O vulcão e a nuvem: revolta como resignação em Stromboli, de Roberto Rossellini

Por Diogo Serafim

 

Cela s’est passé. Je sais aujourd’hui saluer la beauté.

Faim, Arthur Rimbaud

No caminho para Stromboli, fez frio. Deitada ao lado do homem que aceitou casar após um breve cortejo e um beijo interrompido através de arame farpado, o personagem de Ingrid Bergman olha para o céu, contemplando o futuro incerto que começa a se aformosear à sua frente. Enquanto a Europa tenta se reconstruir com o Plano Marshall e o auxílio econômico norte americano após duas devastadoras guerras, Karin tenta esquecer os horrores que deixaram sua vida em ruínas nos últimos anos.

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“A terra é dura aqui”, lhe confessa o padre assim que ela chega na ilha, enquanto a explica como outras famílias partiram para Argentina, Estados Unidos, Austrália. O rosto de Bergman diz tudo: os sonhos que a afastam do que é material, o idealismo de toda uma nação em permanente reconstrução. Após subsequentes guerras e desastres naturais, uma terra em ruínas sonha com o novo mundo.

Stromboli opera em duas instâncias: uma intimamente ligada à mitologia da atriz Ingrid Bergman, que há menos de um ano estava filmando a obra prima Under Capricorn com Alfred Hitchcock, e outra indissociavelmente associada ao espaço no qual ela se encontra: o nome do filme é, afinal, “Stromboli, Terra de Deus”. Rossellini filma esse espaço numa lógica de contemplação ambígua, os espaços são frequentemente explorados junto com Karin que, como nós, vai descobrindo esse belo, mas implacável, mar de pedras negras, essa comunidade que vive nas ruínas causadas pela frequente atividade de um vulcão.

A chegada é imediatamente violenta. Karin perambula pelas ruínas de Stromboli e encontra uma criança. Ela sorri para o menino e tenta conversar com ele, mas ele frustra seus avanços. Ela continua a caminhar, desiludida, até encontrar um pequeno broto que nasce em um muro. Ela encontra um breve afago na planta, a qual leva até seus lábios em alguns instantes de pura graça, até que o choro de uma criança a obriga a se levantar novamente, confrontada com a dureza do ambiente na qual ela está inserida. Cada instante de prazer vem acompanhado de um de dureza, cada abraço de um golpe.

A luta de Karin não se resume à natureza, mas também à comunidade de pessoas que a circunda. Conduzir uma vida é saber dosar as suas próprias vontades com as vontades dos outros, sabendo como dispor essa balança em constante ajuste com as forças cosmológicas que regem essa tapeçaria de desejos. Vemos isso na sua tentativa em decorar a sua casa, atitude que machuca o seu marido, nostálgico pela antiga disposição dos quartos. Atitude que traz também a repulsa das mulheres da ilha, que a acusam não ter modéstia. Ou quando ela tenta convencer o padre de ajuda-la financeiramente a partir da ilha, quando seus avanços voluptuosos são rejeitados com veemência.

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A crueza com a qual Rossellini filma a pesca dos atuns, sem dúvida entre as sequências mais avassaladoras da história do cinema em sua fusão de realismo ríspido e sua precisa estilização estética (que definitivamente serviu de inspiração para uma sequência de estetas que vieram posteriormente como Vittorio De Seta, Paulo Rocha, Jean Daniel-Pollet) traz mais uma vez essa clivagem ontológica na figura perfeitamente modulada de Karin. O mais impressionante em Stromboli é como o percurso de Karin é tão vividamente sentido por nós, tão real e palpável em toda a sua violenta inconstância, tendo como principal indicador o rosto de Bergman, de uma expressividade e honestidade inefáveis, rosto que consegue extrair momentos de pura graça no meio do desespero mais destilado e vice-versa.

A cena do furão que ataca o coelho opera na mesma lógica e, apesar de supostamente menos impactante visualmente, talvez seja ainda mais efetiva: assim como os pescadores que rezaram em agradecimento após a violenta pesca de atuns, o marido de Karin sorri para a naturalidade na qual o coelho é morto, aceitando a vida tal como ela lhe é apresentada, enquanto ela chora em prantos, recusando a brutalidade da cena.

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Stromboli abre com a Epístola de São Paulo aos romanos 10, versículo 20: “Fui achado pelos que não me buscavam; manifestei-me aos que não perguntavam por mim”. Seguindo essa lógica, na qual Deus se apresenta apenas àqueles que não o procuram ativamente, o sistema que ordena nossos destinos está intimamente associado à noção de um universo cuja organização cosmológica possui uma orientação anti-teleológica. Não é que na sua tapeçaria causal tudo aconteça por casualidade, mas sobretudo que nela tudo acontece nas lacunas: aquilo que não vejo, o que não imagino, o que me escapou, é sempre o que acabo por encontrar. Minhas projeções futuras são sempre negadas pois meu destino é sempre alheio a mim mesmo. Se imagino um resultado, sou frustrado por algo maior que eu. O livre arbítrio é sempre deglutido pelo inesperado.

Não seria nenhum exagero rotular Stromboli como o filme mais religioso de Rossellini. O martírio como principal força motriz da vida, a dureza da carne, a violência da matéria, e a liberdade da ideia, a resiliência do espírito. A poeira do vulcão, a aridez do ar, a dureza da terra, a íngreme subida, o desespero da respiração. Ela desmaia. Quando acorda com o sol em seu rosto, ela percebe a beleza que a circunda e o mistério de toda a existência. O vento no seu rosto, alterando o trajeto das suas lágrimas, a criança no seu ventre, e o Deus silencioso que escuta o seu pranto por ajuda.

O confronto final com a matéria é também o confronto final com a ideia. A única revolta possível contra o mundo é a resignação. Ajoelhado na terra negra, eu testemunho no céu a liberdade dos pássaros, abraço a continuidade do meu sangue, aceito o choro da criança no meu ventre como o meu próprio e, em um derradeiro grito angustiado, imploro por força para resistir ao peso da vida.

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