A lei dos depravados

frePor João Pedro Faro

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Entre 1966 e 1973, os cineastas japoneses Koji Wakamatsu e Masao Adachi colaboraram em mais de 30 projetos. A parceria da dupla só foi quebrada quando Adachi se uniu ao Exército Vermelho Japonês, no início da década de 70. Ele mudou-se para o oriente médio, lutando no grupo armado comunista junto com a Frente Popular Para a Libertação da Palestina, sendo mais tarde deportado do Líbano e acabou preso no Japão por quase 40 anos. A obra de Wakamatsu e Adachi permanece como uma das violentas expressões cinematográficas de sua geração, composta por filmes de baixíssimo orçamento que compartilham a revolta como um estado de existência e a contravenção como base da relação entre o indivíduo e o coletivo.

O princípio dos dois autores é a várzea. Por mais que seus filmes perpassem a história da Nova Onda Japonesa, Wakamatsu e Adachi sempre recusaram qualquer cânone. Em torno do gênero pinku, filmes japoneses de exploitation preenchidos por nudez e violência, feitos com pouco dinheiro e distribuídos no mercado de cinema adulto, os dois fundaram um ideal de cinema que prezava pelo imediato, pela potencialização direta dos meios fílmicos que só poderia ser encontrada dentro do contexto desse tipo de cinema marginalizado. É preciso entender que seus filmes só puderam existir da forma que existiram, do jeito que existiram, por estarem conscientes de seu espaço enquanto subprodutos industriais, por habitarem as bordas de um sistema operacional de estúdios do Japão e reconhecerem esse fator como uma pulsação estética e formal. Se a base da revolta é a negação, esse cinema nasce a partir da vontade pelo contrário.

A primeira parceria dirigida por Wakamatsu e escrita por Adachi feita de forma completamente independente, The Embryo Hunts in Secret (1966), funciona, de forma mais ampla, como uma declaração de interesses que viriam a ser ainda mais estripados nos próximos anos. No filme, um homem prende uma mulher em seu quarto e a submete a todo tipo de tortura física e sexual. O estado de revolta é absoluto em todos os aspectos: o torturador que expressa a misoginia em catarse de tortura, que não aceita a possibilidade de que o corpo da mulher simplesmente exista de outra forma em que não esteja absolutamente dominado. O reflexo do abuso encontra-se na sobreposição das imagens de revolta, como em um momento de tortura que é precedido por imagens sobrepostas do rosto de Maria Antonieta e, logo depois, da ex-mulher do próprio torturador, que não pode lhe dar um filho. A complexificação das estruturas de poder apresentadas impulsiona a justificativa do torturador em torturar: a desestruturação familiar, a impossibilidade da paternidade, é relacionada ao regicídio, ao fim de um estado absoluto de poder. Isso o coloca, ao mesmo tempo, na posição de vítima e de algoz.

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É um abusador que se sente traído pelo tempo em que vive, se sente destituído do poder que revoga e, agora, tenta reestabelecer algum tipo de sentido à sua vida, às custas da extrema violência – um personagem essencial à filmografia de Wakamatsu e Adachi, por ser a figura exemplar do sujeito que precisa destruir todo um espaço por não conseguir viver sob preceitos que não sejam os próprios. Enclausurado entre quatro paredes, onde estupra e chicoteia sua jovem namorada, ele consegue reger um universo particular que esteja de acordo com os ideais que sua revolta reivindica.

No ano seguinte, Wakamatsu dirige Violated Angels, um filme de menos de 60 minutos que acompanha um grupo de enfermeiras feitas de refém por um jovem armado. Voltamos ao filme de espaço único, onde o rapaz mata todas as enfermeiras, uma de cada vez. A ação concentrada dilata o tempo e valoriza cada gesto como um arco dramático: cada interação, verbal ou silenciosa, entre o atirador e alguma das mulheres, se estende por minutos. Em vários momentos, ações se repetem: vítimas aos gritos pedem misericórdia, a arma é usada como mediação fálica entre o homem e a mulher – tudo enquadrado diante à iminência da morte de todas elas. Assim como em Embryo Hunts in Secret, e como viria a ser em filmes futuros, Wakamatsu abusa de característica comum ao pinku, a repetição de atos de violência física e sexual, para transformá-la em aliteração. A mesma situação se repete por muito tempo em tela, transformando o processo de reiterar as mesmas imagens e as mesmas palavras em uma extensão consciente do cinema que ocupa e uma experimentação do extremo, o filme inteiro sendo uma série de ações repetidas e dilatadas que, em outras obras, ocuparia apenas alguns minutos de narrativa. E ainda subverte essa própria aliteração do grotesco em seus momentos finais, quando o toque maternal de uma das enfermeiras consegue desarmar o jovem, contrariando as expectativas do gesto repetido da morte.

