A MELODIA MUDA DO DESTINO: O SILÊNCIO (Mohsen Makhmalbaf)

Por Felipe Leal

É a princípio enigmático, diríamos até “incompreensível”, este Silêncio que intitula o filme (Sokout, 1998) do iraniano Mohsen Makhmalbaf, posto que, mesmo na condição de cega, a criança que protagoniza sua itinerância demonstrará ter domado todos os outros sentidos, do paladar ao tato à própria “visão”, justamente nos ouvidos, sendo ademais afinador de instrumentos enquanto vocação e por necessidade ainda em tenra idade, visando ajudar a mãe solteira pagar as contas depois que o chefe da casa, seu pai, fugira à Rússia.

Na vida do pequeno Khorshid não há senão tremor, intensidades, aliciamentos advindos dos choques sonoros. A gênese da obra, então, doce gentileza, coloca-nos a natureza de SEU jogo com o silêncio, filme à sua maneira tão caro à palavra “perspectiva”: três ressoares de um punho batem à porta, ao que duas figuras despertam e iniciam, ainda anônimas, seus ritos de “introdução ao mundo”, como nascessem a ele tanto quanto a nós através da persuasão específica daquelas reconhecíveis notações externas. A mulher, que logo perceberemos ser sua mãe, atende à porta com gestos hábeis, enquanto o menino profere uma oração para que (cert)a abelha que ouve “zanzar” encontre seu caminho, à luz do dia, livre de maus presságios.

Ao longo dos 76 mins. desse elogio à vida como arranjada pela música (que é, por sua vez, através da criança e também ao nosso deleite auditivo, uma espécie de supra-faculdade do verdadeiro-ouvir-das-coisas), o trabalho técnico-sonoro do filme enfatiza sua faixa de estridências avolumadas como que para torcer o real, co-enxergado ao lado dos olhos de Khorshid, e fazê-lo legítimo quesito das especificidades de cada percepção. Percepção produtora de estímulos físicos (dentre os quais é possível selecionar, a depender da orientação, o rumo superior dos esforços vitais). Logo: corpos designados OU NÃO por caminhos que são entendidos como suas “MÚSICAS” (próprias).

Todos os dias o menino deve proceder, então, ora com os ouvidos diligentemente tapados pelos próprios dedos, ora com chumaços grossos de algodão sobre a cavidade auricular, para que não ceda à musicalidade invasora da rua e se perca, uma vez que poucas pessoas sabem de sua particular des-orientação distraída, rumo aos sons de belas canções. Sua vida requer dupla delicadeza porque lhe acomete, cotidianamente, aflorar o mecanismo de prazer que os ouvidos representam. A força embriagada, contraditoriamente compositora, de uma cítara ou bandolim “ocasionalmente passando”, introduz em seu corpo um universo mais revelador e convidativo, mais puro e verdadeiro, mais SILENCIOSO e falante que qualquer regra ou comando de qualquer superioridade. Mas se tal “faculdade” o amaldiçoa com uma segunda errância, ela também presenteia com uma sobrenaturalidade que extrapola o poético. 

Ao escolher romãs ou enfileirar-se ante as vendedoras de pão à rua para vir à escolha do mais saborosos, ele balança o interior das frutas, buscando ouvi-las rente à bochecha, ou seleciona a ambulante com a voz mais encantadora, pondo a magia (re)encontrada na garganta sobre a expectativa das mãos que fabricaram o alimento. Gradativamente, o “silêncio” a que a obra remete passa a ser não só uma “disciplina” de entendimento profundo com as propriedades intrínsecas de cada matéria presente nos ritos da vida, redobrando-os em tal potência de sabor inegociável, como uma ética de conduta cuja destinação, cuja “utopia” (finalidade), é a da entrega a um festim cada vez maior à liberdade corpórea, a ele redenção e não menos entidade máxima a ser compreendida em orquestra, sob aquela mesma rigidez que o singulariza.

O que é lido externamente como “excentricidade vadia”, a saber, uma vida “menor” pois dedicada e deliciada ao êxtase musical e às “essências das coisas”, esta mesma vida que os bandoleiros cantarão, próximo ao garoto, nos mercados, em oposição ao destino do sábio, colocando ambos em polos distantes, mas pertencentes a mesma linha de loucura – será feito louvor milimétrico.

Se Yasujiro Ozu colocou o plano-tatame à excelência (plano à altura da elegia confessional de seus personagens domésticos, enraizados de joelhos à tradição), Makhmalbaf desloca a predileção testemunhal à região boca-nariz-ouvidos. Ele faz do território essencialmente experimental da infância, ali onde surge a fixação dos primeiros gostos e reconhecimentos, uma insurgência minuciosa dos AFINAMENTOS propícios entre “viver” e “instrumentar”. Inúmeros planos do filme são close-ups dedicados ao comando da menina Nadereh, exímia bailarina e ajudante de Khorshid, sobre o próprio pescoço, assertivo voto de Minerva sobre a finalização exata do refino dos instrumentos em confecção.          

Quando há transe nas cerejas, que esta pequena sacerdotisa porta nos ouvidos, é que “há música no instrumento”, ainda que ali subsistam, em teoria, os seres menos experientes (infantes!) para tal avaliação. Que o estopim moral da até então existência do menino seja a acusação dos moradores da vila de que os instrumentos musicais do comerciante não possuem qualidade, verdadeira gota d’água ao que tem a alma nos ouvidos, é um debate passível de remediação somente se o bardo que outrora lhe encantou os ouvidos e fê-lo se perder pela “incontagésima” vez puder testemunhar a favor da musicalidade contida naquele ouvido, aos olhos do mundo suas mãos e voto. Makhmalbaf será novamente sábio ao não fornecer o “destino esperado” à canção… nem ao roteiro qualquer tipo de comprovação da falta-de-poética do indivíduo mundano.

De encontro com a trupe de bardos, Khorshid vive o primeiro presente encomendado quando o locatário acaba por despejar sua mãe e pertences da casa: despossuído de “tudo (o que é material) ”, ele pede que seja tocado “o galope do cavalo”, pois “está partindo para muito distante”. Terá encontrado O SILÊNCIO interior com o último acorde-lembrete da vida que nunca lhe interessara possuir? Como “ouve” a água e “enxerga”, nela, a mãe flutuando num barco com nada mais que três itens em mãos, é ali que decide por seu golpe de independência, naquela similitude entre poética (permitida) e realismo (roubado)?

Quando perdido pelo acaso dos dedos que destamparam as orelhas, ele se perde…, mas na realidade se encontra. Indomável por natureza, como pode então, por sentido social, assentir ao rumo daqueles que de olhos abertos mesmo assim não veem? Suas lições aos instrumentistas e artesãos do ferro, do barro e da casca soam, afinal, delírio… até que, quando é preciso convidá-lo à orientação por entre as vielas, um dos artífices que havia lhe negado o “sermão musical” segue o protocolo previamente sugerido pelo garoto. A música apaixonada, entoada, en-tocada, embalada de sinceridade com a matéria é “quem” o recobra os sentidos. A pureza o reconduz “ao lugar”, salva-o de uma perdição que já não sabemos nós mesmos onde pode desaguar. O feitiço que o acomete será, com precisão, sua cura.

Inextenso de alegria, num novo enigma cênico, ele envenena todos os mercadores de um êxtase embalado com as mesmas mãos que sempre empunha à frente do próprio corpo, fazendo-se lido não pela cegueira, mas pela hiper-visão. O gesto repetido revela seu avesso. Um fator messiânico extrapola da montagem, pois que nosso olhar se esgueira, não mais buscando o “som correto” (justo, preciso, musical) tão-somente no ar que regurgita a corda da viola, mas numa eletricidade que possa existir entre aqueles dispostos à dança. O ritmo é sua humanização e socialização e descobrimento. Um raio de vocação o atinge – aliás, o confirma -, em meio à baderna, que nenhum passante sequer (e literalmente) se detém para ouvir: isto é, para entender como manifestação não-deliberada.

No interstício do perceptível, o silêncio grita uma re-ligião. Trata-se de um filme espiritual, não poético, como outrora se pensara. Uma re-ligação encabeçada por criança “muda” aos olhos de muitos. Indiferente, ela, com o mesmo fervor, à multidão.

Pois em busca dos ouvidos.

Em busca de uma canção imprópria.

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É possível falar em cinema xamãnico?

Por Felipe Leal

Para um filme que esgota nos limites da mise-en-scène a relação de estranha cópula ancestral entre humanos e animais, há, contraditoriamente, pouquíssima “naturalidade” em Cinzas e Neve (Ashes and Snow, 2005). Os animais, sejam eles falcões, hienas ou elefantes, não entram sob as lentes como partes de uma busca por aquele “instante selvagem” onde a câmera nulificasse sua presença, ou ainda por um momento raro de interatividade inóspita com sujeitos. O diretor captou, ao redor de todos os continentes, gravações demasiado próximas, demasiado inéditas – geográfica e literalmente falando – de pequenas tribos, comunidades, templos, migrantes e grupos cuja anexação ao fator animal não teria participado do desvio epistemológico-civilizatório de que nos utilizamos para criar uma superioridade em relação ao “bicho” (isto que não é, em absoluto, o “animal”, mas que o torna coisa “animalizada”, figuração da ameaça extrema).

Mas, para um filme comumente categorizado  como documental, suas imagens tampouco querem o pensar “do entendimento”, a costura firme de uma discursividade ou a inferência de qualquer “problema” (ponto de partida sociológico). Como quando diante de uma poesia – palavra essa que Gregory Colbert, o diretor, não economiza para descrever a própria obra desde que começou a captar suas imagens em 1992 –, a encenação alterna os sentidos (razões) de seu funcionamento “cósmico” para acompanhar a montagem de um novo SENTIDO (sensação) dentro da observação desta entidade que nos torna “entendidos”: a natureza. O que, para a obra, significa a partilha de duas sobrevivências, duas poéticas análogas entre a individuação e a animalidade. 

Sua primeira sequência nos dá o tom dessa divisão de naturalidades com um gotejar de sílabas musicais: enquanto elefantes compõem, em slow motion, uma marcha grandiosa, emergindo de uma correnteza no meio da qual repousa certa criança monge, o narrador sussurra: “Se você vier até mim neste momento, seus minutos se tornarão horas, suas horas se tornarão dias, e seus dias se tornarão o tempo de uma vida”. O que sucede é a montagem-transe de gestos tão semelhantes: adaptações, fórmulas corporais e trejeitos tão denunciadores desse gérmen comum… posturas tão “banais” e automáticas quanto frutos de um eco físico que só pode pertencer, enfim, a qualquer tipo de célula mnemônica previamente dividida – algo que o termo “natureza animal” já não postula um retorno ao passado mítico da reunião (como se o “documentário” escondesse uma “onto-mania”) nem pleiteia um futuro utopicamente animalizado. Como revela um tanto mais tarde o narrador, cada fagulha da montagem é uma das cartas da série de 365 que ele envia, AGORA, à sua princesa para compensar o ano de silêncio que deteve em relação a ela. Um mote amoroso sub-repticiamente abstrai a geografia do percurso do endereçamento.

Orquestradas, então, como versos que devem deslizar à maneira daquelas dunas africanas onde se acocoram guepardos, senhoras e infantes, as imagens adentram o campo do mistério hermético, guardam segredos de proporção que cabe ao espectador desvendar. Muito além do banho de sépia que as transporta às ampulhetas do tempo “acima de todos os tempos”, é de um rompimento com o PACTO da “visão automática” que esses núcleos ritualísticos partem para engajar nosso “olho interno”, uma forma de palpabilidade que a própria montagem não permite racionalizar. No mais libertário dos sentidos, é um filme-poema que não admite estar diante das imagens sem QUERER que (nós) estejamos diante DE imagens. O “você” que assiste é condição de movimento fílmico (sentido); do contrário “as imagens simplesmente se movem” (sem sentido). A “ação” é fruto da plena volição espectatorial, posto que os gestos não cessam de desfilar passagens à primordialidade do bando, do coletivo – pois o animal nunca é referencial sozinho –, e aí talvez resida o mais notável dessas pinturas-vivas, o fato de que elas se assumem poRtais poStais. No dorso da mão de uma criança que serve de close ao gesto clássico do cochicho de segredos, vemos as bandas das orelhas de elefantes.

A lavagem, pela correnteza, dos mantos de indianas dispostas em posição fetal são os vincos da pele desse gigantesco animal que dorme abraçando-as – nenhum deles excetuado ou estranho aos mesmos descansos, às mesmas mortes, aos mesmos banhos onde trombas chicoteiam os rios misturadas à bailarinas. Disparando em brincadeiras de corrida onde é necessário tão-somente arreganhar os braços e alargar o peito, crianças desta mesma nacionalidade se assemelham às largas arraias que inauguravam algum balé aquático no filme, do mesmo modo que os falcões egípcios, ao levantar voo, tomam o ar esticando as próprias extremidades ao máximo – e já não sabemos se são eles, por sinal, que imitam as sacerdotisas longilíneas dos hieróglifos nas pirâmides. O ato comum contém uma festa a que todos estão lançados com rigor, vestígio nada longínquo dos ritos de infâncias que disputavam batalhas navais em chuveiros ou banheiras.

Ao invés de recorrer à mitificação Mogli-esca e construir humanidades fendidas por uma educação primordialmente animal, isto é, ao invés de bradar nosso esquecimento de habilidades ou formas de união mais sofisticadas através de uma parábola do sujeito-não-humano-nascido-entre-animais, Colbert se desliga da reprodutividade de uma suposta relação necessitada de atestados ou tomadas inéditas, e vai filmá-las sem exigir dos nativos nem uma ficcionalização nem um testemunho, mas um POSAR – um certo exagero, na verdade – do mutualismo ali existente, pois não custamos a entender que a proteção, a vigília que aqueles felinos de olhos agudos oferecem dispondo-se como totens ao redor dos nômades, é replicada como plano metafórico, “figura de animalidade”, ao longo de todos os momentos em que os sujeitos se permitem sinalizar as passagens de seus ciclos. 

Da atenção ao sono. Do dever ao júbilo. Do menor ao mais velho. Do silêncio ao (entendível), lembramos aos animais de nossos endereçamentos, de nossas cartas a eles.

Mas por que o elemento animalesco é aproximado dos gestos de liberação (gestos sagrados), por que as liberdades enunciativas da dança são as chaves dessa jornada que o narrador distende somente se pisoteia, alegre, ao modo dos elefantes? “Quero ver através dos olhos deles”, ele afirma, entusiasmado: “quero me tornar a dança”. 

O que parece ser invocado desta arte que, antes do balé de corte e da noção em si de coreografia, era manifesto simbolicamente ritualístico (não se restringindo a indivíduos profissionais especializados nem se dirigindo a outro valor que não o de culto), é a capacidade de designar um espaço excepcional onde, assumindo a própria pele como uma forma de consciência dependente da ininterrupta entrega ao ressoar da vida vizinha, os sujeitos importam seus combates, incomunicabilidades e passagens ao presente, e com eles se defrontam a partir de técnicas espelhadas do animal, que não é senão imitações, camuflagens, manias; todos traços da FIDELIDADE à preservação da vida.

Essa insistência do chamado “cinema poético” (Maya Deren pode prová-lo bem) numa imagem ora movediça, ora distendida, ora explosiva, ora distorcida, mas sempre “fundamental”, e para todos os efeitos fruto do disfuncionamento, ou antes da brincadeira com o significado concluso e com as possibilidades do ocular, coloca-o sempre à beira da perda do espaço, esse elemento que a gramática cinematográfica considera literalmente sagrado (e primevo). Do contrário, por que a linearidade temporal estaria já contida no termo “continuidade espacial”? 

Os dois mergulhadores (ou seriam bailarinos?) a que assistimos dançar com o coletivo de baleias fazem-no com tanta delonga, seus pulmões quase comprovam o que o escudo de luz da superfície da água sugere quando en-cena com a “folhagem” que o sépia acrescenta à iluminação: aquele fundo é o “lado celeste”, a profundeza do mar é “o céu” invertido, aquele do outro lado, o espelho paralelo ao do azul que nos encabeça e que resguarda sua mesma função. O traço livresco com que o amarelado dota o filme é efeito desse misticismo da proporcionalidade que os lugares de segredo resguardam. O mesmo efeito recai sobre o mistério daquelas tribos nômades do deserto: muito como no cinema de Apichatpong Weerasethakul, é possível dizer que a sacralidade dos guepardos não se reafirma uma PRÁTICA, ou seja, uma encarnação norteadora, fortificante, materna e unitiva dos códigos daquele povo?

O espectador destas imagens é arqueólogo e espiritualista. 

O animal, o primeiro nível dos diversos registros de um reconhecimento com o tempo. Não o nosso. Não o próprio. O da dança.

É estranho que, ao cinema, esse efeito de infinitude dos oceanos, dos desertos e das serpentes dos rios africanos, não tenha advindo da obsessão pela profundidade de campo. Todos os “fundos” do filme parecem chapados, vidraças dentro do qual a mitologia dele se desenlaça. É estranho que tal traço da imagem possa advir deste simples comando da dança que orienta um movimento espontâneo seguido de desaceleração, para então ser retomado. Uma imersão corporal cujo clímax seja a respiração que a transita entre outras brecagens: este filme apela aos seres ainda mais infinitos (do que nós) “não porque eles têm uma resposta, mas porque carregam uma canção”. São, novamente, as memórias das cartas à princesa; as traduções tateantes de um amante se buscando ao buscá-la. Por isso os cascos, patas, trombas, focinhos, caudas, barbatanas. Os “órgãos” de trânsito animal incitam a câmera a desenhar uma montagem-selvagem. 

Mas logo quando se suporia no animalesco um caos perigosamente à espreita, ela respira, vai rente à pele sentir a proteção daquelas crianças transeuntes. A câmera se precipita num milagre de participação registrada que se confundirá dezenas de vezes com o ponto de vista elefante, formando as próprias ondas que observamos se formarem no jogo-ritual-cotidiano daquele coletivo destoante de bailarinas corajosas. Cinzas e Neve cria um jogo de descontinuidades epifânicas para comunicar a defesa de uma linhagem de aprendizados que se estende desde as penas das aves passando pelo fogo, fogo transferido ao sangue, sangue em direção à medula que deságua em neve. Luz. Tempo. Textura. Rematerialização. O animal é seu elemento. Cabem garras na lente?

Este poema não talvez não seja simplesmente animalesco, mas xamânico. Cinematográfico. 

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Do jogo de incontinência à mania da origem

Por Felipe Leal

    Na língua inglesa, quiet vem a traduzir tanto aquilo que está “quieto”, no sentido da pouca vibração, digamos, molecularmente falando, como também significa a ação que se faz num volume baixo, discretamente, em oposição ao que é loud, barulhento – de forma que estes Um Lugar Silencioso (A Quiet Place, 2018) e Um Lugar Silencioso: Parte II (A Quiet Place Part II, 2020) remetem inicialmente a uma forma de território inóspita, como veremos, a) no que diz respeito a uma lógica avessa ao manuseio “pesado” de qualquer objeto, situação dramática ou rotina de existência, e b) no que é preciso desenvolver de uma linguagem particular de sinalizações para crescer enquanto família. 

Aviões de brinquedo, os gestos da cozinha, a repreensão de um filho: desde que a misteriosa avalanche de monstros cuja visão está no barulho invadiu aquela incerta dimensão de mundo, o que se assiste como estando resumido, a princípio, à sobrevivência de uma família, está cercado e plenamente dependente de um jogo entre a vida e o som. Vida além do fator biológico; vida sob a régua da concepção, da expectativa que solda hábitos.   

