Olhar de Cinema: Canto dos Ossos

Por Geo Abreu

Alguns limites para a liberdade

“O difícil é ter que recomeçar sempre”

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Assisti Canto dos Ossos pela primeira vez na Mostra Tiradentes SP para uma semana depois rever na programação do Olhar de Cinema. Comprei o segundo ingresso no dia seguinte ao primeiro visionamento. Filmes feitos entre amigos costumam me animar, mas o que me empolgou mesmo foram as potências de invenção que se apresentam na história dos amigos Naiana (Rosalina Tamiza) e Diego (Maricota).

Acompanhar os filmes feitos por Jorge Polo, Catu Rizo e Helena Lessa (as duas últimas diretoras de fotografia de Canto dos Ossos) tem sido garantia de boas surpresas posto que eles formem uma trupe de bruxas e magos, que fazem do cinema essa mistura de elementos díspares, palavras sussurradas, conjuramento de feitiços e produção de rituais que servem aos mais diversos fins, sendo vencer o tempo a ideia que atravessa todos eles (os fins e os filmes).

Os rótulos de fantasia ou filme de terror me deixam encabulada. Tem muito mais coisa por baixo das unhas compridas cobertas de vermelho.  Chega um momento do filme que a primeira ligação que faço é com Desejo e Obsessão de Claire Denis. Acompanhamos o envolvimento entre Diego e um amigo: após um susto inicial, se estabelece uma movimentação violenta, algo de kink, de perversão consentida, experimentação de quase morte como prazer. A liberdade que se vê aqui como texto se cruza com a liberdade criativa das disjunções e dos personagens que precisamos decifrar a partir do próprio repertório e esbarram na ideia de imortalidade como prisão, na necessidade de fuga e mudança constante, na consequência de existências livres que se metem em problemas todos os dias.

Deve ser cansativo para Naiana, Diego e seus amigos, pois a cada gesto que afirma suas naturezas se esbarra em alguma força contrária, e a tensão que daí surge muitas vezes é sublimada para que se prossiga a jornada sem chamar atenção, enquanto em outras é preciso tomar partido e lançar o corpo no contra-ataque. A figura da criatura enfaixada de voz cansada e antiga pode muito bem ser um demônio à Hellraiser, uma imagem perdida em algum sonho Lynchiano ou o homem que vendeu o mundo naquela música do Bowie. Faz tanto sentido que ela seja decrépita e carcomida como a juventude possa se restaurar do combate tomando um banho de mar.

Essa mesma juventude é atraída magneticamente, os grupos se formam, convivem por um tempo e se espalham pelo mundo novamente. Velas são acesas e rituais online são necessários para manter a conexão. As verdades que eles compartilham podem servir a criação de discursos em linguagens diversas. É cômodo transmutar o sangue que se espalha nas ruas e na TV aberta em signo estético de vida em explosão, experimentação ao limite, riscos, dúvidas e beleza? Mostrar as garras passa a ser cômodo sim em algum momento e é necessário que assim seja.

A monstruosidade como figura de expansão é para mim a grande mensagem de Canto dos Ossos. O ranger de velhas estruturas, como o cinema, mascaram o desejo de que algo os faça mover para tombar, e ser testemunha desse movimento é tão precioso que me deixa feliz em meio a tanta merda concentrada no ano de 2020.

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