O personagem do atirador em Violated Angels é um revoltado peculiar dentro do cinema de Wakamatsu, pois suas ações são extremamente ambíguas, quase aleatórias. Ele surge em tela como um obcecado em acabar com a vida daquelas mulheres, sem antes e depois. Nos últimos segundos de filme, quando a polícia arromba a casa das enfermeiras para buscar o atirador, Wakamatsu sugere um paralelo fundamental entre a violência daquele grupo de agentes estatais com a violência do atirador contra as mulheres desarmadas (paralelo esse que viria a se tornar mais politicamente declarado em seus projetos seguintes com Adachi), mas a motivação básica do jovem continua misteriosa. A resposta pode estar em um dos primeiros momentos do filme: sozinho em uma praia, o rapaz atira freneticamente contra as ondas do mar. A imagem não poderia ser mais direta, mais literal. Atira-se contra a impossibilidade de vitória, contra algo imortal, em constante mudança de forma e tamanho, para se adequar ao que o impacta. Atirar contra a água talvez seja o gesto mais sugestivo possível de um indivíduo em revolta contra as leis de um universo exterior a si próprio, que pode ser atingido, mas nunca derrotado. Matar um grupo de mulheres indefesas é um escape temporário de alívio contra as ondas de fardados que surgem nos últimos momentos do longa.

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Um jovem armado, que atira contra a impossibilidade de vitória que o cerca, surge também na cena final de Sex Jack (1970), escrito por Adachi e dirigido por Wakamatsu. Após todo o seu grupo de amigos, uma gangue de estudantes comunistas, ser preso, um tímido rapaz mata um grupo de policiais, logo antes de sair andando, solitário. Por mais que exista uma certa recompensa no assassinato da polícia, o tom é de melancolia absoluta, de desesperança em qualquer ato revolucionário. É estabelecida a diferença entre a revolta e a revolução. A revolta implica desordem, já a revolução, além da desordem, implica mudança. Em Wakamatsu e Adachi, nunca atingimos a revolução, só interessa filmar a desordem.

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Sex Jack é estruturado no confinamento do grupo de comunistas em um apartamento decadente. Durante o dia, não fazem muita coisa além de transar e brigar. A claustrofobia, obsessão declarada de Wakamatsu, acaba funcionando como propulsora de ações concentradas em seus planos. O longo escopo da câmera de Wakamatsu, uma recorrência visual necessária na maioria de seus filmes, decupa o espaço confinado na alternância entre o plano todo preenchido pela aproximação com os corpos dos personagens transando ou aberto o suficiente para enquadrar diversos personagens em cena. Interessam as imagens dos embates físicos, sejam eles sexuais ou não: todos recebem um mesmo tratamento pelo longo quadro que os abriga.

Em um caso similar, no longa Sensual Games (1969), que Wakamatsu e Adachi dirigiram juntos, o escopo que enquadra o maior número de pessoas em cena serve tanto para filmar uma cena de orgia quanto para filmar um grupo de ativistas políticos em motim. Aliás, essa aproximação sugere tornar as duas coisas inseparáveis. Em dado momento, a cena de uma jovem sendo estuprada é interrompida na montagem por imagens reais da polícia repreendendo violentamente um dos protestos de esquerda realizado por estudantes japoneses. Wakamatsu e Adachi habitavam o ativismo político de esquerda da época, e o registrava como parte de seu cinema, como motor de qualquer outra recorrência temática. Tornam-se princípios similares de brutalização.

Essa percepção é parte da compreensão geral de que o sexo no cinema dos autores, diferente de outras produções do pinku, ou até de filmes de seus colegas da Nova Onda Japonesa, acaba por não ser interesse individual pelo tema em si. São projeções conscientes se utilizando dos signos do pinku, de outras temáticas que cerceiam e ditam os rumos de seus filmes. Em Sensual Games, por exemplo, mesmo que grande parte do tempo de tela seja tomada por cenas de estupro coletivo ou de sexo grupal, o que está realmente em evidência é como essas imagens são articuladas com seus entornos de efervescência social. Como na cena em que uma ativista é levada para uma zona ocupada pela juventude comunista e estuprada por uma gangue de jovens politicamente neutros, que desprezam a revolta ativista e, por sua vez, são revoltados com seus meios individuais de garantir a dominância sexual (antítese do grupo comunista visto em Sex Jack).