    Às cegas sobre o futuro, continuamente em busca de sinais de vida alheia ou de uma sobrevivência mais bem equipada, e vendo seu microcosmo ruir em nome destas ausências mesmas, aquela família composta de quatro membros (melhor diríamos “cinco menos um”) não viveu sempre num território de inexplicáveis bestas com superforça e supervelocidade. Isto nos será atestado, em inteligente lance de economia diegética, por alguns jornais de conteúdo premonitório, profilático e massivamente emergencial, e pelos quadros simplificados com informações parcas e pouco úteis sobre os tais inimigos inumanos, ambas as formas de comunicação “coletiva” não fazendo mais do que duplicar, em palavras frias e gordurosas, a desesperança que os consome no “dia 89” ou no “dia milésimo” de um calendário já apocalíptico. 

Horror, então, de fim de mundo? Suspense de gatilhos sonoros? Ficção científica ou filme-dispositivo? Talvez, mais do que estes compossíveis, um só, contendo todos os outros: um exemplar family movie

Pois o que sabemos, agora, depois desta continuação minimamente ineficaz, ser a “franquia do lugar silencioso” não fez por seus andamentos e tesouradas diegéticas senão elaborar o slogan nuclear uma vez proferido pela senhora Abbott (Emily Blunt) em uma série de artimanhas paternas e maternas para educar aqueles dois filhos através dos ensinos extremos da proteção calculada. Em outras palavras: de uma ascese pelo som “de dentro”, pela ausência de som (esperança) que deve ser aceita e reelaborada no mundo da quietude que é agora seu lar. E como é comum às éticas televisiva e cinematográfica, hoje, que toda a sabedoria de certos antepassados seja invocada como um poder da boa persistência obsessiva edipiana, o que se poderá dizer de qualquer expectativa de continuidade aos filmes, que de fato despontaram numa premissa requintadamente original para as sensações, é que a marcha do amadurecimento filial é longa e patética o suficiente para aniquilar qualquer engajamento que ultrapasse dois pulinhos de horror.  

 “Quem somos nós, se não pudermos protegê-los?”, ela pergunta ao marido, e entremeados aos procedimentos de sobrevivência estarão tentativas de uma transmissão de sabedoria que consiste, por exemplo, em fazer o filho vê-lo pescar com as mãos, gesto em teoria escandalosamente barulhento, no limite de um “não-estresse do ambiente”, como se lhe pedisse para entender o som-do-peixe, o peixe tão-somente pelo que ele não será perceptível – e não temer o possível urso. 

No primeiro dos filmes, em particular, precisamente pela conquista de um frescor auditivo capaz de determinar o ouvido sobre a visão, e portanto criando o aberto no fechado, a exigência de um tipo específico de corpo espectatorial como pré-requisito para a duração integral da obra é sem dúvidas o maior dos triunfos, se pensamos num enraizamento para o gênero do horror como localizado no desenho sonoro, mesmo ali quando nos filmes do primeiro cinema o acompanhamento de orquestrações era matéria pensada mais ou menos em conjunto à fílmica. O que chamamos, na dimensão prática da confecção, de foley, a replicação de uma sonoridade a partir da captação de um barulho não necessariamente vinculado a seu “objeto de origem” – um crânio esmagado, por exemplo, se produz com uma melancia, uma porrada, um microfone –, constitui, mais do que o acesso ao filme, o próprio terreno da experiência pela qual estamos, de alguma forma, atados àqueles outros acontecimentos invisíveis, in-anunciáveis, monstruosos.

Literalmente incluídos numa malha codificada de regras, na singular posição do estrangeiro que cala para deixar a sobrevivência perceptível e em fogo médio, vemos ser quicada uma espécie de linguagem que opera não exclusivamente pelo entendimento, mas por velozes avaliações dos pesos envolvidos na união, que é a viva metáfora celular, racional, ontogenética do familiar. A máquina do filme – ou melhor, a máquina-filme – extrapola o “acontece-ali”, e esse organismo propriamente coordenado, no que um time de futebol americano se assemelha às trupes de dança, quando se trata de fascinar nossos olhos, esse organismo acrescenta ao imprevisível um grau de ESPÍRITO DE EQUIPE. Os itens de supermercado ganham relevos semi-eróticos, pois é necessário da ritualística do toque para alcançá-los, mais do que simplesmente consumi-los. Disto todos sabem, ainda que a lição deva ser repassada e repassada.

A linguagem se dá entre o sinal e o sussurro. Os gritos estão abolidos, as peças do mundo que disparam altas frequências ainda mais proibidas. Pode-se dizer que, em surpreendentes 90 minutos, o seu, o meu corpo humano acostumam-se com um mundo externo baseado em pegadas, abafados, roçares de gramíneas, tecidos, sutis reverberações de barulhos ocos. Que a mão corte o ar para “escrever” “você ficará bem”, antes da partida do filho para os treinamentos com o chefe-pai, as coisas só podem receber um literal desenho sonoro, porque não demorará muito para que quem assiste ao filme se aperceba destacado, a lápis, de onde está, para estar no que centenas de yoguis nos suplicariam, em vida, para que sentíssemos: o estar-na-atenção. Na fabricação do estado falso de repouso para o qual tudo se OUVE em sua propriedade particular. 

Mesmo que a retórica da família familiar tente se reintegrar aos ocorridos todos, dando-lhes o todos-por-um necessário para que o gênero amplie a suspensão do suspense (sob o custo do batido drama sacrificial), aqui, exatamente no que John Krasinski desenvolveu com outros dois roteiristas um plano legislativo de onde as regras partem, não se poderá negar que é inédito o poderio do cinema em recriar as máquinas corpóreas. O que eles sabem por ostensiva precaução, nós simultaneamente descobrimos e vivenciamos no ouvido (não esqueçamos que, para o corpo, a ótica ainda é o sentido de significação majoritário), por um desejo de antecipação do visto no que se ouve. 

Esse truque da densificação entre um caractere sabido e um outro, antecipável, sempre em “latência de”, tão bem cristalizado no Festim Diabólico (Rope, 1984), de Hitchcock, Krasinski leva ainda à outra dobra de confusão. Pois não é o prego pontudo e acidentalmente erigido na escada do porão onde eles habitam que irá engatilhar o urro de dor, mas a bolsa estourada que anuncia o parto, que traz como consequência a saída inventada pelo núcleo familiar para abafar um dos episódios mais barulhentos da vida, e, em especial, a previsão de que eles estarão unidos para dar cabo ao plano

Mulher sentada em frente a espelho

Descrição gerada automaticamente com confiança média

    Cinema, arte da desunião aditiva. Mais da metade do filme, dali em diante, tratará do estado emergencial do barulho, ponto em que todo o inesperado se desova numa caixa de Pandora partida ao chão. Pode-se dizer que há uma sequência inteira, uma provação só, unindo todas as não desejadas. A mais especial delas fica sob responsabilidade do filho, que, mais unido à escolástica materna, mune-se da sabedoria de dizer ao próprio pai que é preciso que ele DIGA, à filha, do amor que sente por ela. O professar, neste caso implícito na tentativa de criar para ela um aparelho de aumento de audição, deve ser atado a um praticar ainda mais sacrificial. Mas tentar apaziguá-la do problema auditivo já não era suficiente? Não nos parece ficar posta em evidência a suposição de que nem a mais pornográfica das caridades é suficiente, se parte dos olhos do pai para aqueles de um filho? 

É um filme, afinal, de morais. E para as morais perderá o horror. 

“O que o papai fez – está em você”, passa a ser o mesmo outro lema do segundo capítulo da franquia. Sabemo-la uma franquia, aliás, por isto: o evidente é transferido para o final, para uma catarse paupérrima de complexo edipiano cuja função já foi proferida por dezenas de vencedores de Oscar: “nós vendemos histórias”, o poder de atravessamento que uma superação provoca no indivíduo que precisará se superar, mas primeiro moralmente, abaixando-se ao poder que deve lhe servir de fonte. Não tratarão mais de uma ética do som espraiada nos acontecimentos de um jogo com (agora) quatro jogadores fragmentados, nem de uma estratégia do contra-ataque condizente com a SAÍDA de uma primeira etapa do silencioso, mas encontrarão na obsessão pela origem esse mesmo espírito de encarnação familiar que se espera “do vizinho”, politicamente falando. O vizinho estenderá ou não, a ajuda? Quando cessar os cadernos do passado, quando não enumerar mais os mortos e não contabilizar mais seus desesperos, ele ainda será o bom Emmett (Cilian Murphy)? O bom vizinho? 

A mania de origem, de encontrar o agora no passado, presenteia-nos com um prólogo inteiro dedicado ao que já se esperava que o espectador “qualquer” tivesse lido na tática dos jornais, no filme anterior. Uma entrada, convém explicitar, menos sobre a família, menos sobre as regras ou sobre os horrores adaptativos “do começo”; menos sobre o começo de tudo, em si, e mais sobre o caráter colecionável e industrial da cosmogonia. A que ela serve?, tampouco poderíamos responder. O que é definitivo ao filme é que o som, de ausência cultural, torna-se falação, do mesmo modo que as grandes sagas eventualmente se tornam bonecos, quebra-cabeças, camisas, canecas. A ambição é a de identificá-los com maior profundidade ao tipo de heroísmo que se prova ininterruptamente, em tudo e em todos os dias, e que para tal apenas precisa rememorar a bravura-pai. O passado é a Ideia que se amarra com a fita da boa lembrança, a Única.

Se tivesse argúcia o suficiente para beirar a crise de deus, este estaria envelopado perfeitamente na ética do pai-ressuscitado-que-por-nós-deu-tudo. No professar praticado desta ética. Do começo ao fim, o que se acusa, PRATICAMENTE, é que o armamento inventado por aquela família, a perturbação nervosa causada nos monstros pelo borrão sonoro dos transmissores, tão-somente recebe um dado extra de transmissão, advinda de um acontecimento do fundo do peito. É o fenômeno do rádio no Lugar Silencioso, e também o fenômeno da conversão filial – fim. É como descobrir que uma xícara levemente quebrada pode servir de cinzeiro, e ver neste um santo. E como a apoteose final é uma irrupção da dimensão pela qual eles se munem contra um número (só aparentemente) cada vez maior de monstros, quem sabe a saga não precise de dezoito continuações para que eles cheguem a algum encontro à altura do descanso e da troca de inteligências. O som, o conceito do som, o espaço extrassensível imantado pelo som, sabe-se lá se não encontra, adiante, uma maneira menos letal de ressuscitar também a Wi-Fi. 

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O pêndulo, a fugitiva

Por Felipe Leal

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Quando um esquema distinto de narrativa nos entrincheira numa zona temporal em que um vértice projetado no futuro é eleito como ponto de retorno de todos os esforços também futuros, criando caracóis diegéticos, é comum que saltemos, também nós, no tempo. Saindo da cronologia cuja direção é “à frente”, desarticulando, em conjunto, para as outras coisas (“coisas” como os sentimentos) o novelo dentro do qual elas são consideradas, semelhantemente, pela durabilidade, ou mesmo pela eternidade, o que essa deformidade temporal que o cinema propicia transfere para as experiências é que, aquelas capazes de “conversão”, duplamente próximas da sensação de “origem”, é a elas que o memorialista de sua própria história deve se dirigir se quiser viver um tempo à guisa de imagens libertas.

Que Pulp Fiction (1994) estoure em surf music após um assalto em chamas interrompidas, dando início ao “verdadeiro” início, só para em seguida devolver Vincent Vega e Jules Winnfield a mais uma odisseia semirreligiosa de retórica e tática, não quer dizer que todos os filmes pós-Tarantino envolvidos com dobraduras temporais são dele devedores explícitos, nem, por um outro lado, que seus antecessores eram gérmens menos elaborados. Compreendidos enquanto máquinas de suas próprias necessidades narrato-lógicas, os filmes passam a ser organismos cujos ciframentos e significações funcionam, aliás, precisamente para evitar o comportamento compulsivo de virar tudo às claras, aproximando a obra do reconhecimento sintético. Isto não porque, desde seus “pós-guerras”, os cinemas tenham se dirigido menos para encadeamentos e mais para desencadeamentos imobilizantes, mas uma vez que tudo aquilo que concerne à memória deve explicitar de que memória está falando – e há memórias que edificam tanto quanto há memórias que, afetuosamente, passam à frente para a edificação de outras.

O que acarreta, então, que no início deste O Sul (1983) uma jovem entenda, receba como que por uma faculdade diferente dos ouvidos uma certeza derradeira e antecipada, tanto em relação a nós, que ainda não conhecemos ninguém, quanto em relação a seus familiares, que desde ali “não ouvem como ela escuta”, sendo talvez esta a primeira “informação” implícita do filme, ao filme? Que ela ouça daquele desaparecimento de seu pai entre latidos, gritos e pássaros, todos os sons refletindo ou buscando aquele mesmo nome, todos os sons sendo signos deste nome ausentado, o desaparecimento definitivo, distinto dos outros, quando também havia o grito, o latido e o pássaro? Ora, dado um caracol, a resposta está no caracol: a chave de seu passado está escondida no pai, e o pai está escondido, está se escondendo, ele sempre se escondeu em seu passado. Jogo artificioso de memória. Jogo, para o “maestro da Espanha” Victor Erice, é a pureza do dispositivo de disputas onde a memória é sempre mais uma natureza de memória.

No que parece ser o mesmo cômodo onde ela “hoje” acorda para receber a anunciação do precipício vibratório de onde o pai não vai retornar, jaz também uma lembrança pré-natal: a postura de um pêndulo acima da barriga da mãe grávida teria determinado seu sexo, fazendo da filha um fruto biológico, mas também dos poderes divinatórios do pai, de quem vai insistir, mesmo que silenciosamente, para “receber” uma iniciação. Estaríamos relembrando o tempo inteiro desse aspecto da memória que a torna uma ilha de edição propriamente cinematográfica. Nada, afinal, aconteceu, para ninguém, de uma forma que possa ser resgatada, nem em totalidade, nem em veracidade. O real, neste caso, é o impossível inventado. E o ponto de vista, um deslumbramento que golpeia as posições, mais do que as filiações ou os nomes, com uma outra impossibilidade, esta a ser tomada quase como sacra: que ela edite e assuma sua invenção do pai, que o memorável seja uma espécie de eterno retorno do preenchimento, nós já entendemos. O que assombra, aqui, é que ela acredite numa transferência extra-física que, devendo ser provada, terá de se lançar em direção ao lado sombreado da memória, o que está sempre em vias de vir e, nunca vindo de todo, não cessa de enviar seus sinais.

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A crença, antes de ser delírio, n’O Sul, é uma postura diante da sobrevivência de uma memória que seja razão-de-memória, que a recorde, assim como a nós, de estar certa, pelo menos, do que não foi aquele que foi. E o pai não podendo morrer inacessível, a menina tentará reproduzir dele os momentos de nudez, transmutando o espectador, como o fizeram Murnau, Bergman, Dreyer, mas também Akerman, Hitchcock e Reichardt, mais num confessionário do que num confessor. Os segredos estando visíveis na medida em que escapam para o território da invisibilização, não podemos testemunhar sobre eles senão dizendo que algo que efetivamente não pôde tomar carne em lugar algum, ali está, denso, maciço como o que tem peso. Semelhante ao efeito de eternidade que detém uma obra como A Felicidade Não se Compra (1946), encontra-se aqui um esforço afetuoso de entregar à vida insustentável uma segunda chance de se fazer no tempo, num cristal, e partir das imagens deste outro. É por isso que o filme de Erice se entrelaça como devidamente tendem a se entrelaçar as memórias nos interiores dos países, lugares de costumes: pelos acontecimentos que os ritos preservam.

Como uma narradora numa idade e num estágio de relação com aqueles indivíduos em que só interessa o “isto-foi”, contando-nos da infância e da juventude o mais contaminada possível com suas brechas, e portanto, criticamente falando, o mais distante de “uma só” identidade que se pode estar, toda ritualística marcadamente feminina de Estrella, se incrustando numa película cujo elemento químico de referência é o nível de entrega do pai àquilo que lhe diziam as mulheres ser “um acontecimento único”, atesta-se nos momentos de maior comunhão ou de maior afastamento com ele. Momentos que serão transbordamentos significadores de uma independência que só separando-se dali, mais do que dele, ela poderia alcançar. Na celebração da sua Primeira Eucaristia, parecendo uma noiva de acordo com as tias, a câmera retorna ao véu, pendurado isoladamente numa cadeira que a tradição aliás ordena ser ocupada pelo pater, depois de deslizar na dança oficial de sacramento com ele. O momento de júbilo da garota, o de ter conquistado o maior sopro de ânimo e dedicação de uma figura dominada pelos estados lacônicos, fica grafado como mais significativo do que qualquer contrato feito postumamente, dentro ou fora da igreja, com outro homem.

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À sua maneira, a fúria que ela esperaria da mãe, outra suposta, senão a maior vítima daquele marido mais dedicado às estrelas de cinema, é frustrada ao ver que essa mulher, preferindo não tocar nas lacunas “da traição” de forma alguma, perde os direitos de participação e de reivindicação de todas as formas. Tudo se desenrola, ou melhor, não se desenrola, como se a mais adulta das duas se satisfizesse com o imaginário sulista dos cartões postais, restringindo o marido a um rolo de caprichos dos quais ela só tem uma imagem distante, enquanto a criança, que é quem os coleciona, ao contrário, persistisse em encontrar o signo além deles. Aquela mãe desenovela um miolo de linhas rubras atiradas ao chão pela filha, como se, incapaz de ser honesta ao menos sobre a existência de alguma mágoa, participasse de um trabalho tolo de sublimação cujos significantes são também demasiado fúteis, e quando a chance de repreender Estrella por ter sumido durante um dia inteiro mais lhe cai nos ombros, o que poderia ter sido uma libertação dos fantasmas da casa acaba invertendo os papéis de vez. Na cena mais emblemática da obra inteira, o coração daquele homem pendurado bate da única forma que soube fazer-se ouvido. A estratégia de comunicação dos emudecidos fica à altura do que ele nunca pôde lhes dizer diretamente. A criança recebe um comunicado via som; a outra, no entanto, o estranha. O cosmos está espatifado.

A superação das lembranças puras em imagens-lembrança, como pouco menos de um século antes teria arranjado Henri Bergson, desencadeia uma mudança tamanha de “estações”, de sazonalidade, para aquela menina e para sua forma-biografia, que os ritos naturalizantes das profecias de amadurecimento feminino não conseguem contemplar, se seguidas ao pé da letra. Em nome de uma “mudança de tom do registro” digna de um diário que se pode cindir, a posteriori, entre duas formas de discurso extremamente distintas, uma coletora, outra unificadora, a radicalidade com que ela passa a ver o pai, sob aquele ponto de mirada cuja inexpressividade aberrante é pura comunicação de um sofrimento de fato superior, fazem dela alguém para quem o gesto mais afetuoso é tomar distância para mapear, quantas vezes for preciso, o melhor jeito de abordar de novo. A pureza de uma ficção, e não é tão diferente assim o que acontece na primeira explosão proposta pela psicanálise, se desmancha num brinco antigo mas muito querido que é preciso fazer “vivo”, justificado mesmo que deslocado no tempo. Para crescer, ela precisa crescer o peso do baixo volume do pai.

Pois assim o é aquele homem, que teme mais os vivos que as figuras da grande tela; ele é alguém que se dá perdido no tempo, que se dá aos poucos. Muito pouco. Só simbolicamente. Alguém que, pouco “dizendo”, dirá melhor de si nos menores registros de som. E preparada para escutar a frequência menor, ela também se mune o suficiente para dar equivalências até onde ele aguentar ser “o” ouvido, até onde se perceber, como seu rito de existência comanda, na persona do culpado. Mas quem é o culpado? Ou melhor: quem é este que cumpre a função, a imagem do culpado? Aquele que tem de se terminar em respostas.

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O porquê de ouvirmos antecipadamente, desde onde está o início-do-filme que ela julga justo, e junto com ela, que nos empresta supra-ouvidos, de um homem que nunca mais voltará, coincide com o preparo, travestido de onisciência, daqueles narradores que sabem que, dentro das possibilidades de um afastamento total da vida como vontade, é preciso embalar e cuidar para que aquele de quem a coisa será separada conviva antecipadamente com outras formas de ausência, como o não-entendimento, como a negação das vontades. Estrella e espectador são, enfim, testemunhas. Em outras palavras: o que a mãe da garotinha não faz, ela materna sozinha, fá-lo confessar sozinha. Quando a tradição não nos é passada, tomamos nós as rédeas do que as coisas estarão vindo a dizer.

