O concreto e o imaginário em “A Última Vez que vi Macau”

Por Anita Gonçalves

Já fazia cerca de 30 anos que João Rui Guerra da Mata não retornava à Macau, onde vivera quando criança. Supostamente, o período mais feliz de sua vida. João Pedro Rodrigues, nascido e criado em Lisboa, só conhecia a cidade dos livros, dos filmes – ênfase para Macau (1952), de Josef von Stenberg, finalizado por Nicholas Ray – e das histórias da infância de Guerra da Mata, seu companheiro e parceiro de trabalho. Em 2011, prenunciado como o marco final de um longo ciclo, os realizadores partem à China e por lá rodam A Última Vez que Vi Macau (2012).

A partir da aproximação a uma “estilística documentária” e da realidade material em transformação e fabulação pelo cinema e pela memória – atravessados pela ação do tempo -, dá-se a luz à uma Macau particular, onde seus domínios reais-concretos e fictícios-imaginários se mesclam e se confundem na imensidão de uma cidade dilatada, territorialmente não tão grande quanto parece. O filme é um travelogue – sem mapa, mas com pé no chão – que traça seu próprio percurso, marginal e íntimo, em uma Macau transformada, irreconhecível e labiríntica: desviando-se do que deveria acolher (a segurança, a hospitalidade, o turismo comercial); e aproximando-se do que deveria distanciar e esconder (o que já se foi, o invisível, a violência, a ambiguidade, o imprevisível). Mas sempre partindo do campo delineado e concreto que – enveredando por estradas múltiplas sobre as quais os imaginários fluirão – nunca abandona o quadro.

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O longa, rodado em equipamento digital, dispõe de um registro espontâneo das luzes e dos recantos da cidade, marcado pelas imagens não estilizadas, pela imprevisibilidade da tomada (das ações, dos lugares, dos seres) e pelo plano precedendo a concepção de cena. Tais características formais-estilísticas aproximam o filme de um teor documental e, juntamente à forte presença do cotidiano, o tornam extremamente concreto e ancorado à realidade. Ainda mais quando articulando isto à premissa da qual o longa parte: o retorno de JRGM à Macau, depois de 30 anos sem vê-la; e as lembranças de infância, até aqui podendo ser compreendidas como retratos objetivos e incontestáveis do passado.

Muitos dos locais e objetos filmados revelam-se como fragmentos/resquícios materiais do passado de JRGM  – o Guerra da Mata, que é tanto realizador quanto personagem -, que se comporta como memória remota e pulsante, afetada pelo tempo e relativa a uma experiência lúdica de cidade: a memória constantemente remodelada no transcorrer dos anos e a infância enquanto meio propício à fabulação, onde as fronteiras entre realidade e fantasia são embaçadas e pouco assimiláveis. Ademais, a própria realidade aqui em jogo já é uma quebra de expectativas em relação à ideia de uma representação fiel da mesma: uma realidade presente, diferente, transformada, que só consegue evocar o passado a partir de sua deturpação na memória e de sua ausência na materialidade.

No longa de JPR e JRGM, através de uma relação de intertextualidade, ou, até mesmo, contribuindo na construção narrativa e na edificação da cidade, Macau, de Stenberg e Ray, se manifesta. A noção de exotismo atribuído ao Oriente por imaginários ocidentais, acaba sendo um pilar forte nesta relação entre os dois filmes: no filme de 52, é utilizada para fortalecer contexto de suspense da narrativa, e em A Última Vez também, mas se apoiando no enfrentamento e na subversão desta noção, mediante o estilo e os elementos concretos do filme. Outro elemento intertextual é Jane Russell, carnalizada no filme antecessor e espiritualizada no filme mais recente, em que é absorvida pela materialidade da cidade.

A composição de Macau no filme de 2012, sujeita-se muito mais aos imaginários e às experiências lúdicas pessoais do que a uma determinada transparência documental, partindo da concepção acerca da impossibilidade de um cinema parcial e objetivo, sendo ele, como a memória e a infância, um dispositivo ficcionalizante da realidade. O cruzamento entre os imaginários – sobretudo o lúdico, oriundo das experiências e histórias de JRGM, e o hollywoodiano, presente em Macau -, representa um aspecto totalizante, que molda a experiência fílmica, com base em uma cidade transformada e irreconhecível, que vai sendo expandida, dissecada e recriada ao longo do filme. Todavia, A Última Vez confia na trivialidade cotidiana e em suas imagens concretas “documentais”, para, juntamente a outros aspectos formais, atingir uma potência criativa e dramática muito particular, capaz de fortalecer o elo entre realidade e ficção até se fundirem em um só elemento.

A encenação em A Última Vez está relacionada ao interesse na ficção emanada, sobretudo, de meios reais e banais, sempre atrelada ao contexto material. O filme aproveita-se da representação aparentemente documental de Macau, da suposta “anti-encenação” inerente às suas imagens e às figuras que as compõem (onde mesmo as atuações premeditadas de JPR e JRGM são gestuais, minuciosas e inexpressivas, além de localizadas na realidade cotidiana imprevisível), para conceber uma encenação própria. A partir da apatia e do silêncio de seres e objetos, cuja existência não é subordinada à mise-en-scéne, é criado o âmbito diegético –  camuflado por entre as luzes piscantes e escondido nas entrevias do cotidiano -, no qual a cidade – ambígua, implacável e hostil às individualidades humanas – é edificada. Os animais, guardiões de Macau (“graças ao trabalho constante dos animais, Buda garante a ordem do universo”), atingem essas expectativas ao máximo: paradoxalmente, incapazes de atuar, acabam sendo alguns dos corpos mais expressivos a ocuparem o quadro. Vigilantes por natureza e silenciosos por instinto, trazem consigo grande parte do suspense e da carga de mistério do filme, fazendo-nos crer que de fato existem homens com propósitos e finalidades duvidosas encarnados em seus corpos blindados.

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A construção da encenação não se fundamenta apenas pelo efeito da anti-encenação (ou anti-atuação) na história. Ela ganha sua completude pelo ritmo decorrente da montagem, que se faz nos cortes, na duração não tão curta e na sucessão dos planos (instituindo um certo confronto entre eles e quem os observa); e na união das imagens concretas às vozes subjetivas (que se confundem entre não diegéticas e dramáticas), articulando, com base nestes dois fatores, a tensão que perambula na cidade e intimida estrangeiros que buscam nela um lar. Além disso, ao se combinarem aos planos – que exprimem uma desconstrução cênica mesmo quando agrupados em unidades de sentido comum -, as vozes do extra-campo atribuem a eles a continuidade narrativa e o sentido de cena que nelas residem. No entanto, fundando muito mais um fluxo expressivo ou uma narrativa flutuante do que uma linearidade através de cenas bem demarcadas.

A Última Vez que Vi Macau inicia com o show de lip sync da música You Kill Me, cantada por Jane Russell em Macau e performada aqui, com tigres enjaulados circulando em segundo plano, por quem posteriormente descobrimos ser Candy Darling – transformista e amiga antiga de Guerra da Mata, que teria partido ao Oriente “atraída pelo exotismo ou por uma vida mais fácil”. É comum nos filmes de JPR, o destaque a personagens e elementos que estão à margem da claridade diurna e do campo cômodo de visão, como no caso de trabalhadores e trabalhadoras dos clubes noturnos, do lixo, do supermercado, etc. Candy, de fato, segue essa constante. Mas, ainda que seja a única figura humana retratada expressivamente no quadro – dublando, fingindo cantar -, há algo que acaba roubando seu foco, tornando Candy e demais figuras humanas que aparecem nos planos elementos secundários fagocitados por um corpo maior (ou confrontados por ele): aqui, é Macau quem domina totalmente o quadro. Secreta e marginal, é personificada através da abordagem estilística e dramática, adquirindo uma força singular tão grande que parece fluir independentemente; a cidade é o palco e aquilo que o ocupa.

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Não é revelado exatamente o que Candy fez para ser perseguida e, posteriormente, assassinada. Porém, através de sua performance (que faz a cena parecer ter sido planejada, coreografada), ela parece tentar sabotar e confrontar a ordem da supremacia de Macau, provocando a cidade. Neste sentido, os tigres, ao fundo, como elementos aparentemente cenográficos, possivelmente já estariam vigiando-a, anunciando seu castigo. Por conta disso, é condenada a não aparecer nunca mais no campo imagético, desde a chegada de Guerra da Mata, que teria voltado a Macau a chamado da amiga. Em A Última Vez, é impossível a presença física humana daqueles que necessitam da própria individualidade para existirem na Macau fílmica, nos quadros que a compõem e que parecem ser submetidos às próprias leis da cidade-personagem. Já as figuras humanas que não violam a soberania de Macau, hora ou outra têm seus rostos filmados e/ou aparecem por inteiro no quadro, mas sempre desamparadas, vinculadas ao anonimato e bloqueadas de qualquer sensibilidade genuína, apenas existindo no mundo concreto, independentemente do frame que as captura e as ficciona. São elas, apenas peças constituintes de uma Macau, essa sim, expressiva e humanizada – e ai de quem deseja resgatar a própria individualidade: a cidade devora.

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O enquadramento “malfeito” e desacolhedor – ou o não enquadramento – de corpos, objetos e ações parece ser uma intenção formal que dialoga diretamente com a suposta anti-encenação e com o sentido dramático. Por vezes, as figuras anonimizadas que existem continuamente no mundo real e não estão onde estão pelo filme – como os turistas, as estudantes, os trabalhadores, etc – são desajustadas pela composição do quadro, que desafia convenções estéticas e as dispõe tortuosamente, sem devidamente focalizá-las e acolhê-las. Por consequência disto, os espaços vazios acabam sendo destacados, preenchidos e ampliados pela expressividade invisível dos imaginários, tão presentes no filme que adquirem uma potência concreta. Por outro lado, esse desajuste do quadro também se exprime nas situações e coisas que Macau faz questão de esconder, mascarar. A violência, aqui, é apenas sugestiva (mas ao mesmo tempo, sempre em pauta): hora a ação decorre no extra-campo, podendo ser assimilada apenas pelas vozes e sons, hora é visível apenas em gestos inexpressivos ou em indícios da consequência da ação, minuciosamente enquadrados, e aguçando a ambiguidade e a dúvida perante os acontecimentos. Ou no caso dos membros da seita do zodíaco, que, enquanto humanos, aparecem apenas gestualmente (contribuindo para o desencadeamento que leva ao clímax), ou se insinuam através de falas desvinculadas de personalidades e de rostos, sem nunca terem suas identidades reveladas em favor da integridade de Macau.

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Já Guerra da Mata, que busca se reconhecer na cidade, tem sua forma humana expressiva distanciada imagéticamente, sempre no extra-campo, confrontado pela cidade-personagem, que é imagem. Ele disputa o protagonismo com Macau, posto que se expressa exclusivamente pela via sonora-verbal, manifestando seus pensamentos e impressões e preservando sua individualidade. Aproveitando-se de seu poder de realizador-personagem, para evitar ser fagocitado por Macau, não se deixa aprisionar pelo enquadramento-cidade, e se utiliza da enunciação verbal como estratégia de sobrevivência. Assim, a dramaticidade aqui presente muito se dá pelo confronto entre a expressividade verbal de Guerra da Mata – que evoca os imaginários, a memória, a introspecção, a subjetividade – e a expressividade imagética de Macau – concreta e material, ainda que muitas vezes ambígua.

Existem duas faces de Macau: a primeira,“calma e sorridente”, associada à Macau “oficial”, mainstream, turística e tranquila; e a segunda “velada e secreta”, aquela que a cidade faz de tudo para esconder. No entanto, a própria abordagem estilística e dramática do filme atribui um tom enigmático e secreto à faceta exposta da cidade: o afastamento da Macau mainstream não quer dizer uma recusa em registrá-la, mas sim uma maneira avessa de abordá-la, rejeitando-a como tal e dispondo-a ao mistério. Com base nas contradições e no caos evidenciados por elementos presentes em suas ruas movimentadas, é salientado o contexto de estranheza de uma cidade sem significado e sem eixo (ou com tantos significados e eixos que se perde completamente pelo excesso). Segundo relata Guerra da Mata, o registro e a descrição acerca das estátuas que simbolizam a devolução de Macau à China, por exemplo, afirmam o discurso histórico oficial através da omissão pontuada pela imobilidade e passividade do gesto. Outro exemplo, é a aglomeração de turistas chineses, que é acima de tudo, fantasmagórica e desesperançosa (“como se a história se apagasse, com o simples click das dezenas de máquinas fotográficas, que obsessivamente congelam a memória e ficcionam a felicidade”). Ou até mesmo, a descaracterização em razão de como a própria Macau é designada, “Las Vegas do Oriente”, o que a permite ser qualquer outro lugar do mundo, no presente, passado ou futuro: Las Vegas, Nova Iorque, Portugal, República Popular da China, Veneza, etc. A espetacularização – que invade e inquieta o plano – presente nas imagens dos remadores de gôndolas, por exemplo, parece atender as demandas turísticas como pretexto para desviar o olhar dos estrangeiros da face oculta da cidade, em favor de uma Macau piscante, monumental e artificial. Tais elementos, advindos de sua realidade “oficial” pautada na mentira (“onde nem tudo que parece ser, é”), confundem sua identidade e mascaram o que há de substancial  e confidencial  nela. E, em função deste esvaziamento significativo, até face “oficial” torna-se fértil aos imaginários.

