Olhar de Cinema: Trouble

Por Camila Vieira

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Trouble começa com uma reportagem dos anos 1960 em que aparece o protestante David Coleman, aos 19 anos, em Belfast. Ele estava desempregado e prometia se casar com uma jovem católica. A união do casal desafiava os conflitos permanentes entre as duas religiões naquele território. Décadas depois, a imagem de Coleman na juventude e seu envolvimento político na capital da Irlanda do Norte conduzem a diretora estadunidense Mariah Garnett a realizar um filme sobre ele. David é o pai de Mariah e hoje mora na Áustria. A realização de Trouble foi uma forma da diretora estadunidense conhecer melhor seu pai ausente – com quem se correspondia apenas por cartas e teve o primeiro contato presencial quando ela completou 27 anos.

Ao retomar fotografias e informações do passado, David até fala bastante sobre sua família, o contexto político de Belfast e seu envolvimento como membro ativo do People’s Democracy, partido estudantil e trabalhista. Mas ele prefere relatar tudo do conforto de sua casa e recusa a proposta que Garnett faz de viajar à Irlanda para reencontrar seus amigos e familiares. A relutância do pai leva a diretora a construir uma estratégia bastante inusitada para seu filme: ela se veste tal como seu pai aparecia na reportagem e performa seus gestos e suas falas nas ruas de Belfast, como se fosse o jovem Coleman nos anos 60.

Ao preencher tais lacunas da memória com suas reconstituições históricas pela performance de seu próprio corpo em cena, Garnett brinca o tempo todo com a forma do filme e subverte a convencionalidade de um documentário de família. É um jeito queer de pensar e fazer cinema, em que o realismo dos depoimentos e das imagens de arquivo vai cedendo espaço para as divertidas encenações em que Garnett atua como o pai dela. Se desde o início já não era possível recuperar integralmente o passado de seu pai, a magia de Trouble encontra-se em assumir o artifício como estratégia de reposicionamento das falhas e das fissuras da memória e de inventar novos gestos narrativos para os códigos dos filmes biográficos.

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