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Carol (Todd Haynes, 2015)

Por Arthur Tuoto

Carol é, acima de tudo, uma obra de reverência. Um filme que poderia soar como um simples exercício de mediação (a atualização sirkiana de Far from Heaven via uma atualização formal de Brief Encounter), mas que se transforma em um ritual de renovação, um ritual de gestos, sons e imagens que invoca uma força encantatória implícita em toda uma tradição cinematográfica. Tal como um místico da forma, Haynes, aqui, não só reverencia seus ancestrais mais poderosos, mas de fato renova toda uma alquimia do aparato nessa apropriação.

Mesmo partindo desse mote do culto, desse mote da reverência como uma força motriz do drama e da mise-en-scène, os elementos mais básicos de Carol não deixam de ser assumidamente contemporâneos. Seja a fotografia de Ed Lachman, que abusa da distância focal, seja a trilha sonora ultra evocativa de Carter Burwell, sempre complexa em suas camadas instrumentais, seja nas incríveis fusões da montagem de Affonso Gonçalves, beirando o abstrato em diversos momentos.

Carol (2015) e Brief Encounter (1945): Renovações formais em prol de uma mitologia dos gestos.
Brief Encounter (1945) e Carol (2015): Renovações formais em prol de uma mitologia dos gestos.

O filme pode até partir dessa sentença inicial de Brief Encounter, especialmente dessa mitologia de gestos e toques que o filme de David Lean venera (a sugestão implícita no mais mínimo contato), mas, desde seus primeiros minutos, fica muito claro que Carol está interessado em construir toda uma nova dimensão de texturas visuais e sonoras: o nascimento de um sentimento que gera uma dissonância sempre evidente ao aparato. Um pouco como se a impalpabilidade dessa paixão entre as duas protagonistas refletisse no espaço entre aqueles corpos. E, nisso, toda a variação focal da fotografia, os closes instáveis, as texturas manchadas e a luz estourada, surgem quase como um processo de desfiguração desse espaço em prol desse sentimento motriz. Como se, em prol desse encontro, todo o resto fosse aos poucos se desfazendo: a luz de um túnel, as mãos que dirigem um automóvel, o reflexo em um retrovisor.

A variação focal que evidencia a impalpabilidade de um encontro.
A variação focal que evidencia a impalpabilidade de um encontro.

Nesse sentido, o filme não deixa de colocar à prova a teoria do personagem que assiste ao mesmo filme de Billy Wilder diversas vezes, mapeando a relação ambígua entre o que os personagens de Sunset Boulevard falam e como eles realmente se sentem. Nesse jogo de aproximação entre percepção sentimental e percepção cognitiva de Carol, o poder da ideia não é simples sugestão, mas ele de fato transborda na tela. Aquilo que se sente não é apenas implícito, mas fica evidente na textura cromática e sonora da obra. O próprio uso de fusões no filme evidencia essa desfiguração do espaço, esse encontro que inaugura uma nova dimensão que precisa ser evidenciada cinematograficamente. Ou seja, o que em Brief Encounter era implícito em uma decupagem polida, ainda que se arriscando em algumas trucagens, em “Carol” rebenta diante dos olhos, reluz em seus objetos e em seu espaço de cena sem muitas concessões.

Talvez o grande desafio de Haynes tenha sido manter essa abertura estilizada, essa vocação assumidamente maneirista e, ainda assim, preservar uma elegância que é da natureza dessa proposta. A atuação de Cate Blanchett e Rooney Mara foi mais do que indispensável nesse trajeto, já que as duas atrizes intuem muito bem esse jogo de forças entre um sentimento épico e um contanto aparente. Uma dinâmica que se faz perceber através do mais prudente dos gestos, da mais cautelosa das expressões,  ao mesmo tempo que preserva um charme implícito, um encanto constante, manifesta um magnetismo, uma dimensão quase mística entre corpo, matéria e luz. Existe, portanto, toda uma coreografia entre ato e intenção, ação e sugestão, que só reitera essa ambiguidade entre a efemeridade do encontro e seu consequente efeito imponente.