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Embora haja o florescimento da ficção e dos imaginários em A Última Vez, frente ao fingimento e disfarce excessivos da Macau mainstream, alguns elementos fantásticos lúdicos são hipostasiados, intervindo com certo distanciamento, expondo os artifícios e desiludindo qualquer expectativa do filme em transcender e escapar da cidade presente. Um exemplo é a ópera cantonesa que Guerra da Mata assiste em seu quarto de hotel, que o remete às histórias de piratas da sua infância. No entanto, ela parece tão distante e desencantada quando filmada dentro dos limites de uma tevê tubo,  visivelmente antiquada para uma cidade tão moderna e abastada. Outro caso é a sereia presa no aquário ecrãnizado, que, a evitar outro golpe contra a hegemonia de Macau, aprisiona e desloca o corpo fantástico, metade-mulher e metade-peixe, dos demais elementos constituintes da cidade. Talvez, a criatura pertença a um mundo etéreo e externo. Mas um mundo incapaz de penetrar na Macau fílmica, pela inflexibilidade da cidade e pelo domínio desta sobre o frame. Com a sereia e as “histórias de piratas” sendo apenas visíveis e possíveis dentro dos limites do “aquário” e da tevê, respectivamente, é estabelecida uma relação artificial farsante com a fantasia – onde a realidade impera -, inibindo assim um eventual rompimento com o universo concreto de Macau, que permanece preponderante ao longo de todo o filme.

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Em A Última Vez, Macau é uma cidade que se articula pelos imaginários – invisível se não fosse o encontro do cinema com a memória – subordinada à existência concreta de outra (de mesmo significante), presente, frontal e independente do filme. A constante transformação a qual esta última está submetida, altera o teor pessoal e familiar da materialidade ao longo do tempo, banalizando-a: o antigo lar da família de Guerra da Mata, torna-se patrimônio histórico da cidade; conterrâneos do passado tornam-se lápides. A transformação intensifica o esvaziamento do significante [Macau concreta], e, por conseguinte, a assimilação de novos significados. O filme condiciona os espaços da cidade – no passado, vivos e pulsantes; agora, vazios e desabitados – e os corpos desalmados – mortos ou inanimados – a serem ocupados por almas penadas, transfiguradas em animais, ruínas, panchões; ou tomado por fantasmas do passado, através de imagens de arquivo que invadem de fininho a Macau presente, violando-a.

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Os estrangeiros que tentam a sorte e buscam o amparo no Oriente, fugindo da própria realidade a procura de autoconhecimento e de uma jornada espiritual, se enganam (“sempre achei que Macau era uma terra de mitos e superstições. Agora sei que nesta cidade, do Santo Nome de Deus, nem tudo são mitos.”): confrontados pelo cotidiano e pela materialidade, são perseguidos e, ao fim, aniquilados pela cidade inóspita aos clichês.

Em Macau de 1952, Jane Russell foi reduzida – assim como ocorreu ao longo de toda sua carreira – ao seu corpo, tido ele como a expressão absoluta da carnalidade e da sexualidade. Em A Última Vez, a atriz, que coincidentemente faleceu durante as gravações, em 2011, tem sua presença em espírito evidenciada fisicamente: materializada em seus possíveis rastros, como nas meias boiando na água ou na performance de Candy; transfigurada nas formas da cidade e reencarnada em diferentes corpos, tidos como inertes pela ação do tempo, dispostos à performance ou esvaziados para recebê-la. Assim, é espiritualizada e desassociada de seu corpo para associar-se a outros (não humanos), tendo sua existência expandida e dignificada. Nesse sentido, o destaque do filme à expressividade das formas animais, em detrimento da centralização de corpos humanos em cena, contribui para esta reverência à Jane Russell, que, a todo momento, orbita a Macau de A Última Vez.

É por uma relação de confronto e de interdependência entre dois elementos expressivos que se consolida a enunciação fílmica. Sempre que fala, Guerra da Mata confere ao cosmo de Macau, um teor imaginário, pessoal, lúdico e afetivo. A cidade responde a isto através das imagens, que exprimem sua monumentalidade, sua frontalidade e sua atualidade. No entanto, ao invés de extinguir os imaginários, a cidade proporciona o caráter de sua expressão: a partir dos vazios, do invisível e da incompatibilidade entre campo concreto (imagético) e campo imaginário (sonoro/invisível/escondido). E os imaginários, sempre fundados à sua materialidade, ao invés de romperem com a Macau concreta, a dilatam pela ação que ocorre no extra-campo ou no âmbito invisível do filme, e, por fim, a mitificam.

Guerra da Mata, inspirado pela carta de despedida de Candy, por fim, abre mão de sua busca incessante pela individualidade humana (sendo a única forma de sobrevivência frente o cataclismo). Através das pistas e dos apelos na carta, ele desvenda o segredo da metamorfose, até então privilégio da seita do zodíaco. E, guiado pelos seus instintos, assume a forma animal. A partir deste momento, desapegado do ego e transformado em gato, abandona sua expressividade verbal e é capturado imageticamente, em seu novo corpo, em armistício com a nova Macau – marco de uma nova era, animal. O enquadramento não mais é opressor, agora o acolhe e o liberta, em uma cidade celebrada por bichos e livre de humanos -, mas repleta de vestígios e ruínas reminiscentes, que evocam sua existência concreta preliminar. Enfim, ele compreende que a transformação é fundamental para encontrar a felicidade: aceita as mudanças pelas quais Macau passou e passará, libertando-se do passado e abraçando a presentificação inevitável deste passado, ainda que à custa de sua deturpação e de sua fabulação pela memória e pelo cinema. A transformação e a propensão à fabulação inerentes à cidade são o que a delimitam e a eternizam, sendo, ao mesmo tempo, demarcada por sua concretude elementar que nunca desvanece no plano e expandida pelos imaginários.

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PretEspaço: as cidades não imaginadas

Por Kênia Freitas

“Aspiramos aos cosmos pela simples possibilidade de sonhar. Aspiramos ao espaço sideral para além do etéreo e longínquo. Mas também ao espaço em sua forma mais literal. Espaço.”

(Manifesto pelo Espaço, NEGRUM3, Diego Paulino, 2018)

“O que não tem espaço está em todo lugar”

(Filme Jota Mombaça, 2020)

Esse texto nasce do abismo entre essas duas ideias:

_ Espaço sideral & literal + (não) Espaço que está (sempre-já) em-todo-lugar.

E nasce do movimento brusco de cortar e juntar filmes díspares, a partir das cidades que eles percorrem, tomam para si e, simultaneamente, recusam a imaginar – em um gesto de reciprocidade.

Criação do PretoEspaço em NEGRUM3 (Diego Paulino, 2018)
Criação do PretoEspaço em NEGRUM3 (Diego Paulino, 2018)

E se faz no gesto ainda mais bruto de reivindicá-los em e para um PretEspaço:

_ entre a explosão cosmológica de corpos pretos iluminados em um telhado de São Paulo de Paulino e as imagens tremidas da janela do avião do relato de viagem/desabafo de Mombaça.

_ entre a luta “pela individualidade de nossos corpos e a pluralidade da nossa negritude ao exercer as múltiplas formas de ser” (Paulino) e as “144 páginas da Wikipedia de escritorxs que escolherem a saída. (…) aquelas listadas e aquelas que o Google não nomeou” (Mombaça).

_ entre reinventar-se e compor “um poema sobre morte e desaparição”, como complementos da mesma coreografia de impossibilidades.

Não é Lisboa. Não é Berlim. Não é Natal. Não é Roterdã. Não é Paris.

A condensação do PretEspaço em “O que não tem espaço está em todo lugar” (Jota Mombaça, 2020)
A condensação do PretEspaço em “O que não tem espaço está em todo lugar” (Jota Mombaça, 2020)

Delírio das imagens na “dança do fim dos tempos”. O que pode ser ouvido invertendo a flecha do dizer no tempo. E é  o que se desenha do movimento entre as mãos, e da sua penetração/fricção no cu.

PretEspaço que também não é Fortaleza, mas sim é“lá onde as luzes artificiais ainda não apagaram as estrelas e tu conhece as ruas fora dos mapas de papel” em Cartuchos de Super Nintendo em Anéis de Saturno (Leon Reis, 2018). Antes, a cidade zoneada em níveis de acessos raciais e sociais é para o jovem preto na madrugada o lugar do terror e do perigo – os lanternas brancas estão ali em cada esquina à espreita e os amigos brancos de carro já (sempre?) estão longe demais.

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A volta para casa no PretEspaço: “O buraco negro da tua pele rodopia todo cosmos em ti”.

A cidade só é, então, enquanto encruzilhada. Bifurcações e duplos da volta para a casa e/volta para si – mas são quatro pontas.

Neste percurso, os imaginários de cinema são obliteração (pedagogia centenária das imagens de inversão da flecha de quem atira primeiro). Nele, o controle do videogame pode ser uma retomada para a casa/cosmos de reintegração de si no Aqui – “onde se ouve estrelas e se vê dor, é onde tuas cascas podem cair”. Aqui.

PretEspaço também é um avião em que “todas as pessoas são negras – pela primeira vez” (e sempre-já), em NoirBLUE – deslocamentos de uma dança (Ana Pi, 2018).

“O piloto. Sua equipe.

As pessoas da primeira classe”.

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O PretEspaço sonha e abençoa as que vieram depois e antes, NoirBLUE – deslocamentos de uma dança (Ana Pi, 2018).

É o viajar com Ana Pi para África subsaariana pela primeira vez – e sempre-já.

Travessia entre “Mas você é daqui” e o “Seja bem-vinda de volta” ouvidos no controle de passaporte – nesta cidade zoneada se pode passar.

Também é Ana Pi que se coloca no espaço junto, se integra, dois pés firmes no chão… e a cor da terra, o rio preto, a tempestade tropical, a dança que faz “Ano bom” na ponte (e os trabalhos invisíveis abaixo dela), os gestos que sempre-já eram conhecidos pelo corpo, o cheiro de dendê na vendinha… em Contagem, Betim, Niamey, Ouagadougou, Bamako, Lagos, Enugu, Luanda, Malabo, Addis Ababa, Abidjan, Nouakchott…

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O PretEspaço inventa o visível-invisível-visível em NoirBLUE – deslocamentos de uma dança (Ana Pi, 2018).

Cada uma dessas cidades. E nenhuma delas. Não cidades imaginadas, mas originárias e integradas: “eu vim de todos esses lugares”, já sabe Ana Pi. É o corpo-azul-preto na cidade, a cidade sobre o corpo-azul-preto e o corpo-azul-preto reinscrito na imagem dele próprio.

Mas não é São Paulo.

É o gozo que não se quer (se pode?) controlar e destrói a cidade em A Felicidade Delas (Carol Rodrigues, 2019). Gozo de tesão e medo. De fuga e fuga na fuga.

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O PretEspaço descobre o amor em A Felicidade Delas (Carol Rodrigues, 2019)

Antes é a penumbra, os becos, as vielas, os caminhos interrompidos e os labirintos de ruínas, o pixo. Na imagem escura e no silêncio, o pretEspaço se expande e apalpa. Não é necessário ver mais para sentir arder os sorrisos trocados, a respiração partilhada queimando os rostos tão próximos (mas ainda não). E, finalmente, no pretEspaço: as mãos se entrelaçam, as bocas se comem. A cidade que morra submersa no prazer e nos fluídos delas.

O PretEspaço jorra o amor
O PretEspaço jorra o amor, em A Felicidade Delas (Carol Rodrigues, 2019)

O PretEspaço não cabe (na cidade, no cinema, nos filmes e nesse texto) e inunda.

Não precisa ser imaginado.

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Os belos desencontros de Rochefort

por João Lucas Pedrosa

 

“É uma canção que canto quando estou triste.
Aí fico mais triste, então minha tristeza vira poética.”

