JACKASS: TORTURE PORN, VOYEURISMO E BRODERAGEM

Por Pedro Tavares

Enquanto lia Akira Mizuta Lippit divagar sobre o aparato de memória a partir do cinematógrafo, me chamou atenção a máxima “cinema como mnemosyne” citada pelo autor e professor, ou seja, a prática de coletar e recoletar impressões da vida via cinema e psique. Atrelada aos belos argumentos de Lippit[1] à questão do jogo de memórias, a reflexão me levou a Aby Warburg e como as imagens de seu Atlas[2] costuravam um labirinto de referências da memória num jogo de coletagem de informações, conhecimento e o prazer da observação em imagens que não dialogam entre si. Foi assim que cheguei num tema que reside em outro extremo, mas que, de diversas maneiras, dialoga com o conceito de Mnemosyne de Warburg.

Em 2000, um projeto liderado pelos diretores Jeff Tremaine, Spike Jonze e o ator Johnny Knoxville foi criado após Tremaine descobrir Knoxville e seus comparsas (Chris Pontius, Steve-O e Dave England) em um vídeo da revista Big Brother testando equipamentos de defesa em si mesmos. O projeto ganhou o nome de Jackass – em livre tradução, algo semelhante a “idiota” ou “burro”. O programa usou por anos conceitos semelhantes aos apresentados aqui anteriormente, em especial o prazer da observação e da memória como associação de quadros em justaposição não dialógica. Deste ponto, ligo Jackass ao tema desta edição: o uso do corpo para representações diversas do erotismo, pornografia e voyeurismo, o conflito direto com o puritanismo americano, a destituição de valores pré-concebidos na sociedade e trazer para o horário nobre assuntos espinhosos para uma nação majoritariamente conservadora. A subversão de um conceito popular como um conjunto de gags que em nada dialogavam entre si aumentava a potência da proposta de Tremaine e cia. Jackass foi exibido em uma emissora que carrega seu valor justamente pela memória e como ela influencia até hoje o mundo da cultura popular, sobretudo o da música e da linguagem dos clipes: a MTV. O programa se constituía de um conjunto de gags entre amigos – e construía, assim, um universo de associações e subversões à linguagem televisiva, pois a única linha, na superfície, é a de gerar caos e risadas.

Desta maneira, o programa, que logo ganhou as telas de cinema com o mesmo formato, colocava em primeiro plano o que estava no obscurantismo que realizadores americanos usavam com certa tendência sensacionalista no fim dos anos 1990 e início dos anos 2000. Knoxville, Bam Margera e sua trupe extrapolavam os limites justamente por não ter uma linha narrativa. A destruição dos meios e valores era a “atração”. Com isso, as margens para o diálogo com o que é erótico e pornográfico são extensas e muito interessantes. A julgar, em primeiro lugar, como o exibicionismo e a tortura faziam parte frequentemente do programa. O personagem Party Boy, vivido por Chris Pontius, era uma representação muito inocente e funcional de como a nudez incomoda além de um choque inicial. Ao longo dos anos, a nudez em Jackass foi impregnada, em confirmação de que não há qualquer necessidade de justificativa, apenas o prazer; gesto que, de certa maneira, se alinha com a proposta geral de Jackass. Steve-O e Pontius seguiam nus para seus quadros, enquanto Wee Man, skatista e dublê que é portador de nanismo, junto ao perfomer Preston Lacy, com frequência usavam seus corpos para algum tipo de tortura e, por seus corpos estarem desnudos, lidam diretamente com o fetichismo. É importante notar que, em boa parte dos quadros em que homens desnudos atuam, os outros integrantes da trupe estão lá, em geral semi-nus, com o prazer perverso da observação. O torture porn, ou seja, o que liga o prazer ao perverso segundo Frederico Feitosa[3], naturalmente dá estética ao gozo. Mas, no caso de Jackass, além de eliminar qualquer narrativa – a lembrar que os filmes pornográficos possuem, em geral, uma introdução, uma linha narrativa mambembe para chegar à sua real atração – e transformar o seu senso estético na perversidade em si. É o grupo de amigos desnudos a rir incontrolavelmente do sofrimento de outro amigo nu, vez ou outra de pênis ereto, ou em posições que emulam o ato sexual, mas sem o prazer da dor. O gozo é exclusivo de quem assiste neste caso.

C:\Users\pedro\Downloads\Screenshot 2023-12-20 at 14-19-12 wee man and preston lacy - Pesquisa Google.png

Wee Man e Preston Lacy em 69 simbólico.

C:\Users\pedro\Desktop\jackass.jpg

Steve-O e Chris Pontius

O que chamamos de broderagem atualmente, algo que engloba o companheirismo, confiança e cumplicidade entre homens heterossexuais que pode ou não ter envolvimento sexual, é latente nos quadros de Jackass. Os quadros que envolvem genitálias e orifícios possuem uma dança de proximidade e distância entre os integrantes muito curiosa. Há o acordo silencioso que não há limites para o toque ou para a visão, mas não veremos uma troca de fluídos propriamente dita nem mesmo sob a justificativa de um quadro. Quando a proximidade é latente, geralmente vem em forma de uma pegadinha – como a emblemática barba feita dos pelos pubianos de todos os integrantes colada no rosto de Danger Ehren -, ou com o auxílio de um terceiro – como o quadro do primeiro longa-metragem da série, em que Ryan Dunn insere carrinhos de brinquedo no cu e precisa de auxílio médico para resgatá-los.

C:\Users\pedro\Downloads\Screenshot 2023-12-20 at 14-25-50 jackass prank pubic hair - Pesquisa Google.png

Ehren e sua barba de pelos pubianos.

Jackass se consolidou como um sortido conjunto de ações caóticas a fim de questionar a física, os valores, o conservadorismo e sobretudo a linguagem televisiva/cinematográfica sem austeridade. Sua relação com a memória está ligada também ao seu legado, que permitiu diversas adaptações e releituras em diversos países, incluindo o Brasil. O que difere Jackass de todos os outros – incluindo Wild Boyz, série protagonizada por Steve-O e Chris Pontius que, em seu episódio mais marcante, masturbam um bichano marítimo que para se defender expele um líquido branco – é como a série se destituía do pudor. Porém, ao usar seus corpos, optavam pela tensão sexual com o auxílio de um tapume criado pelo humor.

Após dois filmes que são como uma versão prolongada do programa, o terceiro filme tem o auxílio do uso do 3D. O lado escatológico é aflorado com a oportunidade de jogar na cara do público excrementos, mas também aproveitam para usar a tecnologia para colocar pênis voadores com o aval de ninguém menos que John Waters – com quem Knoxville trabalhou em A Dirty Shame (2004), e que participou do segundo filme da série em 2006. Este é o filme mais interessante da série já que, na liberdade que o programa vive, absolutamente qualquer adereço cênico pode ganhar destaque na imagem 3D. Curiosamente, o filme também parece ser o mais sóbrio no sentido artístico, com uso de coreografias e números musicais, algo entre um filme de Buster Keaton e um musical kitsch. Poderia ser um novo caminho para a série, mas o projeto entrou em hiato, retornando para um gran finale em Jackass Forever (2022) que volta ao formato de episódio prolongado.

C:\Users\pedro\Downloads\Screenshot 2023-12-20 at 14-23-20 wee man and preston lacy - Pesquisa Google.png

Preston Lacy e Steve-O: ligados por orifícios e escatologia

A grosso modo Jackass pode ser uma grande estripulia feita por homens se passando por adolescentes com dinheiro e aval para isso. Pegar um bugre e, enquanto o veículo quica sem parar, ganhar uma tatuagem que parece um grande borrão, lutar com um boxeador profissional em uma loja de departamentos ou usar um carrinho de rolimã para jogar o corpo em uma porção de cactos, além da questão exibicionista, mostra certa devoção ao ritual de colocar o corpo sempre em risco e também ao prazer da dor para uma plateia sempre sedenta. Aqui que se engloba o lado erótico e pornográfico da série. Da tortura à escatologia, da nudez e da intimidade que se dá na troca de olhares, risadas e toques ao voyeurismo, a grande proeza do grupo de Tremaine é de levar homens indo ao limite justamente no horário nobre da TV e para as grandes cadeias de cinema do mundo inteiro. Pautar, através do choque e da graça, temas intocáveis àquela época e ainda delicados até os dias de hoje.