A fusão que supera o poder da sugestão: o aparato a serviço de uma nova dimensão cinematográfica.
A fusão que supera o poder da sugestão: o aparato a serviço de uma nova dimensão cinematográfica.

Carol é, no fim, das contas, um belo exemplo onde a autoconsciência cinematográfica não está ali apenas para se exibir ou desfilar suas proezas acadêmicas, mas de fato funciona a serviço de um franco projeto de atualização. Até porque mesmo assumindo esse formalismo maneirista, o filme nunca se fecha nessa abordagem. A última cena talvez seja a prova final dessa renovação tanto no sentido de trair a tragédia iminente de Brief Encounter (se lá o encontro era uma utopia, um ideal inalcançável, aqui ele é a possibilidade concreta de uma realização) como de trair um formalismo reverenciado até ali. Quando Therese começa a procurar por Carol no restaurante, e o registro formal se transforma nesse mundo flutuante da câmera na mão, deambulando sobre aqueles corpos e sobre aquele espaço, é um pouco como se Haynes se abrisse não só para um outro cinema, livre de um possível formalismo acadêmico, mas para uma outra perspectiva de mundo político onde não só existe a possibilidade de uma liberdade da forma, mas de um amor incondicional entre duas mulheres.

 

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Os Oito Odiados (Quentin Tarantino, 2015)

Por Arthur Tuoto

É inegável que os últimos filmes de Quentin Tarantino retratam muito bem uma contextualização política e racial das mais interessantes e provocativas. O deslocamento caricato de uma circunstância em prol da bruta evidência da opressão, uma abordagem pulp problematizadora que sabe muito bem reconhecer alguns signos históricos em toda a sua proposta alegórica. Uma aproximação que, em seus dois últimos longas, parece ter encontrado um equilíbrio muito bem dosado entre elemento político histórico e dinâmica gráfica de cena.

Talvez o grande problema de The Hateful Eight não seja exatamente reconhecer essa abordagem como uma medida de praxe, mas justamente se fechar nela como um modelo, ou talvez até como uma espécie de fórmula limitadora. Já que, em sua pura essência dramática, The Hateful Eight é um filme que não está tão interessado em se renovar ao longo dos minutos, pelo menos não da mesma maneira que Django Unchained e Inglourious Basterds estavam.

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Depois do primeiro ato, quando Tarantino de fato cria um subtexto instigante e lança mão dessa contextualização muito bem situada (a viagem com os personagens de Kurt Russell, Samuel L. Jackson e Jennifer Jason Leigh ainda é a melhor coisa do filme), The Hateful Eight entra em um estado que beira o acomodado. Quando o filme se fecha no ambiente do saloon, com a apresentação de novos personagens e suas mil insinuações na construção de cada um deles, ele logo parece um pouco refém desse desfile de brutalidades que aqui soa muito mais submisso a um certo modelo de frases de efeito e elementos gráficos jocosos, do que exatamente dono de um elemento dinamizador próprio.  É um pouco como se o filme, ao se ver diante de um certo esvaziamento dramático do seu autor, consequentemente se transformasse em uma caricatura dele mesmo, desse modelo cheio de anseios por construções mitológicas mas que, agora, está relativamente longe de concretizar tudo o que pretende. É óbvio que o plot à Agatha Christie rende ótimos momentos, tanto de tensão dramática como de atmosfera política reveladora pós guerra da secessão, especialmente em suas desconfianças implícitas, mas tudo soa muito mais como um exercício derivativo do que uma obra de potência própria.

A personagem de Jennifer Jason Leigh talvez seja a evidência mais concreta desse fracasso, já que toda a jornada de Daisy, no lugar de um propósito dramático mais específico ou simbólico, acaba caindo em um movimento simplesmente sádico. Toda a reiteração da tortura aqui soa muito mais como um esporte, um exercício à Funny Games e Paixão de Cristo, do que exatamente uma situação de denúncia ou de proposta narrativa independente. É quase como se o único propósito da personagem fosse esse de ser socada constantemente em um misto de prazer sádico e elemento cômico agregador, já que a risada da audiência na sala de cinema parece sempre inevitável nesses momentos. Pode-se até argumentar que existe uma conotação de denúncia ou contextualização histórica impiedosa nesse processo todo, mas o filme parece que está muito mais interessado em vibrar com essa vocação da personagem para saco de pancadas, do que exatamente em situar uma marginalização simbólica.