O gentil amor dos homens (Jean-Paul Civeyrac, 2002)

 

À luz do sol recém-nascido, caminhoneiros feirantes chegam numa ponte transportadora que os levará à povoação de Rochefort. Enquanto a ponte suspensa flutua sobre o mar, eles dançam sincronizadamente, numa sorte de espreguiçamento coletivo após uma longa viagem. Música e dança fazem desse alongamento um despertar corporal e espiritual, e o atravessamento parece ser ao que é – ou melhor, será, com a chegada deles – uma outra dimensão. Pois ao longo do fim de semana que passarão montando uma feira e fazendo do lugar uma grande festa, é assim mesmo que a provinciana cidade que dá nome a Duas Garotas Românticas (Les Demoiselles de Rochefort,Jacques Demy, 1967) operará: como um lugar encantado, onde o cotidiano, o arrependimento e a morte são conteúdo de uma beleza incontrolável, inquebrantável, inexorável.

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Essa beleza de Rochefort é a dos musicais da Hollywood clássica. Cores vibrantes, suntuosos números de dança, alegria de viver. Diferente dos filmes que lhe são referência, o filme de Jacques Demy não é filmado em estúdio, mas em meio às ruas da cidadezinha e, ao invés do uso de estilizados cenários manufaturados e afetadas iluminações, recorre às formas e cores (pintadas meses antes pelo cenógrafo Louis Seret) irradiadas pela arquitetura local à luz do dia. A massiva maioria dos números musicais, assim, acontece à manhã e à tarde, em meio à jornada de trabalho e à jornada escolar, completamente atravessadas pela grande festa que energiza a cidade. E é em meio a elas que conhecemos as Duas Garotas Românticas : um austero e melancólico solfejo ao piano toma conta da faixa sonora ao fim do número inicial da chegada dos feirantes e um travelling in adentra pela janela a casa das gêmeas Solange (Françoise Dorléac) e Delphine (Catherine Deneuve), que estão dando uma aula de balé para crianças. Logo a aula termina, e Solange mal espera o último aluno bater a porta para começar a tocar no trompete a energizante música pela qual as duas irmãs se apresentarão a nós. Elas se energizam vendo a instalação da feira pela janela e a usam de fundo para cantar: “Nós somos um par de gêmeas, do signo de Gêmeos…”.

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Demy não sabia de cara que cidade usaria para seu filme. Sabia que queria uma no interior da França e escolheu Rochefort pela “adorável e imponente arquitetura militar”, segundo Agnés Varda, então sua esposa, no documentário que fez sobre o filme 25 anos depois[1]. O tom militar da cidade não é ignorado ou amenizado pela vibração climática do filme e, antes dos feirantes fincarem pé na cidade, um plano os põe lado a lado com um pelotão, indo em direção oposta (o sonho e a guerra em direções opostas). Instituições como o exército militar ou a Igreja destoam facilmente do entorno pelas cores fechadas das soturnas vestes (fardas, hábitos) e quase sempre aparecem de passagem, como figura satélite digressiva à cena – quando não, furam o signo institucional das vestes integrando números de dança com os feirantes e as mães de vestes coloridas. Eles pertencem aos interiores – os quartéis e os conventos – mas, neste musical, os interiores são sede do arrependimento, da ausência de vida. Deles são reféns Yvonne (Danielle Darrieux), a mãe das gêmeas protagonistas, e Simon (Michel Piccoli) seu antigo amante, dono da recém aberta loja de música da cidadezinha. Eles cantam toda vida a falta que sentem do outro e só não se reencontraram ainda por nunca saírem de seus respectivos locais de trabalho. Além deles, há Guillaume Lancien, o persistente ex-pretendente de Delphine que também é um ganancioso marchand de arte e o mais próximo de “vilão” que temos no filme: ele impede o quanto pode o primeiro encontro entre ela e Maxence, o marinheiro pintor que busca a sua ideal feminina, figurada numa pintura estranhamente semelhante à gêmea loura.

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A dificuldade da contiguidade espacial dos casais é, na verdade, a alma motivadora do filme. Se obras de diretores como Éric Rohmer e Maurice Pialat se fomentam das potências mágicas e/ou trágicas do encontro, Duas Garotas Românticas certamente constrói sua mística pelo desencontro. Rochefort é um epicentro irônico de rotas desviadas. Reúne passados desencontrados por décadas e buscas românticas metafísicas em seus menos de 22km² e, quase sadicamente, é o sítio de seu constante quase encontro. Como cenário de sonho, a não consumação do desejo é um fator constituinte de sua mística. Toda canção individual é acerca de um interesse amoroso, o qual se quer rever ou enfim conhecer. Não se sabe onde ele está, mas há um desejo metafísico que beira a transcendência e faz dos números musicais individuais algo muito próximo de uma trova do classicismo com suas musas inatingíveis. Nessa chave, é particularmente interessante que a canção de Andy (Gene Kelly), interesse amoroso de Solange, seja uma versão dançante do melancólico concerto em sol menor por ela composto (e cuja partitura esquecida serve a ele de pista para reencontrá-la), como se o americano tivesse saído magicamente de sua mente, e seguisse os passos que dela vieram.

No documentário de Varda, Michel Legrand disse ter tido uma particular dificuldade em musicar para o filme os versos alexandrinos de Demy. Ele insistia que assim o fossem pois o romantismo francês lhe era uma referência essencial e, se há uma teleologia nas canções trovadoras, é porque ela se segura num objetivo ideal, e não num rumo. Maxence deu a volta ao mundo pela Marinha procurando sua ideal feminina e as gêmeas estão dispostas a procurar os homens de suas vidas fora da cidade (sem saber que deles se afastarão), de forma que não são errantes diferentes de Étienne e de Bill (respectivamente Georges Chakiris e Grover Dale), os feirantes que afirmam em canto viajar “de cidade em cidade” e “de coração em coração”. Assim, Demy faz com que a alegria de viver do romantismo hollywoodiano se sobreponha ao romantismo francês dos fins do século XIX com seus flâneurs e desejos não-consumados e carniças (estas às quais já chegaremos).

Eis que os desencontros em Les Demoiselles não são apenas físicos entre as personagens, mas também tonais dentro do filme. Ao sábado de manhã, uma senhorinha dançarina aposentada é assassinada e esquartejada em sua casa. Quando ouvimos a primeira vez sobre o caso, a música é mais contida e sinistra; personagens cantam a notícia no jornal ou relatos de quando passaram perto da cena do crime. Mas quando essa canção termina e a câmera vai de fato à tal fachada, uma multidão de cores claras e vibrantes ao sol da manhã cerca a polícia que limpa o sangue da calçada ao som de uma explosão musical em orquestra. O que começa com um notável estranhamento tonal logo desemboca na maior cena de desencontros românticos de todo o filme, em que uma gêmea encontra e conversa com o par romântico telos da outra, num diálogo rotineiro e também sutilmente flertivo.

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A beleza em Rochefort torna-se irônica na medida em que é um bloco imanente, bruto, que se sobrepõe à tragédia alheia sem grandes pudores. É um resultado inexorável do romantismo da beleza sonhadora e alienante das obstinadas buscas individuais de cada personagem – o que os torna autocentrados e um tanto detestáveis. A esse ponto do filme, as irmãs sabem, cada uma, da história da outra: Solange sabe que Delphine procura um marinheiro pintor que pintou uma ideal feminina com a cara dela, e Delphine sabe que Solange procura um estrangeiro com a exata descrição física de Andy, mas os objetivos não importam se não são os seus próprios. Por mais que o filme se entregue à potência da beleza e do encantamento, a existência da matança – e o fato de o assassino ter sido, o tempo todo, um componente próximo no círculo de relações das personagens -, lembra que as pulsões de morte estão sempre mais próximas das pulsões de vida do que se imagina e tensiona o efeito de cegueira desse contagiante encantamento.

O lugar alienado desse sofrimento desejoso masturbatório é, muitas vezes, produzido por escolha própria. Yvonne decidiu abandonar Simon Dame 10 anos antes, grávida de seu filho, por achar ridículo ser chamada de “Madame Dame” com o casamento. Quando Solange esbarra com o suposto homem de sua vida e ele pergunta se podem reencontrar-se, ela voluntariamente o recusa e cria o futuro cenário de sofrimento de falta que a levaria à consequente expressão romântica. Atitudes dessa chave trazem dúvidas sobre se as personagens desejam de fato consumar seus desejos ou se há algum futuro que não o desmanche de seus pares para que possam voltar a produzir belos poemas de amor idealizado. Delphine e Maxence, em suas respectivas canções de mesma melodia, cantam: “A ilusão do amor não é o amor encontrado”. Talvez sejam eles o casal que a eternidade carregará por serem um casal unicamente virtual, pois nunca foram um par concreto sem ser nas cabeças – suas e nossas, que os juntamos por meio das imagens que criaram em pincel e em trova. Pelo que dependeu de Demy, também nunca o serão. Eles se juntam no extracampo, dentro de um caminhão azul como a melancolia em direção ao futuro, sem jamais sabermos se se reconhecem ou se Maxence reconhece em Delphine, fora de sua cabeça, a mulher de sua cabeça. Se o amor encontrado é algo perto do amor imaginado. Mas é claro, o sonho não seria sonho se se consumasse em qualquer lugar diferente da alma.

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[1] LES DEMOISELLES ont eu 25 ans. Direção de Agnès Varda (1993).

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O fim das utopias em “Matou a Família e Foi ao Cinema”

Por Chico Torres

 

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Retocai o céu de anil
Bandeirolas no cordão
Grande festa em toda a nação
Despertai com orações
O avanço industrial
Vem trazer nossa redenção

(Tom Zé, Parque Industrial)

Perguntaram a Dom Élder sobre a situação brasileira. Resposta: eu sei, tu sabes, eles sabem, nós sabemos, vós sabeis, eles sabem
(fala extraída de Matou a família e foi ao cinema de Júlio Bressane)

 

            As utopias de massas do Ocidente e da União Soviética do século XX sempre tiveram a modernização e o progresso como suas metas. Os ensejos máximos dessas duas sociedades opostas estavam calcados nesses elementos em comum: a ideia de avanço civilizacional e de harmonia com o meio urbano. Esse desejo está registrado nos filmes desde a invenção do cinema, que remonta à segunda metade do século XIX. No cinema de atrações, a cidade e o indivíduo urbano são temas privilegiados, à medida que tudo se configura como novidade, a definição própria do moderno. Assim, cidade e cinema se refletem num jogo harmonioso que chega para confirmar o triunfo das massas.

Por outro lado, essas utopias sempre exibiram a sua face oposta, a fantasmagoria que habita as cidades. Buster Keaton e Dziga Vertov trouxeram para seus filmes o aspecto encantado, mas, ao mesmo tempo, perigoso e disforme presente nesse contexto. O indivíduo, fora da ideia de comunidade, agora vive a realidade fragmentada e a sensação de perigo iminente. A atenção, hiperestimulada pela velocidade de tudo, não consegue se deter por muito tempo e a odisseia humana se realiza na manutenção da sobrevivência em meio ao concreto e às ferragens. Em um contexto mais específico que acaba por firmar, no cinema, as diferenças ideológicas desses dois tipos de sociedade, é possível apontar também a constante tematização do conflito simbolizado em enredos fantasiosos. A partir dos anos 1920, a URSS realizou uma série de filmes de ficção científica, produzindo um tipo de mensagem que é a do reconhecimento e eliminação do inimigo externo. Já no mundo ocidental, sobretudo nos EUA pós Segunda Guerra, surgem filmes de catástrofe e o inimigo é tratado da mesma maneira.

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No Brasil, o lastro desenvolvimentista também surge como utopia, como possibilidade da construção de uma grande nação capitalista. De modo sintético, Vargas, Kubitschek e o período da ditadura dos anos sessenta e setenta levantaram essa bandeira, seja para o bem ou para o mal. No campo cultural, havia uma produção de uma arte de esquerda bastante significativa que respondia a esse ideal sustentando no desenvolvimento tecnológico. Dentro desse ambiente artístico, principalmente nos anos 1960, as utopias do capitalismo eram criticadas em nome das supostas raízes autênticas da cultura brasileira. O operariado e os trabalhadores do campo, ou o sertanejo simples e desassistido se tornaram tema de canções que até hoje fazem parte do imaginário popular.

No cinema, a coisa não se deu de forma muito diferente. Os temas campesinos e urbanos se desenvolviam em forma de protesto e revalorização do povo dentro do primeiro impulso do Cinema Novo, ainda que, em seus desdobramentos, esses temas foram repensados de modo mais problematizado. De fato, o Cinema Novo dos idos da década de 1960 escancara os problemas de uma esquerda nacionalista fracassada, perdida em estereótipos que pouco a pouco foram se revelando ultrapassados e arbitrários. Na figura emblemática de Glauber Rocha, temos a complexa realidade nacional virada pelo avesso, mas ainda sob um viés utópico que, ao revelar as profundas mazelas do Brasil como resposta a uma apropriação elitista da cultura popular, resultam em uma outra ideia de nação (Cacá Diegues afirma que o Cinema novo inventou o Brasil), através de um novo olhar em relação aos símbolos nacionais, alegorizados agora em meio ao turbilhão dos acontecimentos catastróficos da ditadura militar. Ao revelar a crise da esquerda através de uma iconoclastia pujante, Glauber termina por exigir uma nova revolução cultural e, por essa razão, seu cinema impõe a si mesmo uma extrema responsabilidade política.