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O sexo existe como fim ou como reflexo de um estado de inconformidade constante com o espaço e o tempo habitado, e não simplesmente como sexo. É a violação do corpo, consensual ou não, que cria as imagens necessárias para eletrizar quem está enquadrado em cena. Em 1971, Adachi viria a explorar de forma ainda mais agressiva esse ideal, quando dirigiu Gushing Prayer. No longa, uma adolescente de 15 anos é obrigada por um grupo de amigos a se prostituir, a fim de encontrar qualquer sensação sexual que, até então, não houvesse encontrado, finalmente “derrotando” o sexo, como ela mesma explica. Adachi complexifica a ferramenta do sexo quando a torna uma passagem definitiva para a vida adulta, e, portanto, uma passagem para a percepção do sistema de classes e da exploração laboral. Se o sexo torna a adolescente adulta, e a vida adulta é baseada em trabalho, o sexo só pode existir para a jovem protagonista como outra forma de exploração regida pelo capital, e, para isso, ela precisa subvertê-lo à sua forma. Para o filme de Adachi, a prostituição é o único sexo possível dentro dessa sociedade, e todo sexo acaba, por consequência, sendo uma espécie de prostituição. O sexo pelo sexo, o ato pelo prazer, não existe dentro de um cinema em busca de brutalizar imageticamente seu processo revoltoso de pensamento.

Além do sexo, outra iminência da revolta, para Wakamatsu e Adachi, é o suicídio. Em 1969, Adachi roteiriza e Wakamatsu dirige GO GO, Second Time Virgin. Por mais que o abuso sexual seja constante durante o longa, que abre com uma cena de estupro coletivo contra a protagonista em um terraço, o centro de sua revolta urge da decisão da adolescente em morrer. Após fazer amizade com o filho do zelador do terraço, um jovem matador em série, ela explica: “Desejo morrer porque desejo matar”.  Por mais que esteja sendo violada por todo o seu entorno, ao invés de revoltar-se e negá-lo, a negação se dá contra si mesma. O suicídio é a total destruição de seu vínculo com o mundo, é a revolta contra a própria existência. Junto com seu amigo, que mata a facadas todos os membros da gangue que a estuprou, a menina decide que se jogar do alto do prédio é o regimento máximo de uma moral própria, seu jeito de atentar contra a ebulição desesperadora de inconformidades que sua vivência gera. O suicídio, longe de ser, em si, a concretização de um estado mental destruído, é apenas uma projeção extrema da não-cumplicidade com qualquer fator externo ao indivíduo. Na última imagem do filme, os corpos dos jovens no asfalto encontram algum tipo de estabilidade com o ato de existir.

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Ainda em 69, Adachi dirige o que talvez seja seu projeto mais formalmente ambicioso. AKA Serial Killer parte dos acontecimentos reais de um homem de 19 anos que matou quatro pessoas com a mesma pistola. Uma narração pontual absolutamente apática conta, em resumo, os passos do jovem, desde a sua infância até o dia dos assassinatos, enquanto acompanhamos planos fixos dos espaços em que ele passou ao longo dos anos. Nunca vemos o rosto do atirador ou qualquer imagem de arquivo. É um documentário que surge da articulação dialética entre uma narração distante, objetiva, e as imagens extremamente vívidas de pessoas e espaços que, de um jeito ou de outro, estão em conformidade com os atentados ocorridos. Adachi busca uma não-investigação dos fatos, das motivações ou das influências; concentra-se em simplesmente formular cinematograficamente uma narrativa que torna intrínseco o indivíduo e o coletivo, que mostre ambos como confluentes de existência, mesmo que o indivíduo em questão nunca apareça em tela.

Se temos a informação de que aqueles espaços se relacionaram à vida de um indivíduo assassino, um homem que quebrou o mais básico código da vida em sociedade, todos esses lugares são enquadrados como sendo imagens negadas pela entidade que percorre o filme, que faz com que o filme exista. O atirador existe como entidade de negação em cada imagem, um protagonista invisível. Seja uma imagem do pôr do sol ou de uma marcha militarista, o atirador está presente como contrário absoluto ao que está sendo filmado. Ele é o indivíduo que nega o código, que decidiu, de seu jeito, estabelecer um julgamento próprio de certo e errado, de vida e morte. Ele é um revoltado, quaisquer que sejam suas reais intenções.

