Olhar de Cinema: O Ano do Descobrimento

Por Camila Vieira

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A textura dos planos traz a materialidade do vídeo Hi-8. O ambiente filmado é um bar/restaurante em Cartagena. Os personagens em cena vestem figurinos que parecem ter saído dos anos 90, mas eles conversam sobre o tempo presente. Eles estão vivendo os anos 2000, mas de algum modo tudo o que vivem hoje reverbera um passado não muito distante da Espanha. Em 1992, as Olimpíadas de Barcelona e a Expo Sevilha divulgavam a Espanha como moderna, desenvolvida e dinâmica para o público estrangeiro. No entanto, o país vivia uma crise interna social, política e econômica, com desempregos em massa e 127 manifestações em 180 dias. Em O ano do descobrimento, a simulação dos anos 1990 criada pela direção de fotografia de Sara Gallego e a encenação proposta pela direção de Luís Lopez Carrasco nos convoca a pensar que mesmo quem vive o presente na Espanha é atravessado pelas consequências de um passado próximo.

Com o recurso do split screen (a tela dividida em dois quadros), o diretor apresenta 45 personagens diferentes que interagem no espaço fechado de um bar/restaurante, durante as 3 horas e 20 minutos de duração do filme. Mas a montagem cria uma dinâmica bastante singular. Em muitos momentos, um close é colocado ao lado de outro, como se fosse uma conversa em que se vê o campo e o contracampo ao mesmo tempo. Em outros momentos, os closes colocados um ao lado do outro, aos poucos revelam conversas distintas com outros personagens fora de campo. Alguns olham para os lados, mas não sabemos exatamente para quem; se é ou não é para o personagem que está presente no quadro ao lado. As vozes que ressoam nos dois quadros também se interpõe e se misturam. A estratégia produz uma instigante ambiguidade temporal ao filme, sobretudo quando os planos são intercalados por noticiários e propagandas dos anos 1990.

O documentário é dividido em três partes e um epílogo. Começa com conversas entre jovens sobre seus empregos: muitos deles trabalham em jornadas longas, sem folga; outros estão desempregados e desabafam que se sentem doentes, deprimidos e sozinhos. Diferenças salariais, relação entre chefes e operários, educação pública e movimento sindical são alguns dos assuntos principais abordados. Na última parte do filme, os mais velhos acrescentam informações sobre o passado na Espanha: o histórico de lutas em Cartagena, a repressão do franquismo, os engajamentos no Partido Comunista, as crises na produção industrial que afetaram milhares de empregos, a ameaça de fechamentos de fábricas e a terceirização que culminaram em diversos protestos pelo país. “As pessoas se uniram nas manifestações, mas o conflito foi ficando duro. Esse humor se tornou medo e medo se torna raiva e raiva se torna violência”, explica o sindicalista José Ibarra Bastida. Ao contextualizar a situação da Espanha com o tempo presente de ascensão mundial da extrema-direita, ele constata de forma bastante lúcida que o capitalismo venceu.

O ano do descobrimento começa e termina com dois jovens diferentes que relatam sobre sonhos recorrentes. O primeiro narra sobre um reencontro com seus amigos de infância em um sonho, em que os rostos deles aparecem envelhecidos e, mais tarde, ele se dá conta de que todos estão mortos. O último relata que, no seu sonho, não consegue esmurrar um nazista de perto, como se sua mão deslizasse e não conseguisse dar um soco. Entre a figuração da morte e a impotência da luta, os desejos dos mais jovens parecem figurar uma fantasmagoria da estagnação. Mas é preciso mais uma vez retomar uma frase de Ibarra: “A solução não é sindicato. A solução é política”.

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