Que os jovens destruam a cidade – Funeral das Rosas

Por Gabriel Papaléo

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“Quanto a espadas, as ornadas com joias.”

Sei Shônagon, O Livro do Travesseiro (1002).

Faz vinte e três anos que as bombas foram jogadas em Hiroshima e Nagasaki, e com isso o milagre econômico patrocinado pelos Estados Unidos no pós-bomba já está enraizado o suficiente no cotidiano japonês. O ocidente está instalado em Tóquio, novas identidades estão fervendo, e o discurso dos jovens complexifica – estaria a destruição do passado à serviço de um ideal estrangeiro ou a um legítimo descontentamento com o histórico social de comportamentos que o país forjou para si? Um ano depois da Tóquio retratada em Funeral das Rosas, o sociólogo Toyomasa Fuse disse sobre a suposta radicalidade dos protestos juvenis: “Se estudantes não tomassem partido e protestassem, então a universidade e a sociedade seriam as vítimas da complacência e prisioneiros do anacronismo.”¹

Em Funeral das Rosas, acompanhamos Eddie, jovem cuja identidade marginal goza com o homem cis de negócios, e que vive a noite buscando suas utopias particulares. E o que os os corpos vivos de Eddie e suas amigas tem a dizer sobre essa revolta que passa por um psicológico, por uma formação de identidade, antes de qualquer âmbito socio-político racional o suficiente para se organizar e digladiar contra a moral deturpada do presente?

Na televisão, uma epidemia dos narcóticos é anunciada, no tom sóbrio e contido que é o oposto ao que somos apresentados na personalidade dos rostos que acompanhamos aqui; para Matsumoto o confronto é sobretudo uma questão comportamental e estética. Os jovens buscam uma organização social que possa se propor como antídoto desse apocalipse cultural dos bons costumes, da binariedade, até mesmo de convenções cinematográficas de gêneros que mestres japoneses como Mizoguchi, Naruse e Ozu consagraram. O cineasta “underground” (“É de underground que chamam, né?”, pergunta uma das integrantes da trupe) que se fantasia de Che Guevara e mantém o poster dos Beatles pré-separação na parede, filma as ruas, filma os corpos, procura por pulsões e não necessariamente significados. Quando alguém diz que “não entendeu”, o personagem questiona se essa pessoa “sentiu alguma coisa”, e o como isso que mais importa para ele.

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Nesse, um dos muitos comentários diretos sobre estéticas e poéticas cinematográficas, ressalta o círculo dos jovens cineastas prontos para abolir uma linguagem e tentar intuir novas, como na citação a Mekas (ou Monas Jekas, como dizem no filme). O gesto do gênero e da identidade criando uma dimensão social paralela, de convívio apenas de jovens, que acessam o mundo dos mais velhos apenas para tirar seu sustento. E como esse tipo de organização social se propõe como antídoto do apocalipse cultural? As cenas de música, de tesão entre os personagens, vivos como a câmera de Matsumoto os seguindo e sendo intrusa na coreografia anárquica da dança e do contato, buscam colocar no espectador quais são as entranhas e atrações que regem aquelas pessoas, interessadas na liberdade, no prazer, mas sobretudo numa exploração política do urbano utópico que criaram para si – e do distópico que ocasionalmente encaram, como nas cenas cômicas de briga que Matsumoto faz questão de ressaltar como farsescas, à medida que para Eddie não é o grande confronto que a atormenta, seja com as mulheres cis que provocam ela e suas amigas na rua, ou mesmo no confronto com Leda na boate; sua dor é na busca pelo contato, pelo amor, pela aceitação simbólica da figura masculina que a mantém numa relação de abuso. É quando volta ao mundo dos jovens, nas festas conduzidas pelas drogas e pelo rock, que vive sem rodeios, a profanação dando forma ao dia a dia – ou à noite, no caso desse filme.

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Aos adultos, restam as máscaras, a ideia do visual como blindagem, e não expressão, à cidade. Algo corriqueiro no cinema de Mizoguchi, como tantos os outros diálogos que Matsumoto propõe aqui – e que discutirei mais tarde -, é a presença do teatro, das peças, do noh – a prática artística japonesa da dança de máscaras. O palco costumava ser o lugar desse espetáculo das máscaras, mas em Funeral das Rosas elas aparecem nos museus, sacralizadas, na parede, inatingíveis, castradas como monumentos. O retrato da solidão é bem visível na cena na qual Eddie se vê no chão do museu, a voz impessoal narrando a importância das obras ao redor, numa distância que nada conversa com a visceralidade do seu contato em outros ambientes. As máscaras que os homens usam para se esconder socialmente agora são simbólicas, mais estranhas, difusas, difíceis de assimilar. Essa impossibilidade da assimilação dos conflitos entre o que se sabe sobre Bem e Mal nos contos morais de Mizoguchi, um humanista dos ferrenhos e que sabia contornar com esperança nas pessoas as crueldades que filmava, se torna quase impossível de ser exercida na ebulição política do final dos anos 60. O ritual é a instituição da qual Mizoguchi retratava em seus filmes a ponto de organizá-los por vezes inteiro em torno da cerimônia como em 47 Ronin (1942) e Crisântemos Tardios (1939), histórias que terminam com gestos maiores que a vida, que atravessam o simbólico até quase chegar a conexão metafísica entre humanos e seus sentimentos. Como falar sobre ele num cotidiano vivo de mudança, de contemporaneidade, que quase se coloca como anti-ritual?