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Wakamatsu havia feito algum dinheiro com uma produção no início dos anos 70 e resolveu, junto com Adachi, usar esse dinheiro para filmar em outro país. Acabaram em Beirute, onde filmaram a peça de propaganda terrorista de esquerda Red Army/PFLP- Declaration of World War (1971). Mesmo que seja um projeto propagandístico, ele está em total conformidade com a filmografia da dupla: Red Army é uma declaração de guerra contra o imperialismo, que incentiva meios diretos e objetivos de ação e violência. Como uma voz explica nos momentos iniciais, “as cicatrizes deixadas no poder por nossas ações são a melhor peça de propaganda”. O filme nega o uso de imagens de arquivo, mesmo quando surgem imagens gravadas de noticiários ou qualquer outro meio, elas são vistas através de telas de TV. A câmera se aproxima dos espaços ocupados por guerrilheiros palestinos, de sua rotina de treinamento e seus hábitos de estudo e vivência. Interessa, para Wakamatsu e Adachi, acima de tudo, como aquelas pessoas se relacionam com sua ideologia através da produção de imagens terroristas (a explosão de um avião, uma bomba jogada em território inimigo) e do seu modo de operação discursivo. As imagens finais são compostas simplesmente por palavras como “guerra”, “anti-imperialismo”, “bala”; uma espécie de articulação visual crua de um discurso que prega o ato e o dever de cada soldado na guerra contra um inimigo gigantesco.

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O último grande projeto que uniu Wakamatsu e Adachi, antes que este se dedicasse totalmente à vida de guerrilha comunista que acarretou em sua prisão, foi o longa Ectasy of the Angels (1972). O filme é quase uma apropriação dos típicos filmes de Yakuza para o contexto de facções terroristas anárquicas, com direito a mulheres fatais, cantores de bares, chefões e capangas malvados. Wakamatsu coloca a premissa em um embate de paradoxos, pois enquanto acompanhamos os subalternos de uma facção terrorista explodindo departamentos policiais e atentando contra o sistema hierárquico social vigente, acompanhamos os conflitos de hierarquia que ocorrem dentro da própria organização política. Se, antes, em filmes como Sex Jack e Sensual Game, os grupos terroristas eram simplesmente uma união estabelecida entre jovens, em Ectasy ele existe como perpetuação de todo o sistema que combatem. São traídos e amaldiçoados pela crença no líder e pela fuga do meio em que estão.

Talvez o grande fator que aproxime toda a revolta que Wakamatsu e Adachi registraram e sentiram seja essa contradição da existência do revoltoso. Esses personagens não negam qualquer sistema, qualquer código, eles simplesmente desejam um código que vai violentamente contra o estado atual. Um reflexo tanto da visão de mundo dos dois, que rejeita o poder pela tentativa de um poder próprio, que rejeita o estúdio, os festivais e a crítica, quanto de sua concretização cinematográfica em filmes tão precisos, quase exatos. Poucos cineastas tiveram tanto controle de cena ao filmar as maiores desordens, os maiores gestos de desestruturação da moralidade e do estado político,  ainda mantendo-se fieis a um processo de produção que reverbere esses mesmos ideais.

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O final de Ectasy of the Angels guarda um dos momentos mais especiais de toda a filmografia dos cineastas, certamente em conformidade com seus princípios de sempre. Após uma série de explosões e pequenos atentados, filmados em momentos de absoluto frenesi formal – a câmera de Wakamatsu talvez nunca tenha antes sido tão volátil e tão apta ao caos –, acompanhamos o protagonista abandonando sua vida atual de ação política dentro do sistema de facção, seguindo solitário. Nos segundos finais, esse protagonista, um terrorista que acabou cego após um atentado falho (outra imagem literal poderosíssima que Wakamatsu e Adachi entregam), caminha para fora do quadro enquanto os créditos sobem. Apático, carregado de bombas, se mistura à multidão até que não consigamos mais diferenciá-lo de qualquer outro. O indivíduo retorna ao coletivo, tudo se torna uma coisa só. A aceitação de seu estado de existência como eterno revoltoso trai a revolta original, mas sem deixar também de tornar-se uma outra.

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