de assimilá-la, em sua composição físico-química, ainda a mantém “organizada”, tornando-a passível de ser reproduzida —, como em seus aspectos sensoriais e cognitivos, pois o que o Cinema faz não é exatamente reproduzir ou mesmo representar o real, mas sintetizar blocos sensoriais capazes de embaralhar cadeias causais que, habitualmente, forneciam as coordenadas para a construção das artes tradicionais e até mesmo do Conhecimento, transformando-as em um outro tipo de registro — “um registro do pensamento humano” que, segundo Sganzerla, “ainda não temos”.

5.

Retenho aqui ambos os raciocínios para concluir, ainda que provisoriamente, que, para Sganzerla, o Cinema exprime um “registro do pensamento humano” irredutível às Artes, às “Linguagens”, até mesmo ao Conhecimento  — tal como o compreendemos na Modernidade. Em oposição à noção de Verdade, tradicionalmente instalada no real, o Cinema propõe uma experiência construtivista essencialmente criativa, articulando som e imagem em uma sequência de situações, captações e composições. Dialética não há, pois não há negatividade: tudo no Cinema encaminha o pensamento para uma experiência positiva com as sensações, tanto do ponto de vista daquele que compõe as forças, como também daquele que assimila seus clichês, deslocamentos e modulações. O Cinema, portanto, como um registro do pensamento, pode ser aprofundado por contínuas práticas de experimentação tecno-sensorial cujo resultado depende do estilo de cada “Autor” — e aqui vale ressaltar que entendo a autoria como uma categoria complexa que não atende somente a uma subjetividade encerrada sobre si mesma, mas à complexidade das interações que encaminham um processo de filmagem e captação.

6.

Para o mecanólogo francês Gilbert Simondon, os objetos técnicos possuem dois aspectos centrais: a) uma função consolidada pelo uso corrente, prescrito em manuais; e b) outra, chamada “margem de indeterminação”, que opera como uma força premente de inovação: “O verdadeiro aperfeiçoamento das máquinas, aquele que, poderíamos dizer, eleva o grau de tecnicidade, corresponde não a um aumento do automatismo; mas, ao contrário, ao fato de o funcionamento de uma máquina guardar certa margem de indeterminação. É essa margem que permite à máquina ser sensível a uma informação exterior. É por essa sensibilidade das máquinas à informação que um conjunto técnico pode se realizar, muito mais do que por um aumento do automatismo. Uma máquina puramente automática, completamente fechada sobre si mesma, num funcionamento pré-determinado, não poderia oferecer mais do que resultados sumários. A máquina dotada de alta tecnicidade é aberta; e o conjunto das máquinas abertas supõe o Homem como ‘organizador permanente’, como intérprete vivo das máquinas umas com relação às outras”.

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7.

Um computador é uma máquina que, como qualquer objeto técnico, possui funções consolidadas e potenciais de renovação. Esse potencial aumenta e diminui conforme o usuário também aumenta ou diminui o grau de interação como o objeto em sua totalidade — no caso, não apenas a operacionalidade entre os softwares, como também a possibilidade de compreender o hardware e manipulá-lo. Sendo assim, as máquinas operariam sempre no limite entre a sua função consolidada e aquelas ainda desconhecidas, recalcadas pelo hábito. A própria história da técnica se dá como uma sucessão de tensionamentos entre a lógica escravocrata do uso consolidado e as sucessivas insurgências que a interação humana pode vir a provocar. “Novos seres técnicos” aparecem quando novos usos transformam os antigos. Em ambos os casos, tanto no “filme-cinema” como no “filme-computador”, trata-se de ampliar a margem de indeterminação para que se amplie, igualmente, o espaço de invenção.

8.

Na mesma entrevista, Bressane afirma que “o Cinema é um organismo intelectual demasiadamente sensível”, pois é capaz de assimilar, incorporar ou, até mesmo, recusar as informações e interações externas, permitindo que elas ingressem no seu sistema e reinventem as dinâmicas internas, reconfigurando usos e potenciais. Como os demais objetos técnicos, um computador é um ser sensível à informação externa. Que pode ampliar seus usos consolidados através da inclusão de novos procedimentos e informações. Em suma: é a margem de indeterminação, o elemento desconhecido, que mantém o ser técnico “vivo”. Ou seja, rico em potenciais renovadores. É a margem de indeterminação que confere ao objeto técnico uma “situação” de diferença, pois provisória e em estado de gestação e movimento. Transpondo esse raciocínio para o Cinema, percebemos que a relação transformadora entre a informação e o filme obedece às relações internas, não exatamente regras, mas a uma axiomática mínima que se opera entre duas coordenadas: o ver e o ouvir.