 Vendo cada vez mais aumentar o vácuo da figura paterna em direção a um tipo humano que, separado do seu berço sulista por uma briga com o pai (avô que ela não conhece), só pode dever existências seguras às imagens e pessoas do sul da Espanha, a tradição simbólica que o arraiga, essa alteridade do pai (aquele outro que, sendo mistério, lá ficou), toma do campo semântico das manifestações ocultas e divinas o funcionamento de seu maquinário. Estrella une imagens de outras culturas e meios visuais às técnicas também variadas de memorizar, enquanto criança, e com isso reserva para sua primeira figuração dele um tipo heroico, sublime, importante e sobrenatural, mas separado da realidade de seu alcance tanto quanto está esse “deus” de que lhe falam. Seu pai é, então, uma caixa mágica de conteúdos cifrados.

Agora, quando as mudanças auditivas (da última conversa, do pêndulo, dos gritos da mãe e dos criados) lhe inauguram, naquele início de filme que é princípio dos fins de uma individualidade, como que a detenção de uma câmera, o que sua assunção de uma trajetória adulta afirma da vontade de independência alojada na re-articulação de nossas imagens é que “escrever a si mesmo” é rasurar tudo aquilo pelo que somos acusados de “início”: as imagens de outrem. Através de Estrella, assim como através da criança Ana e do Frankenstein “real” d’O Espírito da Colmeia (1973), Erice entrega às crianças e às quimeras incompreensíveis algumas das rebeldias mais tocantes que o cinema se presta a homenagear: a daqueles que inventaram uma língua para dar conta do extremo onde não temos fim, onde somos emperrados, onde somos o signo da vítima. Mas ser refém num limite, ser invadido pelo campo dos grandes outros, a isso se responde inventando um melhor lugar para todos os “si”s.

Ainda que o efeito do corte “inicial” seja o de suspender também nossa consciência de caso, sendo preciso fingir sobre esse não-sumiço para lhe dar sempre boas-vindas, muitos dos episódios da passagem da personagem dentro da vida adulta torcerão a um grau máximo a receptividade a partir da qual “o lado de lá do pai”, o que estaria mais próximo do seu ponto de vista, vira um exercício de perseguição de lacunas que só se realiza aproximando a distância, quão grande ela seja, disso que o cinema mesmo ainda não se desimpediu de fazer: produzir outras cosmologias só visíveis quando o próprio pensamento do cinema se transfere para suportes distintos. No caso em questão, necessitado da pretensa amplitude sociológica das imagens encadeadas menos para ser “verdadeiro” ou “falso”, e mais para esticar os centros de dúvida de onde recomeçam e recomeçam os apegos, as impressões e as pistas de uma profundidade nuclear, o dispositivo de Estrella perceberá o outro núcleo, a outra vida do pai, à “luz” dessa espécie de verve documentarista capaz de violar todas as leis para buscar em seu objeto os últimos resquícios de uma forma-memória.

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No que será uma das conversas cabais entre ambos, ela lhe questionará sobre seu pouco interesse no departamento dos namoros. Ela é, afinal, uma filha autogestada; quer saber por que ele, ao menos, nem que fosse uma só vez, não fingiu querer saber. Ao que ele é capaz de responder: “e eu tenho a culpa, certo?”. Sendo, portanto, a verdadeira resposta uma pergunta desviada: “por quanto tempo serei [só o] culpado, eu que certamente não poderia lhe retribuir senão com culpa, no jogo dos porquês?”. Entendemos, enfim, a primeira imagem, a imagem que só deve configurar nosso “primeiro” estágio: ela nos escapa, e exige que escapemos constantemente de algo um “si mesmo”. Impedida de buscar suas próprias figuras, ameaçada de viver à imagem d’Ele, Estrella escapa então, das imagens colocadas sob sua posse. Vaga até onde não possui nada além de começos. Vai ao Sul. Ser ninguém?

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Alemanha, Ano Zero

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Por Jean Narboni

Tradução por Felipe Leal

Nada é mais enfadonho do que uma certa mitologia desenvolvida ao redor de Rossellini há uma dezena de anos, e à qual ele parece, ademais – por jogo, lassidão, ou simplesmente desejo de que o deixemos em paz? –, entregar-se de maneira complacente. Nada é mais enfadonho do que essa figura do diretor de consciência universal, de agenciamentos navegantes por entre um estoque de saber imemorial e de povos pressupostos e famintos de cultura e de comunicação, ou do apóstolo que dispensa a boa palavra à uma horda de discípulos concorrendo entre si quanto à passagem de tal herança. A projeção de Alemanha, Ano Zero permitiu que fosse restituído do cineasta uma imagem, senão mais próxima de uma verdade, de todo modo infinitamente mais excitante: é um homem consciente da ação mais do que da pregação, e de agarrar o mundo mais do que contemplá-lo; pioneiro de terras, explorador, cartógrafo e um tantinho aventureiro, assombrado pelo sentimento do provisório e da precariedade. Como não ser sensível, assistindo a este filme conciso, decidido, revirado de ânsias e, se pudermos dizê-lo, conquistador, em direção àquilo que se manifesta de uma necessidade, de uma coação íntima, em uma palavra de uma urgência, que são talvez, de uma obra de arte – mais do que os temas que ela desenvolve, e ainda mais que sua escritura –, a parte infinitamente preciosa? Seria preciso, para falar de Alemanha, Ano Zero, tentar lhe atribuir um pouco da velocidade e da turbulência que o animam, de onde provém, durante a projeção e ao seu término, a impressão extenuante, sufocante – “de tirar o fôlego” – de ter, não o assistido, mas de ter sido acompanhado em seu curso. As reações do público, deveras numeroso àquela tarde, não deixam dúvida alguma sobre este ponto.

Durante certo tempo aqui nos Cahiers, nós nos debatemos diante da alternativa entre um cinema da transparência, que não conservaria traço algum de seu processo de produção, e um cinema que inscrevesse em si a marca de seu trabalho formador. Quanto a este distanciamento, Rossellini, de quem conhecemos a sentença “as coisas já estão lá, por que manipulá-las?”, foi tomado pelo cineasta por excelência da transparência. Alemanha, Ano Zero, entretanto, faz de tal oposição algo vão ou já superado, uma vez que indubitavelmente não conserva traços de nada, mas sobretudo por ser, de parte em parte, a anulação em ato dos rastros de sua passagem. Em seu célebre artigo, Rivette escreveu outrora que não guardamos dos filmes de Rossellini nenhuma memória de enquadramento, de imagem ou de plano, mas somente de um traçado, de um liame, implacáveis. Alemanha, Ano Zero progride como uma devastação, uma destruição, um rastilho de pólvora devorando a si mesmo. Que mostra ele, ademais, além da transformação de um “rastro da ausência” em uma “ausência de rastros”? O que é ele senão uma versão moderna e atroz d’O Pequeno Polegar, onde o infante, uma vez cometido o parricídio, tentará reencontrar nos escombros de uma vila devastada alguns frágeis dedos indicadores, logo depois sentindo que eles se furtam um a um, se permitindo, propriamente, morrer?

Impossível, especialmente nos limites de uma nota, aqui, dar uma volta num filme como este, mas me deterei sobre um ponto. Que cinema não cessamos nós de defender aqui, e contra qual outro? Um cinema da inscrição verdadeira, da perfuração cruel das letras, do ensaio da passagem ao ato e da tomada à palavra, cinema contrário ao implícito e ao subentendido, à alusão e à metáfora. A extrema modernidade de Alemanha, Ano Zero tende talvez ao cumprimento radical deste programa. É certamente por ter tomado a sério o discurso nazista de seu antigo diretor de escola sobre a necessidade de limpar o mundo dos doentes e dos fracos que a criança realiza seu crime. Mas não tivesse dito somente isto, o filme não escorregaria a esse ponto ao sentimentalismo das ficções sobre abandono, sedução, devoção e morte de crianças. Sua burla e seu humor – sim, seu humor – insustentáveis têm, sem dúvidas, em mente e em fato, que a criança está sempre encurralada entre diversos discursos de ordem ou de incitação, portanto uma discursividade familiar, e que é entre eles que ela construirá seu percurso, como que sobre um fio: discurso, no momento do crime, por exemplo, do professor nazista bem conhecido, mas também queixa ressuscitada e repetida do pai sofredor. “É melhor que eu morra de uma vez, sou para vocês um peso”. Este humor tristonho e mais eficaz, mais violento que toda denúncia de ordem política ou da hipócrita manipulação familiar, se é verdade que o humor é aquilo que não se opõe à lei, não a contesta nem se manifesta contra ela, realizando-a estritamente e a conduzindo às últimas consequências, coloca, ali, tanto melhor a nu, uma verdade cruel e obscena.

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[1] Texto publicado na revista Cahiers du Cinéma, edição de nº 290-291, julho/agosto de 1978, por Jean Narboni, pg. 47.

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Ou voa, ou volta: por uma sociopoesia do alto

Por Felipe Leal

 

Temporalidades e reflexões empasteladas em cantigas sobre uma certa Valparaíso chilena? Há dezenas; e, como de costume, trançando seus “hurras” com versos de nostalgia, divinação ou espera pela terra de águas que vibram em dourado, como aparentemente nos vibram as harpas. Ora, é neste aparentemente que nos delongaremos, nisso que insiste em dizer e desdizer o regime de sua própria vizinhança. Mas, por enquanto, se se trata de remontar um repertório-Valparaíso, repertório de uma cidade à altura do cinematográfico, notemos que ele cerzirá essa cidade de imagens (ou imagens-cidade?) despreocupado em elitizar, em montagem, as mais ou menos artísticas criações em cima de um paraíso já deveras remendado. Pois também há pinturas populares com suas deusas lânguidas e instrumentistas favorecendo navegantes, há retratos de instantes marítimos curvilíneos e dramáticos à medida turva dos pincéis, e ainda charges cuja implicância com as desmedidas imperialistas o cinema sublinha enfaticamente ao imantar não tão-somente um lance de olhares entre o arco simples ‘dominadores/dominados’, mas ao dizer que ver é: dizer como se deve ver o que (já) se está vendo. “Mostrar o quanto é invisível a invisibilidade do que é visível”, como colocara Foucault em se tratando da ficção. À sua maneira, tudo já está montado. Cabe a um holandês voador montar ainda outra vez.

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Talvez seja por isso que este A Valparaíso (1963), curta-metragem do falecido e quase centenário Joris Ivens, ainda nos ressoe como um postulado de montagem a ser inquestionavelmente aproximado, fichado e esmiuçado sob o tom da poesia – não para dizer o que ela é, nem muito menos repartir a quimera nomeada ‘cinema de poesia’ em mesas de conceituação; antes, para lançar breves apostas sobre quanto do poético pode caber numa técnica que nasce e se revira na fratura para rearticular a impossibilidade óptica, científica e sensível de que as coisas se encerrem em si mesmas, estáticas, e de que particularidades uma carreira com no mínimo 20 filmes embriagados de iconografias entre o civil e o citadino pode se lançar mão ao filmar e reproduzir, lendo veloz e sistematicamente, uma cidade que contém ainda outras cidades dentro de si, todas interconectadas e interceptadas pela via socioeconômica que parte do porto, arranca alturas com elevadores e escadas lotadas de casas inclinadas, e vai parar somente para assistir aos cortiços nos montes “invisíveis a olho nu”. Mas não só lendo: relendo, negando o lido e dizendo o que há e não há para ser lido nas gramáticas do arco imagem-significação – como, sabemos, o faz a poesia.

“É uma cidade”, a voz narra, para logo em seguida adicionar: “não uma cidade, um conjunto de cidades” – e é como se certo regime de contradições, a partir de uma ética montada em jogo, abrisse um espaço para si, também ele montado, artificial e escritutário, e sustentasse as duas assertivas juntas nessa mesma porção quase impossível de terras, uma cidade cuja geografia consiste em ser várias (uma-múltipla), sendo ao mesmo tempo, empiricamente, efetivamente, várias dentro de uma, espécie de boneca-russa das províncias que cabem em províncias. A câmera desconhece o alto e o baixo senão para fazê-los indecifráveis. Influências asiáticas nas fachadas de hotéis, pinceladas afrancesadas nos costumes de língua, regimentos britânicos de funcionamento monetário… tudo articulado entre o apolíneo e o dionisíaco para duvidar e reafirmar uma espécie de ilhota de luxos dentro do terceiro mundo, micro ou macroscopicamente, ou seja, de si para si mesma e de si para com as nomenclaturas do fora.

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A paleta de imposições físicas diante do social, não bastando Valparaíso estar espraiada em direções incontáveis à rosa dos ventos, toma do absurdo sua literalidade e a durabilidade impressionante daquilo que lhe é frágil por estar em pé. As centenas de escadas guardam o mistério dessa socio-tipificação, algumas indo mais acima do que sua continuidade parecia sugerir, outras se encerrando como que espontaneamente no ar: trata-se de subir ou de voar, ou de subir o suficiente para que voar ressurja como possibilidade peculiar na grande roda da fortuna dos sujeitos sobre e sob deuses. Mas estas escadas são também o complexo de incalculabilidade entre o disciplinar e o acidente flutuante, elas forçam os fantasmas de proto-vidas ao mesmo jogo métrico que resulta em índices imateriais do vivido. Sombras em marcha, desfiladeiros de duras optativas, futuros esquecidos pelos pés, tudo de fato parece reconstituído por Ivens como a narratividade de García Marquez; o fantástico não está diametralmente oposto ao real, ele é apenas uma furtiva licença óptico-escrivã para se reunir com certa contrariedade ao destino: a história escrita de sangue. Então, rente às escadas, se dança, se afoga a altura das autoimposições pisoteando-a no mesmo nível daquilo que não é meio nem início, mas fim. Fim suado, alugado.

“Não é o mais rico [dos portos], mas vive-se, vive-se bem”, intercepta uma voz flutuando dentro dos elevadores e tecendo junto ao movimento de ascensão essa primeira contra-dição (tomar a fala para falar contra; dizer o outro lado estando do outro lado). Aqui, onde é preciso labutar o viver para só em seguida impor à vida uma crença de bonança, de vida vivida, aqui é preciso se separar das coisas para vê-las melhor. Todavia, particularmente por esse artifício de montagem que perturba nosso próprio emprego de metáforas da leitura e da literatura como algo inerentemente nascido com o cinema para melhor decifrá-lo e com ele se acostumar por imperativo de um centro (sou eu quem o lê, afinal), separar-se das coisas nos parecerá mais complicado, posto que significaria também separar-se do todo de vida em que tais ‘coisas’ assim o foram junto com todas as outras que não são elas, e que só necessitariam ser o que são se com elas desejássemos estabelecer proximidades.

O que pode Ivens querer, então, com Valparaíso? Com essas mulheres em roupas de grife passeando com pinguins de estimação sob a carnificina do meio-dia, e que, no entanto, não são mais, ali, por um instante suspenso porém durável, o retrato finito e reconhecível de uma burguesia que advoga por seus louros exibindo o que há de sofrível nas correspondências de classe, mas quem sabe lúdicas e desastradas vítimas dos próprios saltos e de uma vida que, concebida sob os parâmetros da altura, chega a praticar o ‘enobrecimento’ emprestando o colo a uma ave irascível e escorregadia como habitus de passeio, resquício quiçá das promenades afrancesadas em que o sujeito, ao contrário, era aquele a ser avistado pelo mundo.

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Esta motivação, na medida transparente de nunca que nos caberá dizê-la ao certo, ao menos supõe-se na própria malha retalhada e reinvestida de posições de olhares com que a montagem dança como que disjuntando um pas de deux, encantando o velocímetro de encadeamentos dos quadros com uma espacialidade especial possivelmente só encontrada no incessante movimento de fundação daquilo que se chama uma cidade: sendo impossível em qualquer momento de sua história, propriamente concebê-la, visualizá-la ou domá-la como um todo funcional a certos olhos, lança-se essa parte a um todo que está sempre aquém e além de si mesmo (a conceituação do plano é tomada aqui, então, numa acepção extrema de porvir, para além daquilo que se esquadrinha e em direção a um plano-planejamento, a uma elaboração medida para ser outra coisa que não ela).

A cidade é todo-fictício. Ela é totalmente, mas também impossivelmente, toda, e não é por menos que por esse aliciamento compartido que Joris ora opta por conduzir séries de inícios de planos costeiros intitulando-os e intercalando-os com elementos da cidade (os panos das donas de casa são frutos da poesia comunitária das ventanias, as rápidas incursões nos bailes festivos são a veia explosiva do traço sanguíneo estourando para dizer que ali o proveito se faz ao lado da labuta), ora por induzir as narrações a comentar um pitoresco arquitetural sem que, no entanto, cheguemos a visualizar seus interiores, seja para deixá-los ao imaginário, seja para simular uma reticência sem atropelá-la com uma melancolia já implícita. São espécies de socio-sentimentos cuja fagulha de indefinibilidade toma emprestado da montagem seu elemento mais simples – o choque de duas proposições subsequentes –, afetações que implicam o particular a partir de uma categoria social, mas que também sugerem ser o gesto sociológico alguma coisa permeável a propostas de individuação.

Como na poesia, essas imagens em estado de vibração despencam de um segmento de palavras (sentido) para então recair numa posição outra, verso/lugar seguinte mas estranhamente pertencente à lógica sequencial do todo, sendo a ruptura que evidencia tal distanciamento aquilo que faz ver essas mesmas coisas como in-familiares. O risco ético de colocar assertivas simultaneamente sociológicas, sentimentais e da ordem da verificação e da visibilidade do tangível é levado a um extremo minimamente inóspito, pois que nada é terrível, alegre, curioso, insustentável ou revigorante que não possa acolá ser todas as coisas ao mesmo tempo. É mais por levar as subjetivações encarnadas nos enunciados para o ponto em que elas se rompem e ganham substâncias liminares, do que para afirmar do real que este precisa ser des-normatizado e re-exposto, que qualquer estado de elevação poética não será simplesmente acessório e dissidente, inofensivo e retórico. Poéticas como estas, vistas em formas-cinema tão frequentemente próximas ao elemento civilizatório, se necessitam da linguagem de um empréstimo de transubstanciação, é para religar todo o bojo “domesticante” das formas de ver e ler ao seu avesso: aquilo que, inexplicavelmente até certo ponto, dota a si mesmo de sua ser-c(i)ência, guardando às escondidas as ferramentas de sua própria fabricação: habitus.

É clara, a máquina de que estamos falando?

Pois a velocidade equilibrista do encadeamento não seria suficiente para nos dissuadir de que essa voz narrativa, antes de esquivar-se elegantemente da propriedade divina dos primeiros textos dos documentários observacionais, tampouco precisa lhe refutar ou ser dela uma superação: o gesto de passagem de um quadro a outro, polissêmico por excelência e por disputa, assume também um tom cuja peculiaridade retoma traços desses supostos dispêndios e lassidões discursivas orientadas em rebater as propriedades determinadas dos significados.

Não é que se viva bem, ali, de fato e de acordo com uma média delimitada pelo conceito de humanidade, mas que “bem”, sendo não só palavra como pronunciamento de uma ocupação de significantes enrodilhados num presente, e sendo este presente o cruzamento entre texto e imagem, precisa tornar-se língua em movimento poético, uma distensão a partir da qual o vento, o calor sanguíneo e a presença do mar podem escrever uma história fictícia, temporária e estática de alguma “boa” vida àquelas imagens solitárias de crianças penduradas em balanços, às imagens de mulheres estendendo roupas ou dialogando rente à passagem dos vagões, esmagadas pela cidade, ou mesmo às imagens operísticas da população lançando sombras musicadas aos esqueleto de escadarias de Valparaíso. É que o fictício, alguns cinemas, não se opõe ao real, nem chama de “reais” as temporalidades feitas à parte daquilo que é captado. Não se trata, aliás, de reformular, dialogar ou “problematizar” com qualquer enunciado de realidade vindo de qualquer campo de saber.