A entrevista de Yoshishige Yoshida coordenada por Pascal Bonitzer e Michel Delahaye para a Cahiers du Cinema em 1970 busca traçar algo dessa relação com os monumentos e cerimônias. Yoshida não cita Funeral das Rosas diretamente, mas filmes seus como Eros + Massacre (1970), também da chamada Nova Onda Japonesa, buscam tratar dessa relação explosiva entre passado e presente na cultura japonesa cinematográfica – de forma mais frontal politicamente, digamos. Em certa passagem, Yoshida fala que “De acordo com ele (Mizoguchi), a política é apenas um dos elementos que determinam a particularidade de um período histórico, e ele buscava ir até o cerne absoluto da situação. Mas nossa situação é mais complexa do que a de seu tempo; mesmo que alguém queira ter essa mesma visão, não seria possível chegar ao ‘cerne’ das coisas. No tempo dele era muito clara a distinção entre opressores e oprimidos, entre o poder e o povo. Portanto, o realismo de Mizoguchi era completamente eficaz. Ele era perfeito, mas isso não se aplicaria ao nosso tempo.”.

É uma distinção direta dessas novas formas contemporâneas com mais vertentes, mais estranhas, com ramificações complexificadas – o que embaça a visão das coisas, as torna mais plurais mas também mais suscetíveis aos enganos e ilusões. Matsumoto, como Yoshida, sabe desse estado delicado das novas verdades que são estabelecidas, das reconfigurações perigosas do poder e o como as resistências também devem ser debatidas, complexificadas. Isso passa, novamente, pelo plano político, estético, e comportamental.

Nessa inquietação da pluralidade que chega, Matsumoto recorre a dispositivos dos mais diversos para retratar a inquietude geracional do jovem não-hegemônico no Japão dos anos 60. O confronto contra o estado e tudo o que ele representa de normatividade, acessando o dispositivo do cinema direto nas entrevistas como ética etnográfica de ouvir aquelas pessoas que não são retratadas, porque a cidade e a cultura as consideram apêndices, contos não-requisitados. O amálgama estético de Matsumoto passa dos experimentos com textura ressaltada na película, o grão violento na imagem, ao contraste do negativo no qual uma cena de amor é filmada, chegando até as fotos que interrompem a narrativa volta e meia, de poses estilizadas surgindo como iconográficos marcantes dessa performance social que acomete todos os personagens, dos figurinos contemporâneos de Eddie aos ternos sóbrios dos homens que frequentam a casa gerenciada por Leda – não por acaso nomeada Genet, aliás, em homenagem ao escritor de Querelle. A furiosa tentativa do diretor de desvelar da narrativa clássica a linearidade (temporal e estética) assalta pela harmonia, surpreendente, por conta da fluidez na qual a trama de Funeral das Rosas se desenrola. Mesmo que sempre volte a Eddie, a bússola emocional do filme, a câmera procura outras histórias ali no meio como ampliação ideológica do tema no qual discute, como uma investigação.

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Funeral das Rosas já é estabelecido como um filme mais livre de dispositivos, então não há estranhamento quando surgem as entrevistas à cinema direto. Pelas perguntas curiosas, às vezes provocativas, às vezes desajeitadas (talvez propositalmente), Matsumoto extrai daqueles personagens uma interpretação dos próprios atores sobre suas ações, não apenas como um aceno metalinguístico como se tornou corriqueiro em uma parte do cinema contemporâneo, mas sim como uma proposta ética política de discussão, de dialética – algo trabalhado por Jean-Luc Godard em O Demônio das Onze Horas (1965), aliás, nos breves comentários sobre a guerra do Vietnã. A falta de necessidade de Leda afirmar a identidade alheia, diante das perguntas de Matsumoto, demonstra esse interesse social maior em expressar suas crenças e sua sexualidade que de fato propor um julgamento – ou organização – dessa corrente de pensamento do desejo. Existe o mistério dos olhares e da atração dos corpos, e interessa a Leda, como a Eddie, que ele seja respeitado.