9.

Em uma de suas “Extemporâneas”, Nietzsche afirma que “Cultura é, antes de tudo, Unidade de Estilo em todas as expressões da vida de um povo”. Tomada como “Unidade de Estilo” — seja de um grupamento humano , seja de um indivíduo — a Cultura encarna as tensões entre subjetividade e coletividade, operando, portanto, em uma “margem de indeterminação” que jamais fixa o sentido absoluto da extensão de sua expressão, senão que a estende até as fronteiras da afirmação ou da dissolução. Em todo caso, o Estilo se confunde com a própria noção de Cultura, na medida em que são atravessadas pela estranha ideia de “Grandeza”. Portanto, para que haja Estilo (Cultura), é necessário que haja Grandeza. Em “Reflexões sobre a História Universal”, no capítulo chamado “Indivíduo e Coletividade (Grandeza Histórica)”, de 1870, o historiador suíço Jacob Burckhardt afirma que “Grandeza é a soma global da personalidade de um indivíduo que nos parece grande, que continua a exercer sua influência mágica sobre nós, através dos séculos e dos povos, muito além das fronteiras da simples tradição (…). Um grande homem é aquele sem o qual o mundo nos pareceria incompleto, porque determinadas grandes ações só poderiam ser possíveis por ele, no interior do seu tempo e ambiente, sendo inconcebíveis sem ele. Ele está, fundamentalmente, ligado ao grande fluxo central das causas e efeitos. Há um provérbio que diz  que “Nenhum homem é indispensável’. Mas, justamente os poucos que o são, são grandes”.

10.

E isso é de tal forma que as características da Grandeza também acabam por se confundir com as características do Estilo, construindo uma correlação que se exprime nos seguintes termos : uma Cultura — seja expressa por um indivíduo ou coletividade — encarna tanto mais a Grandeza quanto mais consegue distinguir-se pelo Estilo, isto é, pelos traços de inovação, influência; em suma, por suas ações irredutíveis a quaisquer outros registros da atividade humana, que possuem o estranho poder de evocar tanto o tempo presente (“o interior de seu tempo”), como ultrapassá-lo. Por se manifestar como Grandeza, a ação do Estilo — ou melhor, o Estilo como uma atividade — perdura e sustenta sucessivas renovações do campo expressivo, absorvendo e repelindo simultaneamente as tendências de época. 

11.

Ao que parece, Sganzerla não se referia ao “filme” enquanto suporte (película), mas ao Cinema como um sistema complexo e suas obras. Cada uma trazendo sua própria sistematização interna, geralmente fechada dentro de protocolos da Arte e da Técnica Cinematográficas. Um computador é uma máquina. E, talvez, a frase de Sganzerla queira simplesmente indicar que o Cinema é o produto estético, em si mesmo original, que emerge da originalidade da associação entre dois objetos técnicos: o cinematógrafo e a ilha de montagem. Por ser capaz de sintetizar imagens, sons e sensações, através desses dois dispositivos, o Cinema possibilitaria uma experiência estética mais completa do que, por exemplo, a Música ou a Literatura. Um computador que produz blocos sensoriais, ora ajustados às representações correntes (“clichês”), ora banhado por uma formalização extremamente variável, que se altera conforme o estilo da mise en scène e as estratégias de filmagem e captação.

12.

Nesse sentido, o filme seria um computador na medida em que opera como um dispositivo técnico apto a captar e organizar dados de ordem física (a luz), técnica (a captação, a projeção) e estética (os blocos sensoriais, o raccord). Como registro da percepção, registro cognitivo e criativo, o Cinema é capaz de organizar essas informações tal como em um banco de dados. Capaz, inclusive, de permitir que certas perspectivas e sensações sejam criadas através do entrecruzamento e a convergência desses dados. Nesse ponto, os dados que o Cinema opera indicam a força imanente das possibilidades abertas pelo Estilo, o que não ocorre sem que o “Autor” e sua equipe interajam de forma distinta com os objetos técnicos e as operações estéticas. Se o Cinema permanece no imaginário como uma arte ambígua — a “arte sem futuro”, prestes a morrer, mas que permanece instalada, há mais de um século, em nossos hábitos —, essa ambiguidade se deve às suas engrenagens maquínicas e seus potenciais de renovação.

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