Existe, portanto, em The Hateful Eight, uma clara despolitização gráfica do cinema de Tarantino, uma despolitização em que a violência entra mais como um desserviço onde a plateia vibra muito mais com os socos na cara de uma personagem, e nunca se redime dessa glorificação coletiva, do que com um elemento de contemplação de propósito e força, como havia em seus últimos filmes. O que era catarse, agora é um entusiasmo cínico; o que era político, se perdeu em um banho de sangue presunçoso.

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Loft (Kiyoshi Kurosawa, 2005)

Por Felipe Leal

De uma forma ou de outra, pode-se dizer que todo o cinema japonês circunda questões que rebatem, como numa mesa de pingue-pongue, entre a sociedade e o indivíduo. Semelhante a uma projeção de dramas interiores, os problemas se ampliam e tomam forma, no ecrã, através da massa do todo, encontrando vazão pela menor quantidade de pressão, como se a bolha de sabão já estivesse ali, esperando para ser estourada, a despeito de sua quase invisibilidade. Curiosamente, no país, as expressões públicas de sentimentalidade são praticamente interditas, servindo ao cinema o papel de médium, de ente que fala por. Pois nesse duelo de forças há quem jogue há 40 anos, apropriando-se precisamente do sentimento mais forte para quem a expressão da individualidade foi tomada – o horror -, transmutando-o em gênero, inscrevendo este em outros, e ainda abrindo espaço para reflexões delicadas sobre o próprio cinema. Este homem é Kiyoshi Kurosawa.

O horror de Kurosawa priva-se de sustos e assombrações histéricas, como ditam as leis de seu país. Tudo se resolve, a princípio, em movimentos de câmera. No caso de Loft (Rofuto, 2005), uma escritora com problemas vai até o campo para retomar a fluência da história de seu novo romance e, de uma noite para outra, vê-se envolvida no misterioso caso de um arqueólogo e sua múmia milenar. Ou melhor, de um movimento para outro: a câmera sobe em um discreto tilt, revelando o homem e um corpo dentro de um saco, quase como um espectador plantado bem atrás dela, que permite-se enxergar também. Mas não há acaso algum em tal ato. A partir daí, como o é em toda a filmografia do diretor, o filme se revela como um crescendo de descobrimentos, micro-revelações – porque o horror, na verdade nunca antes tão interiorizado, custa a se exibir – sensíveis das coisas pelas lentes prosopopeicas da câmera.

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E aí os eventos se sucedem em camadas de contiguidade analógica. O tempo se arrasta e os detalhes vão surgindo como peças soltas; o que era um filme sobre múmias acaba vestindo a roupagem de um drama psicológico sobre assassinato e memória, para pouco depois tomar elementos de um romance cheio de complicações. Nada é avisado, tudo se exibe sorrateiramente, por meio de trocas energéticas em que os tons narrativos implodem e explodem como bem desejam. Ao assistir a filmagem em time-lapse de uma múmia em observação no final dos anos 20, a protagonista pergunta ao assistente de cinema o que é aquilo, ao que ele a responde ser uma técnica utilizada para observar as coisas no decorrer do tempo, já que a técnica reduz a quantidade de frames vistos por segundo. Ora, não é exatamente o que acontece diante de nós, com o cinema? Alterar o tempo para ver melhor, para enxergar as coisas de maneira mais apropriada, ou da maneira que se quer? Se a narrativa não sabe ela mesmo o que é, que a câmera nos faça, pelo ato de ver, participar da indiscernibilidade.

