Contra o silêncio do amor, a poesia e a revolta: Um olhar sobre Tongues Untied de Marlon Riggs

 

Por Chico Torres

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Quero agradecer a contribuição de Janderson Felipe e Lucas Litrento. Ambos me abriram os olhos para o cinema e para a literatura negras. Dedico este texto a eles.

 

Sou uma máquina de escrever excitada. Egoísta, sábia, um soneto, um beatbox (…) Molhe-me com a língua seguinte, com um coro ressoante de homens adultos apaixonados” (trecho de um poema lido por Essex Hemphill em Tongues Untied).

 

Uma língua desatada está disposta tanto à fala quanto ao prazer. Uma língua liberta clama por palavra e saliva, mas quando está presa o que se ouve é apenas o silêncio. Tongues Untied (1989), de Marlon Riggs, é sobre quebrar esse silêncio através da língua em sua mais alta potência. A obra põe em diálogo elementos que, em um mundo cartesiano, podem ser vistos como antagônicos, mas que lá coexistem perfeitamente simbolizados por aquilo que a língua pode suscitar: sexo e razão, política e poesia, corpo e alma, som e silêncio.

O filme pode ser classificado de diversas formas: documentário, ensaio, manifesto, mas tudo isso sob um elemento norteador: o relato autobiográfico. Seguimos as memórias de Marlon Riggs, monólogos sobre experiências e traumas de um norte-americano negro e homossexual durante a década de 1980. Sua expressão física e intelectual é uma mistura de ancestralidade, raiva e melancolia. Riggs mostra através do seu corpo e de seu texto a exata proposta do filme: denúncia e valor documental sobrepujados pela poesia, pelo poder da voz, do som, da liberdade da mente e do corpo. Ele não está sozinho em seus monólogos, há uma série de personagens que o representam: homossexuais, poetas, artistas, mas também homens raivosos. É dá boca de Essex Hemphill, a voz responsável por todas as intervenções poéticas do filme, que ouvimos que “é mais fácil ficar furioso do que se emocionar”. Aqueles homens compartilham da mesma dor e do mesmo desejo de viver plenamente seus talentos e sentimentos, mas que são impedidos pelo racismo e homofobia cotidianas. Antes de panfletário, Tongues Untied é um filme sobre a possibilidade de amar.

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Vivendo de amor, texto de Bell Hooks, desenvolve um olhar sobre como o racismo em toda a sua complexa estrutura é responsável pela falta de expressão de afeto entre pessoas negras, sobretudo mulheres, já que, para o racismo, elas são estereotipadas como “mulheres fortes”, enquanto os homens negros como engraçados e infantiloides. Segundo Hooks, expressar afeto se torna uma tarefa árdua quando o que sempre se impõe é a noção de sobrevivência. Como amar se o tempo todo se viveu violência e perseguição? “Somos um povo ferido. Feridos naquele lugar que poderia conhecer o amor, que estaria amando. A vontade de amar tem representado um ato de resistência para os Afro-Americanos. Mas ao fazer essa escolha, muitos de nós descobrimos nossa incapacidade de dar e receber amor.” Amor como ato de resistência, não há melhor expressão para definir as intenções de Riggs e todos aqueles que o acompanham enfrentando a câmera. Ao olhar retrospectivamente, não é exagero dizer que esse tipo de problematização faz parte de uma tradição artística produzida por pessoas negras, basta pensarmos em Alice Walker e James Baldwing, ambos escreveram livros que tratam das dores e superações de personagens que estão em busca da compreensão e da realização do amor.

“Não importa quão bem construída a casa, não importa quão alta se eleve, ela precisa estar apoiada em algo” (provérbio africano citado em Black is Black Ain´t)

Em sua complexidade discursiva, Tongues Untied dá conta de temas centrais que se relacionam ao que é ser um homem negro e homossexual nos EUA: racismo em suas expressões físicas e verbais; a violência das ruas e a policial; preconceitos com soropositivos; opressão religiosa. De modo mais profundo, é igualmente sobre questões sutis que estão no âmago do ser complexo de Marlon Riggs. Por exemplo, a imposição ideológica e estética que se manifesta no próprio Riggs, quando revela que  desejava apenas homens brancos em sua juventude. Há também o desmascaramento da homofobia dentro da própria comunidade negra, e Riggs exemplifica isso com ícones do entretenimento (Eddie Murphy e Laurence Fishburne) para mostrar o quanto esses sujeitos perpetuam o preconceito em seus shows.

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Todas essas coisas são a faceta do silêncio. A obra tem uma carga pessimista e trágica, não estamos olhando para outra coisa que não a realidade desses homens, suas histórias, seus dilemas e todo o silenciamento que os cercam. Mas esses aspectos estão sempre sendo confrontados através da poesia, da linguagem corporal e da vivência do amor entre esses homens. “brother to brother” é repetido como um mantra no início e no final do filme, afirmando a vontade de criar e expressar afeto, música e palavra de ordem. A língua desatada que faz versos e constrói o rap; línguas e dedos que estalam para expressar pertencimento e linguagem corpot; o canto e a dança que ressaltam a beleza da linguagem artística e corporal daqueles homens tão guetificados. Todos esses elementos se reúnem como modos de resistência sob um olhar poético penetrante, como se suas vozes estivessem sendo sussurradas em nossos ouvidos, mas que na verdade são gritos de revolta.

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Então você pega um pouco de cor. Pode ser uma pitadinha ou uma colherona, não importa. Aí você mistura com um monte de características físicas que reflitam todos os rostos que existem nesse mundão. Misture tudo isso com uma cultura que simplesmente ama improvisar, dar significado, reivindicar, renovar e ler. E aí está a receita para fazer o povo negro” (Angela Davis em Black is Black Ain´t).

Em Black is Black Ain´t (1994), último filme de Riggs, assistimos comovidos, tanto a sua luta contra a AIDS como o seu empenho para quebrar novamente o silêncio, trazendo a questão da negritude em um sentido mais abrangente e afirmativo. Sua busca neste filme, diferentemente do que acontece em Tongues Untied, é mais propositiva e dialoga diretamente com questões internas das comunidades afro-americanas, mas sem perder o olhar reflexivo e poético característicos do diretor, que nesse filme conta com contribuições de nomes como o de Angela Davis, Bell Hooks, Michele Wallace e Cornel West. Compreendemos a luta, a beleza e a inteligência de Marlon Riggs, seu desejo pela palavra, pela imagem, pelo som, pelo amor. Com sua curtíssima obra, me parece ter conseguido ser um dos mais sofisticados documentaristas e ensaístas do cinema negro de todos os tempos. Foi poeta e sabia que o amor é um ato revolucionário.

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