Foto promocional de Jackass 3D.

[1] Disponíveis em Ex-Cinema: From a theory of experimental film and vídeo, UCPress. 2008.

[2] Foi o projeto mais ambicioso de Warburg, inacabado, que pretendia estabelecer “cadeias de transporte de imagens”, linhas de transmissão de características visuais através dos tempos, que carregariam consigo o pathos, emoções básicas engendradas no nascimento da civilização ocidental, nessas imagens. (Wikipedia).

[3] Disponível em https://periodicos.ufpe.br/revistas/index.php/icone/article/view/230176

FacebookTwitter

Monster (Hirokazu Kore-eda, 2023)

Por Pedro Tavares

Hirokazu Kore-eda consolidou seu trabalho ao longo dos anos com abordagens melodramáticas em conluio com tramas de temas diversos, mas com poucas mudanças de perspectiva quando se trata da posição do narrador – em comum, o ensejo de transparecer a consciência das emoções. Monster, seu novo filme, significa uma mudança importante neste método. Após uma trinca questionável com Shoplifters (2018), The Truth (2019) e Broker (2022), sendo estes dois últimos produzidos fora do Japão e que evidenciaram certo engessamento do trabalho, seu retorno ao país de origem traz novos desafios na construção das emoções além de elemento-suporte narrativo.

É pela montagem que Monster se estabiliza e é uma surpresa já que seus minutos iniciais apontam para um outro lugar. O filme deixa de ser um drama envolvendo o amor incondicional de uma mãe pelo filho e resolve, pela montagem, sufocar este fio narrativo e estilhaçar as emoções a partir do questionamento. Em diversas camadas, o filme de Kore-eda coloca as motivações e caráter de seus personagens em questão e aborta sua relação com o cotidiano tão tradicionais e que renderam filmes como Like Father, Like Son (2013), Our Little Sister (2015) e o próprio Shoplifters. Em nome do afeto e da dor, Monster oculta a linearidade para evidenciar os horrores da violência e seus desdobramentos.

Há golpes de vista bem interessantes no filme a notar que todas as camadas partem do mesmo princípio. Ou seja, seus personagens estão ligados diretamente e desta costura de sentimentos e traumas que passam pela culpa, amor, ausência e principalmente pela dor, construídos por Kore-eda em microcosmos e nos aproximando das raízes de cada atitude vista. Com o mesmo modus operandi há o seu contraponto, a relação direta com a segurança e como ela é instintiva. Com este extremo, Monster constrói uma relação intensa e devastadora tanto pela percepção infantil quanto pela vida adulta.

O novo filme de Kore-eda se estabelece como uma análise sobre a volatilidade de nossos julgamentos sobre o próximo e como nossa complexidade oferece saídas inesperadas. Em conluio com as mudanças de perspectiva, estas intenções são acentuadas e assim como Kurosawa e Hitchcock que passearam pelo mesmo intuito, colocam, em primeiro lugar, o espectador como grande conjecturador – e também como réu.  

FacebookTwitter

American Lightning (Kurtis Matthew Russell, 2023)

Nas últimas décadas o conceito de cinema independente, em especial o dos Estados Unidos, passou por grandes mudanças. Com a proliferação de câmeras portáteis e aparelhos de telefone celular e das redes sociais, o que estava ligado aos filmes feitos por pequenos grupos e essencialmente com baixo orçamento ganhou novas camadas. O último grande chamariz do cinema independente americano foi o mumblecore que como uma grande teia de amigos e artistas colocou nomes como os irmãos Duplass, Greta Gerwig e Joe Swanberg no mainstream. Nos últimos anos coletivos e movimentos espontâneos foram criados a exemplo do Folk Filmmaking criado pelo norte-americano Don Letz e que independentemente de onde o filme seja ou do seu estilo e gênero, o que caracteriza o filme “folk” é ele estar gratuitamente disponível na Internet. O mecanismo de distribuição, neste caso, é o principal baluarte para a criação de um coletivo. Outros sites e iniciativas como o No Budge que reúne filmes de realizadores independentes via streaming e o grupo Kinet, que conta com integrantes canadenses como Kurt Walker e Neil Bahadur, por exemplo, transparecem como as redes sociais e ferramentas de exibição fundem em como cineastas lidam com a internet para salientar suas produções independentes.

Vindo de Portland, Kurtis Matthew Russell dirigiu seu primeiro longa Silent Monologues e o disponibilizou online no primeiro semestre de 2023. O filme apresenta um drama familiar com a crueldade como sugestão para outros gêneros como a comédia e o film noir. A partir do uso da casa como um grande palco, Russell dialoga diretamente com a assertividade da imagem digital – naturalmente insuave e em certos momentos, violenta. Em American Lightning, seu novo filme, também lançado em 2023, Russell faz desta rota como melhor forma de abordagem. É da ironia que o diretor tira seus comentários sobre o mundo artístico e como a banalização de seus elementos externos podem acabar com qualquer experiência. O processo de produção, exibição e divulgação ganham contornos e labirintos existenciais que acabam por destituir o que é o artista.

Por se tratar de um filme essencialmente independente, o do it yourself deixa claras marcas no discurso sobre o comércio de obras artísticas, a presunção do público e camadas que iludem aqueles que fazem parte de microcosmos que permitem a dissociação do real a partir da falsa ideia de sucesso. E, suportado por uma entrevista com um artista em conflito que conta suas desventuras, Matthew Russell reconstituí estas histórias com acidez e deboche que curiosamente remetem a referências do cinema independente americano de outrora como Todd Solondz, Peter Bogdanovich e Kevin Smith.

O “raio” americano do título do filme é uma boa forma de alusão às sinapses de artistas dispostos a acertar um ponto e que na cruel prática da automanipulação – que é inerente ao ambiente de trabalho – almejam ser alguém para os outros, colocando assim a celebração à arte, e em especial o cinema americano como um grande objeto de estudo. Nele, Matthew Russell coloca em xeque a intenção de produções em cadeia, de autoria e, claro, do ego e talento dos realizadores.

FacebookTwitter

Tia Virgínia (Fabio Meira, 2023)

Por Pedro Tavares

Um corpo presente e um fantasma em forma de lembrança tomam o palco. Sim, o palco, pois Tia Virginia evoca a história familiar num jogo cruel de similaridades com o imaginário de muitas famílias brasileiras como uma peça teatral pelo trato com o espaço cênico. Os personagens vêm e vão, ganham seu cosmo de atenção e flutuam sempre entre o protagonismo e antagonismo com intensidade.

O trabalho de Fabio Meira em concatenar lembranças, mágoas e conflitos vai além de mediar ritmo e gestos destes corpos em constante verborragia. Nivelar rigorosamente as mudanças de tom dos assuntos como uma dicotomia equilíbrio-desiquilíbrio como retrato do cotidiano de uma família que encontra a pacificidade nas frivolidades e que tem Virginia como uma presença a mediar os espaços e tempo e quando e onde a falsa alegria durará.

Enquanto estes corpos passeiam pela casa o grande enigma está em como esta família possui um ideal de perfeição – cada um à sua maneira – e as melhores resoluções, mas sempre a ignorar o corpo presente. Dado este problema, entra a questão da função das imagens que desde sua origem nega-se a implementar a observação fixa e preza pelo dinamismo presumivelmente cinematográfico. Por mais que pareça encontrar um labirinto que necessita de uma fácil e rápida equação para a fuga em diversos momentos, o filme de Meira mantém pelo seu rigor o maior de seus efeitos: enquanto todos andam e falam, o grande estopim está estático, frio, a observar.

E como comentário à essa frieza, Tia Virgínia é um filme que possui certa barbaridade a saber que está a identificar diversos casos dentro de um escopo e que isto potencializa sua eficácia sem que entre em um lugar de fragilidade como discurso. Independente de como se constrói e se localiza este palco, o que está em evidência aqui é como Meira media os jogos de palavras e gestos e como eles podem representar a implosão familiar pela solidez de suas representações.