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Um olhar desprendido de grandes ensejos revolucionários na arte, e ao mesmo tempo distante da indústria do entretenimento da época, só é verdadeiramente desenvolvido pelos artistas marginais dos anos 1960. José Agrippino de Paula, com o seu romance  monolítico e cheio de figuras hollywoodianas PanAmérica, José Mojica Marins, inaugurando o cinema de horror no Brasil com Esta noite levarei a tua alma (1964), em parte o Tropicalismo, com a cultura do desbunde e uma retomada inventiva do antropofagismo de Oswald, são apenas alguns nomes que movimentaram ideias que estavam muito longe da cartilha da esquerda nacionalista, mas que nem por isso agradavam a direita desenvolvimentista. Por outro lado, é importante apontar que, apesar desse desprendimento em relação ao modus operandi da esquerda, esses artistas não estavam criando obras estritamente banais e vazias de crítica social. O que demarcava realmente a diferença com aquilo que havia sido feito antes era o fato de que essa arte marginal sentia-se finalmente livre para aglutinar em suas produções elementos da cultura de massas, deixando que diversas contradições surgidas pela condição moderna invadissem as obras, o que era algo inédito no país. Quero destacar, para dar início a um maior diálogo com essas questões em relação ao cinema, o filme de Júlio Bressane, Matou a família e foi ao cinema, de 1969.

Essa obra, junto com os filmes que Sganzerla realizara até então, parece inaugurar um tipo de estética cinematográfica radical no Brasil. Nela encontramos uma espécie de desencantamento ideológico e precariedade técnica que mais do que crítica e reflexiva, é cínica, mas nem por isso vazia de profundidade psicológica e intelectual. O cinismo se dá por uma representação da cidade e seus habitantes dentro de um ambiente de violência, fluidez e ideia de improviso que dão ao filme um tom delirante, exibindo a família, a cidade e o país através de um olhar assumidamente tragicômico.

Por outro lado, existe a presença de uma sobriedade que parece ter pensado com cuidado como exibir aquela loucura e indeterminação presentes nos aspectos técnicos do filme e nos personagens (o seu elenco principal, um ator e duas atrizes apenas, representa vários papéis, havendo, nessa repetição fisionômica, diversas sugestões conectivas entre todos eles). O início do filme já demarca bem esses dois universos que estão amalgamados: vemos, em close, o rosto das duas personagens femininas, como se pousassem despretensiosamente para a câmera em uma bela manhã de sol. Logo em seguida, de maneira abrupta, há um plano mal enquadrado de um fragmento barulhento da cidade que exibe um outdoor da Coca-Cola. Esse tipo de ironia é uma das tônicas principais do filme, como se o humor e a violência  fossem, na verdade, os únicos sentimentos possíveis diante do absurdo.

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Ante a banalidade da violência presente em toda a obra, já indicada em seu título, vemos se desenrolar uma série de problemáticas concernentes ao cenário político, econômico e social da época. O filme, que tem no vazio existencial e na moral conservadora seus possíveis temas norteadores, revela que a perturbação psíquica e a violência extrema dos personagens surgem em consequência desse cenário. Mas nenhuma dessas críticas obedece a cartilhas, pelo contrário, são exibidas através de um tipo de distanciamento que faz com que todas as mazelas expostas sejam vistas como o espetáculo absurdo que são. Esse cinismo e distanciamento conferem à obra uma estranha e incômoda leveza, como se tudo estivesse sendo filmado diante de um saudável niilismo que a tudo compreende, mas que não pretende interferir em nada.

 Se observarmos mais atentamente para o modo como a violência é representada no filme, é possível entendê-la como uma resposta ao estilo de vida que se desenvolveu dentro de uma sociedade moralista e, ao mesmo tempo, desencantada. Navalha, machado, faca, revolver e o empalamento da tortura: uma variedade de instrumentos para demonstrar as diversas facetas dessa violência. O homem que comete o primeiro assassinato, matando os pais dentro do apartamento, se mostra como uma criança entendiada que, para passar o tempo, resolve matar a família. O casal de mulheres mata a mãe repressora de uma delas, apenas porque a mulher não concordava com o romance das duas jovens; um homem comete feminicídio com uma faca dentro de um barraco cheio de crianças em situação de miséria; agentes da ditadura torturam até a morte um homem em uma sala suja; outro feminicídio, agora com um revólver; por fim, as duas irmãs, isoladas em um sítio, se matam como que por brincadeira, usando as armas do marido de uma delas. Todos os conflitos se resolvem com algum tipo de massacre que se dá na fetichização da arma. Os cenários são diversos, mas sob esse véu de psicopatia e morte, há sempre a presença da opressão, seja ela social, política ou econômica. Todas as mortes envolvem uma espécie de eliminação da família e da tradição, como também a eliminação dos que resistem a essas instituições do estado burguês.

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imagem VI      imagem VII  O que torna o filme de Bressane tão original e politicamente interessante é o modo como ele trata essas questões de maneira cômica e subversiva, mas sem nunca perder de vista um olhar denunciador e trágico. Ver a realidade brasileira representada através desse caos organizado mostra o quanto o diretor estava consciente ao construir a sua linguagem cinematográfica, porque se esta parece ser alienada, enlouquecida e violenta, só o é porque assim também são os indivíduos que a modernidade e seus modelos utópicos conseguiram produzir. Não há mais espaços para idealizações, as massas são substituídas por anônimos perdidos no ambiente hostil da cidade.

A cena final de Matou a família foi ao cinema, em que as jovens rastejam baleadas em seus últimos instantes de vida enquanto se mantêm agarradas em seus revólveres, ao mesmo tempo que ouvimos em alto e bom som Ninguém vai tirar você de mim, de Roberto Carlos, é uma das cenas mais significativas do cinema nacional daquele período sombrio (e que insiste em se repetir), revelando as contradições de uma sociedade desiludida em seu vazio existencial, suas armas e sua alienação.

 

 

                                   

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Sinfonia da metrópole: cordões e balões, carros e prédios

Por Diogo Serafim

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Um jornal no pé de um bonde acusa a existência de um assassino de crianças à solta na cidade de Los Angeles. O bonde começa a subir a rua íngreme e a câmera, ali instalada, vai desvendando a cidade como uma prisão de luzes, movimento, outdoors, carros, fachadas comerciais e corpos ocultos. Uma imensidão de anonimato operando individualmente em uma estrutura complexa e naturalmente instável. Desde esse primeiro plano, Losey já deixa bem clara a abordagem estruturalista que ele ambiciona desenvolver no filme: de que maneira cada indivíduo interage com o meio que está inserido, e como o meio por sua vez manifesta seus difusos desejos e traumas?

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O diretor emprega uma abordagem formal de exploração geométrica que acaba por dar à própria cidade um protagonismo inflexível na narrativa. Los Angeles aqui funciona como um microcosmo para os Estados Unidos no período do macarthismo, um país tomado por paranoia, neuroses e contradições. Mais que tudo, o sistema político e a organização social da cidade indicam que não há futuro possível para as crianças dali fora desse enclausuramento espacial e existencial.

Logo no início do filme, vemos crianças habitando vários espaços, a rua, a praia, o parque de diversões – o filme vai operando uma lógica formal que torna progressivamente cada lugar em uma potencial jaula, em um ambiente selvagem onde o perigo está sempre presente. M é, acima de tudo, um trabalho de arquitetura, sobre como corpos interagem e existem nesses espaços. Quando Michel Mourlet escreveu que tudo está na mise-en-scène, ele provavelmente pensava nesse filme.

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A cidade em constante expansão amplifica também paralelamente um espaço para o sentimento de individualidade, progressivamente distanciando os cidadãos em uma dinâmica que tem pouca relação com o isolamento espacial em si, mas sim um sentimento derivado de uma ideia fundamental dilatada de individualismo. Esse solipsismo implica em um crescente desinteresse pela individualidade alheia e uma consequente alienação da base da relação social e ontológica da consciência humana – isto é, a relação do Eu com o Outro. A sociedade é aqui um conceito-limite que é resultado das formas de interação social, as pulsões e desejos sublimados de uma população com sua vida social em crise.

Logo no começo do filme, quando a primeira criança é raptada, Losey filma uma sequência absolutamente sublime: a mãe, ao perceber que a filha não voltou para casa, olha para o chão pelo alto das escadas. Já temos aqui uma consciência espacial e um elemento temático que instaura um sentimento de verdadeira angústia – no último andar de um prédio, a mãe grita pela sua filha, perdida em algum lugar da cidade, invisível e inalcançável. Losey acompanha sua descida pacientemente, alternando os planos da mãe progressivamente descendo até a rua com planos estáticos de objetos que remetem à imagem da criança – um copo de leite, a bola esquecida em uma esquina qualquer, o balão que completa o movimento inverso da mãe que descia, indo por sua vez em direção ao céu.

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Enquanto isso, a neurose aumenta na cidade. Uma emissão televisiva é incisiva nas interdições governamentais e no estado de pânico instaurado, transmitidas com um tom autoritário. Na rua, um homem é multado por atravessar a rua fora do local indicado, outro é acusado por ajudar uma criança com seu tornozelo machucado. É como se todos da cidade fossem potencialmente assassinos. Todos são culpados e ninguém está a salvo.

Pouco depois, temos uma cena absolutamente claustrofóbica do assassino no quarto de hotel, seu rosto na penumbra, no qual ele manipula o cordão de uma luminária. A dureza com a qual ele interage com a luminária traça um paralelo logo em seguida ao cadarço de um sapato que ele utiliza para decepar uma figura de gesso – o sapato que é um elemento recorrente no filme, sendo que ele colecionava os sapatos das crianças que assassinava. É como se ele estivesse em um estado permanente de asfixia e, consequentemente, também a cidade.

O lugar que ele se tranca após ser identificado por um vendedor de balões cego é em um shopping center – uma escolha de locação nada inocente – e quem captura o assassino são criminosos da cidade. O julgamento que procede é de uma violência constituinte vigorosa, a fragilidade do assassino é contrastada com a dureza da multidão que o acusa, e após uma confissão na qual ele se lembra de um pássaro que ele matou quando criança, temos a chegada da polícia que finalmente o leva em custódia.

O sujeito influencia e é por sua vez influenciado pelo meio, e essa permutação recíproca resulta em uma reprodução sintomática do estado político vigente, espelhando-o na organização social da cidade. Dessa maneira, os grupos de mafiosos que aprisionam e julgam o assassino aqui funciona como um espelho da estrutura de justiça que o estado emprega.

Foucault uma vez argumentou que a etiologia da justiça na sociedade ocidental vinha de uma inversão dada no sistema judiciário durante a Idade Média: anteriormente a justiça vinha de um direito do lesado em pedir justiça e de acordo com a jurisdição e ao poder que lhe foi dado, cabia ao juiz definir se o apelo era pertinente. Em seguida, durante o feudalismo, essa justiça foi associada a uma lógica financeira, a justiça se torna lucrativa para quem detém o poder e, consequentemente, onerosa para quem está subordinado a ele. Segundo Foucault, foi sobre este pano de fundo de guerra social, de extração fiscal e de concentração das forças armadas que se estabeleceu o poder judiciário. Em M, fica muito claro que as forças que julgam o assassino de pássaros e crianças é muito mais uma conjuntura que um grupo de pessoas.

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A designação da realidade subjetiva se dá pela soma de especificidades internas e externas ao indivíduo, uma relação constante entre uma base ontológica volátil e um empirismo concreto, mas o sujeito não pode jamais ser descrito apenas por essa operação. Algo sempre escapa, e é aí que repousa o princípio transcendental da vida. Em uma cidade na qual o espaço para o transcendental é alienado por um estado viral de desconfiança, quem é mais vulnerável, o indivíduo ou a cidade?

Quem matou as esperanças das nossas crianças?

