Ou voa, ou volta: por uma sociopoesia do alto

Por Felipe Leal

 

Temporalidades e reflexões empasteladas em cantigas sobre uma certa Valparaíso chilena? Há dezenas; e, como de costume, trançando seus “hurras” com versos de nostalgia, divinação ou espera pela terra de águas que vibram em dourado, como aparentemente nos vibram as harpas. Ora, é neste aparentemente que nos delongaremos, nisso que insiste em dizer e desdizer o regime de sua própria vizinhança. Mas, por enquanto, se se trata de remontar um repertório-Valparaíso, repertório de uma cidade à altura do cinematográfico, notemos que ele cerzirá essa cidade de imagens (ou imagens-cidade?) despreocupado em elitizar, em montagem, as mais ou menos artísticas criações em cima de um paraíso já deveras remendado. Pois também há pinturas populares com suas deusas lânguidas e instrumentistas favorecendo navegantes, há retratos de instantes marítimos curvilíneos e dramáticos à medida turva dos pincéis, e ainda charges cuja implicância com as desmedidas imperialistas o cinema sublinha enfaticamente ao imantar não tão-somente um lance de olhares entre o arco simples ‘dominadores/dominados’, mas ao dizer que ver é: dizer como se deve ver o que (já) se está vendo. “Mostrar o quanto é invisível a invisibilidade do que é visível”, como colocara Foucault em se tratando da ficção. À sua maneira, tudo já está montado. Cabe a um holandês voador montar ainda outra vez.

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Talvez seja por isso que este A Valparaíso (1963), curta-metragem do falecido e quase centenário Joris Ivens, ainda nos ressoe como um postulado de montagem a ser inquestionavelmente aproximado, fichado e esmiuçado sob o tom da poesia – não para dizer o que ela é, nem muito menos repartir a quimera nomeada ‘cinema de poesia’ em mesas de conceituação; antes, para lançar breves apostas sobre quanto do poético pode caber numa técnica que nasce e se revira na fratura para rearticular a impossibilidade óptica, científica e sensível de que as coisas se encerrem em si mesmas, estáticas, e de que particularidades uma carreira com no mínimo 20 filmes embriagados de iconografias entre o civil e o citadino pode se lançar mão ao filmar e reproduzir, lendo veloz e sistematicamente, uma cidade que contém ainda outras cidades dentro de si, todas interconectadas e interceptadas pela via socioeconômica que parte do porto, arranca alturas com elevadores e escadas lotadas de casas inclinadas, e vai parar somente para assistir aos cortiços nos montes “invisíveis a olho nu”. Mas não só lendo: relendo, negando o lido e dizendo o que há e não há para ser lido nas gramáticas do arco imagem-significação – como, sabemos, o faz a poesia.

“É uma cidade”, a voz narra, para logo em seguida adicionar: “não uma cidade, um conjunto de cidades” – e é como se certo regime de contradições, a partir de uma ética montada em jogo, abrisse um espaço para si, também ele montado, artificial e escritutário, e sustentasse as duas assertivas juntas nessa mesma porção quase impossível de terras, uma cidade cuja geografia consiste em ser várias (uma-múltipla), sendo ao mesmo tempo, empiricamente, efetivamente, várias dentro de uma, espécie de boneca-russa das províncias que cabem em províncias. A câmera desconhece o alto e o baixo senão para fazê-los indecifráveis. Influências asiáticas nas fachadas de hotéis, pinceladas afrancesadas nos costumes de língua, regimentos britânicos de funcionamento monetário… tudo articulado entre o apolíneo e o dionisíaco para duvidar e reafirmar uma espécie de ilhota de luxos dentro do terceiro mundo, micro ou macroscopicamente, ou seja, de si para si mesma e de si para com as nomenclaturas do fora.

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A paleta de imposições físicas diante do social, não bastando Valparaíso estar espraiada em direções incontáveis à rosa dos ventos, toma do absurdo sua literalidade e a durabilidade impressionante daquilo que lhe é frágil por estar em pé. As centenas de escadas guardam o mistério dessa socio-tipificação, algumas indo mais acima do que sua continuidade parecia sugerir, outras se encerrando como que espontaneamente no ar: trata-se de subir ou de voar, ou de subir o suficiente para que voar ressurja como possibilidade peculiar na grande roda da fortuna dos sujeitos sobre e sob deuses. Mas estas escadas são também o complexo de incalculabilidade entre o disciplinar e o acidente flutuante, elas forçam os fantasmas de proto-vidas ao mesmo jogo métrico que resulta em índices imateriais do vivido. Sombras em marcha, desfiladeiros de duras optativas, futuros esquecidos pelos pés, tudo de fato parece reconstituído por Ivens como a narratividade de García Marquez; o fantástico não está diametralmente oposto ao real, ele é apenas uma furtiva licença óptico-escrivã para se reunir com certa contrariedade ao destino: a história escrita de sangue. Então, rente às escadas, se dança, se afoga a altura das autoimposições pisoteando-a no mesmo nível daquilo que não é meio nem início, mas fim. Fim suado, alugado.