FacebookTwitter

Interview: Lewis Klahr

Pedro Tavares

Click for portuguese version

Since the 1970s, prolific American director Lewis Klahr has combined animation techniques with avant-garde cinema, which in recent years has helped to retell and reread modern American history. Owner of a unique work, Klahr walks through pillars of American pop culture such as comics, pulp fiction, film noir and has a close relationship with sound – or lack of it. I talked a little with Lewis about his work in general, and, mainly, about his relationship with silence, dyssynchrony, absence, noise, tracks, etc.

This issue of the magazine is about cinema and silence.

Hmmmmnnnn…… I think film silence is still a highly specific sound. For instance, I recently completed a soundtrack for a new film titled Thin Rain. Inspired by Film Noir, Thin Rain tells the story of an amnesiac protagonist who loses his memory after being hit in the back of his head by a gun handle. Before this attack, the soundtrack has symphonic music. Once the protagonist loses his memory the music ends and is replaced by the white noise sound of a blank analog 16mm optical track. We call this optical “blank” but it is full of sound: pops, scratches, and hisses!

Silence was something that caught my attention when I saw one of your films for the first time in a theater. I believe it was Sixty-Six.

I primarily use silence in Sixty-Six as a conventional separator of the individual films, a short duration (5-10 seconds) palate cleanser. But the film Ambrosia, which occurs in the latter part of Sixty-Six, is silent and required careful sequencing to get it effectively positioned because getting a silent film to effectively follow a sound film is an aesthetic challenge. The films in Sixty-Six that directly precede Ambrosia needed to gradually quiet down to provide a successful lead in. Whereas, the film that followed Ambrosia, and returned to sound, had much greater flexibility in terms of what its soundtrack could contain.

Sixty-Six.

 
I would like, if possible, if you could talk a little about the relationship of duplicity that your images involve and the path that I feel is emancipated
from the composition of the images by your use of sound.

I wouldn’t describe my relationship to sound and image as “duplicitous” but that’s an interesting thought. I’m not very clear about what you’re describing or asking but taking my best guess at what I suspect you mean– I am rarely interested in creating a “realistic” or full soundscape. Often my approach results in a limited or focused use of sound in which only some parts of the sound that an image may suggest are represented aurally. The parts of the image that are not represented remain silent and visual.

In your films there is usually a very consistent break in silence, like your most recent film The Blue Rose of Forgetfulness, which reminds me of a musical and is soon at the confluence of silence and a narrative in very strong codes.

In The Blue Rose of Forgetfulness I think the clearest example of what you are asking about occurs in the 4th film of the series— Blue Sun. This film uses as its source material images from a Secret Agent comic book from the late 1960’s. I’ve used a lightbox to illuminate both sides of the comic book page and reveal superimpositions. In my shooting I then seek to harvest the most interesting of these superimpositions.

Blue Sun’s soundtrack has 3 different sections with the first being the playing in reverse of Sibelius’ The Swan of Tuonella. After 8 minutes the piece concludes and this lush orchestral music gives way to an ultra mundane streetscape I recorded of birds chirping and cars passing that lasts for approximately 5 minutes. After this, for only the last 30 seconds of imagery, there is silence which creates a kind of hush, or an absence, like the air escaping a balloon. Full viewer attention is now  briefly given to the images. All 3 approaches to sound significantly alter the way the viewer experiences the image. This shifting of viewer engagements throughout all my films is a major part of their aesthetic engagement and structuring.

I agree I can be described as making “musicals”. On the most obvious level when I use pop songs as my soundtracks the lyrics usually tell a story and often act the way dialogue or voice over narration would in a narrative film. But just as in narrative filmmaking where the script is not the film, the lyrics are not the film here either. My images alter, contradict and also support the lyrics. For example, in my 2010 film Nimbus Smile I use the iconic Velvet Underground song Pale Blue Eyes as the soundtrack. However, the comic book female I’m using as my protagonist very clearly has black eyes not blue eyes. This raises questions about whether she’s the woman being sung about. Simultaneously the mise en scene is filled with images that contain different shades of blue. I hope the audience will notice and question why this color displacement of blue from the female protagonist’s eyes in the lyrics to the décor is occurring and what it might express.

The Blue Rose of Forgetfulness

In Circumstantial Pleasures it is not a change to silence that happens but a large change that occurs in a different way through the train trip and the sounds of warning announcements and the engine itself. How do you think about this type of composition?

Circumstantial Pleasures differs from most of my other features in that it is concerned with describing the contemporary world and only the very recent past. High Rise, the train film you refer to above, is the only film in the entire series that doesn’t use music for its soundtrack. It is a live action film shot on my phone in China during the summer of 2016 on a high speed train traveling to Beijing. Filmed in one continuous, nearly two minute shot are the passing towers of a massive apartment complex that is under construction. This apartment complex has no audible sound. The sync sound heard in High Rise is of the offscreen space of the train tracks and the interior train car in which I am traveling. This film provides a strong contrast from the other films that have preceded it in the series since none of them are live action and all use single framed, collage imagery. But a funny thing happens– the buildings under construction are so cartoon like in appearance that various audience members have asked me what exactly they are seeing—whether High Rise is also an animation and not a live action film. 

What fascinates me about your films is that there is this kind of sound displacement, but at the same time there is a very strong connection with a specific time frame such as Film Noir.  Your soundtracks reinforce a journey into the past, but what you do with silence is a work that is based on contemporaneity in my view, especially when we talk about experimental filmmakers. Do you think there’s any sense in that?

I do, it’s an interesting perception. Being an associational thinker and montagist I very much aim to create experiences that can be understood simultaneously in a number of different ways, even if they may appear to be contradictory or paradoxical. I also include visual anomalies in my films of present day imagery to make it clear that my films despite being historically descriptive are being made in the present.

Circumstantial Pleasures

Does sound in experimental cinema have any influence on your work?

Yes, of course. The most obvious influence being my use of music, both pop songs and classical. I am especially indebted to the films of Kenneth Anger, Bruce Conner, Jack Smith, Ken Jacobs and Harry Smith. The way all of the above filmmakers used music as a collage source material and also as an essential element of their montage was seminal for me as a developing filmmaker.

However, I think it’s worth noting that when I decided to make my film soundtracks as music-centric as they’ve been for the last 30 years, this was considered a very unacceptable choice by the experimental film world. There was this idea (less predominant now but still existing) that being music-centric was outmoded, and too easy an approach (like it was cheating LOL). That being music-centric was something experimental film had outgrown and left behind, rather than being a genre choice with a rich and fertile tradition and history of its own with very high standards of effectiveness just like any other genre. 

Logically, your films are intrinsic to the experience of reading comics alongside the projection that can be composed of a soundtrack or not.

My characters often speak in the word balloons of comic books. Sometimes what they speak is not meant to be understood which is why words are crossed out or sentences are interrupted. These speech bubbles are merely meant to indicate that speech is occurring (there are many similar moments in narrative films where dialogue is inaudible). Also, sometimes I cut out a comic book character and I leave attached some words they are speaking in the story they from which they were taken. These words rarely relate to the story my film is telling. However, these word remnants do clearly suggest the history of my appropriated characters. I want the audience to think about this history of the original context my characters existed in.

My characters speaking in comic book word bubbles rarely speak in voices heard on the soundtrack. I really enjoy this kind of displacement of having sound appear visually. The specificity of this visualization I try to make as precise as possible. For instance, there is a moment in Alcestis, another film from The Blue Rose of Forgetfulness, where the title character has an orgasm and she says “Oh, Oh, Oh”. This is handwritten in pen whereas normally, when Alcestis speaks, it appears as typed words in speech bubbles. The handwriting conveys both the intimacy and individuality of this sexual moment.

And I would like to know how much you want to control the spectator’s interpretation of your film’s meaning and whether this is a consideration for you during the process of creation?

