Os belos desencontros de Rochefort

por João Lucas Pedrosa

 

“É uma canção que canto quando estou triste.
Aí fico mais triste, então minha tristeza vira poética.”

O gentil amor dos homens (Jean-Paul Civeyrac, 2002)

 

À luz do sol recém-nascido, caminhoneiros feirantes chegam numa ponte transportadora que os levará à povoação de Rochefort. Enquanto a ponte suspensa flutua sobre o mar, eles dançam sincronizadamente, numa sorte de espreguiçamento coletivo após uma longa viagem. Música e dança fazem desse alongamento um despertar corporal e espiritual, e o atravessamento parece ser ao que é – ou melhor, será, com a chegada deles – uma outra dimensão. Pois ao longo do fim de semana que passarão montando uma feira e fazendo do lugar uma grande festa, é assim mesmo que a provinciana cidade que dá nome a Duas Garotas Românticas (Les Demoiselles de Rochefort,Jacques Demy, 1967) operará: como um lugar encantado, onde o cotidiano, o arrependimento e a morte são conteúdo de uma beleza incontrolável, inquebrantável, inexorável.

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Essa beleza de Rochefort é a dos musicais da Hollywood clássica. Cores vibrantes, suntuosos números de dança, alegria de viver. Diferente dos filmes que lhe são referência, o filme de Jacques Demy não é filmado em estúdio, mas em meio às ruas da cidadezinha e, ao invés do uso de estilizados cenários manufaturados e afetadas iluminações, recorre às formas e cores (pintadas meses antes pelo cenógrafo Louis Seret) irradiadas pela arquitetura local à luz do dia. A massiva maioria dos números musicais, assim, acontece à manhã e à tarde, em meio à jornada de trabalho e à jornada escolar, completamente atravessadas pela grande festa que energiza a cidade. E é em meio a elas que conhecemos as Duas Garotas Românticas : um austero e melancólico solfejo ao piano toma conta da faixa sonora ao fim do número inicial da chegada dos feirantes e um travelling in adentra pela janela a casa das gêmeas Solange (Françoise Dorléac) e Delphine (Catherine Deneuve), que estão dando uma aula de balé para crianças. Logo a aula termina, e Solange mal espera o último aluno bater a porta para começar a tocar no trompete a energizante música pela qual as duas irmãs se apresentarão a nós. Elas se energizam vendo a instalação da feira pela janela e a usam de fundo para cantar: “Nós somos um par de gêmeas, do signo de Gêmeos…”.

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Demy não sabia de cara que cidade usaria para seu filme. Sabia que queria uma no interior da França e escolheu Rochefort pela “adorável e imponente arquitetura militar”, segundo Agnés Varda, então sua esposa, no documentário que fez sobre o filme 25 anos depois[1]. O tom militar da cidade não é ignorado ou amenizado pela vibração climática do filme e, antes dos feirantes fincarem pé na cidade, um plano os põe lado a lado com um pelotão, indo em direção oposta (o sonho e a guerra em direções opostas). Instituições como o exército militar ou a Igreja destoam facilmente do entorno pelas cores fechadas das soturnas vestes (fardas, hábitos) e quase sempre aparecem de passagem, como figura satélite digressiva à cena – quando não, furam o signo institucional das vestes integrando números de dança com os feirantes e as mães de vestes coloridas. Eles pertencem aos interiores – os quartéis e os conventos – mas, neste musical, os interiores são sede do arrependimento, da ausência de vida. Deles são reféns Yvonne (Danielle Darrieux), a mãe das gêmeas protagonistas, e Simon (Michel Piccoli) seu antigo amante, dono da recém aberta loja de música da cidadezinha. Eles cantam toda vida a falta que sentem do outro e só não se reencontraram ainda por nunca saírem de seus respectivos locais de trabalho. Além deles, há Guillaume Lancien, o persistente ex-pretendente de Delphine que também é um ganancioso marchand de arte e o mais próximo de “vilão” que temos no filme: ele impede o quanto pode o primeiro encontro entre ela e Maxence, o marinheiro pintor que busca a sua ideal feminina, figurada numa pintura estranhamente semelhante à gêmea loura.

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A dificuldade da contiguidade espacial dos casais é, na verdade, a alma motivadora do filme. Se obras de diretores como Éric Rohmer e Maurice Pialat se fomentam das potências mágicas e/ou trágicas do encontro, Duas Garotas Românticas certamente constrói sua mística pelo desencontro. Rochefort é um epicentro irônico de rotas desviadas. Reúne passados desencontrados por décadas e buscas românticas metafísicas em seus menos de 22km² e, quase sadicamente, é o sítio de seu constante quase encontro. Como cenário de sonho, a não consumação do desejo é um fator constituinte de sua mística. Toda canção individual é acerca de um interesse amoroso, o qual se quer rever ou enfim conhecer. Não se sabe onde ele está, mas há um desejo metafísico que beira a transcendência e faz dos números musicais individuais algo muito próximo de uma trova do classicismo com suas musas inatingíveis. Nessa chave, é particularmente interessante que a canção de Andy (Gene Kelly), interesse amoroso de Solange, seja uma versão dançante do melancólico concerto em sol menor por ela composto (e cuja partitura esquecida serve a ele de pista para reencontrá-la), como se o americano tivesse saído magicamente de sua mente, e seguisse os passos que dela vieram.

