Alemanha, Ano Zero

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Por Jean Narboni

Tradução por Felipe Leal

Nada é mais enfadonho do que uma certa mitologia desenvolvida ao redor de Rossellini há uma dezena de anos, e à qual ele parece, ademais – por jogo, lassidão, ou simplesmente desejo de que o deixemos em paz? –, entregar-se de maneira complacente. Nada é mais enfadonho do que essa figura do diretor de consciência universal, de agenciamentos navegantes por entre um estoque de saber imemorial e de povos pressupostos e famintos de cultura e de comunicação, ou do apóstolo que dispensa a boa palavra à uma horda de discípulos concorrendo entre si quanto à passagem de tal herança. A projeção de Alemanha, Ano Zero permitiu que fosse restituído do cineasta uma imagem, senão mais próxima de uma verdade, de todo modo infinitamente mais excitante: é um homem consciente da ação mais do que da pregação, e de agarrar o mundo mais do que contemplá-lo; pioneiro de terras, explorador, cartógrafo e um tantinho aventureiro, assombrado pelo sentimento do provisório e da precariedade. Como não ser sensível, assistindo a este filme conciso, decidido, revirado de ânsias e, se pudermos dizê-lo, conquistador, em direção àquilo que se manifesta de uma necessidade, de uma coação íntima, em uma palavra de uma urgência, que são talvez, de uma obra de arte – mais do que os temas que ela desenvolve, e ainda mais que sua escritura –, a parte infinitamente preciosa? Seria preciso, para falar de Alemanha, Ano Zero, tentar lhe atribuir um pouco da velocidade e da turbulência que o animam, de onde provém, durante a projeção e ao seu término, a impressão extenuante, sufocante – “de tirar o fôlego” – de ter, não o assistido, mas de ter sido acompanhado em seu curso. As reações do público, deveras numeroso àquela tarde, não deixam dúvida alguma sobre este ponto.

Durante certo tempo aqui nos Cahiers, nós nos debatemos diante da alternativa entre um cinema da transparência, que não conservaria traço algum de seu processo de produção, e um cinema que inscrevesse em si a marca de seu trabalho formador. Quanto a este distanciamento, Rossellini, de quem conhecemos a sentença “as coisas já estão lá, por que manipulá-las?”, foi tomado pelo cineasta por excelência da transparência. Alemanha, Ano Zero, entretanto, faz de tal oposição algo vão ou já superado, uma vez que indubitavelmente não conserva traços de nada, mas sobretudo por ser, de parte em parte, a anulação em ato dos rastros de sua passagem. Em seu célebre artigo, Rivette escreveu outrora que não guardamos dos filmes de Rossellini nenhuma memória de enquadramento, de imagem ou de plano, mas somente de um traçado, de um liame, implacáveis. Alemanha, Ano Zero progride como uma devastação, uma destruição, um rastilho de pólvora devorando a si mesmo. Que mostra ele, ademais, além da transformação de um “rastro da ausência” em uma “ausência de rastros”? O que é ele senão uma versão moderna e atroz d’O Pequeno Polegar, onde o infante, uma vez cometido o parricídio, tentará reencontrar nos escombros de uma vila devastada alguns frágeis dedos indicadores, logo depois sentindo que eles se furtam um a um, se permitindo, propriamente, morrer?

Impossível, especialmente nos limites de uma nota, aqui, dar uma volta num filme como este, mas me deterei sobre um ponto. Que cinema não cessamos nós de defender aqui, e contra qual outro? Um cinema da inscrição verdadeira, da perfuração cruel das letras, do ensaio da passagem ao ato e da tomada à palavra, cinema contrário ao implícito e ao subentendido, à alusão e à metáfora. A extrema modernidade de Alemanha, Ano Zero tende talvez ao cumprimento radical deste programa. É certamente por ter tomado a sério o discurso nazista de seu antigo diretor de escola sobre a necessidade de limpar o mundo dos doentes e dos fracos que a criança realiza seu crime. Mas não tivesse dito somente isto, o filme não escorregaria a esse ponto ao sentimentalismo das ficções sobre abandono, sedução, devoção e morte de crianças. Sua burla e seu humor – sim, seu humor – insustentáveis têm, sem dúvidas, em mente e em fato, que a criança está sempre encurralada entre diversos discursos de ordem ou de incitação, portanto uma discursividade familiar, e que é entre eles que ela construirá seu percurso, como que sobre um fio: discurso, no momento do crime, por exemplo, do professor nazista bem conhecido, mas também queixa ressuscitada e repetida do pai sofredor. “É melhor que eu morra de uma vez, sou para vocês um peso”. Este humor tristonho e mais eficaz, mais violento que toda denúncia de ordem política ou da hipócrita manipulação familiar, se é verdade que o humor é aquilo que não se opõe à lei, não a contesta nem se manifesta contra ela, realizando-a estritamente e a conduzindo às últimas consequências, coloca, ali, tanto melhor a nu, uma verdade cruel e obscena.

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[1] Texto publicado na revista Cahiers du Cinéma, edição de nº 290-291, julho/agosto de 1978, por Jean Narboni, pg. 47.

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