Yes, I do consider the reception of the spectator while making my films. For example, the description of the dialogue in Alcestis I’ve just given above might or might not be understood by an audience. I’m often telling myself a story in my aesthetic choices that I know will only be partially understood by most of my viewers. Through long experience of working this way I’ve learned that each individual spectator will assemble the images to the idiosyncratic specifics of their interests, experience and subjectivity. In effect they often make up their own version of the story that has little to do with the one I’m trying to convey. I am comfortable with this openness of interpretation and consider it a strength of my storytelling.

Speaking of The Blue Rose of Forgetfulness specifically, how did you come up with the soundtrack for the film and how was working with these songs as a dramatic device? There is a very interesting use of de-sync in it.

As I created the sequence for The Blue Rose of Forgetfulness I found the flow of the music and sound became the priority for how the films would allow me to sequence them. I was shocked by how specific this flow was. It is probably the strongest sequencing of my films sonically that I have ever created. I’m especially pleased with the flow of the first 4 films—Monogram; Swollen Kisses; Capitulation’s Promise; Blue Sun. This is not something I intentionally set out to accomplish but discovered as an essence/aspect of these films as I attempted to sequence them. It was very surprising to me– I never would have thought to sequence them the way I have. For instance, I imagined that Capitulations Promise, the film with the Lana Del Rey song, could never follow Swollen Kisses the film with the Julie London songs. I thought they would need to be separated because of their similarity of feeling and mood. Instead, I discovered the effectiveness of their proximity intuitively through an arduous process of trial and error which required multiple viewings of different trial sequences. There was an editorial ruthlessness and honesty required to get it right. Very hard work!

As for what you’re calling de-sync (I have not heard this term before and like it very much!) I hold the bar very high in terms of having reasons to use a particular piece of music, especially pop songs. It is often important that the image moves in and out of sync with the music’s beat to create a contrast and counterpoint rhythmically. As I’ve stated I am very interested in changing a viewer’s engagement of the image as a film progresses– so moving from music to silence or sound effects, often produces a significant change that alters the way the images are absorbed and understood by a viewer. I also often edit images to be very active and rapid against a brief silent pause in the music itself. My edits are continuing the rhythm and creating a silent sound that fills that aural gap visually.

Speaking more of de-sync, how do you make it an option in your films?

Swollen Kisses is a good example of how I work with what you are calling de-sync. I created a mash-up of Julie London songs where she is literally singing with herself. I had the idea to do this because I was attentive to Julie London’s phrasing and the distinctly excessive length of time she pauses in between lines of the lyrics. This silent pause was lengthy enough to allow another lyric from a different song of London’s to be sung. The resultant juxtaposition of the lyrics of 2 romantic ballads then creates a new, alternate version of both songs. There is a narrative, poetic openness offered by this approach that encourages viewer interpretation– a new third stream that contains continuities and discontinuities just as my images do.

FacebookTwitter

DO SILÊNCIO ÀS PALAVRAS DOS OLHOS – Disintegration Loops 1.1

Por Pedro Tavares

(…) pela primeira vez, a imagem das coisas é também a da sua duração. 

(André Bazin)

Em 11 de setembro de 2001 enquanto os destroços das torres do World Trade Center expurgavam fumaça por horas e horas a fio, William Basinski usou sua câmera ao cair do dia para, em seu terraço no Brooklyn, Nova Iorque, fazer de Disintegration Loops 1.1 a antecipação da duração em arquivo. Ao filmar a decomposição do mundo, os cineastas mostram sua reconstituição num universo de arquivo, de modo que a dimensão mortífera transmuda-se em análise, mas também em fórmula conjuratória e rito de passagem (MICHAUD, 2014) e, para Basinski é nítida a dimensão mortífera e o rito de passagem da maneira que o diretor compõe o som do filme. 

Se o simbólico cortejo dos corpos a subirem ao céu como fumaça naturalmente viria do luto, interromper o silêncio seria um ultraje, então Basisnki subverte a falta de expressividade da observação em um uma marcha fúnebre própria, repetitiva e principalmente dolorida. Philipp-Alain Michaud também aborda estes temas quando discorre sobre o trabalho de Francis Dubreuil:

A monotonia, a repetição e a falta de expressividade são as vias que conduzem ao conhecimento do objeto. A filmagem dessas imagens repousa num processo de apagamento generalizado, tanto do cinegrafista diante do que ele filma quanto do objeto filmado em seu ambiente, onde ele fica camuflado: nunca oferecido na visibilidade plena que define o espaço figurativo, ele se mantém num retraimento que garante a realidade de seu comparecimento. É assim que se produzem eventos visuais puros, que são esvaziados de qualquer antropomorfismo. 

O apagamento generalizado neste momento está em um campo difundido e a definição de Basinski do espaço está ao vencer o contracampo e desaparecer nele enquanto todo o Mundo olhava para este mesmo ponto em diversos planos e distâncias. Para Benjamin, a câmera, à maneira de instrumento cirúrgico, penetra na textura das coisas. Disintegration Loops 1.1. é um filme que conjectura com a noção de loop como o próprio título entrega, mas cria suas camadas de textura e dor. Estamos diante de uma partida sem fim, de diálogo direto entre o lamento e a fumaça que se esvai dos destroços como uma sintaxe narrativa da dor na mesma medida em que coloca em crise a perspectiva de um realizador-testemunha que está em completo silêncio. Reside aqui a duplicidade da epígrafe de Bazin e a duração das coisas e a ilusão de um efeito de salvaguarda que também atesta um processo de apagamento generalizado a citar novamente Michaud. 

Estes pequenos apontamentos são para dialogar com a dicotomia da força dos planos e como a música também composta por Basisnki se emancipa do plano como maneira de colocar a imagem em si como uma imagem – em movimento –  silênciosa, enlutada, dura, mortífera. Sua marcha fúnebre pode ser um complemento, mas funciona como um elemento móvel ao horror. O que está na superfície da tela ganha per si o significado de uma ideia de duração, de contexto histórico, de arquivo. Enquanto Basinski faz deste fim de tarde que lentamente apaga a fumaça por conta da escuridão de uma cidade que invariavelmente está sem luz, num mundo de aparência, vale colocar que o cinema se faz metáfora do mundo (MICHAUD, 2014). 

O deslocamento se justifica justamente por não ser um espetáculo diário como se estivéssemos vendo uma pessoa andando na rua com uma música artificial de fundo e sem questionar, acreditamos que ela está ali para embalar o apagamento do cinegrafista, da montagem etc. Disintegration Loops 1.1. é, antes de tudo, sobre a imparidade do cotidiano, o contato literal como fogo e a morte que revela ao apagar das luzes de um dia ensolarado um outro mundo que Basisnki conlui na disparidade que sua marcha faz com um lamento silencioso que as imagens oferecem. A sintaxe da tragédia se dá na dicotomia silêncio-som e câmera-cinegrafista. Um filme de repetições de um lento movimento, mas de complexidades nas camadas da construção política, humana e cinematográfica. 

FacebookTwitter

ENTREVISTA: LEWIS KLAHR

Por Pedro Tavares

English version

Desde a década de 70 o prolífico realizador americano Lewis Klahr une técnicas de animação ao cinema vanguardista que através dos últimos anos ajudou a recontar e reler a história americana moderna. Dono de um trabalho único, Klahr passeia por pilares da cultura pop americana como os quadrinhos, pulp fiction, o film noir e tem uma relação estreita com o som – ou a falta dele. Conversei um pouco com Lewis sobre o seu trabalho de modo geral, e, principalmente, sobre sua relação com o silêncio, a dessincronia, a ausência, o ruído, trilhas etc.

Oi Lewis, obrigado por aceitar o nosso convite. Esta edição da revista é sobre cinema e silêncio.

Hmmm…Acho que o silêncio no filme ainda é um som altamente específico. Por exemplo, recentemente completei a trilha sonora de um novo filme intitulado Thin Rain. Inspirado no Film Noir, Thin Rain conta a história de um protagonista amnésico que perde a memória após ser atingido na nuca pelo cabo de uma arma. Antes desse ataque, a trilha sonora tem música sinfônica. Uma vez que o protagonista perde a memória a música acaba e é substituída pelo ruído branco de um faixa óptica analógica de 16 mm em branco. Chamamos isso de “branco” óptico, mas está cheio de som: estalos, arranhões e assobios!