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Como quando retiram-se de um texto todas as presenças da palavra “homem” para visualizar, ainda que ludicamente, os sentidos atribuídos ao masculino como forma de homogeneização das práticas letradas, experimentar a extração, em À Valparaíso, de qualquer interpretação ou lente de vistas pelo regime da realidade também retiraria do texto recitado por Roger Pigaut qualquer necessidade de aderir ao diretor o endereçamento ou a responsabilidade autoral como antecedente das possibilidades visuais e letradas de romper com a linguagem. Experimento visual como qualquer outro.

Não interessa, afinal, quando se trata de tecer essas “poematicidades” como dispositivos de intra-nomeação espacial, se quem coreografa é a câmera, o povo ou a imposição da presença de câmera ao corpo; não interessa se as flores debaixo dos trilhos são obviedades semânticas do mesmo modo como se revelarão as ironias das pinturas de cavalos nos bares da cidade, sendo aqueles corredores os mesmos que findarão, cansados, mortos, como carne nos pratos; e não nos interessando, enfim, identificar ser aquele que diz, quem diz, o resultado narrativo equivale, ele também, ao vidro estilhaçado e às cartas de baralho manchadas de sangue que dão à tela a inesperada colorização: necessita-se unicamente de uma partícula que diga: (passagem). Será algum espectador capaz de dizer que, ali onde repentinamente há cor, há também a inauguração do poético na obra, arriscando simultaneamente inferir que ele não existia antes, e que tudo não passava de uma farsa sentimentalista maldosa? Ou se estaria diante de um momento privilegiado, momento no qual e para o qual uma passagem de sentido não é uma passagem de todo, ou ainda que algumas passagens devem conter também uma não-passagem? Nada se verifica. Tudo acontece quando uma passagem se lhe pede.

Falar, não é ver. As palavras estão em suspenso, como está a disputa pelas cidades na cidade. Liberado da exigência ótica, a seletividade improvável disto em suspensão nas palavras se choca, no cinema de Ivens, com o que há de disforme na constituição do visível que, sendo metaforizado pela consciência, só pode nos chegar como dádiva de materialidade singular, enxuta do todo. Esse narrador é ninguém, mas só se ausenta ao colocar dois postulados num golpe de tempo só: atravessar a rua é também atravessar a morte.

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Há um olho que me observa

Por Felipe Leal

Instigados pelo ruído grandioso, temático, que certas palavras podem suscitar a despeito de seus tamanhos ou complexidades consoantes, seríamos tentados a esquadrinhar o apocalipse sobre as mesas já demasiadamente iluminadas, ora do evento religioso, ora dos interesses filosóficos: ele é, afinal, sempre “O” apocalipse, a derradeira despessoalização; e é também, à sua maneira, um dos poucos termos limítrofes do sujeito pensante enquanto pessoalidade, humanidade de qualquer pensamento. Enquanto cá residirmos para pensar o mundo, este seguramente existe, existe ao menos enquanto algo a se pensar. Entretanto, ele continuaria a existir, uma vez que não houvesse ninguém para concebê-lo? Sedimenta-se um nó – algo emperra e impede que a ideia de fim consiga conceber o próprio fim, restando-nos dois gérmens de ‘antes’ e ‘depois’. Pensar um fim final, ao que até aqui parece, é, de imediato, unir-se à pergunta do quando. Notemo-lo bem: o apocalipse é da ordem de um tempo específico tanto quanto trata de um modo específico de vida em deterioração; ele precisa da extremidade que aquilo de já estanque pode atingir.

Praticamente todo filme apocalíptico é grande dependente de um estado de exceção em que o doméstico se dissolve e, no externo, é preciso atuar em dedicação delicadamente conjunta, em definitivo e contra ou a favor de uma articulada fonte de poder. As narrativas planejam que sempre restará alguém para preservar, ou ainda, alguém que poderá multiplicar e povoar de novo, ou que sempre, e mesmo que a contragosto, um indivíduo específico poderá evitar qualquer (outro) apocalipse (realmente final) de uma catástrofe já eminente, presente, por algo de único que só ele detém. E nós que não somos o acontecimento vivemos num curioso empecilho onde o único tecido que pode nos lembrar e nos fazer durar (isso que se chama história) convoca, dos enlaces produzidos, aquele de um tênue custo ético, tão mais comprimido quanto maior nos ameaçar uma aniquilação. À pergunta, portanto, sobre se seria possível filmar um apocalipse doméstico, mas, mais que isto, um fim de toda a possibilidade de intercalar ou separar, um cineasta respondeu com uma paixão das mais afetadas e com um comedimento material dos mais notáveis.

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Pois se há marco temporal e ético na historiografia da própria história, assim como deve haver um para o cinema, em que a invasão dos corpos mais mundanos – individuais e quaisquer – faz do filme uma artimanha elaborada de des-identificação, é com o mesmo rigor de desinteresses auto-impostos pelo objeto fixo, catalogável ou escrito, historicizável enfim, que Tsai Ming-Liang construirá O Buraco (Dong, 1998). Um mundo está em colapso, decerto, mas a elementaridade virtual cultivada “por detrás” da quarentena, da escassez de apoio de saúde e da moléstia que a televisão comunica para a Taiwan-povo sem qualquer drama além do comunicado informativo, esse componente dorsal que faz do filme um filme “de…”, “sobre…” ou “ao redor de…” é extinguido através do caractere biológico. Em sua realidade mais íntima e constitutiva, o corpo é passível de contaminação, infiltração, reação: ele não é isolado, ainda que tudo se construa para que ele se separe. Os personagens, pois, funcionam apenas sob a estimativa das necessidades e funções; não possuem nomes, psicológicos ou profundidades delineadas, aquele homem e aquela mulher unidos por um vazamento e alargados por um buraco. Do lado de baixo, acumulam-se papel higiênico e a quantidade de panos necessária para conter o vazamento de cima, e o locatário de lá já se encontra a consumir os produtos do próprio mercado enquanto assiste ao aumento do buraco.

Mais do que a apocalíptica experiência do mundo enquanto labuta canina ou de assassínios, mais do que a escassez cujas narratividades “do fim” pintam pelo pontapé da animalização permitida e não-vigiada, o que eles vivem é o aglomerado de profusões voltadas à faceta microscópica e solitária do cotidiano, e, ademais, paradoxalmente, já que dos vizinhos às necessidades trabalhistas tudo está literalmente a enlouquecer ou estourar. Janelas, corredores, portas, dobradiças, resistências, materiais, vizinhanças, isolamentos, edifícios: toda a escancarada e predeterminante geografia de nosso isolamento, e, por conseguinte, de qualquer relação com um “fora”, volta-se para si mesma até que o caráter pânico e aquele cenográfico estejam imiscuídos. É somente quando o inseticida lhe vem como uma rajada imprevista, do apartamento de baixo até o olho, como um gêiser punitivo, que ele se percebe voyeur e imprensado por meio do concreto em cima daquela mulher. A trama do que nos é permitido enxergar e do que é legítimo que o outro (me) veja rui como os farelos de poeira daquele pequeno círculo encanado. Pouco parece importar, para a tragicomédia musical de Tsai, se haverá alguém para perpetuar alguma história nossa, se teremos morrido pelo malefício mutante de um ser natural ou pela punitiva temporalidade divina.

Mas que reste uma Grace Chang para nos transitar por certo acalento através de canções, que por algum lugar a vidraçaria do realismo e o cristalino do verdadeiro possam se desfrutar na dança despreocupadamente rigorosa, ressuscitada, de um outro tempo que já é também um outro vivível, permitindo a um corpo tido como efetivamente comum, o corpo da imagem, que a coisa guardada como a lembramos possibilite uma existência tanto quanto a maneira pela qual ela deve ter acontecido por norma – isso, é indubitável, importa. Tsai o mantém, literalmente, para todos os propósitos, e assim o assinou ao término da última imagem. Toda a complexidade de tal desejo de endereçamento, aliás, pode ser dita de dois modos simultâneos: a) o apocalipse lhe acontece desde já, e o que resta é selecionar, preservar e exibir aos outros apaixonados todas aquelas figuras, como num álbum passado entre mãos; b) se aquilo com que podemos devanear é somente o termo apocalíptico do acontecimento em si, é dentro do campo do “como ele poderia vir a acontecer, acontecendo” que nos cabe estar restringidos. Um filme musical, um filme endereçado explicitamente aos seus fundos de endereço, e que ele retoma retomando a parte do cinema concernida com os buracos, entrevisões e vazantes: a cinefilia.

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A rigor, tudo acontece num primeiríssimo plano de desimportância representada, o encanador, a descoberta do vazamento e o diálogo enfadonho à porta imantados por uma persistente falta de corte, por uma banalidade, como se um buraco qualquer por algum motivo nos tivesse sido aberto bem no teto, até que algo de uma inteireza também mágica é posto incessantemente ali, junto a tudo o que acontece, e um véu incontornável recai sobre uma amplitude diegética cuja única preocupação sempre será, com efeito, que se resolva o vazamento num apartamento taiwanês na virada do milênio dois mil.

Seria o apocalipse para Tsai uma paulatina não-distinção entre som, imagem, sonho, pele? Porque nunca custará lembrar do eminente e único dado informativo do filme: durante noventa e cinco minutos e unido do crescente e cômico desinteresse do liame jornalístico diante da solubilidade da crise biológica, a chuva é intermitente, a única sonora certeza. Ela é, em uma medida tão desvairada quanto concebível, até mesmo mais crucial que os próprios personagens. O aguadeiro não somente infiltra e descasca os papéis de parede dos apartamentos, não fica restrito ao aumento da umidade como símbolo do contágio afetivo nem tampouco está encerrado na forma de anúncio barrista de um fora em catástrofe. Aquela chuva, a água do elemento majoritário da terra e da composição química dos corpos ultrapassa sua qualidade retratista (de sublinhar um ambiente ora coletivo demais, ora pessoal e abstrato) quando o assunto que ela implica atinge uma mistura, uma intensidade “contaminante” e empírica além, aquém e concomitante ao filme precisamente pela constância desastrosa do empirismo em que ela outrora nos relançaria (a melancolia, o intolerável, a anulação). Pedra de Sísifo, barata kafkiana, praga bíblica, neblina mágica.

Em outras palavras, e no que diz respeito ao cênico, num termo em que a espacialidade da malha sonora possa vir a ser termo para todos, o mote epidêmico/apocalíptico, torcendo a teatralidade do personagem, ao invés de multiplicar, “universalizar”, opta por reduzir, não sendo jamais entre si que eles terão de se relacionar, já que não se trata de fabular um enamoramento pelo lampejo da tradição musical entrecortando cenas, mas com o espaço que os torna alguém um para o outro. Sofisticar e apaziguar, entranhar (sedimentar) e simplificar participam milagrosamente de um mesmo ato conjunto. A possessão repentina dos planos com um certo brilho cinemático toma dessa aclimatação do olho e de sua membrana próxima à habituação o elemento que, no cinema, mais confunde os olhos com certa extra-ordinariedade: que uma vida qualquer esteja à altura da ímpar vida que ela, para todos os efeitos, não poderia ser. Na sucessão dos dias, a mulher degusta o quinto ou sexto macarrão instantâneo – já não sabemos se a água está ou não contaminada, se certo nível de fervura a torna limpa da bactéria ou não, e pouco importa – num improvisado de assento tão esmagado pelo acúmulo de provisões e pelo acúmulo de restrições daquele estilo de apartamentos, que basta uma explícita penumbra ensaiada pelo estado refletor da água para que em seu isolamento subsista uma pose estatuesca de Elizabeth Taylor ou Cyd Charisse.

Tão contaminadas de anglicismos como se perfilavam as canções populares de jazz retidas em Grace Chang setenta anos atrás (Shidaiqu, musicalidade híbrida chinesa/jazz e próxima à outra virada de século), também o fator encantatório de tal sonoridade imagética se infiltra assumindo certo esmagamento improdutivo, ensaiado, finito. Aquela meia dúzia de esquetes musicais vem a nos parecer menos uma homenagem do que o encontro de um consolo pela composição; e ele é barato pela sua qualidade eficaz de fosforescência, pela especificidade de sua consumação. Não poderia sê-lo de outra maneira: aquele casal unido e dessegmentado por um buraco acha, no tecido para o qual o narrativo mostra as dobradiças de sua intenção, uma possibilidade de invasão e de sobrevivência cada vez mais ativa. Eles precisam sobreviver, eles são levados ao consolo sonhado pelo cúmulo de uma brecha. As separações do mundo binomial se dissolvem, como se umedecidas. No penúltimo prenúncio a esquete de Gesundheit!, ela espirra, mergulhada numa banheira em forma quase plenamente anfíbia, e a música que segue não é menos que uma literalidade de espirros compondo versos sobre o teor alergênico da vida amorosa, enquanto que a última dança do casal já rodopia artificialmente, ambos cravados num círculo minúsculo de baile, à maneira das caixas de música com bailarinas eternalizadas. O grau protético desse sonho infiltrado no decorrer dos dias (espécie de daydreaming) é a doença definitiva do mundo biológico que jaz sob o núcleo celeste econômico.

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Pois que ele pode não ter sequer mais um cliente restando para manter o negócio numa pequena mercearia, mas é ainda mais grave que sua antiga clientela e seus habitués tenham vivido a mutação completa e suficiente para torná-los organismos exemplares do mundo regido pelas máquinas: a epidemia bem sabe dançar pela transmissividade da água e pela retração de um espaço possível à humanização, e todos em breve, eles inclusos, serão ratos, baratas, animais de gaiola e sígnicos do laboratorial na experimentação. A diferença é que o buraco lhes proporciona a alternância de lugares.

Um buraco… o que é? Ele é o dado de uma brecha. Mas, no fim dos tempos, nessa exceção chamada ‘agora’, a doutrina das transparências joga “sozinha”, ainda que ao olho da câmera; o avesso por baixo de seu significado basicamente formal, o de ser estando esburacado, assumido ao mesmo tempo em que desvelado, numa transfiguração urgente e dosada vai tornando a fissura um poder de fazer participarem aqueles indivíduos de uma quantidade maior de visões, outrora suficientes à exclusividade vigiada de uma partilha. Ela telefona ao vizinho para lhe dizer de “um olho que a observa”, e o trabalho de destituição do metafórico quase nos leva a crer que ele é de fato simples. Ora, todo o cinema de Tsai jamais se deparou com um problema em assumir uma lógica da contaminação. Se a artificialidade dos números musicais nos aparece como algo que, no mínimo e ao máximo, une as canções amorosas melodramáticas ao prosaísmo de um extintor de incêndio ou de um espirro, a montagem bem soube se utilizar dessa irrupção cenográfica, típica da fortuna mágica musical. Ter outros acessos por visibilidades, neste caso, significa então simular por colagens, acrescentar gestos, realçar a determinação de efeitos.

Eles copiam os trejeitos com que a era de ouro da sonorização espetacular formulou amores dignos das simulações de romances pistoleiros, e não com menor labor o encadeamento coreográfico à miséria sanitária se adapta (re-produz) à simplicidade do ambiente para o qual a quarentena é antes habitat que exceção. Mais que uma vazante, esse buraco significa que a potência material de um atravessar se nos relaciona através de um transbordamento da visão: ver é ver sendo usado.

Cada episódio cantado acrescenta à seriedade diegética uma indiscernibilidade entre o que o passado pode recriar e o que a atualidade precisa fazer ressurgir, inventando. As interrupções não são mais fugas. Não são sequer interditos. Não acrescentam. Consolam, lembremos, e portanto não podem participar de um regime de veracidade, distorção, confusão ou apagamento, já que o consolo ameniza, desvia, reduz, sem por isso deixar de ser válido, eficaz, verossímil. Não é por acaso que o recurso televisivo é amputado até que só reste som, “informação” inútil, ou que o papel de higienização se transfigure de um amontoado de precauções até o comando disfuncional de uma sexualidade higienizada.

Se já não nos coabita um apocalíptico imaginado através de Tsai, com que suavidade ele não repousa nesses tempos distendidos por um ator que interpreta sempre o mesmo ninguém, tão alheio à própria caminhada à morte epidêmica que lhe sustém mais alimentar um gato com as mesmas latas de ração, mais chorar pelo buraco do que pelo lamentável enlouquecimento de seus semelhantes? Com que mecanismo simultâneo de espanto e deslumbramento se concebe, senão pelo impossível olho, que um carteado de canções de uma caricata estrela popular estaria à altura da sobrevivência com que um vizinho pode estender a uma mulher afogada um copo com água? São perguntas que só esse cinema conseguiu desvendar, porque só ele as propôs. A chuva, a grande pergunta da abundância da água. Ela chora copiosamente, mesmo quando o quarto já se encontra em vias de inundação. O apocalipse é essa brecha de uma dúvida desnecessária tornada lastro. Grandiloquente “e se…

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Até explodirem os pulmões

Por Felipe Leal

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No labor da conversa infestada de uma práxis do discordante intra-, entre– e além– dos planos de uma comunidade de camponeses sobrevivendo em isolamento da própria história e em regime de sub/autoexistência no pós-guerra italiano e no labor dessas técnicas de vida, de gênero e de relação com a natureza rolando dentro da palavra como infinito dissenso e enquanto razão da própria atividade política comunal. Unidade elementar tanto quanto o grão do alimento, Operários, Camponeses (Operai, Contadini, 2001) foi, para os Straub, a aparição – em hipótese alguma ler: “a origem” – da fala como lugar de desnudamento limítrofe do exercício de mediunidade entre a terra e o valor empregado à existência.

Os cadernos dos atores com o texto original de “Mulheres de Messina”, romance de Elio Vittorini, explicitavam duplamente o caráter de interferência no texto (e do texto) nas atualizações das querelas históricas: rabiscos, setas, círculos, cortes de cor nas palavras acusando mais um trabalho de leitura do que de re-leitura: as frases se interrompiam subitamente, a última sílaba não só parecendo arfar para esperar, como a seguinte colocando os sujeitos do enunciado separadamente de fato; o quadro deslizava como se passasse a vez à réplica e assim “o dissesse”; um olhar desafiando o significado extensivo do horizonte ao mirar para baixo e denunciar a presença de uma página que não sabemos com segurança se está sendo lida. Pois que não nos recatemos em arriscar, essa atenção a um certo paladar do gesto de fala, não sendo apenas uma proliferação das formas que o cinema tem inventado para se elevar ao labor interminável que é reincorporar aquilo do texto que salta o seu (e qualquer) tempo, é também a preservação dessa torção que a palavra pode suscitar quando gira em torno de si mesma, atando poética e política, mas sobretudo, como disse Roland Barthes já ecoando Brecht, o imprescindível matrimônio entre prazer e crítica que, aqui, é passar a fala. E pensando o texto crítico – este, que interpela – como o risco mínimo, ainda que mínimo, de um prazer pela letra, como o invocam os atores, segue adiante um palpite que, em diversos sentidos, tenta prosseguir “a” obra.

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Há sentenças – frases, aqui, mas ainda e decerto enunciados que se gravam como determinações laminadas – que, se bem operadas dentro de um filme, se estalando num timing tão preciso que é capaz de fazê-lo tremer em seu plano quase nos termos propriamente ideológicos da relação de quem vê e participa, há sentenças que, quando proferidas, perfuram dois tempos de existência e funcionam como máximas mitopoéticas: bifurcações automáticas no sentido e que não podem rodar na mente senão como perguntas sem fim. Em Humilhados (Umiliati, 2003), adaptação outra do mesmo romance, mas que centraliza o dissenso entre estado italiano e povo na argumentação assimétrica deste com alguns oficiais “da cidade” de competência institucional, ainda que esse fraseado eventualmente culmine em algo como uma pergunta cuja obviedade interrogativa antes infere sobre a autoinferência mesma da estupidez retrógrada dos camponeses do que abre espaço para uma resposta digna, sua descarga diante dos jogos entre trabalho, valor econômico, progresso e participação nacional é semelhante à subterrânea moral que funciona junto ao fabular quando este eclode.