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Alemanha, Ano Zero

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Por Jean Narboni

Tradução por Felipe Leal

Nada é mais enfadonho do que uma certa mitologia desenvolvida ao redor de Rossellini há uma dezena de anos, e à qual ele parece, ademais – por jogo, lassidão, ou simplesmente desejo de que o deixemos em paz? –, entregar-se de maneira complacente. Nada é mais enfadonho do que essa figura do diretor de consciência universal, de agenciamentos navegantes por entre um estoque de saber imemorial e de povos pressupostos e famintos de cultura e de comunicação, ou do apóstolo que dispensa a boa palavra à uma horda de discípulos concorrendo entre si quanto à passagem de tal herança. A projeção de Alemanha, Ano Zero permitiu que fosse restituído do cineasta uma imagem, senão mais próxima de uma verdade, de todo modo infinitamente mais excitante: é um homem consciente da ação mais do que da pregação, e de agarrar o mundo mais do que contemplá-lo; pioneiro de terras, explorador, cartógrafo e um tantinho aventureiro, assombrado pelo sentimento do provisório e da precariedade. Como não ser sensível, assistindo a este filme conciso, decidido, revirado de ânsias e, se pudermos dizê-lo, conquistador, em direção àquilo que se manifesta de uma necessidade, de uma coação íntima, em uma palavra de uma urgência, que são talvez, de uma obra de arte – mais do que os temas que ela desenvolve, e ainda mais que sua escritura –, a parte infinitamente preciosa? Seria preciso, para falar de Alemanha, Ano Zero, tentar lhe atribuir um pouco da velocidade e da turbulência que o animam, de onde provém, durante a projeção e ao seu término, a impressão extenuante, sufocante – “de tirar o fôlego” – de ter, não o assistido, mas de ter sido acompanhado em seu curso. As reações do público, deveras numeroso àquela tarde, não deixam dúvida alguma sobre este ponto.

Durante certo tempo aqui nos Cahiers, nós nos debatemos diante da alternativa entre um cinema da transparência, que não conservaria traço algum de seu processo de produção, e um cinema que inscrevesse em si a marca de seu trabalho formador. Quanto a este distanciamento, Rossellini, de quem conhecemos a sentença “as coisas já estão lá, por que manipulá-las?”, foi tomado pelo cineasta por excelência da transparência. Alemanha, Ano Zero, entretanto, faz de tal oposição algo vão ou já superado, uma vez que indubitavelmente não conserva traços de nada, mas sobretudo por ser, de parte em parte, a anulação em ato dos rastros de sua passagem. Em seu célebre artigo, Rivette escreveu outrora que não guardamos dos filmes de Rossellini nenhuma memória de enquadramento, de imagem ou de plano, mas somente de um traçado, de um liame, implacáveis. Alemanha, Ano Zero progride como uma devastação, uma destruição, um rastilho de pólvora devorando a si mesmo. Que mostra ele, ademais, além da transformação de um “rastro da ausência” em uma “ausência de rastros”? O que é ele senão uma versão moderna e atroz d’O Pequeno Polegar, onde o infante, uma vez cometido o parricídio, tentará reencontrar nos escombros de uma vila devastada alguns frágeis dedos indicadores, logo depois sentindo que eles se furtam um a um, se permitindo, propriamente, morrer?

Impossível, especialmente nos limites de uma nota, aqui, dar uma volta num filme como este, mas me deterei sobre um ponto. Que cinema não cessamos nós de defender aqui, e contra qual outro? Um cinema da inscrição verdadeira, da perfuração cruel das letras, do ensaio da passagem ao ato e da tomada à palavra, cinema contrário ao implícito e ao subentendido, à alusão e à metáfora. A extrema modernidade de Alemanha, Ano Zero tende talvez ao cumprimento radical deste programa. É certamente por ter tomado a sério o discurso nazista de seu antigo diretor de escola sobre a necessidade de limpar o mundo dos doentes e dos fracos que a criança realiza seu crime. Mas não tivesse dito somente isto, o filme não escorregaria a esse ponto ao sentimentalismo das ficções sobre abandono, sedução, devoção e morte de crianças. Sua burla e seu humor – sim, seu humor – insustentáveis têm, sem dúvidas, em mente e em fato, que a criança está sempre encurralada entre diversos discursos de ordem ou de incitação, portanto uma discursividade familiar, e que é entre eles que ela construirá seu percurso, como que sobre um fio: discurso, no momento do crime, por exemplo, do professor nazista bem conhecido, mas também queixa ressuscitada e repetida do pai sofredor. “É melhor que eu morra de uma vez, sou para vocês um peso”. Este humor tristonho e mais eficaz, mais violento que toda denúncia de ordem política ou da hipócrita manipulação familiar, se é verdade que o humor é aquilo que não se opõe à lei, não a contesta nem se manifesta contra ela, realizando-a estritamente e a conduzindo às últimas consequências, coloca, ali, tanto melhor a nu, uma verdade cruel e obscena.

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[1] Texto publicado na revista Cahiers du Cinéma, edição de nº 290-291, julho/agosto de 1978, por Jean Narboni, pg. 47.

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Guerra dos Mundos e a efemeridade de uma cidade

Por Pedro Tavares

Vemos que, sob o olhar de uma certa história, os objetos mais imortais são talvez os que melhor realizaram, completaram sua própria morte.[1]

(Georges Didi-Huberman)

É necessário partir do óbvio: a efemeridade do planeta, de suas obras finitas enganadas pelo desejo do infinito. No olhar, a certeza do objeto fincado ao real, mas raramente sua extinção vem ao pensamento enquanto sua existência persiste. Este é o quadro que Spielberg exibe nos primeiros segundos de Guerra dos Mundos. Uma imagem tradicional de Manhattan. Porém, há um lugar de incômodo nesta imagem: o vazio deixado pelas torres gêmeas após os ataques terroristas de 11/09/2001. Portanto, o olhar sob Nova York não será e não é o mesmo a partir desta ausência que não é só física. O filme datado de 2005 discute um incômodo apenas quatro anos após a tragédia e provavelmente não imaginaria que este vazio persistiria 19 anos após o fato.

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Há nessa imagem tão óbvia a necessidade de indagação sobre diversas formas de perda. Um caso curioso de díptico imagético, afinal, esta imagem se instaura no campo da história em geral, porém, esta imagem, uma imagem da história da arte, ainda que se questione o termo, é usada como documento. A representação dessas torres, as vidas perdidas e o estado de luto e terror que se apossam não só dos Estados Unidos como de todo o planeta, afinal, reféns somos do sistema que ali se instaura.

Guerra dos Mundos vai para o caminho de não-praxis, de se adaptar aos efeitos do real, de um frio na espinha, de um momento de incerteza causada pela lembrança da extinção. Resolver um problema ou afincar suas imagens e palavras como uma definição do real está descartado. Portanto, cabe a Spielberg um jogo intenso e de certa forma didático das representações desse horror, num equilíbrio bem interessante entre o gráfico e o orgânico.

É na linha simples de uma invasão alienígena sem um motivo concreto – seja um acerto de contas, um aviso, um pedido de socorro – que Spielberg acha as brechas para evocar imagens já vistas tantas vezes em replay nos noticiários de TV, documentários e outros filmes, incluindo a ilusão de vermos um replay do primeiro choque quando o segundo avião choca-se com a torre. Os corpos empoeirados após a queda dos prédios ou aqueles que se jogaram pelas janelas, o desespero dos bombeiros e a ilusão de fuga nas fronteiras da cidade, da busca por suplementos e todos os tipos de defesas, incluindo armas de fogo.

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Essas lembranças evocadas como fantasmas reforçam a efemeridade da cidade como organismo inabalável e de um sistema invencível. A Spielberg, cabe o uso de certo estatuto para suas imagens surtirem efeitos diversos, em camadas: fiquemos com um simples exemplo da fuga da cidade na qual a ponte móvel se abre e cidadãos (corpos, a lembrar a efemeridade) ficam pendurados como os corpos presos às janelas das torres gêmeas. A abertura da ponte, no mar de corpos desesperados, é tão inesperada quanto o choque do primeiro avião. O terror instaurado é o mesmo vindo de uma destruição de um pensamento bloqueado – quando concreto e metal viram entulho e perdem suas principais funções e é preciso se adaptar a isso, como é preciso se adaptar à ideia de Manhattan sem as torres em sua clássica imagem.

Spielberg se priva na compreensão dos meios; seu interesse é o recorte que encarna as lembranças, sua crença está no reflexo que a sobrevivência exige e neste espaço que Guerra dos Mundos se instaura, de uma inexistência pacificadora e não cogitada ao surto traumático, ao caos instaurado, dentro de um limite que o sci-fi acopla muito bem ao permitir que suas imagens sejam disformes e passíveis de um consumo dinâmico.

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Portanto, Guerra dos Mundos é um filme que compreende um momento e o coloca como um processo de desencarnação que Spielberg sempre transforma em visível. O invisível, como citado anteriormente, é deixado de lado; como a memória que destaca Bush e Bin Laden para outro capítulo deste evento, a transmissão de saberes está mesmo na suspensão dessas informações aportadas no inconsciente. Ela está como um movimento de reabrir os olhos após muito tempo fechados. Um tipo de dormência, uma ausência que o revés é capaz de produzir.

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[1] DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante da Imagem, p. 59

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Ou voa, ou volta: por uma sociopoesia do alto

Por Felipe Leal

 

Temporalidades e reflexões empasteladas em cantigas sobre uma certa Valparaíso chilena? Há dezenas; e, como de costume, trançando seus “hurras” com versos de nostalgia, divinação ou espera pela terra de águas que vibram em dourado, como aparentemente nos vibram as harpas. Ora, é neste aparentemente que nos delongaremos, nisso que insiste em dizer e desdizer o regime de sua própria vizinhança. Mas, por enquanto, se se trata de remontar um repertório-Valparaíso, repertório de uma cidade à altura do cinematográfico, notemos que ele cerzirá essa cidade de imagens (ou imagens-cidade?) despreocupado em elitizar, em montagem, as mais ou menos artísticas criações em cima de um paraíso já deveras remendado. Pois também há pinturas populares com suas deusas lânguidas e instrumentistas favorecendo navegantes, há retratos de instantes marítimos curvilíneos e dramáticos à medida turva dos pincéis, e ainda charges cuja implicância com as desmedidas imperialistas o cinema sublinha enfaticamente ao imantar não tão-somente um lance de olhares entre o arco simples ‘dominadores/dominados’, mas ao dizer que ver é: dizer como se deve ver o que (já) se está vendo. “Mostrar o quanto é invisível a invisibilidade do que é visível”, como colocara Foucault em se tratando da ficção. À sua maneira, tudo já está montado. Cabe a um holandês voador montar ainda outra vez.

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Talvez seja por isso que este A Valparaíso (1963), curta-metragem do falecido e quase centenário Joris Ivens, ainda nos ressoe como um postulado de montagem a ser inquestionavelmente aproximado, fichado e esmiuçado sob o tom da poesia – não para dizer o que ela é, nem muito menos repartir a quimera nomeada ‘cinema de poesia’ em mesas de conceituação; antes, para lançar breves apostas sobre quanto do poético pode caber numa técnica que nasce e se revira na fratura para rearticular a impossibilidade óptica, científica e sensível de que as coisas se encerrem em si mesmas, estáticas, e de que particularidades uma carreira com no mínimo 20 filmes embriagados de iconografias entre o civil e o citadino pode se lançar mão ao filmar e reproduzir, lendo veloz e sistematicamente, uma cidade que contém ainda outras cidades dentro de si, todas interconectadas e interceptadas pela via socioeconômica que parte do porto, arranca alturas com elevadores e escadas lotadas de casas inclinadas, e vai parar somente para assistir aos cortiços nos montes “invisíveis a olho nu”. Mas não só lendo: relendo, negando o lido e dizendo o que há e não há para ser lido nas gramáticas do arco imagem-significação – como, sabemos, o faz a poesia.

“É uma cidade”, a voz narra, para logo em seguida adicionar: “não uma cidade, um conjunto de cidades” – e é como se certo regime de contradições, a partir de uma ética montada em jogo, abrisse um espaço para si, também ele montado, artificial e escritutário, e sustentasse as duas assertivas juntas nessa mesma porção quase impossível de terras, uma cidade cuja geografia consiste em ser várias (uma-múltipla), sendo ao mesmo tempo, empiricamente, efetivamente, várias dentro de uma, espécie de boneca-russa das províncias que cabem em províncias. A câmera desconhece o alto e o baixo senão para fazê-los indecifráveis. Influências asiáticas nas fachadas de hotéis, pinceladas afrancesadas nos costumes de língua, regimentos britânicos de funcionamento monetário… tudo articulado entre o apolíneo e o dionisíaco para duvidar e reafirmar uma espécie de ilhota de luxos dentro do terceiro mundo, micro ou macroscopicamente, ou seja, de si para si mesma e de si para com as nomenclaturas do fora.

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A paleta de imposições físicas diante do social, não bastando Valparaíso estar espraiada em direções incontáveis à rosa dos ventos, toma do absurdo sua literalidade e a durabilidade impressionante daquilo que lhe é frágil por estar em pé. As centenas de escadas guardam o mistério dessa socio-tipificação, algumas indo mais acima do que sua continuidade parecia sugerir, outras se encerrando como que espontaneamente no ar: trata-se de subir ou de voar, ou de subir o suficiente para que voar ressurja como possibilidade peculiar na grande roda da fortuna dos sujeitos sobre e sob deuses. Mas estas escadas são também o complexo de incalculabilidade entre o disciplinar e o acidente flutuante, elas forçam os fantasmas de proto-vidas ao mesmo jogo métrico que resulta em índices imateriais do vivido. Sombras em marcha, desfiladeiros de duras optativas, futuros esquecidos pelos pés, tudo de fato parece reconstituído por Ivens como a narratividade de García Marquez; o fantástico não está diametralmente oposto ao real, ele é apenas uma furtiva licença óptico-escrivã para se reunir com certa contrariedade ao destino: a história escrita de sangue. Então, rente às escadas, se dança, se afoga a altura das autoimposições pisoteando-a no mesmo nível daquilo que não é meio nem início, mas fim. Fim suado, alugado.