“Não é o mais rico [dos portos], mas vive-se, vive-se bem”, intercepta uma voz flutuando dentro dos elevadores e tecendo junto ao movimento de ascensão essa primeira contra-dição (tomar a fala para falar contra; dizer o outro lado estando do outro lado). Aqui, onde é preciso labutar o viver para só em seguida impor à vida uma crença de bonança, de vida vivida, aqui é preciso se separar das coisas para vê-las melhor. Todavia, particularmente por esse artifício de montagem que perturba nosso próprio emprego de metáforas da leitura e da literatura como algo inerentemente nascido com o cinema para melhor decifrá-lo e com ele se acostumar por imperativo de um centro (sou eu quem o lê, afinal), separar-se das coisas nos parecerá mais complicado, posto que significaria também separar-se do todo de vida em que tais ‘coisas’ assim o foram junto com todas as outras que não são elas, e que só necessitariam ser o que são se com elas desejássemos estabelecer proximidades.

O que pode Ivens querer, então, com Valparaíso? Com essas mulheres em roupas de grife passeando com pinguins de estimação sob a carnificina do meio-dia, e que, no entanto, não são mais, ali, por um instante suspenso porém durável, o retrato finito e reconhecível de uma burguesia que advoga por seus louros exibindo o que há de sofrível nas correspondências de classe, mas quem sabe lúdicas e desastradas vítimas dos próprios saltos e de uma vida que, concebida sob os parâmetros da altura, chega a praticar o ‘enobrecimento’ emprestando o colo a uma ave irascível e escorregadia como habitus de passeio, resquício quiçá das promenades afrancesadas em que o sujeito, ao contrário, era aquele a ser avistado pelo mundo.

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Esta motivação, na medida transparente de nunca que nos caberá dizê-la ao certo, ao menos supõe-se na própria malha retalhada e reinvestida de posições de olhares com que a montagem dança como que disjuntando um pas de deux, encantando o velocímetro de encadeamentos dos quadros com uma espacialidade especial possivelmente só encontrada no incessante movimento de fundação daquilo que se chama uma cidade: sendo impossível em qualquer momento de sua história, propriamente concebê-la, visualizá-la ou domá-la como um todo funcional a certos olhos, lança-se essa parte a um todo que está sempre aquém e além de si mesmo (a conceituação do plano é tomada aqui, então, numa acepção extrema de porvir, para além daquilo que se esquadrinha e em direção a um plano-planejamento, a uma elaboração medida para ser outra coisa que não ela).

A cidade é todo-fictício. Ela é totalmente, mas também impossivelmente, toda, e não é por menos que por esse aliciamento compartido que Joris ora opta por conduzir séries de inícios de planos costeiros intitulando-os e intercalando-os com elementos da cidade (os panos das donas de casa são frutos da poesia comunitária das ventanias, as rápidas incursões nos bailes festivos são a veia explosiva do traço sanguíneo estourando para dizer que ali o proveito se faz ao lado da labuta), ora por induzir as narrações a comentar um pitoresco arquitetural sem que, no entanto, cheguemos a visualizar seus interiores, seja para deixá-los ao imaginário, seja para simular uma reticência sem atropelá-la com uma melancolia já implícita. São espécies de socio-sentimentos cuja fagulha de indefinibilidade toma emprestado da montagem seu elemento mais simples – o choque de duas proposições subsequentes –, afetações que implicam o particular a partir de uma categoria social, mas que também sugerem ser o gesto sociológico alguma coisa permeável a propostas de individuação.

