Sinfonia da metrópole: cordões e balões, carros e prédios

Por Diogo Serafim

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Um jornal no pé de um bonde acusa a existência de um assassino de crianças à solta na cidade de Los Angeles. O bonde começa a subir a rua íngreme e a câmera, ali instalada, vai desvendando a cidade como uma prisão de luzes, movimento, outdoors, carros, fachadas comerciais e corpos ocultos. Uma imensidão de anonimato operando individualmente em uma estrutura complexa e naturalmente instável. Desde esse primeiro plano, Losey já deixa bem clara a abordagem estruturalista que ele ambiciona desenvolver no filme: de que maneira cada indivíduo interage com o meio que está inserido, e como o meio por sua vez manifesta seus difusos desejos e traumas?

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O diretor emprega uma abordagem formal de exploração geométrica que acaba por dar à própria cidade um protagonismo inflexível na narrativa. Los Angeles aqui funciona como um microcosmo para os Estados Unidos no período do macarthismo, um país tomado por paranoia, neuroses e contradições. Mais que tudo, o sistema político e a organização social da cidade indicam que não há futuro possível para as crianças dali fora desse enclausuramento espacial e existencial.

Logo no início do filme, vemos crianças habitando vários espaços, a rua, a praia, o parque de diversões – o filme vai operando uma lógica formal que torna progressivamente cada lugar em uma potencial jaula, em um ambiente selvagem onde o perigo está sempre presente. M é, acima de tudo, um trabalho de arquitetura, sobre como corpos interagem e existem nesses espaços. Quando Michel Mourlet escreveu que tudo está na mise-en-scène, ele provavelmente pensava nesse filme.

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A cidade em constante expansão amplifica também paralelamente um espaço para o sentimento de individualidade, progressivamente distanciando os cidadãos em uma dinâmica que tem pouca relação com o isolamento espacial em si, mas sim um sentimento derivado de uma ideia fundamental dilatada de individualismo. Esse solipsismo implica em um crescente desinteresse pela individualidade alheia e uma consequente alienação da base da relação social e ontológica da consciência humana – isto é, a relação do Eu com o Outro. A sociedade é aqui um conceito-limite que é resultado das formas de interação social, as pulsões e desejos sublimados de uma população com sua vida social em crise.

Logo no começo do filme, quando a primeira criança é raptada, Losey filma uma sequência absolutamente sublime: a mãe, ao perceber que a filha não voltou para casa, olha para o chão pelo alto das escadas. Já temos aqui uma consciência espacial e um elemento temático que instaura um sentimento de verdadeira angústia – no último andar de um prédio, a mãe grita pela sua filha, perdida em algum lugar da cidade, invisível e inalcançável. Losey acompanha sua descida pacientemente, alternando os planos da mãe progressivamente descendo até a rua com planos estáticos de objetos que remetem à imagem da criança – um copo de leite, a bola esquecida em uma esquina qualquer, o balão que completa o movimento inverso da mãe que descia, indo por sua vez em direção ao céu.

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Enquanto isso, a neurose aumenta na cidade. Uma emissão televisiva é incisiva nas interdições governamentais e no estado de pânico instaurado, transmitidas com um tom autoritário. Na rua, um homem é multado por atravessar a rua fora do local indicado, outro é acusado por ajudar uma criança com seu tornozelo machucado. É como se todos da cidade fossem potencialmente assassinos. Todos são culpados e ninguém está a salvo.

Pouco depois, temos uma cena absolutamente claustrofóbica do assassino no quarto de hotel, seu rosto na penumbra, no qual ele manipula o cordão de uma luminária. A dureza com a qual ele interage com a luminária traça um paralelo logo em seguida ao cadarço de um sapato que ele utiliza para decepar uma figura de gesso – o sapato que é um elemento recorrente no filme, sendo que ele colecionava os sapatos das crianças que assassinava. É como se ele estivesse em um estado permanente de asfixia e, consequentemente, também a cidade.

O lugar que ele se tranca após ser identificado por um vendedor de balões cego é em um shopping center – uma escolha de locação nada inocente – e quem captura o assassino são criminosos da cidade. O julgamento que procede é de uma violência constituinte vigorosa, a fragilidade do assassino é contrastada com a dureza da multidão que o acusa, e após uma confissão na qual ele se lembra de um pássaro que ele matou quando criança, temos a chegada da polícia que finalmente o leva em custódia.

O sujeito influencia e é por sua vez influenciado pelo meio, e essa permutação recíproca resulta em uma reprodução sintomática do estado político vigente, espelhando-o na organização social da cidade. Dessa maneira, os grupos de mafiosos que aprisionam e julgam o assassino aqui funciona como um espelho da estrutura de justiça que o estado emprega.

Foucault uma vez argumentou que a etiologia da justiça na sociedade ocidental vinha de uma inversão dada no sistema judiciário durante a Idade Média: anteriormente a justiça vinha de um direito do lesado em pedir justiça e de acordo com a jurisdição e ao poder que lhe foi dado, cabia ao juiz definir se o apelo era pertinente. Em seguida, durante o feudalismo, essa justiça foi associada a uma lógica financeira, a justiça se torna lucrativa para quem detém o poder e, consequentemente, onerosa para quem está subordinado a ele. Segundo Foucault, foi sobre este pano de fundo de guerra social, de extração fiscal e de concentração das forças armadas que se estabeleceu o poder judiciário. Em M, fica muito claro que as forças que julgam o assassino de pássaros e crianças é muito mais uma conjuntura que um grupo de pessoas.

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A designação da realidade subjetiva se dá pela soma de especificidades internas e externas ao indivíduo, uma relação constante entre uma base ontológica volátil e um empirismo concreto, mas o sujeito não pode jamais ser descrito apenas por essa operação. Algo sempre escapa, e é aí que repousa o princípio transcendental da vida. Em uma cidade na qual o espaço para o transcendental é alienado por um estado viral de desconfiança, quem é mais vulnerável, o indivíduo ou a cidade?

Quem matou as esperanças das nossas crianças?

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