Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: City Hall

Por Bernardo Moraes Chacur

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A premissa de City Hall, 43º documentário de Frederick Wiseman, soa familiar, considerando a filmografia do diretor: a imersão em um determinado local ou instituição (desta vez a prefeitura de Boston em 2018), a partir da observação de vários aspectos de sua rotina, sem narração, sem entrevistas, sem legendas de identificação ou contextualização. Há, no entanto, um elemento inesperado: a frequência com a qual o prefeito, o democrata Martin J. Walsh, aparece em cena.

Todo esse espaço dedicado ao discurso oficial sugere uma primeira hipótese: Wiseman estaria em busca de contradições entre retórica e práticas, transpassando a imagem institucional a partir do registro paciente. Não vemos, contudo, momentos claramente desabonadores para o prefeito e gabinete. Walsh, que em 2018 acabava de se reeleger, é um político oriundo do movimento sindical (fato não mencionado no filme) e alinhado a causas socialmente progressistas: defesa da diversidade racial, dos imigrantes e da população LBGTQI+, combate à fome e à disparidade de renda. Nem por isso o prefeito deixa de enaltecer a importância do exército em um encontro de veteranos de guerra, ou de se apresentar como um bostoniano da gema, filho de imigrantes irlandeses e com sotaque evidente. É, portanto, um exemplar da esquerda considerada eleitoralmente viável dentro do bipartidarismo norte-americano.

A carga crítica mais evidente em City Hall é o contraste entre um governo municipal progressista e uma esfera federal agressivamente reacionária. Se alguns dos avanços democratas parecem tímidos e paliativos, há uma diferença clara entre essa insuficiência e a desumanidade ativa encarnada pelo presidente Trump, com resultados concretos para as vidas de uma população. E Wiseman, como de costume, não trata essas pessoas como abstrações, mas como casos concretos, com problemas urgentes e específicos.

Para além disso, o documentário suscita uma ideia mais ampla e menos óbvia. Em múltiplas instâncias, testemunhamos os limites de atuação de um governo local – aparentemente bem-intencionado – em meio a uma organização econômica que inevitavelmente perpetua e intensifica a miséria. Durante a inauguração de um banco de alimentos, o prefeito cita os indicadores de prosperidade econômica da cidade, acrescentando um contraponto sombrio: mesmo em situação de pleno emprego, um em cada seis bostonianos vive em situação de insegurança alimentar. Há um dilema constante em City Hall: devemos nos tranquilizar com a intervenção humanitária da prefeitura ou refletir sobre o estado de emergência permanente que essas políticas moderadas podem apenas mitigar?

Um outro padrão inquietante também se evidencia. Em determinada cena, um empreiteiro de origem latina relata como sua empresa se enquadra consistentemente em programas de cotas, mas é sempre barrada dos grandes projetos. Em outro momento, presenciamos uma reunião de vizinhança, cuja realização era pré-requisito legal para abertura de uma loja de cannabis. Ao longo da conversa, fica claro que não há garantias de que o empreendimento gerará empregos para a comunidade e que, apesar da obrigatoriedade da reunião, os moradores não possuem poder de decisão. Logo, o bairro em questão, assolado pelo tráfico ilegal de drogas e com altíssimas taxas de encarceramento, dificilmente lucrará com a legalização do comércio da maconha, uma das bandeiras progressivas clássicas das últimas décadas. Essas e outras ocasiões indicam que já existem políticas de ação afirmativa e consulta popular ativas em Boston há algum tempo, mas com alcance e efetividade limitados. Tais problemas certamente ultrapassam a esfera municipal e antecedem a administração de Walsh, mas em que medida a boa-vontade demonstrada pelos agentes da prefeitura, prontos a reconhecer os desequilíbrios, será capaz de reverter essa inércia?

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Mesmo com essas ressalvas, é difícil assistir City Hall sem a impressão de que o diretor (nascido em Boston e residente em Cambridge, cidade vizinha) demonstra algum grau de simpatia pelo prefeito e sua linha de governo, violando a imagem de distanciamento cultivada por toda uma tradição documentária, um decoro que admite a oposição política, mas que se constrange com a adesão clara. Mas vale lembrar que Wiseman sempre rejeitou a suposta neutralidade do cinema documental, apesar do aparente laconismo de seu estilo. Pelo contraste, City Hall nos lembra que a abstenção é uma posição política especialmente irresponsável durante tempos de ascensão da extrema direita.

Agradecimentos a Gabriela de Sousa Nunes.

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