Crônica de uma Criança Solitária: A balada de Leonardo Favio

Por Daniel Dalpizzolo

Entre cigarros, bofetadas e castigos, um grupo de garotos atravessa os dias em um reformatório na Argentina. Não sabemos quem são ou o que passaram até chegarem ali, mas as cenas introdutórias revelam um núcleo de personagens ao mesmo tempo homogêneo e singular. Embora eleja entre os garotos um protagonista para acompanhar no restante da narrativa (Polín), o olhar lançado por Leonardo Favio para aquele ambiente é preciso ao estabelecer seu contexto, instaurando, por meio de poucos e elaborados planos, um cenário sombrio habitado por múltiplas almas solitárias, moleques errantes cujas trajetórias de vida os levaram para trás das mesmas grades e muros, de onde expressam sua inquietação provocando brigas no banheiro, jogando, contrabandeando fumo ou curtindo o alvorecer da sexualidade ao redor de uma foto da Monica Vitti.

As sequências iniciais inserem Crônica de uma Criança Solitária entre as grandes obras que exploram a juventude em conflito com os limites da ordem social, a exemplo de clássicos europeus como Zero de Conduta, de Jean Vigo, e Os Incompreendidos, de François Truffaut. Entretanto, se existem óbvios pontos de conexão temática entre essas obras, todas elas debruçadas sobre um mesmo recorte de final da infância de seus personagens, o que imediatamente salta aos olhos na estreia de Favio são os elementos que exaltam suas singularidades: os ambientes decrépitos do reformatório, com iluminação escassa, vidros quebrados e paredes descascadas; os brinquedos singelos ou imaginários; as fardas militares; os olhares duplamente tristes dos garotos; as sombras preponderantes no quadro; o ritmo singular das cenas, que parecem suspensas no fluxo de um pesadelo.

109202721_748773749230177_2827700925942906462_n

Estamos, enfim, na América Latina dos regimes fascistas, na qual, entre golpes militares e governos provisórios, crescia uma juventude periférica apartada dos principais avanços da modernidade. Se os jovens de Truffaut rebelavam-se contra as autoridades matando aula para frequentarem casas de jogos e salas de cinema parisienses, aos de Favio resta a crua dimensão da realidade das ruas, percorrendo becos das periferias argentinas, espiando atentamente sobre o ombro antes de virarem a esquina para desviarem de desafetos ou da polícia. Celebrado como uma das mais importantes vozes da geração do cinema argentino que despontou na década dos Cinemas Novos, Favio aproxima sua obra do que Glauber Rocha nomearia como Estética da Fome, filmando em diálogo com mestres do cinema europeu, porém dando forma a uma estética que assimilava a realidade latino-americana e a representava em tela por meio de uma assinatura urgente, autoral e singular.

A assimilação dessas influências torna o trabalho de Favio ainda mais notável. É possível pensar em Vigo e Truffaut, mas também em Robert Bresson, Jean-Luc Godard, Jean Renoir, Roberto Rossellini, Michelangelo Antonioni e Ingmar Bergman, com os quais a relação se constrói às vezes simultaneamente, em uma mesma cena, na transição de um plano para outro. Cineastas formalmente muito distintos, mas que compartilhavam um mesmo anseio por materializar em suas imagens as inquietações existenciais e sociais da Europa pós-guerras, e que aqui tornam-se somente um ponto de partida para estabelecer um conjunto de referências que serão ressignificadas pelo modo como Favio articula a ação com o cenário filmado. Por essa perspectiva, é possível pensar que trata-se de um dos trabalhos mais complexos e ricos realizados na América Latina durante a década de 1960, a década em que, até então, com maior atenção se olhou para a história do cinema, propondo a partir dessa autoconsciência a construção de um novo marco revolucionário na cinematografia mundial.

109539838_294145354977646_2498990564733616572_n

Como os filmes anteriormente mencionados, Crônica de uma Criança Solitária retrata uma juventude em revolta com o meio que habita. Mas a revolta, aqui, possui uma dimensão de tristeza e desconsolo. Relembro o filme com uma frase na cabeça: “A revolta é uma forma de impotência diante de uma situação de desespero”. A sentença é verbalizada por uma presa política recém libertada da prisão, durante uma conversa documentada por Pere Portabella em El Sopar, e revela uma perspectiva possível para dar conta das experiências representadas por Favio (por sinal, autobiográficas). Os garotos de Favio não escolhem a errância, são escolhidos por ela em razão da realidade que os circunda. Jovens desamparados, perseguidos pelo mesmo Estado que ignora sua existência enquanto não se tornam assunto das páginas policiais, mantendo esses garotos em um looping infinito entre delegacias, reformatórios e a incerteza das ruas.