O silêncio foi algo que me chamou a atenção quando vi um de seus filmes pela primeira vez em um cinema. Acho que foi Sixty-Six.

Eu uso principalmente o silêncio em Sixty-Six como um separador convencional do filmes individuais, um limpador de palato de curta duração (5-10 segundos). Mas o curta Ambrosia, que ocorre na última parte de Sixty-Six, é mudo e exigia um sequenciamento cuidadoso para posicioná-lo efetivamente porque obter um filme mudo seguir efetivamente um filme sonoro é um desafio estético. Os filmes em Sixty-Six que precedem diretamente Ambrosia precisavam gradualmente acalmar para ter algum sucesso. Considerando que, o filme que se seguiu Ambrosia e voltou a ter som, teve uma flexibilidade muito maior em termos de o que sua trilha sonora poderia conter.

Sixty-Six.

Eu gostaria, se possível, que você falasse um pouco sobre a relação de duplicidade imagem-som, já que suas imagens envolvem um caminho que sinto que é de emancipação justamente pelo uso do som.

Eu não descreveria minha relação com som e imagem como “dúplice”, mas esse é um pensamento interessante. Eu não estou muito claro sobre o que você descreve, mas tentando adivinhar o que eu suspeito que você queira dizer, eu raramente estou interessado em criar uma paisagem sonora “realista” ou completa. Muitas vezes minha abordagem resulta em um uso limitado ou focado de som em que apenas algumas partes do som que uma imagem pode sugerir são representadas auditivamente. Partes da imagem que não são representadas permanecem silenciosas e visuais.

Nos seus filmes costuma haver uma quebra de silêncio muito consistente, como o seu filme mais recente A Rosa Azul do Esquecimento, que me lembra um musical e logo se encontra na confluência do silêncio e de uma narrativa em signos fortíssimos.

Em A Rosa Azul do Esquecimento (The Blue Rose of Forgetfulness, 2022) acho que o exemplo mais claro do que você está perguntando sobre ocorre no quarto filme da série – Blue Sun. Este filme utiliza como material de origem imagens de uma história em quadrinhos do Agente Secreto da final dos anos 1960. Usei uma caixa de luz para iluminar os dois lados da história em quadrinhos e revelar sobreposições. Em minhas filmagens, procuro então colher o mais interessante dessas sobreposições. A trilha sonora de Blue Sun tem 3 seções diferentes, sendo a primeira a tocando ao contrário de O cisne de Tuonella, de Sibelius. Após 8 minutos a peça termina e esta exuberante música orquestral dá lugar a um ultra mundano som de paisagem urbana que registrei de pássaros cantando e carros passando que dura por aproximadamente 5 minutos. Depois disso, apenas nos últimos 30 segundos de imagens, há um silêncio que cria uma espécie de vazio, ou uma ausência, como o ar a escapar de um balão. A atenção total do espectador agora é brevemente dada às imagens. Todas as 3 abordagens ao som alteram significativamente à forma como o espectador experimenta a imagem. Essa mudança de envolvimento do espectador ao longo de toda a minha filmografia é uma parte importante de seu envolvimento e estruturação estética para mim. Concordo que posso ser descrito como fazendo “musicais”. No nível mais óbvio quando uso músicas pop como trilhas sonoras, as letras geralmente contam uma história e muitas vezes agem da mesma forma que o diálogo ou a narração de voz em um filme narrativo. Mas, assim como no cinema narrativo, em que o roteiro não é o filme, as letras também não são o filme aqui. Minhas imagens alteram, contradizem e também apoiam as letras. Por exemplo, em meu filme de 2010, Nimbus Smile, eu uso a icônica música do Velvet Underground, Pale Blue Eyes, como trilha sonora. No entanto, a mulher dos quadrinhos que estou usando como protagonista claramente tem olhos negros, não olhos azuis. Isso levanta questões sobre se ela é a mulher sendo cantada sobre. Simultaneamente a encenação é preenchida com imagens que contêm diferentes tons de azul. Espero que o público perceba e pergunte por que esse deslocamento de cor do azul dos olhos da protagonista feminina na letra está ocorrendo e o que ela pode expressar.

A Rosa Azul do Esquecimento

Em Prazeres Circunstanciais (Circumstantial Pleasures, 2020) não é uma mudança para o silêncio que acontece, mas uma grande mudança que ocorre de forma diferente através de uma viagem de trem com os sons de avisos e do próprio motor. Como você pensa sobre esse tipo de composição?

Prazeres Circunstanciais difere da maioria dos meus outros filmes porque é preocupado em descrever o mundo contemporâneo e apenas o muito recente passado. High Rise, o filme de trem que você mencionou acima, é o único filme da série inteira que não usa música para sua trilha sonora. É uma ação ao vivo, filmado no meu telefone na China durante o verão de 2016 em alta velocidade no trem viajando para Pequim. Filmado em um plano contínuo de quase dois minutos são as torres de passagem de um enorme complexo de apartamentos que está sob construção. Este complexo de apartamentos não tem som audível. O som de sincronização ouvido em High Rise é do espaço fora da tela dos trilhos do trem e do vagão de trem interior em que estou viajando. Este filme fornece uma forte contraste com os outros filmes que o precederam na série, já que nenhum deles são de ação ao vivo e todos usam imagens de colagem de quadro único. Mas uma coisa engraçada acontece – os prédios em construção são tão caricaturais como em aparência que vários membros da audiência me perguntaram o que exatamente eles estão vendo – se High Rise também é uma animação e não um filme de live-action.

O que me fascina nos seus filmes é que existe esse tipo de deslocamento, mas ao mesmo tempo há uma ligação muito forte com um período de tempo específico, como o Film Noir. Suas trilhas sonoras reforçam uma jornada no passado, mas o que você faz com o silêncio é um trabalho que se baseia na contemporaneidade a meu ver, principalmente quando falamos de cineastas experimentais. Você acha que há algum sentido nisso?

Sim, é uma percepção interessante. Ser um pensador associativo e montagista –  pretendo muito criar experiências que possam ser compreendidas simultaneamente de várias maneiras diferentes, mesmo que pareçam contraditóras ou paradoxais. Eu também incluo anomalias visuais em meus filmes de imagens atuais para deixar claro que meus filmes apesar de serem historicamente descritivos estão sendo feitas no presente.

Prazeres Circunstanciais

O som do cinema experimental tem alguma influência no seu trabalho?

Sim, claro. A influência mais óbvia é o meu uso da música, tanto pop e clássicos. Sou especialmente grato aos filmes de Kenneth Anger, Bruce Conner, Jack Smith, Ken Jacobs e Harry Smith. A maneira como todos eles usaram a música como fonte de material de colagem e também como elemento essencial de sua montagem foi seminal para mim como desenvolvimento para ser um cineasta. No entanto, acho que vale a pena notar que quando decidi as trilhas sonoras tão centradas na música como têm sido nos últimos 30 anos, isso foi considerado uma escolha muito inaceitável pelo mundo do cinema experimental. Lá era essa ideia (menos predominante agora, mas ainda existente) que ser music-centric estava fora de moda e era uma abordagem muito fácil – como se estivesse trapaceando (risos). Que ser centrado na música era algo que o filme experimental havia superado e deixado para trás, ao invés de ser uma escolha de gênero com um rica e fértil tradição e história própria com altíssimos padrões de eficácia assim como qualquer outro gênero.

E logicamente, seus filmes são intrínsecos à experiência de leitura de histórias em quadrinhos junto com a projeção que pode ser composta por trilha sonora ou não.