“Não é o mais rico [dos portos], mas vive-se, vive-se bem”, intercepta uma voz flutuando dentro dos elevadores e tecendo junto ao movimento de ascensão essa primeira contra-dição (tomar a fala para falar contra; dizer o outro lado estando do outro lado). Aqui, onde é preciso labutar o viver para só em seguida impor à vida uma crença de bonança, de vida vivida, aqui é preciso se separar das coisas para vê-las melhor. Todavia, particularmente por esse artifício de montagem que perturba nosso próprio emprego de metáforas da leitura e da literatura como algo inerentemente nascido com o cinema para melhor decifrá-lo e com ele se acostumar por imperativo de um centro (sou eu quem o lê, afinal), separar-se das coisas nos parecerá mais complicado, posto que significaria também separar-se do todo de vida em que tais ‘coisas’ assim o foram junto com todas as outras que não são elas, e que só necessitariam ser o que são se com elas desejássemos estabelecer proximidades.

O que pode Ivens querer, então, com Valparaíso? Com essas mulheres em roupas de grife passeando com pinguins de estimação sob a carnificina do meio-dia, e que, no entanto, não são mais, ali, por um instante suspenso porém durável, o retrato finito e reconhecível de uma burguesia que advoga por seus louros exibindo o que há de sofrível nas correspondências de classe, mas quem sabe lúdicas e desastradas vítimas dos próprios saltos e de uma vida que, concebida sob os parâmetros da altura, chega a praticar o ‘enobrecimento’ emprestando o colo a uma ave irascível e escorregadia como habitus de passeio, resquício quiçá das promenades afrancesadas em que o sujeito, ao contrário, era aquele a ser avistado pelo mundo.

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Esta motivação, na medida transparente de nunca que nos caberá dizê-la ao certo, ao menos supõe-se na própria malha retalhada e reinvestida de posições de olhares com que a montagem dança como que disjuntando um pas de deux, encantando o velocímetro de encadeamentos dos quadros com uma espacialidade especial possivelmente só encontrada no incessante movimento de fundação daquilo que se chama uma cidade: sendo impossível em qualquer momento de sua história, propriamente concebê-la, visualizá-la ou domá-la como um todo funcional a certos olhos, lança-se essa parte a um todo que está sempre aquém e além de si mesmo (a conceituação do plano é tomada aqui, então, numa acepção extrema de porvir, para além daquilo que se esquadrinha e em direção a um plano-planejamento, a uma elaboração medida para ser outra coisa que não ela).

A cidade é todo-fictício. Ela é totalmente, mas também impossivelmente, toda, e não é por menos que por esse aliciamento compartido que Joris ora opta por conduzir séries de inícios de planos costeiros intitulando-os e intercalando-os com elementos da cidade (os panos das donas de casa são frutos da poesia comunitária das ventanias, as rápidas incursões nos bailes festivos são a veia explosiva do traço sanguíneo estourando para dizer que ali o proveito se faz ao lado da labuta), ora por induzir as narrações a comentar um pitoresco arquitetural sem que, no entanto, cheguemos a visualizar seus interiores, seja para deixá-los ao imaginário, seja para simular uma reticência sem atropelá-la com uma melancolia já implícita. São espécies de socio-sentimentos cuja fagulha de indefinibilidade toma emprestado da montagem seu elemento mais simples – o choque de duas proposições subsequentes –, afetações que implicam o particular a partir de uma categoria social, mas que também sugerem ser o gesto sociológico alguma coisa permeável a propostas de individuação.

Como na poesia, essas imagens em estado de vibração despencam de um segmento de palavras (sentido) para então recair numa posição outra, verso/lugar seguinte mas estranhamente pertencente à lógica sequencial do todo, sendo a ruptura que evidencia tal distanciamento aquilo que faz ver essas mesmas coisas como in-familiares. O risco ético de colocar assertivas simultaneamente sociológicas, sentimentais e da ordem da verificação e da visibilidade do tangível é levado a um extremo minimamente inóspito, pois que nada é terrível, alegre, curioso, insustentável ou revigorante que não possa acolá ser todas as coisas ao mesmo tempo. É mais por levar as subjetivações encarnadas nos enunciados para o ponto em que elas se rompem e ganham substâncias liminares, do que para afirmar do real que este precisa ser des-normatizado e re-exposto, que qualquer estado de elevação poética não será simplesmente acessório e dissidente, inofensivo e retórico. Poéticas como estas, vistas em formas-cinema tão frequentemente próximas ao elemento civilizatório, se necessitam da linguagem de um empréstimo de transubstanciação, é para religar todo o bojo “domesticante” das formas de ver e ler ao seu avesso: aquilo que, inexplicavelmente até certo ponto, dota a si mesmo de sua ser-c(i)ência, guardando às escondidas as ferramentas de sua própria fabricação: habitus.

É clara, a máquina de que estamos falando?

Pois a velocidade equilibrista do encadeamento não seria suficiente para nos dissuadir de que essa voz narrativa, antes de esquivar-se elegantemente da propriedade divina dos primeiros textos dos documentários observacionais, tampouco precisa lhe refutar ou ser dela uma superação: o gesto de passagem de um quadro a outro, polissêmico por excelência e por disputa, assume também um tom cuja peculiaridade retoma traços desses supostos dispêndios e lassidões discursivas orientadas em rebater as propriedades determinadas dos significados.

Não é que se viva bem, ali, de fato e de acordo com uma média delimitada pelo conceito de humanidade, mas que “bem”, sendo não só palavra como pronunciamento de uma ocupação de significantes enrodilhados num presente, e sendo este presente o cruzamento entre texto e imagem, precisa tornar-se língua em movimento poético, uma distensão a partir da qual o vento, o calor sanguíneo e a presença do mar podem escrever uma história fictícia, temporária e estática de alguma “boa” vida àquelas imagens solitárias de crianças penduradas em balanços, às imagens de mulheres estendendo roupas ou dialogando rente à passagem dos vagões, esmagadas pela cidade, ou mesmo às imagens operísticas da população lançando sombras musicadas aos esqueleto de escadarias de Valparaíso. É que o fictício, alguns cinemas, não se opõe ao real, nem chama de “reais” as temporalidades feitas à parte daquilo que é captado. Não se trata, aliás, de reformular, dialogar ou “problematizar” com qualquer enunciado de realidade vindo de qualquer campo de saber.

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Como quando retiram-se de um texto todas as presenças da palavra “homem” para visualizar, ainda que ludicamente, os sentidos atribuídos ao masculino como forma de homogeneização das práticas letradas, experimentar a extração, em À Valparaíso, de qualquer interpretação ou lente de vistas pelo regime da realidade também retiraria do texto recitado por Roger Pigaut qualquer necessidade de aderir ao diretor o endereçamento ou a responsabilidade autoral como antecedente das possibilidades visuais e letradas de romper com a linguagem. Experimento visual como qualquer outro.

Não interessa, afinal, quando se trata de tecer essas “poematicidades” como dispositivos de intra-nomeação espacial, se quem coreografa é a câmera, o povo ou a imposição da presença de câmera ao corpo; não interessa se as flores debaixo dos trilhos são obviedades semânticas do mesmo modo como se revelarão as ironias das pinturas de cavalos nos bares da cidade, sendo aqueles corredores os mesmos que findarão, cansados, mortos, como carne nos pratos; e não nos interessando, enfim, identificar ser aquele que diz, quem diz, o resultado narrativo equivale, ele também, ao vidro estilhaçado e às cartas de baralho manchadas de sangue que dão à tela a inesperada colorização: necessita-se unicamente de uma partícula que diga: (passagem). Será algum espectador capaz de dizer que, ali onde repentinamente há cor, há também a inauguração do poético na obra, arriscando simultaneamente inferir que ele não existia antes, e que tudo não passava de uma farsa sentimentalista maldosa? Ou se estaria diante de um momento privilegiado, momento no qual e para o qual uma passagem de sentido não é uma passagem de todo, ou ainda que algumas passagens devem conter também uma não-passagem? Nada se verifica. Tudo acontece quando uma passagem se lhe pede.

Falar, não é ver. As palavras estão em suspenso, como está a disputa pelas cidades na cidade. Liberado da exigência ótica, a seletividade improvável disto em suspensão nas palavras se choca, no cinema de Ivens, com o que há de disforme na constituição do visível que, sendo metaforizado pela consciência, só pode nos chegar como dádiva de materialidade singular, enxuta do todo. Esse narrador é ninguém, mas só se ausenta ao colocar dois postulados num golpe de tempo só: atravessar a rua é também atravessar a morte.

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As cidades de nossas juventudes: A Cidade Onde Envelheço

“Tu queres envelhecer aqui?”

Por Geo Abreu

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Nos parágrafos da carta-poema de Paulo Mendes Campos a Otto Lara Resende[1], um mineiro exilado conta a outro sobre a apreensão necessária para “distinguir cada céu, conseguir de cada um a intimidade singular’, abaixo do céu implacavelmente azul do Rio de Janeiro da década de 1940. A melancolia daquelas palavras, que buscam conforto na novidade e encontram desolo na certeza da humanidade excessiva que não nos abandona nunca,  Paulo Mendes Campos parece até um poeta português inventando lonjuras: “Ninguém me chama / Ninguém me espera / Ninguém me denuncia”.

No filme de Marília Rocha, A cidade onde envelheço (2016), encontramos as experiências de lonjuras de Francisca e Teresa, duas portuguesas que escolhem Belo Horizonte para viver por um tempo da vida (ou para sempre?). Logo de cara, o primeiro dispositivo é reconhecível: o estranhamento do que parecia conhecido. De Belo Horizonte, essa cidade que, na última década tem sido cenário de tantos filmes que circularam pelo país e fora dele, se transformando em referência de Brasil e de cinema brasileiro. A presença de Neguinho (Wederson Patrício) nos remete àquela periferia de Contagem apresentada em A Vizinhança do Tigre, que nos aproximou de tantas periferias e garotos como aqueles. A pesquisa das amigas portuguesas sobre a vida naquela cidade nos leva a estranhá-la bem quando se pensava saber muito sobre ela.

Falando ainda de estranhar o conhecido, identificamos também uma inversão no uso de outro dispositivo comum, já que é o cinema quem costuma aproximar lugares desconhecidos de pessoas que muitas vezes não iriam até eles de outra forma que não pelos filmes. Aqui, ao contrário, visitamos o lugar conhecido pelas lentes de duas mulheres que possuem outro sonho feliz de cidade, Lisboa. A comparação é inevitável e esbarra justo em um dos elementos que produz o mistério do mineiro: a falta de mar! Que provação é essa das portuguesas que escolhem uma cidade sem mar para viver alguns anos da sua juventude? Que estado melancólico elas gostariam de experimentar, afinal? O tigre que se avizinha mostra as garras e lambe o sal do próprio corpo.

Se lançar a conquistar mundos, como não usar essa expressão recorrente a respeito da gente portuguesa? E quando essa gente que atravessa o Atlântico pela primeira vez são mulheres? Vale dizer que o olhar que lançamos sobre as duas moças lisboetas não nos devolve clichês. Alguém diz que Marília Rocha evita trabalhar os conflitos, que poderiam encaminhar a história para outros rumos e, a bem da verdade, ainda que as amigas sejam tão diferentes e se espantem com as atitudes uma da outra, o que vemos é apenas acolhimento, ainda que entre-dentes.

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Além dos conflitos que poderiam surgir do próprio universo do filme, existem outros a serem evitados, como o fato das moças estarem num país que já lhes serviu de colônia e serem brancas e ouvirem músicas angolanas ou ritmos eletrônicos misturados a outros de origem africana. Nada de fado ou de poetas portugueses e suas cartas e poemas coloniais sobre o encontro com o Brasil.  Nisso tudo se esbarra com amizade, a leveza de um balé íntimo a que temos acesso e a ideia de um cosmopolitismo que transcende as fronteiras entre o que foi colônia e o que ainda possa ser colonialismo.

Eu escolhi enxergar a história de Francisca e Teresa como um espelho do que foi ter sido jovem, mulher e migrante em outras cidades que nunca me devolviam imagens de mim mesma e às quais tentei me adaptar diversas vezes, a buscar intimidades singulares com cada um que me cruzasse o caminho. Onde pude experimentar novidades excitantes e luminosas como as que vemos Teresa curtir para, com o passar do tempo, chegar à mesma conclusão que Francisca – processo nada fácil – e embarcar de volta para casa num avião da TAM.