A questão aqui parece retornar à maneira de articular, então, o horror. É claro que o gênero só funciona para Kurosawa quando intimamente atrelado àquilo que não pôde ser posto para fora e permanece a ruminar, eventualmente tornando-se uma aparição. É essa manifestação do assombro que tem ignição no particular e parte para o social, maculando a normalidade da vida que não pode mais se sustentar como antes, já que ela naturalmente não se perturbaria sozinha. Mas o movimento não começou ali, ele já é uma devolução, regorgita da boca do todo, da sociedade adoecida, e penetra, lamacento como o vômito da escritora, na intimidade dos indivíduos. A natureza do horror precisa desse círculo para se entender como verdadeiramente assombrosa.

Se o gênero em questão comumente não deixa ver a destruição do indivíduo por aquilo que é monstruoso, Kurosawa entende que sequer é necessário esconder: o ato daquilo que corrói não precisa ser velado precisamente porque, a nível psicológico, ele ataca muito mais profundamente. Não é à toa que a psicologia, o espiritismo e a metafísica sejam temas recorrentes em sua filmografia. Assim como a personificação da múmia ameaçou estilhaçar a crença do arqueólogo, homem da ciência, o cinema não é menos cruel por possibilitar que nós vejamos o mundo de outras maneiras. As coisas mais horríveis da arte de Kurosawa se introduzem de maneira sutil, em sua simplicidade daquilo que é natural – por termos nós mesmos as invocado- e não o é – por fazer parte de um outro plano – ao mesmo tempo. Talvez assim também se preserve a natureza das imagens que vemos. Talvez por isso precisamos do horror.

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Steve Jobs (Danny Boyle, 2015)

Por Arthur Tuoto

Steve Jobs é um filme brega, um filme acima do tom, um filme teatral não no sentido de honrar uma certa sacralização do texto, mas teatral no sentido de se deixar levar por todo um histrionismo de gestos, palavras e andanças. E talvez a subversão indireta de Boyle venha justamente disso, dessa desmistificação over do texto e do espaço, dessa abordagem que recusa se transformar em um subproduto fincheriano (como talvez era de se esperar, nos dias de hoje, de um roteiro de Sorkin), mas se abre para um mundo de alegorias dramáticas e embates caricatos.

É curioso como o próprio esquema do roteiro de Sorkin se adapta muito bem a esse tom mais alegórico de Boyle, um esquema que abusa dos bastidores e, de alguma forma, tenta deflagrar a fábula pública através da fábula privada. Ao recusar esse realismo em sua aproximação, o filme trata seus personagens quase que como cosplays de personagens reais, espécies de mimeses míticas que se debatem constantemente dentro de um ciclo dramático retórico, porém prazeroso. Um determinismo narrativo mais do que assumido dentro dessa dinâmica ultra fechada e quase laboratorial na construção de suas personas.

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Até porque mesmo que toda essa métrica dos diálogos de Sorkin, ao longo da sua carreira, foi se tornando quase mecânica (ou, em algum sentido, nunca deixou de ser), ela ainda é bem funcional ao destilar esse prazer que está muito mais em ouvir, em acompanhar esse ritmo, esse atropelamento, do que em exatamente entregar uma informação concreta. O que, de alguma forma, não deixa de subverter a própria ideia de um bom roteiro: a retórica é o conflito em si.

E do que mais é feita a persona de Steve Jobs do que pura retórica? Os três produtos lançados por Jobs que definem os três momentos no filme e, sempre, o mesmo homem, evidenciam esse fetiche conceitual de um contexto (a marca como uma dimensão de grife, de objeto artístico especulativo, de pura alegoria em suas apresentações), que se revela, no final das contas, o fetiche conceitual de homem. Nunca um programador, um engenheiro ou um designer, mas sim um maestro retórico: o farsante conceitual.

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Entrevista – Lucas Ferraço Nassif

Por Virgilio Souza

A exibição de Being Boring foi um dos acontecimentos mais interessantes da 19ª Mostra de Cinema de Tiradentes. Escalado para a madrugada de sexta para sábado no último fim de semana do evento, o musical/experimental de Lucas Ferraço Nassif parecia buscar um lugar distinto na programação, firmando bases na temática central do festival, espaços em conflito. A sala, com algumas fileiras de cadeiras a menos para que o público pudesse transitar de maneira mais livre durante a projeção, se transformou como em poucas outras oportunidades. Na plateia, quase pista de dança, espectadores dançaram, tocaram a tela e, alimentados pelo filme, construíram um fenômeno que deslocava o autor e, em muitos sentidos, punha em questão concepções de cinema das mais sortidas. Entrevistamos o cineasta no dia seguinte, ainda sob o impacto da sessão.

