Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: O Problema de Nascer

Por Camila Vieira

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Nos ambientes escuros de suas casas, dois personagens alimentam dificuldades em superar a ausência de alguém querido em suas vidas, no longa-metragem O Problema de Nascer (The Trouble With Being Born, 2020), da cineasta austríaca Sandra Wollner. O primeiro é um homem que perdeu a pequena Elisabeth, desaparecida há 10 anos ao fugir da casa da mãe. O segundo é uma senhora já idosa que se recorda todos os dias do irmão Emil, morto em um acidente há 60 anos. A forma dos dois driblarem as ausências em um presente fraturado se dá pela convivência com um androide, que encarna memórias implantadas – e por que não alteradas? – daqueles que se foram.

Como Elli, a ginoide recorda-se do cheiro da terra molhada, dos cigarros, do protetor solar, das inúmeras horas que viveu ao lado do pai, das músicas que ambos ouviam. Ela é a personificação idealizada da criança doce, gentil, inocente, com presença disposta o tempo inteiro diante do homem que ela chama de pai. Mas a figura paterna transparece algo no mínimo estranho nesta relação: ele olha para ela com desejo ao comprar um vestido; ela posa nua e sensual diante dele; e após uma dança incessante, dorme com ela. A cena de sexo não precisa ser mostrada, mas já se sabe que aquele corpo robótico foi avariado. “Mamãe nunca teria deixado, mas ela não precisa saber de tudo”, diz a voz off de Elli.

O que significa o não saber de tudo nesta relação pai e filha que envolve pedofilia? É certo que a ginoide foi programada para satisfazer o desejo do dono, mas sua rostidade remete à criança que desapareceu. Será que a menina fugiu de casa justamente com o intuito de se livrar de um histórico de abusos com este homem que nem sabemos ao certo ser o pai? A pergunta fica em suspensão, até o momento em que a ginoide escapa do aprisionamento da casa, é resgatada por um terceiro e volta a um novo enclausuramento doméstico, desta vez na casa de Anna.

Como Emil, muda-se o gênero para androide. A voz agora é de um garoto, que brigava muito com sua irmã no passado. Na nova casa, não há tempo suficiente para elaboração de outra vivência em meio ao trauma. As diferentes memórias de Elli e Emil implantadas no mesmo ser robótico acabam por se confundir e se misturar. O estrago na estrutura familiar permanece. Apesar do interessante ponto de partida, O Problema de Nascer limita-se à abordagem unidimensional das relações humanas pelo que há de pior nelas, sem se permitir alcançar outras experiências.

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