Meus personagens costumam falar na palavra balões das histórias em quadrinhos. às vezes o que eles falam não é para ser entendido e é por isso que as palavras são riscadas ou as frases são interrompidas. Esses balões de fala servem apenas para indicar que a fala está ocorrendo – há muitos momentos semelhantes em filmes narrativos onde o diálogo é inaudível. Além disso, às vezes eu corto um personagem de quadrinhos e deixo em anexo algumas palavras que eles estão falando na história de onde foram tiradas. Essas palavras raramente se relacionam com a história meu filme está dizendo. No entanto, essas palavras sugerem claramente a história dos meus personagens apropriados. Eu quero que o público pense sobre esta história do contexto original em que meus personagens existiram. Meus personagens falando em balões de palavras em quadrinhos raramente falam em voz alta. Eu realmente gosto desse tipo de deslocamento de ter o som aparecendo visualmente. A especificidade desta visualização que tento fazer como algo preciso e possível. Por exemplo, há um momento em Alceste, outro filme de A Rosa Azul do Esquecimento, onde a personagem-título tem um orgasmo e ela diz “Oh, Oh, Oh”. Isso é escrito à mão em caneta, enquanto normalmente, quando Alceste fala, aparece como palavras digitadas em balões de fala. A caligrafia transmite tanto a intimidade quanto a individualidade desse momento.

O quanto você quer controlar a interpretação do significado do seu filme e se isso é uma consideração para você durante o processo de criação?

Sim, considero a recepção do espectador ao fazer meus filmes. Por exemplo, a descrição do diálogo em Alceste que acabei de falar pode ou não ser compreendido por um público. Muitas vezes estou dizendo a mim mesmo uma história em minhas escolhas estéticas que sei que serão apenas parcialmente compreendidas pela maioria dos meus espectadores. Através de uma longa experiência de trabalho desta forma, eu tenho aprendido que cada espectador irá montar as imagens para especificidades idiossincráticas de seus interesses, experiências e subjetividades. Em efeito, muitas vezes inventam sua própria versão da história que tem pouco a fazer com o que estou tentando transmitir. Estou confortável com esta abertura de interpretação e considero isso um ponto forte da minha narrativa.

Falando especificamente da A Rosa Azul do Esquecimento, como você criou a trilha sonora do filme e como foi trabalhar com essas músicas como dispositivo dramático? Há um uso muito interessante de dessincronização [de-sync] nele.

Ao criar a sequência [de filmes] para A Rosa Azul do Esquecimento, encontrar o fluxo da música e do som tornou-se a prioridade de como os filmes me permitiriam sequenciá-los. Fiquei chocado com a especificidade desse fluxo. É provavelmente o sequenciamento mais forte dos meus filmes sonoramente que eu já criei. Eu sou especialmente satisfeito com o fluxo dos primeiros 4 filmes – Monogram, Swollen Kisses, Capitulations Promise e Blue Sun. Isso não é algo que eu intencionalmente defino para realizar, mas descubro como uma essência/aspecto desses filmes enquanto eu tentava sequenciá-los. Foi muito surpreendente para mim – eu nunca teria pensado em sequenciá-los do jeito que eu fiz. Por exemplo, eu imaginei que Capitulations Promise, o filme com a música da Lana Del Rey, nunca poderia seguir o filme Swollen Kisses com as canções de Julie London. Eu pensei que precisariam ser separados por causa de sua semelhança de sentimento e humor. Em vez disso, descobri a eficácia de sua proximidade intuitivamente através de um árduo processo de tentativa e erro que exigia múltiplas visualizações de diferentes sequências de teste. houve uma grande crueldade e honestidade necessárias para acertar. Trabalho muito duro! Quanto ao que você está chamando de “de-sync”, nunca ouvi esse termo antes e gostei muito! Eu mantenho a exigência muito alta em termos de ter motivos para usar uma determinada peça de música, especialmente canções pop. Muitas vezes é importante que a imagem entra e saia de sincronia com a batida da música para criar um contraste e contraponto ritmicamente. Como já disse,  estou muito interessado em mudar o envolvimento do espectador com a imagem à medida que o filme avança – então passando da música para o silêncio ou efeitos sonoros, muitas vezes produz uma significativa mudança que altera a forma como as imagens são absorvidas e compreendidas por um espectador. Eu também costumo editar imagens para serem muito ativas e rápidas em uma breve pausa silenciosa na própria música. Minhas edições estão continuando o ritmo e também criando um som silencioso que preenche visualmente essa lacuna auditiva.

Falando mais em de-sync, como você torna isso uma opção em seus filmes?

Swollen Kisses é um bom exemplo de como trabalho com o que você chama de de-sync. Criei um mash-up de músicas da Julie London onde ela é literalmente cantando consigo mesma. Tive a ideia de fazer isso porque estava atento ao fraseado de Julie London e o tempo claramente excessivo que ela pausas nas entrelinhas da letra. Esta pausa silenciosa foi longa o suficiente para permitir que outra letra de uma música diferente de London fosse cantada. A justaposição resultante das letras de 2 baladas românticas cria uma nova versão alternativa de ambas as músicas. Há uma abertura narrativa, poética oferecida por esta abordagem que encoraja a interpretação do espectador – um novo e terceiro fluxo que contém continuidades e descontinuidades assim como minhas imagens.

FacebookTwitter

Anhell69 (Theo Montoya)

Visto no Olhar de Cinema, 2023

Por Geo Abreu

“Me encantei pelo cinema porque era o único lugar em que eu podia chorar”

Theo Montoya é o narrador de seu filme, que começa e termina em seu quarto na cidade de Medellín, Colômbia. O amor que vai descobrindo pelo cinema o leva a registrar os momentos que divide com os amigos, muitos deles criativos: se transvestem, se maquiam ou simplesmente curtem roupas e acessórios.

Montoya então pensa num filme: num universo em que humanos e fantasmas se comunicam, ele e seus amigos produzirão festas e encontros espectrofílicos, a partir de um app de paquera específico. Logo que um humano transa pela primeira vez com um fantasma, a prática se transforma em febre entre os jovens, que passam a ser perseguidos e presos por isso.

Durante o casting proposto para este filme somos apresentados aos personagens: todos homens, jovens e gays. Entrevistados, conhecemos um pouco de suas histórias e desejos. Temas perturbadores surgem destas conversas: suicídio, vício, abandono e a prática de pequenos delitos ajudam a compor um retrato daquela juventude.

O diretor finalmente acha seu protagonista: Cami, figura que usa o nome de anhell69 nas redes sociais. Dias depois da entrevista, Cami está morto e uma espécie de maldição se abate sobre o filme espectrofílico: vários dos participantes do casting desaparecerem. Daí em diante a ideia do filme se transforma e Montoya passa a investigar o desparecimento violento de tantos rapazes da sua idade em Medellín.

A ideia dos fantasmas se mantém. As imagens aéreas da cidade à noite ajudam a criar o efeito de distopia, com figuras de olhos vermelhos e vestidas de preto que guardam a cidade de cima, como esperando o sinal de suas próximas vítimas. O diretor passa a percorrer a cidade num carro fúnebre dirigido por um de seus ídolos, o diretor Victor Galvíria. O cinema colombiano então é um rabecão. Dentro dele, num caixão, está o futuro. No guidon, seu passado.

Tão profundo quanto plasticamente belo, Anhell69 transforma garotos em anjos perdidos numa cidade amaldiçoada, com fantasmas sempre à espreita. Uma juventude que é pintada meio morta em vida, partilhando sonhos simples e impossíveis. Ao mesmo tempo, sinaliza o terror cotidiano de tantas cidades latino-americanas entregues a falsas guerras anti-drogas, cujas engrenagens parecem servir a um genocídio em massa.

Transformar a dor em algo tão bonito quanto esse filme deve ser também uma maldição terrível.

Um abraço, Montoya.

FacebookTwitter

Festival de Brasília: A Invenção do Outro

Por Geo Abreu

Longa-documentário, vencedor da Competitiva do 55º Festival de Brasília, acompanha expedição da Funai e o reencontro entre parentes Korubo separados por disputas com etnia vizinha.

O filme começa com informações em cartelas, salientando a presença no comando da expedição, realizada em 2019, do indigenista Bruno Pereira, especialista em populações indígenas que vivem em isolamento, na época ainda técnico ligado à FUNAI. Em junho de 2022 Bruno acompanhava o jornalista norte-americano Dom Phillips numa viagem pelo Vale do Javari quando ambos foram assassinados.