O que retenho desse filme é a importância dos pequenos gestos cotidianos: tomar chá com as amigas em chávenas sem par; chegar bêbada em casa e acordar todo mundo para um café da manhã diferente ou para continuar dormindo todos juntos naquele sofá-cama que já recebeu tanta gente; descobrir um disco “novo” do Jards Macalé num sebo perdido do centro de mais uma cidade antiga que fará parte das nossas vidas e que marcará a seu modo um tempo em nós.

[1] Trechos desta carta são lidos em off pela personagem Teresa a certa altura do filme. Aqui o link para um texto completo: https://www.correioims.com.br/carta/carta-a-otto-ou-um-coracao-em-agosto/

 

 

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É Tudo Verdade: Meu Querido Supermercado

Por João Pedro Faro

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O longa de Tali Yankelevich tem jeito de reportagem. Com a duração de um episódio de Globo Repórter, Meu Querido Supermercado é um registro objetivo e costumeiramente simples de um grupo de funcionários durante um dia de trabalho. Contado em pequenas narrativas de seus personagens, o filme não parece confiar o bastante na capacidade individual de cada um de seus núcleos e tenta puxar uma visão unificada de um mosaico desconjuntado.

Não é surpreendente que os funcionários do mercado sejam, em geral, pessoas bastante interessantes. Os momentos de maior criação surgem em gratas presenças, como a supervisora das câmeras de segurança que passa o dia inteiro vigiando sua filha que trabalha no caixa do mercado. Ou, também, no núcleo do romance hawksiano entre dois padeiros, figuras com carisma suficiente pra carregar grande parte das sequências do filme.

O cansaço visual de Meu Querido Supermercado está justamente no contraponto dessas figuras: Tali sempre parece justificar seu projeto com ambições “superiores” ao registro do trabalho, forçando aos seus personagens banalidades cósmicas com perguntas como “Você acredita em vida após a morte?” e “O que é fé para você?”. Essas respostas, limitadas a uma fração do grupo que retrata, surgem acompanhadas de analogias visuais bastante óbvias, como a sequência em que um dos funcionários descreve o “além vida” como um “desaparecimento da forma física”, apoiado por imagens de pães velhos sendo triturados. Não há nada nesses momentos que se integre à rica e inexplorada existência dos personagens que encenam a obra de Tali.

A necessidade que Meu Querido Supermercado parece ter em querer integrar seu microcosmo aos próprios cosmos não alcança suas ambições, em um documentário que parece planejado pela metade. O que prevalece, no contato dessa presença fílmica com os indivíduos que retrata, é um breve e agradável vislumbre de vidas que transbordam os horários de descanso do trabalho.

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Ukamau e Sangue do Condor – A nação clandestina de Jorge Sanjinés

Por Bruno Pires

 Jorge Sanjinés no início dos anos 60 começa a produzir uma série de filmes dentro de um coletivo tardiamente denomidado Ukamau, que buscava um cinema de identidade nacional boliviana por via da cultura andina. Para o grupo, era menos importante circular nos festivais europeus que viajar o país exibindo seus filmes em zonas mineiras e comunidades indígenas, recebendo um parecer daqueles que eram os reais protagonistas de suas histórias. O que nasce de uma vontade de se fazer “un cine junto al Pueblo” tornou-se uma das mais eficientes formas de livrar-se de amarras eurocêntricas e produzir algumas das obras mais peculiares na filmografia mundial. O índio no cinema latino-americano deixa de ser Dolores del Río, estrela de Hollywood, e converte-se em Benedicta Huanca, aimará cujo cotidiano e luta é o mesmo que o exibido em Ukamau (1966) e Sangue do Condor (1969).

Os primeiros minutos de Ukamau, primeiro longa-metragem de Sanjinés, revelam a forte integração entre um povo e sua terra, relação mais primordial da história humana. Sanjinés faz questão de enfatizar a beleza estética da idílica Ilha do Sol no lago Titicaca, lar do protagonista Andrés e sua esposa Sabina, um local livre de estragos que resiste à cultura ocidental. Desde essas primeiras sequências há o desejo do diretor em finalmente revelar ao mundo e à Bolívia o povo indígena, que, apesar de maioria, segue vivendo como uma nação clandestina dentro de seu próprio território, incapaz de serem reconhecidos ali dentro. O caráter documental do filme é quebrado assim que esse equilíbrio é rompido: Sabina, numa tentativa de estupro, é assassinada pelo mestiço Ramos enquanto Andrés está fora de casa, o que incentiva a vingança por parte de seu marido.

Este maniqueísmo entre o indígena e aquele influenciado pela cultura branca é o que dita o rumo do filme: a vida comunitária andina em oposição ao individualismo de Ramos que deflagra um bom-mocismo por parte do protagonista. Apesar de já próximo da vivência andina, Ukamau ainda é muito próximo dos padrões de um faroeste, principalmente por uma visão dicotômica radical que se traduz no anti-heroico Andrés adiando sua revanche contra Ramos, que passa toda a duração do longa vivendo na ansiedade de ser pego pelo índio. Apesar de já haverem esforços de integrar o indígena à cinematografia nacional, ainda há forte colonialismos no olhar de Sanjinés, o que se deve principalmente à expressão de toda uma comunidade em um único personagem, algo que será gradativamente abandonado em sua carreira, havendo cada vez mais participação do próprio povo em tela. Ukamau segue sendo a vingança de um homem só, e ao individualismo não resta espaço na filmografia de Sanjinés, refletido nos dois últimos planos do filme, um primeiríssimo de Andrés após assassinar Ramos, e um geral, que será muito mais frequente dali em diante.

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Sangue do Condor, segundo longa do diretor, é conduzido em duas narrativas paralelas dividas por uma cena: a tentativa de assassinato do quíchua Ignácio, alvejado pela polícia. A trama relata o porquê dele ter sido alvo dos tiros, e também a tentativa de salvá-lo vinda de seu irmão Sixto, que hoje mora em La Paz, trabalha em uma fábrica e renega a cultura indígena. Apesar de ser avesso às suas raízes, é incapaz de escondê-las, como na sua primeira aparição onde é chamado de índio bruto por um homem branco e prontamente rebate ¡no soy indio, carajo!”. O decorrer de sua história será estritamente ligada ao desencanto com o mundo ocidental, a impossibilidade de conseguir dinheiro para operação do irmão, e a inevitável revolta contra sua defasada utopia.

A ideia de Sangue do Condor surgiu devido uma série de denúncias contra o Corpo de Paz, agência federal criada pelo presidente Kennedy para auxiliar países do terceiro mundo. Segundo muitos bolivianos, aqueles americanos estavam há quase uma década no país esterilizando indígenas, fato comprovado quatro anos após o lançamento do filme, que, segundo Sanjinés, foi forte testemunho da agência falsa-humanitária dos ianques. Essa história foi traduzida na rebelião de Ignácio e sua vila contra os gringos, fato que levou à sua quase morte.

Sendo real ou não, a tentativa de apagar os índios da história do país era uma realidade, fruto de um neocolonialismo reforçado durante os anos 60, cujo plano era embranquecer o país racial e culturalmente. Não por menos, as duas cartelas que abrem o filme são uma fala de um oficial nazista sobre a inferioridade e irrelevância dos ucranianos, e o discurso de um cientista americano sobre a diferença racial entre as nações mais ricas e pobres, e como eventualmente o terceiro mundo será devorado pelos contingentes eurocêntricos.

Por mais que esse choque entre primeiro e terceiro mundo já esteja presente nos projetos anteriores de Sanjinés, Sangue do Condor finalmente incorpora o espírito comunitário presente nas culturas indígenas, espelhando a aldeia de Ignácio, que investiga e pune os americanos infiltrados, ao compromisso de Sixto, em busca de alguém para doar sangue ao seu irmão. Além do paralelismo espaço e temporal entre o antes e depois do tiro que Ignácio recebeu, há também as diferentes opressões no campo e na cidade, como o falso messianismo americano trazendo más intenções, e o enfrentamento de Sixto diante à soberba e descaso que a burguesia da metrópole oferece, incapaz de sensibilizar-se com a situação de seu irmão.

Essas duas narrativas apesar de distintas, completam-se dialeticamente: enquanto o corpo político da comunidade se mobiliza juntamente para rebelar-se e culmina na tragédia de apenas um personagem, a jornada solitária de Sixto se completa em seu desprendimento à vida urbana e o regresso às suas origens, a comunidade, onde junto de seus camaradas ergue seu fuzil na esperança de uma revolução onde eles sejam os protagonistas.

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CINEMA E REVOLTA

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A LEI DOS DEPRAVADOS
João Pedro Faro

YOU KILLED ME FIRST/JUVENÍLIA: DOIS FILMES PARA TODA A FAMÍLIA
Natália Reis

MARGINAL NÃO FILMA: LADRÕES DE CINEMA
Pedro Tavares

O COMPLÔ DOS INOCENTES – NOTAS IRRESPONSÁVEIS SOBRE A CRIANÇA NO CINEMA
Bernardo Oliveira

QUE OS JOVENS DESTRUAM A CIDADE – FUNERAL DAS ROSAS
Gabriel Papaléo

COMO DESMONTAR UMA PRISAO: REVOLTA SILENCIOSA EM UM CONDENADO À MORTE ESCAPOU DE ROBERT BRESSON
Luís Flores

ENTREVISTA: Luiz Pretti
Pedro Tavares

CRIANÇA SOLITÁRIA: A BALADA DE LEONARDO FAVIO
Daniel Dalpizzolo

A REVOLTA DAS OPACIDADES, OU O POP E A ULTRAVIOLÊNCIA NA VIRADA DO MILÊNIO JAPONÊS
João Lucas Pedrosa

CONTRA O SILÊNCIO DO AMOR, A POESIA E A REVOLTA: UM OLHAR SOBRE TONGUES UNTIED DE MARLON RIGGS
Chico Torres

VAGA CARNE: O CORPO (R)EXISTE
Kênia Freitas

UKAMAU E SANGUE DO CONDOR – A NAÇÃO CLANDESTINA DE JORGE SANJINÉS
Bruno Pires

A VOZ MANSA DIANTE DO OESTE: FIRST COW
Gabriel Papaléo

O VULCÃO E A NUVEM: REVOLTA COMO RESIGNAÇÃO EM STROMBOLI DE ROBERTO ROSSELLINI
Diogo Serafim

ANOTAÇÕES SOBRE O GRAU ZERO DA DIFERENÇA: O CINEMA DE APICHATPONG WEERASETHAKUL E CURADORIA COMO CURA (E COMO ISSO TUDO SE APROXIMA DE UMA IDEIA DE REVOLTA)
Geo Abreu

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You Killed Me First/Juvenília: Dois filmes para toda a família

Por Natália Reis

“Let’s make a movie where we would imagine a incredible world after death, a movie that would be so wild, so sexy, so beautiful and provocative that it would make everybody wanna rush to their death.”

(David Wojnarowicz)

“A luta e a revolta implicam sempre uma certa dose de esperança”

(Paraísos Artificiais, Baudelaire)

A crítica de Eric Rohmer para “Rebel Without a Cause” na Cahiers du Cinema de maio de 1956 começa com a insatisfação com que recebia a versão francesa do título: “La Fureur de Vivre” - A fúria de viver. Para Rohmer, o título não significava nada, uma vez que “Rebel Without a Cause” seria muito mais “contido e apropriado”, por “não apresentar a chave do trabalho, mas não deixar de iluminar adequadamente o objetivo do autor: Rebelde sem Causa, a causa pela qual se luta.”. Por aqui, o filme de Nicholas Ray virou “Juventude Transviada” o que poderia nos levar, num momento de introspecção, a pensar em caminhos pré-determinados e em automóveis que teimam em sair da curva.

A causa pela qual se luta parece ser o primeiro e derradeiro tópico de análise da rebeldia juvenil. Se por um lado a cantora Lilian em 78 justificava-a com a falta de amor materno e paterno (“eu sou rebelde porque o mundo quis assim…”), a imagem de jovens parisienses bem vividos e criados arremessando pedras na polícia em 68 apresenta um outro lado da mesma moeda. Uma ideia interessante proposta por Julia Kristeva é a de conceber a revolta como uma palavra que possui “plasticidade”, que pode ser percebida pela potencialidade de transitar entre tempo e espaço e movimento –  pelo mundo do sentido (sense) e do não-sentido (non-sense).