Como na poesia, essas imagens em estado de vibração despencam de um segmento de palavras (sentido) para então recair numa posição outra, verso/lugar seguinte mas estranhamente pertencente à lógica sequencial do todo, sendo a ruptura que evidencia tal distanciamento aquilo que faz ver essas mesmas coisas como in-familiares. O risco ético de colocar assertivas simultaneamente sociológicas, sentimentais e da ordem da verificação e da visibilidade do tangível é levado a um extremo minimamente inóspito, pois que nada é terrível, alegre, curioso, insustentável ou revigorante que não possa acolá ser todas as coisas ao mesmo tempo. É mais por levar as subjetivações encarnadas nos enunciados para o ponto em que elas se rompem e ganham substâncias liminares, do que para afirmar do real que este precisa ser des-normatizado e re-exposto, que qualquer estado de elevação poética não será simplesmente acessório e dissidente, inofensivo e retórico. Poéticas como estas, vistas em formas-cinema tão frequentemente próximas ao elemento civilizatório, se necessitam da linguagem de um empréstimo de transubstanciação, é para religar todo o bojo “domesticante” das formas de ver e ler ao seu avesso: aquilo que, inexplicavelmente até certo ponto, dota a si mesmo de sua ser-c(i)ência, guardando às escondidas as ferramentas de sua própria fabricação: habitus.

É clara, a máquina de que estamos falando?

Pois a velocidade equilibrista do encadeamento não seria suficiente para nos dissuadir de que essa voz narrativa, antes de esquivar-se elegantemente da propriedade divina dos primeiros textos dos documentários observacionais, tampouco precisa lhe refutar ou ser dela uma superação: o gesto de passagem de um quadro a outro, polissêmico por excelência e por disputa, assume também um tom cuja peculiaridade retoma traços desses supostos dispêndios e lassidões discursivas orientadas em rebater as propriedades determinadas dos significados.

Não é que se viva bem, ali, de fato e de acordo com uma média delimitada pelo conceito de humanidade, mas que “bem”, sendo não só palavra como pronunciamento de uma ocupação de significantes enrodilhados num presente, e sendo este presente o cruzamento entre texto e imagem, precisa tornar-se língua em movimento poético, uma distensão a partir da qual o vento, o calor sanguíneo e a presença do mar podem escrever uma história fictícia, temporária e estática de alguma “boa” vida àquelas imagens solitárias de crianças penduradas em balanços, às imagens de mulheres estendendo roupas ou dialogando rente à passagem dos vagões, esmagadas pela cidade, ou mesmo às imagens operísticas da população lançando sombras musicadas aos esqueleto de escadarias de Valparaíso. É que o fictício, alguns cinemas, não se opõe ao real, nem chama de “reais” as temporalidades feitas à parte daquilo que é captado. Não se trata, aliás, de reformular, dialogar ou “problematizar” com qualquer enunciado de realidade vindo de qualquer campo de saber.

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Como quando retiram-se de um texto todas as presenças da palavra “homem” para visualizar, ainda que ludicamente, os sentidos atribuídos ao masculino como forma de homogeneização das práticas letradas, experimentar a extração, em À Valparaíso, de qualquer interpretação ou lente de vistas pelo regime da realidade também retiraria do texto recitado por Roger Pigaut qualquer necessidade de aderir ao diretor o endereçamento ou a responsabilidade autoral como antecedente das possibilidades visuais e letradas de romper com a linguagem. Experimento visual como qualquer outro.

Não interessa, afinal, quando se trata de tecer essas “poematicidades” como dispositivos de intra-nomeação espacial, se quem coreografa é a câmera, o povo ou a imposição da presença de câmera ao corpo; não interessa se as flores debaixo dos trilhos são obviedades semânticas do mesmo modo como se revelarão as ironias das pinturas de cavalos nos bares da cidade, sendo aqueles corredores os mesmos que findarão, cansados, mortos, como carne nos pratos; e não nos interessando, enfim, identificar ser aquele que diz, quem diz, o resultado narrativo equivale, ele também, ao vidro estilhaçado e às cartas de baralho manchadas de sangue que dão à tela a inesperada colorização: necessita-se unicamente de uma partícula que diga: (passagem). Será algum espectador capaz de dizer que, ali onde repentinamente há cor, há também a inauguração do poético na obra, arriscando simultaneamente inferir que ele não existia antes, e que tudo não passava de uma farsa sentimentalista maldosa? Ou se estaria diante de um momento privilegiado, momento no qual e para o qual uma passagem de sentido não é uma passagem de todo, ou ainda que algumas passagens devem conter também uma não-passagem? Nada se verifica. Tudo acontece quando uma passagem se lhe pede.

Falar, não é ver. As palavras estão em suspenso, como está a disputa pelas cidades na cidade. Liberado da exigência ótica, a seletividade improvável disto em suspensão nas palavras se choca, no cinema de Ivens, com o que há de disforme na constituição do visível que, sendo metaforizado pela consciência, só pode nos chegar como dádiva de materialidade singular, enxuta do todo. Esse narrador é ninguém, mas só se ausenta ao colocar dois postulados num golpe de tempo só: atravessar a rua é também atravessar a morte.

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