Apesar desse fundo trágico, na qual a morte de Bruno se confunde com a própria política indigenista brasileira, em eterno conflito com os interesses do agronegócio, o documentário se ocupa da existência dos personagens Korubo em relação com a equipe com a qual dividem a jornada registrada pelo filme.

Estabelecendo logo de início a escolha por planos fechados em detrimento de planos abertos, geralmente usados quando se filma na Amazônia, Bruno Jorge aposta numa fotografia de detalhe, bem aproximada. Assim estabelece diferenças entre corpos brancos/corpos indígenas e também salienta costumes: cortes de cabelo, adereços, pinturas.

Já no momento do encontro com a equipe a língua se impõe como outro marcador de diferença. Um dos técnicos da Funai é responsável por traduzir o que dizem os Kurubo, o que acompanhamos via legendas. Em meio a brincadeiras muito masculinas, de zombaria sobre a troca de irmãs ou de bravatas sobre disputas mano a mano, a embarcação segue levando a equipe em busca dos parentes arredios de Xuxu e Takvan.

Interessante notar que a equipe da Funai não seja formada apenas por homens brancos, mas também por indígenas de diferentes etnias e pelos quais o documentário pouco se interessa. Sem eles seria quase impossível transitar pelos rios ou estabelecer acampamentos com a agilidade empregada pelo grupo. E eles seguem ali, o filme inteiro em segundo plano, enquanto a câmera se ocupa, quase sem pudor, dos Kurubo, estabelecendo uma relação de proximidade que não vemos ser negociada em momento algum, talvez porque eles sim representem a diferença ou, ao contrário, a semelhança de uma imagem idealizada de indígenas selvagens e ingênuos.

Entre encenações de batalhas, da apresentação de usos e também da arte das bordunas carregadas pelos Korubo – conhecidos vulgarmente como “índios caceteiros” por suas habilidades na fabricação e manejo de bordunas – o filme preenche o tempo de espera pelo reencontro entre parentes com imagens de caça e trato de animais selvagens, como macacos e preguiças, com o objetivo de alimentar o grupo. Cru e cozido e relações de predação como ontologia vem à mente quando estes mesmos animais reaparecem na história, agora em relações amistosas, quase amorosas, fazendo parte das famílias.

O privilégio de observar estilos de vida tão diversos e organizar racionalmente a coexistência desses modos de relação com o mundo é o que nos ganha emocionalmente na relação com o filme dirigido por Bruno Jorge. As sequências do reencontro entre as famílias e seus irmãos perdidos são tão afetuosas, barulhentas e humanas quanto a presença avassaladora de mosquitos, insetos, aves e demais existências que compõem a floresta amazônica. É instintivo apalpar o corpo para espantar as carapanãs ou cair num misto de choro e sorriso dentro da sala de cinema.

Essa imersão sensorial no filme também se deve ao trabalho de edição de som realizado por Bruno Palazzo. Conseguir dar um corpo audível aos diálogos captados em trajetos de lancha em rios caudalosos ou no meio da mata fechada e extremamente povoada de vida (e barulhos) deu ao filme e ao técnico o prêmio de melhor edição de som do Festival. A quem se interesse por som de cinema documental, sugiro ouvir Palazzo falando a respeito do trabalho com esse material.

A escolha por filtrar alguns trechos com o uso do slow motion – com a intenção de estender o tempo de algumas sequências, segundo o próprio diretor – parece alcançar o oposto, estabelecendo uma quebra no fluxo quase hipnótico de estar no mato experimentando relações com seres mais que humanos, sendo tragados pela grandiosidade de tudo ao redor, sentimento que talvez se perca no filme também, já que são poucos os planos abertos, dados ao respiro diante de tanta intensidade.

Ainda no quesito sensorial, há muito apelo ao que se come, ao que se diz com naturalidade sobre sexualidade, genitálias e demais traços materiais das relações com os outros e com o mundo ao redor, dando a impressão de uma intimidade tão conquistada quanto dada por certa, que quase nos esquecemos do exercício de imaginar o que pensariam os Korubos se estivessem em nossa companhia na sala de cinema, vendo a si mesmos e nos assistindo reagir ao que é exibido na tela. Que experiência seria? Compartilharíamos pupunhas cozidas e discordaríamos a plenos pulmões, estendendo a sessão por muito mais que duas horas e meia? Quero acreditar que sim.

FacebookTwitter

Festival do Rio: Parte #4

Diário de bordo

Por Pedro Tavares

UM CASAL: SOPHIA E TOLSTÓI (Frederick Wiseman, 2022)

Sophia e Léo Tolstói num jogo de espelhos muito funcional. É pelo espaço e pela relação direta da personagem e a câmera, num monólogo que serve como devaneios de uma pré-discussão com somente Sophia em cena que Wiseman faz, neste retorno à ficção, uma combinação de angústia humana e a libertação pela natureza.

CANÇÃO DE AMOR (Max-Walker Silverman, 2022)

Há um nítido engajamento pelo sentimento de estranheza perpetuado por Silverman ao acentuar neste conto sulista de solidão uma camada cômica, principalmente com personagens secundários. É um filme já visto outras vezes visto no cinema contemporâneo americano e já cansado. Há uma beleza entranhada sobre a ação da sobrevivência aliada à beleza do meio, a imagem em 16mm, mas não suporta todo o filme.

WALK UP (Hong Sang-Soo, 2022)

Uma das esferas de Walk Up é que há um limite até para o confessionário desenfreado de Sang-Soo em seus filmes. Como um comentário bem humorado sobre estes limites, incluindo o do sonho e da imaginação e ode ao cinema que pela montagem tudo pode. Sang-Soo é único e na singeleza sabe ser cruelmente sincero mesmo quando a saída é encher a cara e fazer filmes.

A PRAGA (José Mojica Marins, 2021)

Ainda que mais próximo de um conto de horror convencional – ou um longo episódio de suas séries televisivas -, Mojica acha caminhos para trabalhar questões sociais e existenciais que outrora faria de forma mais radical. Aliado ao hercúleo trabalho de Eugenio Puppo para resgatar e finalizar o filme, A Praga nos lembra quão versátil e relevante Mojica foi por toda carreira.

OPERAÇÃO HUNT (Lee Jung-Jae, 2022)

É afrontoso ver um filme que se baseia num arquétipo, numa cartilha de saídas funcionais e tão apático que nem mesmo o simples trabalho de escapismo barato o filme de Lee Jung-Jae é capaz de fazer. Você já viu este filme antes em diversas línguas. Escolha um melhor.

FacebookTwitter

Cobertura: Festival do Rio parte #3

Diário de bordo do Festival do Rio.

Por Pedro Tavares

PADRE PIO (Abel Ferrara, 2022)

Pio como receptador do mal que volta e meia nos assola. Ferrara coloca Pio como uma extensão e comentário vivo do que o filme de fato narra, um mundo prestes a curvar-se ao fascismo. E como Jesus chora ao contemplar Jerusalém e Jeremias escreve o livro de lamentações com tristeza, angústia e medo, Pio replica este gesto de desesperança no silêncio e na repetição de rituais que desembocam em uma das cenas mais potentes do filme quando Pio transparece, enfim, sua aflição.

CARVÃO (Carolina Markowicz, 2022)

Fábula rural interpelada por um pungente thriller de corrupção que dialoga diretamente com seu entorno. A realidade que instiga uma escolha corpulenta pela moral tipicamente brasileira e tão pulsante em pequenas comunidades. Por estas brechas o filme sustenta a linha de tensão e estilhaça argumentos puritanos conforme se aproxima das casas da região a lembrar que a necessidade é muito maior que os valores.

NIGHTSIREN (Tereza Nvotová, 2022)

Um bom filme para sessão dupla com Carvão. Tereza Nvotová também faz uma fábula rural interpelada por questões que envolvem valores e Nightsiren a parte da presença de bruxas num vilarejo. Bruxas estas que são estudadas pelo viés da subversão ao conservadorismo e não pelo lado mágico que geralmente são implicadas. A cólera geral criada pela vizinhança esboça um filme de vingança silencioso e de reapropriação do espaço criado para a liberdade e não para o medo.