Pîta, a estrela que interpreta Eddie, também é perguntada sobre sua personagem. O que elas se assemelham? O que escondem? Eddie não se furta a dizer o quanto ambas são parecidas, e “tirando a questão do incesto” são quase a mesma pessoa. Ambas sabem da performance diante das câmeras e o quanto ela reflete essa postura social de encarar na aparência uma articulação estética de identidade – e Matsumoto é feliz ao entrecortar Eddie se montando e o diretor experimental deixando sua barba postiça descolar, evidenciando que a performance visual está longe de ser uma questão de um gênero específico, e da transexualidade. A atuação cisgênero é real e violenta, não menos marcada que a de Eddie e Leda, apenas mais normalizada pela sociedade.

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E no que é a normatização social o mundo dos homens japoneses aparece, sujo pelo dinheiro e pelo trabalho, como representante da manutenção. Matsumoto estrutura o filme em volta do triângulo amoroso entre Eddie, Leda e Gonda, e a dinâmica de poder é sentida desde a cena pré-créditos, na qual Eddie vê Leda na rua. A trama do triângulo amoroso aparece a revelar essa dinâmica perversa do homem que se faz valer do carinho de duas pessoas para as manter sob controle, sempre no pêndulo desarranjado do prazer cuja comunicação passa pela desonestidade da mentira para suas duas amantes. Tanto Leda quanto Eddie sentem o desconforto da situação e o expressa na rivalidade entre si, seja estética, de idades, ou geracional. O ideário da geisha “clássica” aparece cumprido por Leda, com seu quimono e seus rituais, os passos comedidos, a suposta elegância e subserviência. À Eddie é ressaltado o ícone do presente, das roupas estilosas contemporâneas, do cabelo curto, da maquiagem estilizada, do flanar nas ruas, da agressividade e do movimento jovem. Que Matsumoto coloque essas duas personagens, mulheres da noite, para se confrontar aparece como comentário dessa herança dos contos que Kenji Mizoguchi retratava quando se dispunha a falar sobre as agruras das mulheres preteridas pela sociedade, frequentemente prostitutas. Mesmo com toda a roupagem contemporânea, de quem forja identidades para si como forma de assassinar a facadas a disposição de comportamentos japoneses, existe nessas relações e nos homens que dominam os meios (no caso, a boate, e também a atenção das duas personagens) uma perversidade de controle, evidência de uma profunda raiz distorcida de lógica familiar. Tanto Eddie quanto Leda são solitárias às suas maneiras, e usam das identidades para burlar essa solidão as quais foram relegadas por um mundo corroído. É quase desolador quando nos vemos diante de uma reforma do mito de Édipo, porque se percebe que a sociedade guarda para a dinâmica familiar a crueldade final.

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E nessa luta constante pelo desejo, por achar no mundo o prazer que lhe foi negado pelo abraço a uma identidade marginal, não existe frustração maior para Eddie que se ver vítima do destino, de estar refém do arquétipo condenado que repete o mito de Édipo, sem conseguir escapar das tragédias antigas. É como se o clássico desse um jeito de espremer as entranhas do novo, cuja herança familiar tão negada vem com sua força arrasadora para impedir a revolução. A negligência com a família se alastra para seus outros círculos sociais, o abandono como punição moral (não moralista, vale ressaltar) pelo alcance assustador das ações desses homens poderosos em busca do gozo. Não é que Matsumoto condene Eddie pelo assassinato simbólico do pai e literal da mãe, nem encara como punição dos astros, do acaso, do destino que seja, o caos do final; ao diretor interessa o desarranjo da família como catalisador da mudança, do pai que colhe o que plantou porque esparramava a falta de ética em todas as relações em que entrava. A raíz da família e do trabalho são podres porque partem da mesma disposição desses homens que foram ensinados a vocação do poder. A questão é que essa vocação gera uma covardia na performance social, uma tentativa de contenção e manutenção, a História não transcorrendo porque lhe foi tolhida a destruição dos signos e rearranjo das coisas, a transgressão e as novas buscas dos jovens, a revolução se formos simplificar. As pontes culturais entre um Japão de 1968 e de um Japão do século X, digamos, são infinitas, difíceis de interpretar e por vezes de catalogar, e o que a juventude se presta a buscar dos antigos, ao renegá-los até os ossos, às vezes são apenas a ideia de que é preciso se ornamentar na hora de lutar – porque as jóias e as espadas falam da importância de se colocar diante do desafio.

À cidade de Tóquio, retratada pelas vielas e pela noite e pela agressividade, resta a destruição, um fim do mundo anunciado pelo próprio filme ao se voltar para uma das paisagens conhecidas da metrópole. Se não existe espaço para essas pessoas então que o país afunde logo de uma vez, afinal é de decisão dos jovens a permanência ou aniquilação do presente.

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Referências:

¹ – https://www.japantimes.co.jp/culture/2017/11/19/arts/1968-year-japan-truly-raised-voice/

² – https://www.diagonalthoughts.com/?p=2248

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