Quando um dos carabinieri (braço das forças armadas italianas e ramificação das políticas de segurança com aparente e demasiada inclinação judicial, “corretiva”) se encontra em vias de ilustrar o retrocesso, o abismo do valor de peso de trabalho empregado por aquela comuna em relação à quantificação da produção e da subsistência a que assistem em retorno, não apenas estão violentamente introduzidas diante da vida geológica, ancestral e persistentemente reclamada, daqueles trabalhadores as noções de lucro capitalista e de labor como dispêndio máximo e exaustivo de energia, mas também a situação que lhe pede atravessamento para dar significado àquela exclusão é de um grau em que é possível, ainda que trágico, que se veja a humilhação enquanto técnica do apagamento de um povo: quando compara a situação econômico-ética dos camponeses à hipotética preferência de alguém por andar, andar logo quando já existe o trem!, ele não põe o modelo de preferências sob o parâmetro da redução das distâncias de x a y, mas diz, repuxando um estranhamento já integrante ao jogo de linguagem, que aquilo, que a permanência daquela retrogradação, seria “como correr a pé atrás de um trem”. Ante a casca de uma conclusão, sustém-se uma (das) pergunta(s): correr atrás do trem é a imagem do trabalho fútil, tornado inválido quanto mais rápido andar o veículo (que o realiza por mim)?, é a ardilosa arquitetura caricatural do camponês suando, em frangalhos, para alcançar o progresso (que ele supostamente recusa)?, ou seria ainda a mais trêmula prancha de piratas em que se subirá somente para ser empurrado à morte, uma vez que se feriu a moral da embarcação, uma vez que ou se está dentro ou se está fora?

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E uma quarta, que bem recolhe a faísca de todas: ora, em que momento aquele que argumenta simultaneamente impõe – não se diz ‘partilha’, não se diz ‘devolve’ – o escopo a partir do qual é possível, não tão-somente argumentar, como dominar as bordas até as quais a linguagem terá direito ao funcionamento de reinvindicação? Porque é impossível responder a essa pergunta que encerra suas imagens e seus futuros de imagem. E poucas vezes um plano de coletividade terá parecido tão irresponsivo, poucas vezes um quadro aberto contemplará doze corpos como se não fossem nem atores nem aqueles a-pátridas de Vittorini, mas a relação entre sujeitos que beira o silêncio – e que nele cairia, não persistisse a história da Terra ululando a suavidade comunal de sua feitura conjunta à nossa. Porque antes que essa polícia “em nome do que é público” surja, o traço que distingue Operários, Camponeses deste outro (que pouco significaria, se lhe funcionasse só como “continuação”), o traço de uma dobradura da palavra que quer dissenso e conversa de forma ainda mais pujante, espaçada, vibrando em seu próprio intervalo, distingue também para reafirmar a magnitude da política de ameaça à extinção que virá logo em seguida.

O estrangeiro que debaterá antes dos três carabinieri, ele que esteve ali na vila, previamente, em nome de si mesmo, e que agora retorna para que sua ponte de sugestões sirva para provocar e instalar uma crença sub-repticiamente, num dado momento em que sucessivos cortes amalgamam cada elemento do que foi construído pelas mãos dos camponeses na ordem de reclamações seriais em defesa do que será apropriado pelo Estado, finge espantar-se e fala daquela operação – fraturada pela cesura da montagem à maneira de disparos dos lugares de fala – como se eles falassem todo ao mesmo tempo, restando que ninguém pode, afinal, ter seu dizer, e que estão todos fadados à permanência no mesmo lugar. O truque, que almejava interverter a proposição mesma de toda conversa, de uma conversa qualquer, e tentava fazê-los parecer menos comunitários ali mesmo onde a fala seguia a ordem plural de sua argila, é respondido à altura de um acontecimento que devolve à conversa-fiada o tremor daquilo que carrega seu dúplice. Acaso tem proprietários, o deserto que os nômades atravessam?, ao que se segue a interrupção sentencial e ambígua de um senhor sentado, erguendo uma das mãos em palma em direção ao estrangeiro. Que ele agora diga, que ali se cale, que aquilo seja um endereçamento ou um rasgo inevitável entre aqueles, pouco imposta: é a interpelação dizendo que interpela – labuta de quem presencia: ver é convocar(-se) a participar.

Se aos Straub era célebre o fator gestual da contenda entre povos e ideias, aqui ele recai com o invisível peso dos tempos conjuntos e dos tempos intempestivos, tempos sem métricas, tão sociais quanto míticos. Responde sem responder tanto quanto se encarrega de comportar uma ética, uma crença não mais como a solidez encurvada dos saberes restritos àqueles que os detém, mas como a suspensão e o inesgotável que é estar sempre apto a responder à volubilidade dos acontecimentos junto aos outros. É precisamente isto que os soldados não conseguem ver e que assoberba seu leque de “fatos” paradigmáticos que invariavelmente findam com o grande exemplo dos norteamericanos, isto que cimenta a lógica natimorta de suas proporções e faz de “dez operários produzindo em um mês aquilo que ‘eles’ produzem em um ano” a mais mesquinha afronta ao progresso: serão incontornavelmente incapazes de ver que suas condutas são prescritas (limitadas) pelo Estado, que serão pré-escritas (lhes antecederão tanto quanto delas não participam) por ele sem cessar, e que aquilo que lhes convém chamar de justiça, essa ideia sob a qual trajam espingardas e lenços vermelhos como cadetes, estes, sim, humilhados, não contabiliza, sobretudo, aquilo que eles não pararam de colocar como termo do meio: a terra. É-se justo com a terra quando ela é cercada, apropriada, estuprada, justo a terra, a única capaz de suster todos? Sua posse viaja, imantada, até a titulação fixa de “propriedade” somente porque aquele que a utiliza produz mais dela, e dela fabrica a imagem de um jardim? Produz para quem? Sua lógica é o logro da quantidade sobre um outro tipo de propriedade, aquela que distingue as coisas pelas particularidades que lhe dão, por exemplo, motricidade, produção ou função? Passemos ao que não tem tempo.

Conta o mito que Astreia, filha de Zeus e Têmis e marca-passo transicional da Idade de Ouro para as eras de declínio entre os humanos, horrorizada com um evento de roubo promovido por um mercador que visava extrair lucro através do engodo com uma balança, pede ao pai para fincar morada nos céus como estrela, desgostosa com a perversão à sabedoria e aos hábitos coletivos que pregava. O que a maior parte das narrativas, no entanto, relega ao olvido, é o último gesto performativo da chamada “virgem das estrelas”, pois que antes de ascender aos céus Astreia se reúne no cume de uma montanha para repassar toda sua sapiência a quem pudesse interessar-se numa vida simplificada, arranjando uma espécie de séquito de indivíduos dedicados àquilo que há de justo, bem como às atividades de caça e cultivo que garantiam a comunhão minimamente estável com o mundo. Que relação pode haver entre o simples e o justo e que faz a balança das entidades estar costumeiramente acompanhada de uma espada? É que o simples, longe do estigma pejorativo da coisa sem adorno ou limpa do intragável, é menos o oposto do complexo do que o trabalho de encontro com as propriedades mais adequadas, descobertas também por labuta, para tratar do bruto. E é – e será – preciso entrar numa contenda de valores e técnicas com essa ‘coisa bruta’, bruta na medida de sua singularidade mais ou menos velada, de sua particular propriedade, para com ela entoar um justo possível.

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Se numa conta amalucada de transposições fosse possível dizer: é impossível à árvore participar do verbo ‘pedir’, uma vez que tudo que ela extrai inevitavelmente se desdobrará em fruto, em interação contínua com o ‘onde’ de onde ela puxa vida, tão despropositado é o gesto que encerra o filme. Assim como a árvore, ele É. Ele não encerra, não entrega as mãos à humilhação, não abre nem tampouco questiona. É um movimento voltado para si mesmo e cujo significado fê-lo bem não se traduzir, mas do qual não se pode dizer que não faz nada. A camponesa o pronuncia e cai no aparente repouso estatuário de um enigma, o horizonte recortado do quadro recaindo em sequência para mostrar dela o punho fechado e os pés sobre a pedra que inicia devidamente os contornos de sua habitação.

Durante todo o filme, os pássaros, o vento, as árvores e as águas perpetuarão seus cantos, seus ruídos, na intraduzível língua que cinde sujeito e natureza. Ou melhor: repartiria, não fossem gestos como aquele, palavras sacras e secretas que duram o suficiente para sublinhar a fixidez de uma impermanência: entre nós e entre-nós, há relações que não unificam e que não buscam a semelhança. Há aquelas que afastam e reiteram a comunidade daquilo que é fragmentado. Ali, uma mulher. Acolá, uma árvore. Uma fome, um fruto entre eles, mas ainda e sempre: uma mulher, uma árvore, um fruto e uma fome. Um, em seguida, outro. Nem tudo o que é sólido desmancha no ar. Algumas coisas explodirão, como pragueja o presságio do militar sobre os pulmões daqueles trabalhadores exaustos e que, de acordo “com ele”, não sabem sonhar – completamente desavisado de que a distância entre a ricota e aquelas mãos, entre o trigo e a contagem de bocas e estações, entre a energia elétrica produzida e os olhos turvos de labor e alegria, subsiste não uma proximidade que é preciso explorar, mas a mais indubitável das distâncias que eles aprenderam a respeitar e estipular empunhando a justiça com a terra: que cultive e deixe viver aquele cuja sabedoria seja, e não sirva a, ainda que por dez mil anos, o comum. Disparatado, inconcebível, o pensamento que formula a um povo ser necessário produzir mais do que necessita? Inconcebível, decerto, mas vivemos sob seu regime, e a terra também descobre suas maneiras de gritar.

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Singularidades de uma assassina loura: Anna (Luc Besson, 2019)

Por Felipe Leal

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É simultaneamente anedótico e “conceitual”, pedra lapidada de um estilo para que o posado revele certa dimensão do espírito, que Robert Bresson tenha preferido modelos para compactuar na composição de seus elencos. Que tenha chamado seus atores de modelos e os posto numa práxis de tamanha mecanicidade disfarçada, que aquilo de autômato chega a exibir mais vida que a própria pele que acusa a carne. Mas não precisamos da máxima de Valéry – aquela diz da pele que este é o órgão mais profundo – para chegar a conhecer as fissuras e engodos inevitáveis ao corpo como um todo, pois ainda que haja atores e haja modelos separadamente, para além de suas fusões, é também sabido que a cada um serve de ferramenta valiosa certo empréstimo das técnicas físicas do outro: àquele posando para uma objetiva ou enfileirado num catwalk excessivamente assistido, é útil que saiba absorver dons de transformista, que aceite incorporações; ao sujeito em cena, mostra-se frutífero que entenda da pose, de congelamentos, das variações corporais para um enamoramento com as lentes. “A câmera ama você”, ouvimos entre os disparos que desejam que nunca fique exaurida a fotogenia de algumas relíquias da moda. Mas dentre as múltiplas singularidades que os diferenciam, aquela que melhor risca uma transversal no ofício do corpo é a sapiência do “saber-se visto”, a consciência erótica de emular, na pele, a devolução do olho que sabem que os observa. Na filmografia de Luc Besson, pois, Anna – O Perigo Tem Nome (Anna, 2019) representa esta transversal de desvio.

Besson filmou Natalie Portman, Bridget Fonda e Scarlett Johansson, evidentes “estrelas”, mas não havia ainda captado de uma modelo propriamente dita esse estojo dúplice de ferramentas de uma mulher que não apenas estourou grifes a nível Chanel e Versace, como fez de seu caminhar de dançarina com leveza de vento e postura de imperatriz a imagem de uma das modelos mais bem pagas do mundo. Que seu regente tenha duplicado o tema é apenas uma ignição sorrindo às escondidas. Anna (Sasha Luss) oscila entre a miséria mal cicatrizada da subserviência aos homens e acidentes e a coreografia inflamada de uma percepção que lhe faz o cheiro das ofensivas anteceder a própria visão das dezenas de seguranças e chefões que assassina. Nenhum objeto é im-passível, digamos, de lhe servir como arma para uma chacina, assim como nenhum homem será capaz de devolver-lhe uma liberdade que aliás nunca esteve entre as mãos. Besson arquiteta um grã-fino restaurante russo como a cenografia mais propícia a um terceiro olho cujas investidas são os círculos, a frontalidade e as costas que multiplicam o inesperado, os pontos da arena de batalha: pratos se partem em discos dentados, suportes cilíndricos de balcões de bar perfuram troncos como lanças, garfos e extintores amassam a guarda protetora como a carne que são, como se às suas mulheres extraordinárias as habilidades mais perniciosas fossem a antecipação e a adversidade. Para essas vidas a que só resta o próprio corpo-máquina, a subtração ensina.

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Mas antes mesmo que a escultura angelical retire os casacos para liberar um demônio ágil, a sagacidade do metteur-en-scène transmuta um dos recursos mais vomitados e possivelmente detestáveis “do” cinema em espirais cuja semelhança com o próprio dispositivo cinematográfico é um contínuo – e, aqui, hilário – lance numa mesa já disposta e na qual sentam, de um lado, aquilo que não se viu, e do outro, aquilo que ainda não podia ser visto. O truque simples do flashback irrompe a partir de cortes sob a lei do “previamente…”, em que a mulher é repassada entre os pontos de vista das disputas políticas, e o filme incessantemente retornará meses, às vezes anos atrás, com o aditivo da cena re-completa para duplicar uma quase-liberdade sempre adiada pelo que a assassina guarda de valioso: é bela ao ponto do magnetismo, é mortífera na medida da falha impossível, e portanto lhe restarão sempre duas opções com as quais, mais tarde, terá de romper: morrer de vez, e de certo modo estar liberta, ou oferecer seus serviços após negociações velozes – e mais uma vez ter a liberdade empurrada e falsificada em nome das pátrias e dos homens.

Ora, o que é automático que se sinta perante a técnica do retorno ao passado? X em Y textos (e bocas) dirão que ele, o recuo, é atormentado pelo didatismo, e bem sabemos que a primeira incógnita chega a quase tocar a segunda. Uma rápida mudança de temas explicitaria melhor o problema, posto que a um professor ou a um cientista, na maioria dos casos, vem a ser menos simplista do que profícuo se lhe apraz ter exercitado isto que se chama de “didática”. A questão não seria, portanto, antes a qualidade dessa instrução? Retornemos à Anna, pois se os rodopios dos flashbacks inserem detalhes, microcâmeras, contextos de miséria, observadores em apartamentos circunvizinhos, não é tanto para que os twists expliquem, confirmem ou sedimentem os eixos de passagem da uma arma nacional em forma de bailarina, mas antes para emprestar ao último deles um sabor de um aprendizado que só a partilha extensa entre personagem e espectadores pode elevar ao grau descaradamente familiar que ele carrega. Anna aprende a arte da burla, da ultrapassagem, como uma primogênita que saboreou desde cedo cada milimétrica jogada no teatro repulsivo dos barões. Seu único passe é também sua tragédia: ser uma mulher tão bela que o único ponto de infiltração nos quartos dos economistas e traficantes é também sua prostituição.

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Trata-se, aliás, de uma questão tão teatral quanto cinematográfica, sendo precisamente aqui o espelhamento escandaloso de que a obra se serve para ressuscitar e escancarar aquilo que as bordas do visível mais velam sobre os passes de mágica. Onde as câmeras de hotéis não podem captar a vigilância dos espiões, há êxitos, bem como armadilhas. Mas também: o contexto cênico no qual a continuidade se fratura, e neste último Besson isto se fará abusadamente, a negociação sobre a(s) vida(s) é uma economia dos ensinos da antecipação ardilosa. À clara exceção daqueles para os quais a exposição do aparato é útil, costuma ser interdito ao cinema que se desvelem as condições da feitura de sua “naturalidade”. Regime de transparência, como já o chamou Ismail Xavier, não fosse o caso, aqui, precisamente outro: não tão-somente uma potência do falso: junto a ela se arrasta, sorrateira, a invasão à surdina do detalhe. Um close, um objeto caído por displicência, o corte de uma faca à maneira característica da KGB, e o caracol de cuidados, trapaças e falsas promessas arrisca se dobrar mais uma vez. A subjetividade da mulher por vezes ingênua, por vezes angustiada e distante, corriqueiramente opaca, toma o corte entre cenas como um impulso para que o ofício de atriz/modelo rebata a perspectiva do corpo em direção ao mundo que o compõe conjuntamente a ele. Seu aprendizado não é uma ciência da adaptação biológica tanto quanto uma chave que singulariza a loura pelo “esporte” cerebral no qual ela é imbatível.

É através do xadrez, nesse tabuleiro de projeções sobre o lance do Outro e de si, nessa disputa enquadrada que requer uma totalização (semi)impossível do olho-acima-do-espaço, como acontece por detrás das linhas de um tableau, que Anna articula o joguete capaz de fazer de Besson quase um comediante sutilizado dentro da ação. Num café de praça, espaço típico dos rendez-vous parisienses, reduz os dois agentes especializados e, por que não dizê-lo, tolamente enamorados, à condição de fantoches sobrelotados dos próprios fios que vêm à exposição. América e Rússia dividindo um espresso e endividados com uma órfã. Das promessas e abusos, tornam-se contornos assustados na iminência do embaralho absoluto daquilo que é da ordem da missão patriótica e daquilo que os faz cachorros apaixonados por um dono impossível, como se não só o aprendiz tivesse superado o mestre, mas também o feito de bobo por sua suposta maestria acumulada. É este o seu logro: imprensar as adversidades num mesmo espaço para saltar dele como os volumes e mais volumes de uma boneca russa.

Não espanta que à beira de sua dúbia liberdade ela consiga repuxar uma penúltima boneca justamente onde parecia ter restado a mais minúscula de todas. O artefato icônico comporta sua titulação, justifica por fins e meios que o último lance grafe seu nome de uma vez por todas e no paradoxo de um arquivo deletado: ela não existe mais, precisou se apagar por um dos elementos que mais singularizam isto que dizem ser uma mulher para soçobrar ainda mais imortal que nunca. Heroína conquistada, ou os dois países de estrutura continental vêm à baixo. Saltamos ao outro lado da mesa, ou ainda tomamos a posição do lustre, da sombra abaixo dela, das árvores que a contornam. É o preço da sua negociação ser esquecida para que o mundo não entre em colapso. Megalomania tipicamente americana de tomar as proporções do planeta como a medida de distinção do herói. Gracejo russo de multiplicar a pintura e compactá-la até que a última surpresa seja quase igual a primeira. Assim diríamos, se a paixão de Anna pelo que é livre fosse tão facilmente redutível ao dúplice – e porque uma modelo sempre sabe que é assistida. Cabe-lhe tomar a posição da câmera e esbofetear o fotógrafo: eis seu último desfile sangrento antes da liberdade.