No documentário de Varda, Michel Legrand disse ter tido uma particular dificuldade em musicar para o filme os versos alexandrinos de Demy. Ele insistia que assim o fossem pois o romantismo francês lhe era uma referência essencial e, se há uma teleologia nas canções trovadoras, é porque ela se segura num objetivo ideal, e não num rumo. Maxence deu a volta ao mundo pela Marinha procurando sua ideal feminina e as gêmeas estão dispostas a procurar os homens de suas vidas fora da cidade (sem saber que deles se afastarão), de forma que não são errantes diferentes de Étienne e de Bill (respectivamente Georges Chakiris e Grover Dale), os feirantes que afirmam em canto viajar “de cidade em cidade” e “de coração em coração”. Assim, Demy faz com que a alegria de viver do romantismo hollywoodiano se sobreponha ao romantismo francês dos fins do século XIX com seus flâneurs e desejos não-consumados e carniças (estas às quais já chegaremos).

Eis que os desencontros em Les Demoiselles não são apenas físicos entre as personagens, mas também tonais dentro do filme. Ao sábado de manhã, uma senhorinha dançarina aposentada é assassinada e esquartejada em sua casa. Quando ouvimos a primeira vez sobre o caso, a música é mais contida e sinistra; personagens cantam a notícia no jornal ou relatos de quando passaram perto da cena do crime. Mas quando essa canção termina e a câmera vai de fato à tal fachada, uma multidão de cores claras e vibrantes ao sol da manhã cerca a polícia que limpa o sangue da calçada ao som de uma explosão musical em orquestra. O que começa com um notável estranhamento tonal logo desemboca na maior cena de desencontros românticos de todo o filme, em que uma gêmea encontra e conversa com o par romântico telos da outra, num diálogo rotineiro e também sutilmente flertivo.

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A beleza em Rochefort torna-se irônica na medida em que é um bloco imanente, bruto, que se sobrepõe à tragédia alheia sem grandes pudores. É um resultado inexorável do romantismo da beleza sonhadora e alienante das obstinadas buscas individuais de cada personagem – o que os torna autocentrados e um tanto detestáveis. A esse ponto do filme, as irmãs sabem, cada uma, da história da outra: Solange sabe que Delphine procura um marinheiro pintor que pintou uma ideal feminina com a cara dela, e Delphine sabe que Solange procura um estrangeiro com a exata descrição física de Andy, mas os objetivos não importam se não são os seus próprios. Por mais que o filme se entregue à potência da beleza e do encantamento, a existência da matança – e o fato de o assassino ter sido, o tempo todo, um componente próximo no círculo de relações das personagens -, lembra que as pulsões de morte estão sempre mais próximas das pulsões de vida do que se imagina e tensiona o efeito de cegueira desse contagiante encantamento.

O lugar alienado desse sofrimento desejoso masturbatório é, muitas vezes, produzido por escolha própria. Yvonne decidiu abandonar Simon Dame 10 anos antes, grávida de seu filho, por achar ridículo ser chamada de “Madame Dame” com o casamento. Quando Solange esbarra com o suposto homem de sua vida e ele pergunta se podem reencontrar-se, ela voluntariamente o recusa e cria o futuro cenário de sofrimento de falta que a levaria à consequente expressão romântica. Atitudes dessa chave trazem dúvidas sobre se as personagens desejam de fato consumar seus desejos ou se há algum futuro que não o desmanche de seus pares para que possam voltar a produzir belos poemas de amor idealizado. Delphine e Maxence, em suas respectivas canções de mesma melodia, cantam: “A ilusão do amor não é o amor encontrado”. Talvez sejam eles o casal que a eternidade carregará por serem um casal unicamente virtual, pois nunca foram um par concreto sem ser nas cabeças – suas e nossas, que os juntamos por meio das imagens que criaram em pincel e em trova. Pelo que dependeu de Demy, também nunca o serão. Eles se juntam no extracampo, dentro de um caminhão azul como a melancolia em direção ao futuro, sem jamais sabermos se se reconhecem ou se Maxence reconhece em Delphine, fora de sua cabeça, a mulher de sua cabeça. Se o amor encontrado é algo perto do amor imaginado. Mas é claro, o sonho não seria sonho se se consumasse em qualquer lugar diferente da alma.

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[1] LES DEMOISELLES ont eu 25 ans. Direção de Agnès Varda (1993).

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