O cinema, como outras artes, oferece um espaço propício para se rebelar. Sem contenções, um desejo sorrateiro contamina a linguagem e por sorte vai atingir em cheio quem assume a posição de espectador. Do Teatro da Crueldade aos Acionistas Vienenses, o choque parece ser uma forma súbita de arrebatamento. A ideia de transgressão e crueldade deve ser inserida aqui como prolongamento de um gesto de revolta, que se irradia em direção à realidade com a intenção de acessá-la e modificá-la – sem necessariamente ser posta como produto dela. “Quem hoje foi capaz de registrar qualquer coisa que chegue até nós como fato, sem ferir profundamente a imagem?”, o artista Francis Bacon diz olhando para sua obra. E quem foi capaz de registrar na imagem ferida a revolta contra a realidade de portas fechadas em espaços e momentos hostis?

Seguem dois exemplos de cinema insubordinado, transgressivo e cruel.

Cinema of Transgression

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Em 1985 o Sonic Youth lançava seu segundo álbum, Bad Moon Rising. O título, tirado da música de 1969 do Creedence Clearwater Revival, fazia alusão aos agouros que pairam sobre a história da América, numa linha temporal que percorre desde os seus primórdios  – o genocídio indígena  –  ao fim dos anos 60  – os assassinatos cometidos pela família Manson e o fatídico concerto dos Rolling Stones em Altamont ,  o fim da utopia hippie. Bad Moon Rising de certa forma concatenou esses acontecimentos a uma ideia de profanação do american dream, o vazio moral que guia a nação ao estado de catatonia num país amaldiçoado.

“Estamos vivendo aos pedaços/Eu quero viver em paz/A sociedade é um buraco”, a voz derretida de Thurston Moore profere em “Society is a Hole”, enquanto os corpos dilacerados dos integrantes da banda são costurados com imagens das manifestações flower power pelo fim da guerra do Vietnã no videoclipe de “Death Valley 69”, faixa que contou com a participação de Lydia Lunch e direção de Richard Kern, figuras conhecidas do underground nova-iorquino nos anos 80 e estrelas em ascensão do chamado “Cinema of Transgression”.

Como o álbum do Sonic Youth, o “Cinema of Transgression” desponta de um sentimento de revolta com modelos sociais fracassados. Jovens adultos em sua maioria nascidos no seio de famílias quebradas, sem perspectivas de futuro profissional e frustrados com a impossibilidade de inserção no âmbito cinematográfico experimental de Nova Iorque (que até o final dos anos 70 se dividia entre os expoentes do cinema estrutural como Michael Snow, “pais” e “avós” do camp como John Waters e os irmãos Kuchar e a geração relativamente nova do No-Wave como Vivienne Dick e Beth e Scott B.) buscavam através do choque e da abjeção uma via alternativa para os impulsos criativos que constantemente eram relegados às margens da marginalidade.

Crises familiares, violência policial, sexo explícito, mutilações (e sexo com mutilados), canibalismo, abuso de substâncias ilícitas, sadomasoquismo e outros fetiches tidos como perversões perpassavam os trabalhos de Nick Zedd, Richard Kern, Tessa Hugues-Freeland, Casandra Stark, David Wojnarowicz, Tommy Turner e todos aqueles que reivindicavam pra si o signo da transgressão e compartilhavam da intenção de ferir imagem e espectador do mesmo modo, tomar de assalto um engajamento que supostamente havia se tornado rarefeito pelo academicismo de vanguardas já estabelecidas.

You Killed Me First (1985)

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Uma família ordinária de classe média composta pela figura paterna dominante (David Wojnarowicz), uma mãe histérica (Karen Finley) e duas irmãs de personalidades totalmente opostas encena uma esquete trágica: Elizabeth, a filha mais nova, (interpretada por Lung Leg, atriz-performer-mostrenga do Cinema of Transgression) sofre por não conseguir se encaixar no retrato domiciliar enquanto a irmã mais velha (Jessica Craig-Martin) replica zumbificada o comportamento dos pais. Elizabeth, ou Casandra, como exige ser chamada, entra em colapso e mata todos os membros da família.

You Killed Me First (1985), curta em 8mm de Richard Kern, foi inicialmente concebido e realizado como instalação numa pequena galeria no East Village. Na obra, três manequins dispostos ao redor da mesa de jantar de ação de graças fazem a vez de vítimas de um assassinato brutal. Um crucifixo dependurado, sangue e comida misturados numa massa vermelha uniforme que escorre pelas paredes e pela toalha da mesa integram uma espécie de tableau vivant que deve ser observado através de uma janela à distância.

Ao partir da instalação para a imagem em movimento, Kern dobra a aposta no voyeurismo, revelando o que a rotina familiar pode esconder nas suas ranhuras. O filme não lida com um tipo de abuso perverso (vide Family Tyranny/Cultural Soup de Paul McCarthy e Mike Kelley). Com exceção da decapitação do coelho de estimação da filha mais nova, as cenas curtas, parte flashback parte apresentação dos possíveis motivos do crime, chegam a ser quase infantis: a mãe chora e reza o tempo inteiro, a irmã mais velha é irritantemente o que os pais esperam que seja e o patriarca brinca com a arma recém-adquirida apontando para a cabeça da esposa. A infantilidade e o exagero flutuam ao redor de Lung Leg enquanto ela parece atingir uma espécie de modo berserker: os olhos arregalados e fulminantes, rosnados, a voz engasgando as palavras “eu odeio vocês”.

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Para além de uma ilustração torta das bases enfraquecidas sob as quais a família americana apoiava sua moral, You Killed Me First, como grande parte dos filmes de Richard Kern nessa mesma época, acaba sendo um estudo/screen test das personalidades que o rodeavam e que compunham a cena artística do Lower East Side (território em Manhattan majoritariamente ocupado por imigrantes de classe operária e artistas sem apoio financeiro como a escritora Kathy Acker). Dispensa dizer aqui o quão simbólica é a imagem de David Wojnarowicz (pintor, performer, fotógrafo, cineasta e ativista) fodendo Karen Finley (a performer responsável por monólogos sobre os movimentos sensuais de uma mulher debruçada na máquina de lavar) por trás e sendo espiado com repulsa por Lung Leg, o rosto nervoso de abertura do clipe de “Death Valley 69”.

“Você me matou primeiro” é o grito que precede o matricídio na cena final e o expurgo de um estado de alienação ao qual se abandona os desajustados. Richard Kern admitiria mais tarde que as situações repulsivas retratadas em seus filmes vieram principalmente do tédio e de uma inabilidade de sentir qualquer coisa: “É mais fácil sentir alguma coisa com aversão e ódio”. A teatralização da chacina como banalidade é a negação, via cinema da transgressão, desse tédio que se transforma na morte em vida. You Killed Me First e em alguma proporção toda obra do Cinema of Transgression não deixa de ser “uma vingança dos abortados”, dedicada a todos os rebeldes sem causa que, nem por alguns segundos, já pensaram em matar seus progenitores na mesa de jantar.

Paraísos Artificiais

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Antes de desperdiçar tempo e esforço tentando se fazer conhecido como uma figura agradável do Twitter, Fernando Collor de Mello competiu a duras penas com nosso atual presidente pelo título de maior sabotador da cultura na história política do país. Assim que assumiu o governo em 1990, sob a carcaça mal maquiada de um liberalismo “de visão”, extinguiu a Lei de incentivo fiscal à cultura (Lei Sarney), a Embrafilme (já mal das pernas desde os anos 1980), o Concine, a Fundação do Cinema Brasileiro e se ainda houvesse alguma dúvida quanto a seus propósitos, o próprio Ministério da Cultura (rebaixado a secretaria). Apesar do cenário desolador, os curtas e médias-metragem pareciam ter retido ainda alguma chama de esperança, e as universidades converteram-se espaços propícios para a sua realização.

Na primeira metade dos anos 1990, Paulo Sacramento, Débora Waldman, Paolo Gregori, Marcelo Toledo e Christian Saghaard, quase todos alunos da Escola de Comunicação e Artes (ECA) da USP, integraram a produtora universitária Paraísos Artificiais. Sem manifestos e bandeiras, a paraísos – que contava com CNPJ próprio –  respirava no interior da instituição como um organismo individualizado. Foram mais de dez filmes (em grande parte extracurriculares) montados e finalizados nas imediações da ECA, num processo que envolvia, entre outras coisas, a ocupação das moviolas durante a noite e cooperação mútua, cada membro da produtora sendo um colaborador em potencial para projetos que não fossem os próprios.

Com a benção de Jairo Ferreira (crítico, realizador e guru ideogrâmico do Cinema de Invenção) e seguindo os rastros dos marginais, os filmes da Paraísos se caracterizavam pela escassez de recursos (algo que definiria bem o cinema feito no país naquela época como um todo), pela proposta DIY (herdada talvez dos mesmos ânimos punk que levaram Marcelo, Paulo e Débora a formarem uma banda) e principalmente pela forma com que se lançavam sobre o insólito, sobre uma ideia de violência redentora e a subversão da forma e conteúdo. Da ritualização de um pico com sangue de galinha injetado na veia, passando por uma gangue de homens caracterizados como Jesus Cristo que saem às ruas para crucificar mendigos até a crônica de uma mulher que persegue a própria morte enquanto alucina na rodovia, o cinema da Paraísos Artificiais emerge como imagem de um Brasil subterrâneo, tomado por uma aura turva que recai sobre lugares, pessoas e objetos –  resta reconhecer essas coisas como a memória compartilhada de um sonho ruim.

Juvenília (1994)

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Georges Bataille falava de uma violência elementar, que habita o universo interior do homem e que, quando manifestada, o aproximaria de um estado primordial, no qual toda individualidade desaparece – nos tornamos um na animalidade que renegamos. O Tabu e as leis por sua vez foram criados para não sermos tragados por essa violência, que significaria a perda da consciência e racionalidade. Mas a lei em si não é racional, e neste momento o filósofo aponta essa sustentação hipócrita: por que o homicídio é condenado, enquanto a guerra nada mais é que a permissão para matar? Obviamente Bataille não se posicionava a favor do assassínio, mas trazia à luz a natureza contraditória com que lidamos com certas interdições.

Juvenília (1994), de Paulo Sacramento, é um fotofilme que conta com 60 fotografias em preto e branco em sete minutos de duração. As fotos, feitas por uma fotojornalista que fazia a cobertura de crimes na madrugada, descrevem o esforço coletivo de jovens bonitos e sorridentes para matar e eviscerar um cachorro. Enquanto um ou outro observa de bom humor, os demais se revezam nas pauladas, marteladas, enxadadas e picaretadas até o interior do cão ser revelado. Em determinado momento, um rapaz munido de alicate arranca um canino e exibe para os amigos, três garotas seguram as patas enquanto outra pessoa mergulha a mão na fenda no meio da barriga e puxa as entranhas para fora, tudo isso embalado por uma versão ao vivo  de “A Saucerful of Secrets” do Pink Floyd, que fecha a cena bizarra com os aplausos da plateia. Ao longe, um outro cachorro espreita o ritual macabro.

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“Se você procura emoções fortes, achou. Mas atenção: se estiver apenas a fim de um programinha para passar o tempo, este não é um ‘O Bom do Dia’ para você. Essa introdução é necessária para falarmos dos sete minutos em preto-e-branco de ‘Juvenília’, provavelmente o filme mais violento feito no Brasil nos anos 90.”. Assim começa a matéria publicada na Folha de S. Paulo em 1999 anunciando as exibições de Juvenília na Faap e no MIS. Falar que o curta de Sacramento foi “provavelmente o filme mais violento feito no Brasil nos anos 90” chama a atenção por mencionar justamente uma década em que a tv aberta experimentou uma variedade de programas de jornalismo criminal (do tipo “Aqui Agora”) que apostava num sensacionalismo cretino para falar de tragédias e crimes hediondos. Do conforto do lar, o telespectador brasileiro podia receber uma dose cavalar (e ao vivo!) de reportagens sobre sequestros, estupros, balas perdidas ou assassinatos brutais, sempre contando com um comentário indignado do seu interlocutor.

Não é incomum que imagens de violência circulem e se reproduzam pelo whatsapp ou que a descrição de um rosto no jornal acarrete uma violência palpável como a do linchamento. As imagens não podem ferir – já disse Marie-José Mondzain – mas podem ser transformadas em veículo de crueldade pela sanha de audiência. Juvenília é um filme brutal (e belo) porque mostra a face da “normalidade” de uma juventude que só conhece a violência como linguagem. O plano final de um segundo cachorro, vivo, mas imóvel, olhando diretamente para a câmera é a retribuição de uma certeza: viu? Como é fácil nos fazermos reféns dessas imagens. A revolta é reservada para quem ainda se choca com a banalização do mal.

Referências Bibliográficas

BATAILLE, Georges. O erotismo. Porto Alegre: L&PM Editores, 1987.

KRISTEVA, Julia. The Sense and Non-Sense of Revolt, trans. Jeanine Herman. 2000.

MONDZAIN, Marie-José. A imagem pode matar? Lisboa: Nova Vega, 2009.

PFEFFER. Suzanne. You Killed Me First: The Cinema of Transgression. Berlin: KW. 2012.

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