Por esse contexto é que a fuga da prisão, o ímpeto que materializa a revolta de Polín logo no primeiro terço da obra, é das mais tristes cenas de fuga já filmadas, lembrando uma versão ainda mais desolada do bressoniano Um Condenado à Morte Escapou. Ambos os registros compartilham um interesse pelo silêncio e pelo tempo dilatado da ação, que transcorre vagarosamente e acompanha com esmero os movimentos empreendidos pelo fugitivo – aqui, ao longo de mais de 10 minutos de um silêncio absoluto e ensurdecedor. Entretanto, enquanto em Bresson a fuga é o apogeu da narrativa, culminando no triunfo da ação prometido pelo título da obra (o condenado à morte escapa, afinal), em Favio a fuga de Polín é um recurso com o qual o diretor convoca o espectador não a desfrutar da sensação de liberdade com seu protagonista, mas sim a conhecer, ao seu lado, a dura realidade do meio em que sobrevive, a respirar o mesmo ar e mergulhar na mesma água condenada.

109716192_337103557314520_5867667637518404132_n

O filme se divide entre o dentro e o fora da prisão. Entretanto, as sensações provocadas pelas imagens, seja em cenários abertos ou fechados, podem coexistir em um único plano. Estão no dentro e no fora os mesmos ambientes decrépitos, com iluminação escassa, vidros quebrados e paredes velhas e descascadas; os mesmos brinquedos singelos ou imaginários; as mesmas fardas militares habitando cada esquina; os mesmos olhares duplamente tristes dos garotos; as mesmas sombras preponderantes no quadro; o mesmo ritmo singular das cenas, que parecem suspensas no decurso de um pesadelo, mesmo quando ambientadas à luz do dia, mesmo quando parecem romper a regra à beira de um rio, numa tarde ensolarada de verão; uma tarde de liberdade que culmina na violação do corpo, no choro, grito, dor, silêncio, desespero, o desespero de lidar com a impotência que convoca à revolta.

A estética de Favio, que sustenta essa angústia pelos breves 75 minutos, é construída com um trabalho fascinante na condução da câmera, desde os inúmeros movimentos aos jump cuts da montagem, criando imagens ambivalentes e misteriosas, que flertam com o testemunhal, com a crueza do registro realista, ao mesmo tempo em que compartilham uma dimensão quase onírica. Uma explicação possível para o estilo elaborado de Favio talvez seja sua relação com a música, ofício que exercia ao lado de suas aventuras no cinema (onde, além de cineasta, também era ator). A impressão é de que Favio extrai musicalidade de suas imagens, as encadeia e as monta como quem combina notas e acordes para a composição de uma canção – cujos tons variam ao longo de sua obra, do dedilhado solitário de um violão em Crônica de uma Criança Solitária até chegar ao psicodelismo de um Nazareno Cruz e Lobo.

109515996_1396616064060432_5129813825860226479_n

Como uma balada tocada em repeat, o garoto solitário de Favio transita entre delegacias, reformatórios e a incerteza das ruas, idas e vindas para dentro e fora das grades, numa canção cujos versos conduzem sempre a um mesmo e melancólico refrão. O semblante desolado testemunhado em Polín ao longo do filme, a farda e as mãos autoritárias que sempre o espreitam, retornam mais uma vez à imagem final da obra, mas agora não somos somente nós que olhamos Polín. Polín também nos olha. O choro, a dor, o silêncio, o desespero, a revolta. Na última nota tocada, a criança desaparece na penumbra do quadro enquanto, com a quebra da quarta parede, nos convida a segui-la, para quem sabe, junto dela, atravessar os dias em uma cela, uma delegacia, um reformatório na Argentina, entre cigarros contrabandeados, bofetadas e castigos, provocando brigas no banheiro, jogando, contrabandeando fumo ou gozando o alvorecer da sexualidade ao redor de uma foto da Monica Vitti, até que a balada recomece mais uma vez.

FacebookTwitter