É Tudo Verdade: 1982

Por João Pedro Faro

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O filme de arquivo do cineasta Lucas Gallo remonta 3 meses de imagens televisivas de um programa local, acerca dos eventos bélicos de retomada das Ilhas Malvinas em 1982. Gallo assume as imagens como pura propaganda do regime militar e, através de precisas sobreposições imagéticas e paralelos imediatos entre diversos registros, cria uma contranarrativa fílmica aos absurdos promovidos e televisionados à época pelo governo argentino.

Tendo como centro formal a intromissão da montagem a partir de imagens que, por si só, já falam bastante, 1982 não dispersa de seu método em nenhum momento. Enquanto assistimos uma narrativa ser montada e vendida ao povo argentino, criando uma enorme comoção popular pelas tropas nas Malvinas, acompanhamos, paralelamente, os eventos tenebrosos que discorrem nas ilhas. A primeira metade do filme funciona como filme de guerra, com jovens soldados no aguardo da chegada das tropas britânicas inimigas, enquanto toda uma mobilização nacional desmedida e insana é direcionada a jovens rapazes que esperam pela morte. Por mais propagandístico que o material do programa 60 minutos, fonte de todos os arquivos que Gallo retoma, a iminência do desastre nunca deixa de rondar os cantos dos registros. Quanto mais absurda e mais esquizofrênica se torna a expectativa criada por um movimento armado condenado ao fracasso, mais nos afastamos das imagens das Malvinas e nos fechamos aos auditórios argentinos onde, de alguma forma, a guerra ainda parece caminhar para a vitória.

Se torna, portanto, um exercício de contrastes imagéticos diretos, que expõe o terror da propaganda deixando com que a realidade fale por si só. Não temos alternativas às imagens propagandísticas, porém, elas mesmas passam a se contradizer e, aos poucos, a ruir, declaradamente omitindo o que não lhe interessa e tentando segurar um regime em clara decadência. Criam-se programas de doação com moças bem vestidas ao lado de soldados armados, televisionando um show de arrecadações financeiras para um governo responsável pelos próprios gastos em uma guerra imprestável. Nesse sentido, a figura do General Galtieri e da primeira ministra Margaret Tatcher funcionam como a oposição entre dois carrascos que aparecem de formas opostas nas imagens de propaganda.Tatcher é um fantasma o filme inteiro, representante física do colonialismo europeu, uma entidade maligna que só dá as caras quando já derrotou o país latino-americano. Mas, sem nenhuma surpresa, parece estar ideologicamente ao lado de Galtieri, que sonha com um colonialismo próprio.  Galtieri, exaltado, surge como uma força de salvação que apoia ações completamente fantasiosas, mentindo constantemente, mas sem deixar com que seu rosto pare de olhar para a câmera. A propaganda de guerra, caso esteja do lado do vencedor, serve para marcar o responsável pela vitória, o líder supremo. Caso acabe em derrota, marca eternamente o mentor dos crimes contra a humanidade. E o rosto de Galtieri, sobreposto por Gallo às imagens da destruição, representa uma fraqueza existencial digna do pior dos líderes.

O material reunido por Gallo, todo gravado em vídeo, apresenta ocasionais interferências  na imagem que deformam ainda mais os registros já naturalmente deformes. Juntando isso à sua montagem, marcada por transições entre imagens que surgem por cima de outras, temos um processo certeiro que faz as imagens quase ininterruptas, desesperadas em formular uma realidade alternativa, triunfante. Podemos dizer, então, que 1982 compreende cinematograficamente as origens e as implicações de um discurso patriótico dissimulado, criminoso e desmoralizante, pois seu objetivo é expor toda a sujeira comercial de uma nação comandada pelo militarismo em acordo com o capitalismo. O resultado, em um dos trechos mais marcantes do filme, é o que diz uma voz ao pendurar um pôster do Maradona em uma das paredes de um bar nas Malvinas: vemos, aqui, o perfeito exemplo de um rapaz argentino, patriótico, um símbolo do futuro. Só dá pra tentar se agarrar às imagens que restam, nos sonhos latinos por um imperialismo que possa chamar de seu.

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