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A sincronicidade das sombras

Por Felipe Leal

“A pressão real tem outros resultados: estabelece a concorrência entre os organismos desiguais, e se não podemos dizer como as espécies entraram na dança, podemos dizer o que é a dança”

Georges Bataille, em A Parte Maldita

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A perplexidade suscitada sobre a pergunta “o que é uma máquina?” liga-se de imediato ao porquê da existência do aparato, uma vez que sua configuração, pré-ordenada, se liga por um grosso liame à sua utilidade; ou ainda: “a que fins ele serve?”, o que é o mesmo e está imediatamente conectado à curiosidade, mais resumida ou mais sedenta, sobre o funcional daquilo, como todas as partes vêm a participar do ato integrado, de forma que tanto a cascata de dúvidas, fechaduras e espantos quanto àquela que ultrapassa a superfície do maquínico, adentra seus pormenores e finda, reemergindo, num unívoco sujeito-máquina, ambos os percursos de síntese do pensamento e do dispositivo, pode-se dizer, são circulares e infinitos em suas técnicas, cujo resultado é a sobrevivência da circulação ela mesma. Das milhares de cintilâncias espraiadas pela história como constelações de ideias e dispositivos funcionando indistintos como máquinas, pois, quem (atenção: quem) melhor que o aparato do Partido Nazista para personificar num só homem raça, nação, marcha, estatuto simbólico, filosofia, lei econômica geral, cordão familiar, governo quase total das noções de alteridade, presente, passado e futuro? Quem melhor que a propagandista do Partido, aliás, para fazer de tudo isso um corpo fílmico que é também um corpo maquínico perfeito? – perfeito para seus fins, como numa erótica do convencimento que antedita todo o enlace.

Repensemos Triunfo da Vontade (Triumph des Willens, 1935) como se o nome-rêmora com que nasce – por encomenda, nada menos –, “filme de propaganda”, antecedesse o caráter de “documento histórico” que marca os letreiros de início. Repensemo-lo em sua curiosa dualidade de adjetivo e de advérbio, assim como as máquinas são apreciadas e avaliadas também pela qualidade de suas tecnologias, refletidas estas nas alterações das formas e intensidades propostas. Estar na ponta tecnológica, desejar ali estar como os nazistas implicaram num dispendioso horror de energia higiênica excedente, requer maestria, supressão, compressão de todas as formas possíveis. Que seus efeitos sejam desejosamente encaixados ao nível de indicialidade mínimo necessário à primeira visão histórica superficial, isto é um resultado naturalmente almejado pela pompa entroncada dos bustos de seu mito e comitê: ser propagandístico porque a completude de sua máquina de gerência e domínio coletivo depende da impressão do Führer, dos corpos cimentados aos de sangue; tudo serve a ele e se solidifica por ele, como a invisível potência das fontes (springs: primaveras, jorros). E, no entanto, o adverbial ricocheteia através dos cantos, anunciado na mais invisível pressurização do manifestado onipresente, porque ser erigido às maneiras do propagandístico é assumir um enlameado de cinema, do que o cinema potencializa na situação-limite em que é necessário mostrar, tornar presente, algo do tudo, tudo de um algo, e recobri-lo com uma sinestesia de desejável, ardente.

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A língua em formato de anel, adiante num estado tautológico, no busto emocionado, artificial e exageradamente hesitante, à beira de uma convulsão apaixonada, de Rudolf Hess, custa a afirmar fingindo o custo afetivo que é a própria afirmação: “Hitler é a Alemanha e a Alemanha é Hitler”. Que coisa é simultaneamente uma e outra? Entre muitos os exemplos, e quase sempre por apenas um momento, vê-se tal situação dúplice naquilo entre quem ama e quem lhe realiza a ação. O que a publicidade realiza não é tão-somente que um sujeito seja um outro que detém certo artefato ou qualidade, mas que o fetiche persista, que eu persista ‘faltando’. Se a engenhosidade do Partido foi a de ter multiplicado a incondicionalidade do amor ao Estado-Paternal, seu artifício sub-reptício, ardiloso, foi, como o de muitos pais, o de também ditar, como que por uma insígnia inquebrantável, também o que é o amor: explicitamente, as formas possíveis e circunscritas de amar. Fazer propaganda propagandisticamente é o arriscado excedente de deixar a máquina nua, antes exibir a organicidade rígida de suas operações do que esconder o pistilo. Triunfo é a potência desavergonhada da planta enquanto máquina da reprodução de si mesma. Exibir a serialidade da energia dessa potência recortando, com aresta de quadro, as fileiras de trabalhadores tão dispersos quanto conjuntos numa marcha, fazendo-as se mostrar na infinidade não do que realmente são (uma raça autodenominada e louca), mas daquilo em que o partido acredita e em que devem acreditar por espelhamento: uma ordem diluída de um número que parece ser mais do que é, com origem sem ponto de início e futuro como vetor puro de progresso. Vemo-los, a todos os soldados, como o continuum sacrificial, o custo vivo de uma Ideia que, para atingir sua efetivação, deve atentar sobre o desvio de seus meios.

 Seria demasiado histérico, quiçá de uma polissemia empurrada, visualizar algo de fálico na suspensão rija do braço na saudação nazista? Ora, que o peso da inclinação decididamente fique a cargo do dispositivo (textual, chamado argumentação), há algo sobre a constância assinalada do gesto que não podemos ignorar, por vir à tona também pelas políticas que um quadro encerra; interessemo-nos pelo filmado, aqui, e ainda que puramente. Pelos estalos geométricos de Riefenstahl, o Ave! é ora a linha basilar que encabeça o percurso restante ao céu, dividindo homem e o elemento imaterial de sua conquista, ora uma seta que liga o corpo, da maneira que pode, ao imaterial guia, projetando o corpo até Ele; ora a massificação esmagada de espectadores para os quais o rosto pouco importa, ora o preciso e afiado lançamento de uma continência “universalmente” reconhecida como desaguando, pelo ar comum, nele: ele, a válvula; ele, a fonte da convergência da vida inteira.

Não há um segundo no filme disposto a exibir algo da organicidade da vida cotidiana, marginal à dedicação ao Partido, dessas milhares de vidas que seus gerentes enumeram em discurso com fácil disposição, nem mesmo a sucessão de cenários que fabrica o despertar de Nuremberg como uma cidade plácida de muros, bandeirolas e córregos: o elemento humano, pela brevidade de um pinball geográfico-ilustrativo, está ausente e não há um ruído qualquer de presença particular, logo quando o resto do documento filmado é entregue aos olhares difusos, discursos em cusparada, silhuetas conglomeradas e público incitado a permanecer restrito à sua localização nessa monumental arquitetura de um desfile ininterrupto. Até a cidade recende, arquitetonicamente, ao Partido. Está asséptica para ele.

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Nos meados dos anos 30, pensemos no peso, na pouca discrição de um aparato cinematográfico, no articulado arranjo quase inumano dos blocos de figuras dispostas a servir, em numeral e forma apolínea, o Führer, e aos rostos capturados por um close fugaz de Riefenstahl, sobretudo aqueles das crianças, a equivalência será a de um pedido para um cano de escape ou para um botão, uma vez trocados de máquina-mãe, que sorriam diante do intricado jogo de uma totalidade nova a quem devem servir. Nenhum tamborilar homogêneo cúmplice de um maquinário de poder, não importa quão cristalinas sejam as ficções de suas paredes e daquilo que lhes é estranho, “de fora”, pode resistir, absoluto, ao sorriso desviante e fugitivo dos garotinhos, que não deviam estar felizes, mas parecendo felizes, ou mesmo dos soldados de cabeças irresistivelmente para-lá-e-para-cá-, descentrando a sobriedade de uma linha, atentas e autoconscientes ao caráter demonstrativo do próprio desfile, logo quando a total concentração do corpo devia obedecer como uma régua que o olhar de Hitler mede, confere. Não. Não uma máquina: esta não pode conter furos. E, no entanto, quanto mais lustrosa e obediente, mais sua pressão escapa à regra, mais suas partes, inconcebivelmente feitas para desconhecer em totalidade o que ali se passa – esta é a dança, não perguntem mais nada –, rebaterão com um desconhecimento de papel que só aos olhos menos atentos parecerá a humildade que a encomenda e que os princípios demonstrativos exigem. Como são minúsculos, esses que não são seu Guia. Como são simplórios, das terras pré-unificadas de onde vem e pelo desconcerto que seus corpos emanam aqui defronte seu predecessor e enviado.

O que é comum a todos eles, a estes rostos e corpos de uma vez só? Pela perspectiva imperial de um mastro de bandeira flutuando e presidindo os arcos que compõem seu centro, como numa mesa de convidados cuja colocação serve de artéria à festa, pela inclinação dançada das faces e miradas, postas em dança também por aliciamento e por sopro da formação de quadro – tudo olha acima e ao redor de si mesmo e visando o torpor aquilino da voz de seus generais, voz que é única e viaja em círculos, monólogo eterno do totalitarismo. Hitler fala para a Alemanha, mas a Alemanha nunca lhe responde. Uma fábrica “sonhada” reconhecível por seus chiados e pela ordem de colocação de seus elementos. Entre a corporeidade e o maquínico, a história preservou assustadoras tentativas de união. São as brechas desses casamentos que legam as perguntas ocas, ainda que hoje saibamos dos furos e das infiltrações: como pôde, como pôde um povo inteiro e por tanto tempo, digamos, obedecer a um pai? Seus ecos relembram numa atualização que mobiliza algo do ciborgue, pois não confiamos que fossem inteiramente humanos, nem tampouco manejáveis o suficiente para serem peças puras. Logo quando a fórmula fabril residia precisamente lá: são da estirpe de seu pai, e não só Hitler é excessivamente humano: a dedicação de seus filhos à pureza fabricada da Terra-Mãe é o que lhes faz, enquanto peças engenhadas para servir estritamente a seus fins, acrescer à humanidade, talvez de uma vez por todas, um possível maquínico.

Devemos ao engenhoso aparato nazista um alargamento que é produto da mesma duplicidade adjetivo-adverbial, uma vez que “ser humano” passa a ser uma espécie (de categoria) maior quando um fragmento inteiro de história pede licença para devir-máquina. Há alcance e codificação prescritos aos gestos afetivos, encurtamento de mobilidade aos acúmulos e interesses voltados ao futuro (de si), agora todos centrados na Pátria “de lá”; a caracterização constitutiva, familiar, recebe uma cisão de um inquietante e insistente destacamento, ficando a figura do jovem sempre à parte nas menções populares (“uma família e, a seu lado, sua parcela de juventude”, leríamos); a participação nos ensinos e alternâncias morais perpassam as gerações de modo a alinhar qualquer espécie de lei àquelas vindas de mais acima, e as sensações físicas de uma trajetória histórica individual se agarram às propulsões e narrativas da ascensão e vitória do Partido, de seu início minoritário ao inevitável império racial futuro, com a mesma fidelidade que uma planta engenhada deve vir a se materializar em sua complexa montagem. Para acreditar em seu impossível, que o volume de sua pretensão teria a circularidade germinativa de uma gônada e de um útero, Hitler, a metonímia Hitler, precisou esculpir uma ideia maternal-maquinal a partir de uma outra, de Estado. Para veicular os signos de tal gravidez e de uma terra prometida, o triunfo de uma vontade, seguindo no que uma vontade ainda não pôde efetivar no presente, no que ela ainda é, aliás, só mirada, necessita que estejam mais que visíveis as capacidades e leis ordenadoras de sua obtenção.

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Máquinas, se ainda não o sabemos de todo, são tanto uma alquimia da retórica quanto uma da produtividade. Hitler é a Alemanha: confiamos na máquina cujo autor assume suas responsabilidades e porvires. A Alemanha é Hitler: para que a máquina me convença, isto é, me convença a dobrar e me fazer passado diante da aceitação daquilo que me foi feito novo, devo atestar que ela realiza sua função com cada vez menores danos e operando com maior peso sobre si. Mas foi um fardo concentrar para si a Alemanha?, perguntaríamos ao Führer, nós que não temos voz, nós que marchamos, recuamos e acenamos? Máquinas não perguntam; corpos, sim, especialmente quando dançam. Então o que pergunta a distorção imagética encrespada quando, tomadas de certa diagonal, fileiras e colunas de pernas em largas botas pretas desvelam um borrão informe demais para durar? Talvez façam querer saber qual o custo da potência de uma vontade, a nós que já vimos as ruínas futuras? Talvez seu intuito seja mesmo o de uma erótica, e aquele martelar, ainda que serial e simplificado, enfeitice o tempo presente com a majestade de um pavão a mostrar, por disputa amorosa, o dispositivo de corpo mais atraente que aqueles outros, recuados para fora não do que é, mas do que deve parecer ser. Jorge Luís Borges já nos narrou de dois artesãos numa contenda perante o rei, ficando vencedor aquele que, em resposta à magnífica pintura do reino feita por encomenda misturada a duelo, retira de debaixo de um pano um espelho, superfície por excelência do simulacro, e mostra a pintura do reino adiciona de uma cintilância daquilo que é outro.

Um ente outro mais eu que eu mesmo: a mecânica de linguagem do grande pai-patrão é autoexplicativa em sua erótica de ciborgue, pois que subsiste algo em comum entre a permissão do corpo em transitar pelas máquinas e o evento germinativo que lhe deve ser infinito, aqui: a marcha de um partido que vem por detrás – que precede, aliás sempre além do campo de visão possível –, que segue ”através de nós” e que se estica adiante para um Éden esférico, puro. Como um braço estendido, vetorizado para o centro que lhe devolve a certeza de sua funcionalidade recém-descoberta. Como sua arquitetura singular, a rocha sobre rocha cuja periferização, esmiuçada pela propaganda duas vezes nua, diz que, àquela mesa, o pai fala numa altura acima de cada bloco e para os blocos eles mesmos. Ideia desvairada, a de que toda a histeria quase infantilóide daqueles discursos berrados se direcione à arquitetura mais do que ao numeral a quem diz servir? Paga-se o preço do desejo de potência, por vezes, engolindo o excedente de energia de que não se necessitava em primeiro lugar. Entre corpo e máquina, a aparição das veias marca a fome. A máquina fará ruídos estranhos, caóticos ainda que repetitivos. E entendê-la é falar, ainda que por um momento, a língua de sua “maquinicidade”. Muito além das inteligências artificiais, Riefenstahl legou, independentemente de seu patronado, uma imagem do que restaria, do que poderia vir a ser se seu sonho propagandeado tomasse concretude: a exatidão louca, impossível, de nosso momento derradeiro, em que o último homem em pé, circundado pela poeira do que destruiu, findará percebendo que esteve o tempo inteiro falando com rochas. Sua máquina terá falhado, e duplamente, porque há uma intricada maquinação por detrás, atravessando, entre as pedras e seus corpos, falando uma linguagem de “erodição” muito mais antiga que nós.

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HIGH LIFE (Claire Denis, 2018)

O mandamento do Único

por Felipe Leal

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A nível quiçá muito íntimo, é com o matrimônio entre as leis da economia e os fenômenos biológicos que Claire Denis cada vez mais sutilmente parece se preocupar. Número e corpos; distribuições dos usos e circularidade “tragicossexual” dos genes. Colônias, exército, famílias, máfias, casais, imigrantes – o todo e o diferente se entrechocam em sua obra nos deslizes microscópicos entre os sujeitos. Olhar o sangue de perto, o transe da bruxa pelo transe do olho partilhado, estar próximo o suficiente do homem diante do Nada, até que seu rosto seja único e limítrofe demais para não ser todos. Tracemos, pois, uma rápida e eficaz analogia: se se diz de Solaris (Solyaris, 1971), o símbolo úmido e magnânimo de Tarkovsky, que o planeta é um espelho da alma do homem, poder-se-á dizer de High Life (idem, 2018) que a suspensão humana diante dos astros, neste último Denis, é nosso esperma. E muito como a semente, para as plantas, é infinitamente mais que um minúsculo projétil de vida – é a grafia inteligente, pré-inscrustada, de um movimento de diferenciação para o sol e para a terra, a codificação de um ser novo explicitamente feito não só da planta para ela, mas do todo-mundo que ela habita, que ela é –, não tardará para que nas câmaras monocromáticas de dormência e assassinato o espermatozoide seja também esgarçado, seja sujeito e evidência dessa borda que é para nós uma espécie de abismo.

Muito como em J. L. Borges, e certamente para além da eficácia, digamos, dos quesitos dinâmicos do ritmo, há algo na síntese das elipses da diretora que tem a capacidade de estabelecer um plano de enfrentamento moral, ético, ser-entre-ser inerente, uma espécie de lençol freático sob o efeito do qual seus personagens embatem com deuses encarnados nos elementos que melhor os conjugam entre si. A obsessão e o sangue, a invasão de propriedades e raça, a hierarquia e o sexo aqui se transmutam num lance melancólico e desesperado entre o tabu e a razão de sobrevivência. Isto – o estouro de dados pelo truque da elipse – porque lhe basta um gravador e uma mulher inquirindo um homem apreensivo, com o risco de vida amalgamado nos ombros e olhos, para que a informação trocada tenha não só o valor de um ultimato político, como também o legado de certa forma definitivo, crítico, para a Terra da qual aqueles indivíduos à deriva no espaço se destacaram. São criminosos encapsulados numa missão sem cauda, expurgados do planeta sob falso propósito, e não será preciso dizer mais nada, porque o misterioso oco do espaço sideral se torna ainda mais vazio: é um Nada. É pior que a falta de todas as coisas porque não há volta nem chegada.

A ferramenta de conserto Monte (Robert Pattinson), que nos primeiros minutos escorregara, por um quesito de ângulo, num mergulho espaço abaixo, por esse segundo fator de uma penalização ao Eterno repentinamente refaz o quadro e todos aqueles ainda a vir: não há norte ou sul para a vida à deriva, o corpo é uma estranha e ilusória interrupção no tempo, um contínuo sem nada, perde as funções de sentido, vira uma ferida do futuro; a “vida alta” (vida no alto? vida suspensa? vida flutuante, adormecida?) é um miserável culto àquela que a bruxa vem a coordenar como aposta única, aposta ao Único. Xamã do esperma, chama-lhe aquele a quem todos se referem como ‘O Monge’, o assassino refeito por uma ordem interna. Com o resto de vida devotada a tornar a nave uma ala hospitalar-higiênica de produção de esperma e inseminação, de tentativas cujo esforço de ultrapassagem só reforça a tarefa Sísifica, que o sexo maquínico de Binoche resulte num transe pagão espiralado como Robert Eggers jamais sonharia é um estimulante e um fato inconteste de que só o contato aproximativo, progressivamente seccional, intimizado, disposto ao “sujo”, pode almejar a um excedente que permaneça “para os que ficam”, para todo nosso regime de vida que visa a, que se projeta para sustentar um porvir. Ou seja: há, no filme, (nos filmes) uma preocupação da ordem do transmissível que só pode ser equiparada ao projeto de um filho. Mostrar, implorar que se veja, que alguém possa ver assim e jamais certas coisas. Magia e tabu.

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Arte; reprodução e prole; ciência; aliás, ganhe o nome que melhor convir, toda aposta até então arriscada pelo homem para sobrevivência de si mesmo é uma resultante de uma ininterrupta mistura. O cinema o conhece bem, o jogo de somas e lances que fabricam um corpo imaterial, e em High Life a montagem de Denis não é menos que um desafio a isto que ultrapassa, um percurso  de convencimento entre o sabido e o que já não se sabe mais. “Você está sentindo?”, “Desta vez eu sei”, “Nesta eu acredito”, diz a filha sobre a tentativa ainda em ponderação de arriscar a entrada num buraco, numa passagem do espaço. É a filha que a médica diz ser perfeita e que a trama esfíngica faz literalmente perfeita: é a restante; provavelmente, até, a última humana, uma messias torta: a urgência com que nos atravessa o diálogo no trem confirma o que o testemunho só faria supor, que algum inédito acontecimento terrestre – sim, estamos diante de um curioso sci-fi – faz daqueles exilados e do retardamento da passagem do tempo fora da Terra uma questão derradeira à vida do homem. Logo na cápsula de expatriados por desvio de conduta.

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A concordância do pai é, ali naquele tempo saltado, o atender afetuoso de um pedido sonhado, expansiva fé da criança escolhida, já privada de tudo e, portanto, plena de todos os possíveis? É decisão do homem na projeção (palpite, escolha) mais razoável, pautada no racionamento de si enquanto espécie? À independência excruciante, sensual, da resposta, que é nunca se dizer porque não existe, o desejo e a subtração que lhe persiste como sombra percorrem a clausura espacial em todas as suas técnicas de procriação e adestramento, em toda a responsividade epitelial dos papéis e cruzamentos, até que haja mais um humor, mais uma suave colocação em questão do que uma imagem ensimesmada (porque assim já foi acusada Denis), e é por este humor que a inquietação que vinha tamborilando sobre a mistura de uma observadora tão erótica com um gênero tão “pensante” ganha um gosto violento de excedente e surpresa.

