CineBH: Rodson (ou onde o Sol não tem dó)

Por Gabriel Papaléo

O céu sobre o Ceará tinha cor de televisão num canal fora do ar

on the rocks

Na volta da quarentena, no mundo pós-vacina, é para essa festa frita de eletrônico que eu quero ir. Um filme que se anuncia “Fritado e montado por” já demonstra estar num lugar especial, e a concatenação louca entre os diversos dispositivos digitais parece ser a regra e o grande esforço das realizadoras e realizadores de Rodson – ou onde o Sol não tem dó. As dissonâncias espaciais abrem o filme para então nos levar para um panorama quase em livre associação do mundo distópico vivido pelo protagonista do título, uma criança interpretada por um jovem adulto que lida com a violência dos pais diante da sua amizade com um robô fudido que ele achou no lixo – e é condenada a vagar por esse mundo estranho de conflitos identitários onde vivemos.

Os anos 3000 serão feitos de lixo, o curta anterior de Cleyton Xavier, Clara Chroma e Orlok Sombra que serve como uma forma de sequência/derivado desse, já parte dessa crônica dos anos 3000 imaginados pelo trio, com os dejetos digitais utilizados pelas marginalizadas para formar uma resistência terrorista – e aqui a explosão dos formatos é mais variada, e por que não mais lisérgica. Acessamos a um arquivo pirata de uma sitcom da família tradicional brasileira disfuncional viciada em pó, a uma religião que prega pela cocaína contra os “cheiradores de cu”, e as mais diversas transformações que Rodson sofre por onde passa, ao desbravar a distopia futurista palco da luta entre as autoridades fascistas do governo anarcocrente e o grupo musical que se apresenta para o futuro.

Nesse retrato quase a mão livre da localização desse mundo, fica evidente que o caos político no qual vivemos é também, quem sabe sobretudo, uma guerra estética das mais ferrenhas. Como você pinta a sua resistência é central ao conflito, e Rodson vai de Lobo Solitário com seu Daigoro cyberpunk a morador de rua cuja imagem é sequestrada por uma blogueira que usa da miséria para ficar famosa nos festivais gringos, seja Rotterdam, Cannes, Berlim – todos aparecem num powerpoint maluco, fruto dessa liberdade estética marginal tão alucinante e que infelizmente é tão pouco vista em longas-metragem brasileiros contemporâneos.

Que no arremate ainda sobre para a imagem do mar como utopia final da liberdade, filmado num 480p vagabundo lindíssimo, parece sinalizar numa contramão de um filme como Corpo Elétrico de que a elevação espiritual solitária do personagem em comunhão com as águas não é um alívio nem um privilégio, mas um duro e surpreendente retrato do preço pago pelos excluídos e marginalizados. O mar não é a recompensa mas a fuga.

Tudo isso é sob a via do absurdo, espalhafatosa e gritante, num filme engraçadíssimo quando quer, e esse tempero desse afrontamento estético é o coração de Rodson – o que torna tudo francamente muito mais prazeroso de acompanhar. É uma experiência difícil e desafiadora que sonha texturas digitais grotescas para destituir o tecido da realidade escrota que acompanhamos para quem sabe restaurar alguma harmonia e paz na cabeça de quem precisa delas.

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