EO (Jerzy Skolimowski, 2022)

Não é um exercício inédito ao colocar extremos opostos em representação para analisar seus comportamentos – a lembrar de Bresson, por exemplo – e EO, o burrinho que dá nome ao filme, é o observador das devastações humanas. Ele é uma espécie de Sr. Hulot do apocalipse e o que realmente instiga no novo filme de Skolimowski é a insinuação do valor da neutralidade do observador, de códigos não estruturados no comportamento do animal para que tenhamos qualquer insinuação de suas reações – o que de certa maneira nos remete aos filmes mudos que na ausência da palavra se esgueiram na linguagem corporal e nos gestos.

O JULGAMENTO DOS NAZISTAS DE KIEV (Sergei Lonitzsa, 2022)

Lonitzsa segue com a série de resgate de imagens e condensá-las sob um conceito. Este talvez seja o mais prático no sentido de uma lógica narrativa e que através dos depoimentos aborda a banalização do mal e como estes atos de horror parecem de um passado distante ou impossíveis de serem recriados pelo real. É um exercício que pela repetição coloca-se em xeque, porém aliado ao seu valor histórico, não cerceia o horror quando ele deve ser, de fato, exibido.

FacebookTwitter

Festival do Rio 2022 – Parte #2

Diário de bordo do Festival do Rio.

Por Pedro Tavares

FOGO-FÁTUO (João Pedro Rodrigues, 2022)

Musical antirrepublicano. Neoconstitucionalismos à base de corpos e amor – bombeiros que cedem aos desejos ao invés da defesa nacionalista e heroica. João Pedro Rodrigues equilibra o cinismo do debate sugerido à contemporaneidade pela diluição de uma pauta frontal e que naturalmente se atrela às imagens, nivelando assim confronto e afeição.

CONVERSANDO SOBRE O TEMPO (Annika Pinske, 2022)

Apesar do clássico rigor que dilui para observar a queda do estado burguês – ao contrário de uma narrativa da vida burguesa que obviamente subentende um estado de desespero geral -, o longa de Annika Pinske observa a ilusão de superioridade num esquema narrativo contemporâneo e que aposta na distância como manobra concreta sob o real. Ainda que se aproxime de um desgaste, principalmente por filmes de grife de festival, o filme de Pinske funciona em boa parte do tempo.

MATO SECO EM CHAMAS (Adirley Queirós, 2022)

Afirmar a distopia no Brasil de hoje não é novidade para Adirley Queirós, mas o que reforça toda trama dos “gasolineiros” e presidiários como resistência ao bolsonarismo é como o filme dialoga com o real, indo da narrativa paralela e o infiltrando, a ponto de interromper o filme para dar ênfase ao desejo das personagens (que se confundem com suas vidas reais) pela liberdade e como Mato Seco em Chamas, além de mais um diagnóstico certeiro sobre o Brasil pós-golpe, é uma chave de recomeço para muitos ali filmados.

FOGARÉU (Flávia Neves, 2022)

O incêndio incitado por Flávia Neves em Fogaréu não leva suas brasas para muito longe. A hipocrisia incrustada no cotidiano nacional vem na base do didatismo – neste sentido o controle narrativo de Neves é ótimo – e desmistifica a família conservadora brasileira através da figura de uma mulher de esquerda. A questão é sobre qual aplicabilidade esta junção óbvia se faz?

O CONTADOR DE CARTAS (Paul Schrader, 2021)

Schrader é tão versátil como realizador que desta vez faz um filme-farsa para criticar frontalmente o sistema de torturas do exército americano e o orgulho patriota que cerca este gesto brutal. Em seu entorno há uma trama de gênero envolvendo campeonatos de Poker, vingança e um amor tortuoso com dos finais mais belos de 2021.

BRIGA ENTRE IRMÃOS (Arnaud Desplechin, 2022)

Aqui temos um caso curioso: se Desplechin outrora criou bons subterfúgios para evitar o contato direto com o conflito, neste ele escancara a proposta de um distanciamento claro entre conflito e montagem para depois colocá-los num encontro frontal tão mecânico que a única possibilidade crível aqui é que Desplechin abriu mão de seu filme para obedecer ordens de um produtor.

FacebookTwitter

Festival do Rio 2022 – Parte #1

Diário de bordo durante o Festival do Rio.

Por Pedro Tavares

MEU LUGAR NO MUNDO (Adrián Silvestre, 2022)

O filme de Adrián Silvestre se revela uma medida bem competente entre o drama envolvendo identidade de gênero e a vida corriqueira, como ele se torna um elemento primordial para toda ação, da busca pelo amor às crises existenciais e principalmente pela afirmação no mundo enquanto um olhar externo está a julgar cada ação.

TRÊS TIGRES TRISTES (Gustavo Vinagre, 2022)

O mais controlado filme de Vinagre troca o enfrentamento usualmente visual dos filmes anteriores por um manifesto didático e até bem humorado como comentários acerca do momento trágico momento que vivemos sem abandonar a representação do cotidiano LGBTQIA+. Certamente trata-se de um suspiro antes de um grande lamento sobre o Brasil de 2018 para cá em que a risada se confunde com o choro.

BROKER (Hirokazu Kore-eda, 2021)

Kore-eda vai à Coréia do Sul e faz uma espécie de filme americano de sua carreira depois do europeu The Truth. Broker é um filme agridoce e que bate incessantemente na jogada do tema ácido com diversas saídas tragicômicas para transformá-lo em objeto de discussão sem que crie mal estar no espectador. É um filme menor de Kore-eda que parece estacionar na zona de conforto com abordagens mais acessíveis que as tradicionais de sua filmografia.

REGRA 34 (Júlia Murat, 2022)

Curioso que este filme de Júlia pareça mais com um filme de Lucia, distante de seus filmes anteriores e que remete ao ambiente de Praça Paris, por exemplo. Um conto tipicamente carioca que associa de traumas, injustiças sociais e violência com liberdade, sexualidade e BDSM. É um gancho ousado e igualmente duvidoso, ainda que a primeira camada de conflitos esteja relacionado à seriedade de eventos corriqueiros no Rio de Janeiro e que a liberdade seja uma forma inerente de escoar a dor – através da dor, o que está em cheque é a forma, o modus operandi, a maneira de concatenação deste universo.

DECISION TO LEAVE (Park Chan Wook, 2022)

Como Kore-eda, Chan Wook fez um exemplar americano de seu trabalho. Digo isto no sentido de um trabalho mais palatável e menos espetacular. Porém, Decision to Leave está mais próximo de trabalhos que se baseiam na linguagem propriamente dita e não em uma abordagem teatral como se espera de filmes com este rigor. É um filme feito para o corte, para resultados imediatos e efeitos instantâneos. Chan Wook sabe refletir estas intenções nos personagens a exemplo do detetive que não dorme e que sobrevive a um casamento falido e usa o trabalho como subterfúgio. Basicamente um longo exercício de subversões com certa funcionalidade.

PALOMA (Marcelo Gomes, 2022)

Se “Meu Lugar no Mundo” dilui os desejos e afirmações de uma mulher trans no cotidiano, aqui temos uma versão televisiva desta abordagem, condensada em um único conflito didático o bastante para o elo dramático com o moral quando narra o sonho e busca de Paloma para casar na Igreja.

NOITES DE PARIS (Mikhael Hers, 2022)

Fins e recomeços. Recorte de um tempo, uma família, um sentido e um sentimento concentrados no grão. Pessoas que chegam e vão, momentos bons e ruins – a vida da família de classe média oitentista em Paris como uma poesia. Corações a bater, olhos a piscar, conflitos a criar e diluir.

QUANDO NÃO HÁ MAIS ONDAS (Lav Diaz, 2022)

Teatro da culpa. O denunciador e o denunciado corroídos enquanto Lav Diaz trabalha de duas formas distintas para cada um. Em comum, há o aspecto teatral, que nunca esteve tão coeso e Diaz concatena muito bem palavras e ações ao potencializar cada um de maneiras particulares aliado ao tempo, elemento primordial do cinema do realizador.

FacebookTwitter