Nos soluços de uma habitação fadada à autofagia do laboratório de existentes, aquilo que Susan Sontag chamou de “imaginação do desastre” enquanto lógica da ficção científica, aqui, replica à nós a catástrofe ao fazê-la humana, concernente a todos, decerto, mas também entre pai e filha. O contorno de um rosto olímpico e frágil, embalsamado e nunca tão vivo em sua linha de vida de faltas, um rosto assim não se via desde que Kubrick colocou máquina e super-homem um defronte o outro, ambos trocando de lugar. O efeito do encontro entre dedos adultos com uma irrisória mão de recém-nascido, aquela imagem já pós-comercial, quem poderia fazer re-trovoar a delicada aleatoriedade que é um nascimento, uma vida, senão aquela que do cinema se fez enteada para tratar, através das peles se imantando entre si, do único tempo que honestamente nos une, o futuro, essa motricidade de linhas debaixo da vista indo a algum lugar até onde reste um. Ou nasça uma – e a natureza, apática ou esperançosa?, depende, mais uma vez, de como se vê a chaga que somos.

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Homens têm segredos, mas não mistérios

Por Felipe Leal

Noites de cetim branco

que nunca chegam ao fim

(The Moody Blues – Nights in White Satin)

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Pode se dizer d’Os Amores da Casa de Tolerância (L’Apollonide – Souvenirs de la Maison Close, 2011) que há uma fluidez diegética típica à duplicidade que costuma se atribuir à “grande arte”: simultânea e perfeitamente bem, ora o que se vê é a decadência entrópico-biológica das cortesãs de uma casa de prostituição na passagem do século XIX ao XX, ora há uma evidência da trajetória do desejo e do lugar social masculino perante àquelas que, por percurso trágico (ou tardiamente trágico), são escolhidas para servir de bonecas especializadas às descargas pulsionais desses que, em público, jamais ousariam assumir o corpo por inteiro. Em outras palavras, certamente vulgares: há uma crítica a algo da ordem do “real”? Há uma ficção desamarrada de pujança social, ainda que ligeiramente? A questão, que não demoraríamos a perceber como moral, encontra para vias de intensificação deste elemento um punho fabular melancólico, posto que àquelas mulheres não há relação ou uso que não passe por um espelhamento sob a lógica de uma torre de Quasímodo: o tanto que sonham com a liberdade, com a compra de suas propriedades físicas, corporais, é o tanto que devem pagar, literalmente, atuando qualquer fantasia até que se tornem quase rijas como bonecas, funcionais como a materialidade correspondente do cruel excedente masculino. Moldáveis, sagazes – mas mortas.

O fabular É. Se encerra num baque e, no seu sentido, produz sentido: a situação que lhe provoca aquilo do lecionável opera por lugares cuja fixidez é obrigatória e se dá por repetência, sem que isso seja pejorativo, apenas da ordem do micro-cósmico; fixo porque a mobilidade de seus elementos é pré-registrada (não se fala necessariamente de uma causa-consequência, mas de algo do trágico para alguns, saliente para outros, uma vez que alguém deve pagar um custo para que um terceiro saiba, se exceda e aprenda), repetido, seriado, porque propriamente mitológico, cada qual encarna seu lugar no jogo da história que só aparenta ceder liberdades na progressão que Bonello peculiarmente chama de Crepúsculo à Aurora. Como num sistema mercantil apodrecido, todas eventualmente se endividarão com a matrona para pagar por aquilo (perfumes, loções, antissépticos) sem o que não podem trabalhar – para se endividar mais. A realização fantasiosa que as garante a miserável estabilidade é também o motivo do bocejo e do cansaço: têm de repetir o que os homens não podem exigir às esposas até que a corrente de papéis não lhes faça entrever outra opção que não fantasiar a própria saída – a liberdade que nunca será dada, consumada, por quem precisa que elas existam. Mas o nó fabular já acusa seu teor agravante na catapulta que as lança da esperança sorridente ao choro extático coletivo. Não há impossibilidade, só perpetuação.

Bonello faz de qualquer plano inicial o assombro e a epítome de sua esteira: num corredor iluminado, alaranjado, de frestas e buracos escuros como que vazantes, uma cortesã enlaça a outra: “Não se preocupe, hoje você vai ser escolhida para a liberdade”, e ambas somem no negrume replicado que acusa segredos e casulos, continuando o caminho para o salão onde são selecionadas, jogam, ouvem histórias e se embriagam, ou adentrando as redomas fetichistas que diversas vezes nos aparecem como split screen: quatro quadros de um trabalho de Sísifo, interpretado como uma vitrine de natal repetente. Quase nada mais é filmado em termos de arestas do que estes corredores, quartos ou pequenos salões. Como na cápsula de vidro que tão bem caracteriza a obra-prima de Silvia  Plath, uma relação entre o estranho e o cognoscível, o explicitamente contratual (à luz do aceitável) desponta como a sustentação de uma espinha fantasmática. O exercício daqueles que as contratam é dar forma àquilo que sequer conhecem, o exótico do desejo que, se pronunciado na rua, causaria quiçá mortes literais – e não assombrará que “as negras custem 100 [da moeda] a mais” –; a constatação das mais lúcidas, ou ousadas, é que o melhor é “se entregar direta e rapidamente à gonorreia” ou às drogas, acelerar a morte que é o único destino ao horizonte.

Um acelera a morte daquele sem o qual não conseguirá (sobre)viver.

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E todos entram em seus paradoxos: eles fingindo não se importar que a sobrevivência daquelas casas depende de um quesito cada vez mais financeiro, ao mesmo tempo em que recusam a ajudá-las ou assumi-las além da luminosidade pública, elas adiando a ação que romperia o sistema que as torna mais endividadas e menos passíveis de exercer qualquer liberdade até mesmo de individuação. Mas há algo naquelas mulheres que as faz exceder, para além do óbvio protagonismo cênico e narrativo, por natureza, qualquer domínio que aqueles sobre elas parecem ter: talvez porque privadas de uma vida “no fora”, inerentemente cegas à concepção de algo além dos corpos e mensagens vagas, pois, portanto, mestras no ofício do transformismo, são todas ainda assim as que adivinham, conduzem, ou seja: criam, dão forma, são O prazer, O faltante, O contínuo do outro. E não faltarão planos, porque aliás todos se compõem sob esta elegia à parte-pelo-todo, em que os coletivos de seios e clavículas, ou de coletes e pelos pubianos, se mostrem duplamente singulares e misturados. Todo corpo é, sozinho, e também por conta dos outros, sejam estes semelhantes ou antagônicos. No jogo de carteado que as anuncia um futuro que querem saber e sobre o qual cospem em descrença, mandíbulas trêmulas, unhas roídas e pupilas enfadadas entoam o mesmo desejo. Cada homem chega praticamente nas mesmas vestes e se desdobra numa especificidade delicada de realização em cada secreto quarto.

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Os artifícios e joalherias das prostitutas centuplicam o espectro conhecido de cores, mas por que é mais fácil lembrar, e curiosamente longe do dualismo, da completa escuridão das câmaras e dos corpos iluminados? Porque, como ordenam os sonhos, a fantasia, o excesso, o ficcional, isso que escorre entre os homens melhor acontece numa caixa preta da qual só lembramos por iluminuras. O filme desponta com a questão: “Você se lembra com frequência dos seus sonhos?”, ao que A Mulher Que Ri, pela negativa, sofre a tragédia do lampejo de um preenchimento (sonha que ele goza e ela é tão inundada que lacrimeja sêmen) seguido de dois rasgões na pele do rosto que era seu pão. Fadada a rir eternamente, cumprir-lhes a plenitude que vêm buscar na caverna dos sonhos, à força. Mas por que Bonello nos lembra que é simplíssimo recorrer à heterogeneidade de mulheres e à simplificação dos homens numa só figura? Os muitos séculos de mal contada história o provam, e ainda mais ironicamente o metteur-en-scène: dobrado numa icônica passagem de século, o risível do “progresso” fica melhor eternizado. Uns caçam, outras coletam e cuidam? Uns trabalham, outras zelam pelo fruto do emprego daquele? Uns melhor indicam, norteiam, outras se apresentam menos capacitadas? Assim a ciência o produziu em literatura: Samira, a árabe exo/erotizada, se debruça em prantos com o livro emprestado de antropometria cefálica que a diz que prostitutas e criminosos possuem crânios menores pelo menor uso das capacidades cerebrais.

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E o duplo engano o tempo inteiro ululando na sedução: nem todas as capacidades são racionais (sobretudo aquelas pelos quais os tolos e bestas mais anseiam), nem aquilo que a inteligência elaborou se sustenta sem aquilo que ela não conseguirá jamais conceber: se existem as putas é, também, porque algo de sistêmico e facilmente tornado negócio ameaça a inexistência mesma do estrato que as encerrou nas casas e agora as relega às ruas. Poderia Bonello ter acendido a fagulha de uma previsão desastrosa? Assim como aquela que Ri sonha com seu assassino mascarado, a prótese terá, no seu início pelo corpo, evoluído das máscaras aos anonimatos contratuais totais? Fala-se do capitalismo exaustivamente como um lobo, mas terá outro modo de troca um potencial de epidemizar mais o adoecimento do corpo até que este seja pura boneca escorrendo um líquido que mata, ao invés de nutrir? Findam todas exaustas em noites de cetim, todas “menos uma”, a que participa do choque anafilático temporal que é a cartada premonitória. A redoma de vidro pode muito ter virado a própria atmosfera, então, porque deste mundo é preferível nunca ter participado.

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Não fui eu que transcendi, mas Deus que desceu até o inferno, ou: História do Olho

Por Felipe Leal

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Tanto quanto ‘Deus’ invoca por si só, seja sob a capa de palavra, crença ou símbolo, certa Totalidade – para alguns, entendamos, Verbo, para outros cristandade, rosto esbranquiçado de cachos dourados, sangue respigando pelas dores da coroa dolorosa do mundo, etc. –, o nome Abel Ferrara, ele sozinho, carrega consigo particular ideia sobre um corpo em movimento de travessia pelo inferno, uma ideia sobre a qual, aqui também particularmente à subsistência física, seria “tortuoso” se debruçar, posto que a carne tem linguagem própria e só ao viciado é concedido olhá-Lo no rosto e não ouvir resposta, mas continuar olhando. Pois pensemos: o que é um homem que fez visita ao submundo? O que há no rosto de Keitel, dentro do lamento extravasadamente contido, em seus ombros rijos e pupilas furtivas que possa denunciar o corpo em comunhão com o avesso do paradisíaco? Não é óbvio o suficiente, algo que o pó e a agonia sexual possam denunciar sozinhos? Se a imundície é caricata, que ao menos não haja engano sobre as palpitações de seus signos: do catatônico ao estrebuchar-se em lágrimas, ninguém atende tão rapidamente à necessidade, ao presente, quanto o viciado.

A resposta, ficamos pasmos à teimosa rachadura do quebra-cabeça, está mais no detalhe do que na carreira de cocaína emprestando ao cano o instante-poder dos fracos: o que é comum à toda a obra de Ferrara, para além daquilo que de certa forma já sabemos que estará lá? A permuta cantada por Elvis Presley nos responde com candura e prontidão: “prometa-me, querida, o seu amor em retorno” (just promise me darling your love in return). Obra de usos e desusos de uns pelos outros, o corpo no limite das outras beiras. A drogada que fornece injeções à Keitel também o sussurra, como os vampiros que descreve: “os Vampiros têm sorte porque podem se alimentar de outrem; nós temos que consumir a nós mesmos, consumir nossas pernas só para encontrar a energia para andar; […] consumir a nós mesmos até que não reste nada além do apetite”. Pense, agora. De fato, escorregue do pensamento à presença carnal no espaço que o contém; suponha fisicamente um ajustar-se num corpo que vive apenas para a sensação que o presente lhe acompanha. É uma encruzilhada, e a câmera lança arestas e o papel injeta um devir que o ilustram bem: quando é preciso não estar lá para ser, chupar da presença, da delirante sucessão de sendos, uma matéria que possa fazer frente ao fato inconteste do próprio apagamento. O único sentimento a que se abre está nos dedos que erguem o depositório de cocaína, na testa espremida que aguarda o papel salpicado de crack. (Bem,) “Foda-se o passado”, ele diz, bem como para o futuro apenas aguarda as apostas do campeonato de Baseball.

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Ele ascendeu ou descendeu?, diríamos, em perspectivismo nada mais ousado; de onde partiu o âmago que atiça a Natureza?, contra que saborosa fase de Cristo seria possível se contrapor com maior ironia?… as perguntas poderiam se multiplicar, não fosse Ferrara tão sério quanto ao mito que ainda recobre majoritária parte da nossa sociedade como um mosquiteiro continua assegurando a psicológica tranquilidade à criança histérica: quem é Deus, quando duas pernas e o cano de uma pistola são suficientes para recolher à miséria do silêncio suado quaisquer suspeitos, suspeitos quaisquer? Ele é Hades, precisa o tempo inteiro se travestir de Toda-Potência. Harvey Keitel, de quem se afirmou que desceu até o inferno, encontra, aos pés ensanguentados de Deus, do que vem se revelar uma alucinação, uma senhora que detém uma taça de ouro roubada à mão. Mas algo lhe antecedeu. Algo lhe é sempre prévio, a bem da verdade: ele só vive para si, para o momento de tomada de que pode ser dono, pode ser, de certa forma, Deus.

A quem quer que tenha previsto as máquinas como substitutos ou suplementos técnicos de nossa insuficiência, o que responderia Ferrara, e o curioso é que nunca lhe faltará razão, é apenas que há outra produção cíclica de necessidades mais rentável, comprimida, pulverizada, bebível, secular mucosa debaixo da língua, e também que nenhuma guerra às drogas poderá refrear o âmago oco que nos torna cristalino um fato: engolimos, deglutimos, devolvemos; ou seja: precisamos, e inevitavelmente desta adição necessária excretamos algo só para poder absorver de novo. Aquele corpo, tremendo, pergunta: é para isto, Deus? Tão pior. A carne no extremo do presente não quer nada mais que antecipar o próprio gesto que a torna músculo, movimento, motricidade previamente vital, e eis que a droga lhe acelera, prolifera e regurgita o desejo. E o que é desejar uma intensidade que não lhe aconteceu e, ao mesmo tempo, repetir a perpétua sensação total que a primeira trouxe? Absolutamente nada. Contraproducente, viver. Sísifos tristes.

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Um atalho por Deus, que por aqui seria um curto-circuito deleitoso e paradoxalmente nada herege, aliás tão devoto quanto uma Simone Weil ou um Agostinho, revela não uma transcendência pelo maldito, mas uma irrupção digna de Deus na encortiçada e nebulosa redoma do crime. Ele agoniza nos cantos das escadas, salta da inércia plena ao resultado decidido do futuro dos novos mortais, que adoram e sacrificam milhares pela aposta cega no literal taco dos batedores de baseball. Estranhamente, o corpo ajoelhado ao prazer vive numa manutenção do transe. Chorar é espremer tudo, a redenção, o demônio, o gesto; fumar é revirar os globos para o inteiro do rosto tornado plácido. O membro viciado oscila sem intenção entre o extasiado e o exposto (nervo). Pelo nome da freira estuprada que, como Ele, viu o demônio no corpo de dois jovens, viu o demônio em si mesmo e aceitou o inconcebível perdão através de outro (d’Ela) – o policial, no entanto, não desatará o nó sem se adornar precisamente daquilo que repudia. A sirene do veículo é a trovoada do autonomeado Deus. O corpo trágico talvez seja mesmo hilário: “I’m a fucking catholic”, assim, só dito, é o seu amuleto.

Acorrentado no vício, diga-se o que quiser, chafurdando no crime contra o qual sangra mas sem cuja infiltração não sobreviveria uma gota de pulsão de nobreza correcional, antes de ser a presença arrogante de sua potência, Zeus é também pai: oferta aos rebaixados nada menos que a curva do Julgamento, ilumina a dobra que anuncia a conversão. Um ônibus à alhures, e o pai chora na estação dando adeus, talvez pela primeira vez descontrolado do Destino que achava possuir. Se pode cheirar, esse Deus? Hilda Hilst o chamou: uma superfície de gelo ancorada no riso. E ele escorrega, está sempre bamboleando, pedem-lhe que vá com calma. Ele vai ao extremo e chora como um menino. Antes só chorasse: lamenta, rangendo os dentes, que tenha de vestir a justiça na terra. Corpo megalômano concentrado na superfície que mais se deforma – a do rosto. Ele não só tem que chupar para sustentar a língua, o delírio do pó incendeia a absorção com o peso do longe demais. Quando se olha o Sol, o resíduo, ainda que criacional, já queimou a vista. Ele se arrepende da própria humanidade quando queria desferir o tiro mas acolhe a liberdade. Às vezes o corpo é disfuncial. Keitel é a mandíbula enlaçada que fumega incompreensão quanto tem de ceder. Deus é menino? Já cheirou pó? O corpo que O encontrou é como a canção de Natal para Abel Ferrara, para os ouvidos dos meninos: de novo, de novo, de novo.

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CineBH: Cocote (Nelson Carlo de Los Santos Arias, 2017)

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Que seja visto

 Por Felipe Leal

“El nombre poderoso de Jesús”

 

Em Cocote (2017), plano após plano, a acumulação de algo que pode vir a ser decisivo em demasia, só podendo a paixão explicá-lo: filmes podem ser revoluções, e se está diante de uma. Não chaves, ideias experimentadas, maquinários ou estampas de um processo revolucionário que seja, mas estruturas sintáticas e fechadas, concentradas e transbordando de um estilo (um modo de ser, raison d’être) cuja existência mesma, sua exibição, seu contato com os olhos, é capaz de fazer rachar o presente do que se sabia, do como havia sido feito previamente, das possibilidades de arriscar que ainda podemos estipular, empurrando mais as bordas… do real? Estamos diante da prova de que não foi suficiente nosso faro investigativo, endiabrado, para atravessar espaços com microscopias, como relances. É um choque. Pode-se sair da sala escura com um gosto inversamente proporcional ao fim do palato, daqueles tão minúsculos e fugidios que a fome para replicá-lo e estar à espreita por novos é quase uma possessão, uma necessidade. Aqueles cento e seis minutos podiam ser uma vida, na verdade contém algumas num estado limítrofe de selvageria: há um mundo, um em que o governo dos sujeitos é lançado às feras e os homens se veem atravessados por rasteiros poderes; diante deste mundo, simples, é preciso reagir.

Essa é talvez a história de Alberto, um homem enlaçado aos quatro membros por cavalos de desespero, vingança, passagem e poder. Seu pai morre pelas mãos de um homem influente e seus familiares – irmãs – causam-lhe problemas de incongruência religiosa, crença e querela pessoal. Estar no mundo sendo homem, melhor dizendo. Porque uma coisa é o seu luto, o de um homem convertido ao evangelismo, uma outra são os urros de libertação espiritual e os rituais afro-antilhanos que as irmãs e locais promovem em nome do morto. Mas este deve ser vingado para seguir em paz – ou eles, também, não terão paz. Não falta muito para que os cavalos se enfureçam e galopem. Ele será reduzido a nada? Alberto precisa reagir. Então o leitor deve saber duas coisas de antemão, a) que este texto é um bastante passional em relação a Cocote, ou ainda uma defesa, caso assim se prefira, e b) que por assim sê-lo, tomará algumas licenças formais para ser justo a tal sentimento, sendo a explicitação deste diálogo uma delas.

Uma teoria: o olho humano segue em cansaço de espírito (de humor?, de inspiração?) o número de imagens cumulativas com que entra em contato na trajetória de sua duração? Adultos são menos impressionáveis, menos inclinados à surpresa e ao desejo iconoclasta por conta da repetência das ações, do trabalho, dos anos? Porque, num gozo absoluto de coerência e articulação, todas as imagens de Cocote, dizemos todos os seus quadros, alguns inclusive em graus impossível e inconcebivelmente sublimes, só podem ser aproximadas não de planos, mas de proposições visuais com magnitudes de revirar um campo em 360º. Do primeiro serpentear, num preto e branco atemporal, de uma cobra de fumaça em 16mm, uma colisão fértil e quase ao rosto de uma palpabilidade neorrealista e boca de lixo, até suas últimas imagens, que são um retorno ao império de palmeiras, ladrilhos e sol à beira da apolínea piscina, um tableau de profundidade de campo tamanha que só pode remeter aos primeiros cinemas – juntas, em todas as linhas e corpos que relançam numa chicotada incendiária de mise-en-scène, estas imagens só podem ser comparadas, em recepção, em proposta de uma luz que vai incidir para logo depois nos devolver ao escuro, comparadas somente à intensificação dos nervos receptivos de um recém-nascido para quem tudo é a primeira vez. É assim que se o sente.

Mas este é definitivamente um mundo de adultos. Adultos são aqueles a quem é necessário comportar, carregar e lidar com significados estabelecidos; fazer. Sua idade anterior os cria, mais ou menos livre. Às crianças é reservado peculiar espaço em tela. Uma única cena pode resumi-lo bem e já ofertar a visão de algumas linhas da rachadura: Alberto parece cochilar em sua cama. A superfície da parede simples é de um azul simulado, quase claro. Uma conversa infiltra a janela e parece convergir no centro de suas sobrancelhas; talvez ele não durma. Palavras da morte do patriarca que correm para Cesarín, sobrinho, e se transformam em gritos e passos estridentes, e o garoto entra como um zumbido escuro ao quarto. A câmera, que do corpo de Alberto promovia um giro completo pelo recinto, pacienta em mostrar, des-cre-ver as imagens de santas, velas, contornar os tons de azul que se misturam à luz, e logo quando a porta é captada, entram em sincronia som de uma realidade externa e “realidade”, a do visível-filmado, o movimento do fora converge e à sombra veloz do garoto se segue Karina, irmã, armada de gritos e um chinelo. A criança é impossível. Mas, esperem, antes ainda que o círculo se feche, saem Alberto e Cesarín. Não somos permitidos a ver o último. O giro foi uma armadilha. É menos uma fobia que um jogo de encenação simultâneo a seu desdobrar narrativo. Numa outra cena com a outra irmã, à beira de um riacho, os infantes ressurgem, felizes, mas nunca devem perturbar aquilo que já está perturbado. Esta irmã também grita, ela contesta e gesticula, assim como a outra, a realidade, aquela em que o Deus dele não serve para nada, mas menos que isso: “seu Deus é o Diabo”. E(maiúscula divina)le não está no meu coração, eu que também sinto dor e não sou hipócrita como são seus servos, como o é você? Então Alberto reza, mas não sente, e ainda não fez nada.

Dizer que também é próprio das tomadas dessa cena a formação de um dispositivo interno que amplie, desafie ou suplemente a interação pressurizada do contado, é talvez assumir que todas as outras não encabeçam uma retomada de fôlego nesse vigor impetuoso de fazer ver sempre diferente. E aquele que vê elenca e se deixa atravessar por suas “favoritas” – não esqueçamos, filmes são sobretudo e ainda um quesito de gosto. Mas há duas coisas, dois eventos de ecceidade, que seu diretor filma de modo a tornar hiper-presentes, mais que próximos, um sendo uma entidade natural, o outro as manifestações físicas do espiritual na matéria. São: o mar e a dualidade do sincretismo religioso latino-americano. Para os teoristas do vermelho como sendo o pigmento que mais causa linhas de força e desejo com o olho, Nelson Carlo de Los Santos Arias faz do azul caribenho uma mémoire involontaire extensa: é ora imprensado por blocos de sombra e parece a própria água de um paraíso ainda não visto, ora traz consigo a fragilidade de um postal perdido, de um documento de outrora cujo reencontro anos depois aciona mais do que o corpo pode sustentar. É quase um documentário momentâneo sobre o azul: nós o queremos, queremos dele tudo saber, viver com algo que possa dele sobrar.

Atenção: um nome completo foi mencionado. Nelson Carlo de Los Santos Arias. Ele não pode ser esquecido, tampouco sua completude, a maneira que vem, sua apresentação. Dos fatos, é o menos perceptível (porque um dos menos controlados?, ele simplesmente é?) e o mais “atestável”. O leitor, se de olhos e ouvidos cicatrizados pela américa-latinidade de sua América Latina, conhece seus Silvas e Santos – metonimicamente falando, talvez tão bem quanto conhece o populismo e o sofrimento. Eles cruzam os territórios quase inteiros e levantam sua poeira de invisibilidade maculada. Sofrimento: é isto que o nome próprio comporta? Porque sabemos que alguns não chegam mesmo às equações e dados que nos dão rosto e pertença dissimulada. Não se está sendo político, político é o ato de cobrir a política dos vivos com uma história única, a sobre a qual estamos falando o tempo inteiro, de uma família destroçada pela miséria que é o desgoverno cataclísmico. E, no entanto, não há nada de “pobre” ali; no entanto, não é tão-somente a história de Alberto. Um nome como esse lançaria perspectivas, e um filme é para todos sem jamais, palavrão horrendo, “cosmetizar”. Esta câmera não o faria: o sofrimento não está adormecido nem implícito, está ali como a mãe está para Norman em Psicose: abertamente lá, o tempo inteiro lá, ainda que assuma outro corpo.

Um outro corpo e estamos de volta ao quadro, à célula que, de tanto se ler como parte de um todo, esquece-se que é também Citologia. A despeito do que é da ordem do dito em cada um deles – como se fosse possível separar verbo de imagem, mas faremos este esforço –, o que se faz com essas quatro arestas ainda não foi antevisto. Como inserir arestas num texto sem de seus interiores nada dizer, mesmo porque seria impossível fazê-lo sem beirar a convulsão literária? Alguns dirão que é tarefa de Sísifo, mas também greco-trágica, do crítico (ainda falamos do filme, porque aquele que filma é também aquele que arranja, um crítico). E a tarefa inicial do cineasta é transpor de sua tela “mental” uma ordem outra, a partir de uma primeira. Obras são transposições. Dizer “realidade” seria tolo, e não por todos os motivos teóricos possíveis: diz-se “ordem” porque são as ordens do corpo a que ele escolhe obedecer, e justo quando evitávamos os vocábulos da teoria eles ressurgem. Lateja algo de Titicut Follies (Wiseman, em 67), de um tronco observacional e resguardado do braço documental, naquele fluxo cênico que inevitavelmente saberemos ser de atores. É decerto passível de interminável discussão o recorte e a organicidade do mundo físico no documentário, mas, interceptado pela objetiva, há um novo e inumano elemento ao qual reagir, e o corpo muda, adapta, transforma. Chegamos a uma suposição mais rochosa: àquelas figuras que berram, xingam e entram em transes de expurgo, houve algo de pedido e algo de regência. Algo se afeta de certo modo e (coisas separadas, separáveis) convergiu para o quadro de ainda um outro.

Falávamos de algo que é “mais que próximo”, quando do mar e dos rituais. O que é isto que representa uma sobrecarga espacial? Só agora podemos elaborá-lo: poderá pagar pela boca aquele que considerar Cocote obra de ficção, porque ela não é nem isto nem de seu outro gênero, talvez no máximo um travestimento, e dos dois lados. Algo que, de tão familiar, não pode ser interpretado, que de tão episódico, da ordem dos feitos, não pode se servir assim de documentos compilados. Um embuste, uma farsa, uma atrocidade divina fazer com que uma das irmãs, “somente” para expressar que também sofre, e muito, numa das nove rezas, como um sol, magnetize para em torno de si alguém que lhe esfregue o peito violento, que lhe segure a mão, outras várias num coletivo ressoante, místico, entoando as palavras de dor e cura, que seu próprio corpo se levante, trema, delire, recue e recaia com brusquidão, quase um veículo, um intervalo de entrega em que ele lhe seja destacável. E como sabemos, como chegamos a afirmar isso? Ora, alguém que estava o tempo inteiro olhando por nós. Um aparato, quando bem manuseado, torna-se prótese, estiramento o órgão. O que o órgão vê? Vê diferente, numa logística do chão e do movimento para a qual se sujeita ao evento, o protagonismo peculiarmente se transfere para a ação, sendo que esta já é aquela que foi iniciada: o filho pródigo a casa torna. Machete em mãos, ele vai fazer algo. Sob o efeito do poderoso nome de Jesus ou não, porque a insistência maníaca do culto evangélico praticamente nos convenceu, queremos acreditar para que a força sintática daquela pastora também nos atravesse e converta, um só nome capaz de libertar e extrair desse mundo toda a imundície – Machete firme num plano que é puro tronco decidido e sanguinolência aos dedos, como se ele fosse o produto da alternância louca dos dois cultos que lhe atravessam o espírito (paz) com um demônio desconhecido, ele vai…

Seria possível que também insistamos nas obras enquanto majoritárias questões de linguagem porque algumas delas deixam-nos exatamente numa vacuidade dos sentidos, numa impossibilidade de sobre aquilo (que aconteceu) algo dizer? Daí que os métodos, passagens, operações tenham de ser traduzíveis, codificáveis, que, por exemplo, isso que chamamos de exercícios devam ser gramaticalmente quase causas e consequências, o olhar sobre as histórias meros aproveitamentos, reduções ou aditivos pautados em origens? De todo modo, tudo o que foi dito até agora pode, recomenda-se, ser “jogado fora”. Cocote, ao menos tentamos defender, é precisamente a experiência cálida e revolucionária de dispensar palavras. E este texto devia ter sido uma carta. Ainda assim, se um pouco crítico também puder ser: pode-se dizer sem exagero que muitas coisas não existiam antes de Cocote.

Alguns filmes surgem prontos e seu decurso só os prontifica mais; outros vêm a ser, sendo. Pintura se desenrolando como um pergaminho de uma sociedade com que nossa ciência ainda não tinha estabelecido contato. Cada ligamento, cada cisão alimenta um mistério e estala mesmo depois do primeiro segundo do novo. Ela não cria sem germinar. É uma droga, ansiar pelo diferente, pelo intenso, e simultaneamente se saber cego ao que virá, querendo que venha e rompa a cegueira – esta a das coisas que não tinham sido vistas, pensadas daquela forma. Poucos se moveram durante a projeção, a não ser para rir da irmã que “viraria homem, se fosse necessário”, porque Alberto, até então, não fez nada. Ninguém saiu. Se, aparentemente, foi necessário dizê-lo, a você que lê, das estatísticas de movimento dentro da sala, é porque, semelhante ao que aconteceu dentro dela, dentro daquele mundo, o corpo é o único lugar possível ao sentimento. Portanto, de volta à carta: querido leitor, se o diálogo das sombras vizinhas interessou, foi apenas para confirmar que, exatamente como quem escreve ou como a criança que cora à descoberta íntima e por outros imediatamente compartilhada e violada, também os outros estavam excitados e imóveis, e assim permaneceram até que os olhares se entrecruzassem. Mas uma luz já estava acesa.

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CineBH: Mata Negra (Rodrigo Aragão, 2018)

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Mad Max: “Black” Forest?

Por Felipe Leal

Nota: o texto pode conter spoilers sobre a trama.

Muito se fala de uma safra do horror em nosso cinema, um temporal de um dos gêneros dos mais codificados e de cujos códigos nos apropriamos com particularidades ainda não mensuráveis. Há estudos de caso em restaurantes microcósmicos e com uma heterogeneidade de variáveis que fariam Buñuel estranhar, lobisomens sob luas pálidas e fabulares na metrópole e que cintilam debaixo daquele perolado gigantesco. Beleza e breguice dançam em trocas expressivas. E os espécimes vêm, eles continuam mascando a goma de nossa espiritualidade extensa; nessa historiografia ainda verdejante, nem mesmo o Diabo, literalmente o demo, o capiroto, ficaria ausente. Ele tem chifres e ruge, nasce de um caderno rabiscado de esferográfica. Para nossa surpresa, é claro, como todo texto puxa seu alvo até as bordas, e todo alvo de um texto deve conter algum (sub)texto-limite, um algo para tornar problema, o problema foi longe demais, mas tão demais que os advérbios de nossa língua não podem contê-lo. Dos males, o tinhoso só atinge o malefício de um cacarejo: Mata Negra (2018) é o conto assustador da prolífica impossibilidade de impor limites ao místico. É mais do que qualquer um possa encontrar em seções bibliotecárias. É tão meticuloso em sua carnificina que só precisa apelar ao susto uma única vez, e portanto um susto ele mesmo: qual a espinha de seu horror?, melhor perguntado, porque ele não para de ser horroroso, no sentido mais atuante do termo.

Há uma garota, um amor, por mais relampejante que seja, e uma série mortífera, e poderíamos pular suas pontuações inicias, se essa vila d’um lugar qualquer (os arredores de um horror sempre lhe são mais que preciosos) não fosse um laboratório apressado em que todo gotejar em solução tem o efeito desejado. Nada respira. Tudo morre, e deve fazê-lo logo, em nome da intensificação e andamento do desfecho. Suas criaturas são aparições, mas, diferente da maioria destas, ao menos das sobreviventes, em que o relato das visões, sedimentado e recontado, garante a pujança de sua imagem/imaginário, os zumbis, amaldiçoados e paladinos do Bem são, aqui, meros momentos, protocolos, protelações. Eles não são “parte de”, mas peões, explícitos utensílios que valem pela historiografia pobre que os dota de superfícies e resoluções à tensão mesma que os faz brotar. Os nomes de sua própria sacralidade, que nunca deixa de ser solo, pronunciados como uma criança que lembrará, do arcabouço mágico, o abracadabra e o coelho da cartola. Envolvida com magia negra por inocência e por desespero circunstanciais, a garota lê o livro de feitiços como se em suas páginas estivesse escrito com sangue um power point de palavras-chave da teosofia e mitologia universais: Cipriano!, Hécate!, Amon! (Chriss Angel chega a fazer falta), e os mortos viverão e os vivos estarão marcados daquelas palavras em diante.

Não é inteiramente um problema de mítica. É comum ao cinema genérico, a grande parte de todo ele, na verdade, que obstáculos atravessem jornadas. Não porque o herói precisa superar a si mesmo – é uma outra questão. Ao horror, este fato do heterológico que replica as situações em fantasmas de sua raiz será precioso. Talvez por inevitável interposição daquilo que é estranho, talvez por naturalidade adversativa do mundo, o bom narrador saberá o fazer. Quiçá até jogue junto, embora a este gênero seja quase certeiro que grande parte da turbulência se dê de maneira a surpreender seu herói. E de surpresas a garota tem mãos cheias, sua face é um quadro de bocas e sobrancelhas – isso quando o rosto não está insuportável de tanto sangue, o que acontece com, digamos, frequência excessiva. Devemos, enfim, ultrapassar os códigos, e bem o discutiríamos, mas Aragão é um gênio do fôlego. “Esfrega” o livro e repentinamente lhe saem mais três percalços. Será trabalho voluntarioso e hercúleo do espectador procurar e se acalentar com uma cena que não seja imediatamente seguida ou borrada, ainda nesta interioridade nuclear, por uma desgraça recaída. Literalmente, não há paz. O que devia ser uma significação pluralizada do plano inicial se ramifica tanto que não é preciso chegar à metade do filme para se encontrar perdido. Qual era o impulso primordial? O desatar de que sortilégio traria redenção àquela errância juvenil? “A terra castiga quem tem sentimentos”, diz o amado, sem saber que a tradução de seu ditado seria um desvario camaleônico.

Podemos perdoar a solenidade daquele que, por aparência inicial de um desenrolar mágico das costuras dos eventos, desejava ser fiel ao ar longinquamente familiar dos contos de fada – “Ah, minha fia…”, “Ah, painho…” multiplicados por mil: o mundo nasceu emperrado? –, podemos saltar a percepção estagnante de que a garota oscila entre tão corajosa bruxa e tão indefesa virgem. Podemos, até, vendar os olhos diante das caricaturas ressecadas do bom moço, do bandido, do evangélico, do casal infeliz de roça. Mas, “de repente”, um nervo subcutâneo escapa ao previsto, ao natural do corpo (fílmico). A pele inteira treme, a superfície mais palpável, a do decurso, do cena-após-cena, é estuprada por reviravoltas dignas de um único apelido: mágicas. De repente, aquele livro, dos fundos de uma mata sub-explorada, é o antiquíssimo grimório buscado por gerações de sedentos e gananciosos; aquele ovo, que serviu de jura amarrada numa cena de épicas proporções de inutilidade do obstacular, é tanto uma licença para lançar um galo ao ar e fazê-lo simplesmente interromper, gratuitamente, e jorrar mais sangue, sangue, sangue, quanto é o desenlace futuro de um monstro cuja única função é, também, produzir o cômico e sujar. Afiada direção de arte, esta que fez do filme cinquenta-variações-para-ensanguentar-corpos.

É comum aos filmes de horror que acabem por ser hilários pelo verniz esfregado de sua feitura? É uma liberdade ou um acontecimento “involuntário” e peculiar, quando tal acontece?  Um momento previsto e mais ou menos ensaiado ou um derrape? A questão, que parece irrelevante e propícia à cada qual que dela participa, ou seja, assiste, se torna uma de todos, ou seja, novamente de código, e geral porque à medida que cada intensificação desse feitiço inicial vem tanto afastar o desfecho quanto propor-lhe uma vereda infernal, também o espectador tem de lidar com o cesto quente lançado ao colo. Ele – o “assistinte” – é, particularmente no terror, misturado ao jogo de saberes e surpresas que a trama cospe.

E o que temos é (reitera-se o caráter “repentino” com que tudo irrompe), tão logo: um amante a ser ressuscitado, dois bandidos, um dos quais precisa de um certo despacho, um fazendeiro em encruzilhada biológico-matrimonial, uma cabeça (para quê, não se sabe mais, e não somos culpados), um saco de ouro, uma manada icônica e paupérrima de religiosos de alcance vocal adequado a uma centena de aleluias e obediência canil, zumbis, aliás vários deles, como árvores ilustrativas numa peça campestre, a própria morte, travada como um boneco, o Diabo ele mesmo, invocado num passe de palavras de automatismo característico de quem lê uma bula em meio a um acesso de raiva. E uma garota. No meio de tudo, a garota contra as forças do mal, que não são nada menos que cada passo dado. Não há instante de tranquilidade, pulmões, felicidade que não sirva de catapulta ao trágico – não que precisem existir, mas porque a ideia de Aragão de horror deve ser uma de distopia descendendo ininterruptamente.

E ela entra numa espiral tão possessa que o futuro inteiro a solapa. Era uma missão subterrânea da história falar de um encaminhamento distópico e selvagem do mundo, daquele mundo erigido de tantos, para não dizer exclusivamente, perigos e tormentas de quem brincou com fogo? Tornar uma protagonista um redutível ao zero e subserviente ao ideal de viagem. E nós reconhecemos aqueles personagens, eles são os rostos familiares dos sortudos sobreviventes (será?), e algo a mais, um bônus referencial inesperado. Este aditivo é o nome de um outro filme, título de duas palavras, e está incrustado naquela fenda desértica que um plano se distanciando vem revelar ser um castelo em meio ao fogo em meio ao fim do mundo em meio à desesperança. Rostos pintados, lanças antiquadas, vestimentas de pano e um linguajar típico do caçador cada-um-por-si. É Mad Max! E com licença para franquia renovada e breve. Não por muito tempo, claro, porque a virgem deve continuar escrava da trama, a trama que só faz ampliar seus círculos até que o futuro pareça, dos impossíveis, o menos preocupante.

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