Como sua formação em cinema se relaciona com o processo de feitura do filme?

O que acontece com o Being Boring e com minha própria maneira de fazer cinema parte de um incômodo que é também de ter feito faculdade de cinema. É uma coisa de que eu me arrependo muito às vezes.

Em que sentido?

Eu achava aquilo tudo muito chato. O esquema de produção, as relações de trabalho, a forma como as pessoas lidavam umas com as outras, como tinham que fazer o pitching de um projeto para que ele existisse, mas aí acabavam tendo que fazer o roteiro de alguém que achavam muito ruim. Muitas vezes era algo pobre no campo da expressão, da possibilidade de fazer de outro jeito. Me parecia que esse lugar não era muito questionado. Na verdade, estava todo mundo lutando por aquele poder que já estava estabelecido, e isso ainda aparece quando a gente vai a festivais de cinema. Existe um esquema, um dinheiro que você precisa ganhar, e é muito bacana ganhar muito dinheiro — quer dizer, muito entre aspas, porque não é tanto, mas, se a gente for parar para pensar, certos filmes têm muito mais do que precisavam. Então me cansava muito isso, como me cansava ver as pessoas fazendo Catarse, por exemplo. Apesar de o crowdfunding ser uma outra maneira de juntar grana, eu pensava no porquê de fazer essa coisa gigante, sendo que é possível pensar de outra forma. E é claro que os roteiros que essas pessoas fazem são mais elaborados. Não em si, mas são maiores e talvez um pouco mais pretensiosos, tentam psicanalizar os personagens o tempo inteiro, essas coisas meio cafonas.

E como o Being Boring entra nisso?

A proposta do Being Boring já vinha dos curtas que eu fiz. Na verdade eu já tinha dois longas que nunca foram passados. Eles existem no meu computador e é isso. Mas a proposta era de pensar em um esquema de produção possível, sem grana, tendo que fazer em uma noite, porque era quando a gente podia se encontrar. Aí começamos a pensar a partir de música. Eu convidei a Bárbara [Bergmaschi], que é super boa fotógrafa e muito dedicada, e ela topou. Convidei a Andrea [Pech] e o Bráulio [Cruz] para atuarem, porque já tinha uma ideia de trabalhar com os dois juntos. Ele era o cara que estava comigo nos curtas, sempre fazia os roteiros, a gente meio que terminava juntos — e na verdade não é um roteiro, é quase um texto corrido. Nos encontramos umas três vezes antes, eu propus fazer um filme em que a Andrea ficasse dançando na sala o tempo inteiro, e a ideia original era que se chamasse Massive Attack.

Então partiu de outra referência na música?

A música se encaixa no conceito, mas a origem é mesmo esse incômodo com o esquema de produção. Como reduzir os gastos e fazer um cinema pobre que não é pobre simbolicamente, só no sentido de não ter grana. Nós nos juntamos ao Antonio [Pedro de Barros], que é meu namorado e que participa muito dessas coisas, é creditado como roteirista também, e, conversando, vimos que Massive Attack era muito pouco comunicável. E o Pet Shop Boys tem aquela coisa das letras, do queer, desse melancólico que é alegre, do título [primeira faixa do álbum Behaviour, de 1990, que embala todo o filme]. Pensamos na encenação e marcamos um dia para filmar. Na ideia original a Andrea e o Bráulio leem cartas um para o outro. Eles escreveram, foi filmado, mas na montagem não fazia sentido, ficava muito fechadinho e a gente queria uma coisa mais solta, porque acho que as pessoas entram mais no filme. Eu fiquei muito impressionado ontem, abismado mesmo, porque é muito louco tentar fazer um cinema diferente. E não é porque somos especiais, nada disso. Não é esse papo furado. Alguém falou comigo ontem: “Vocês são…”, aquela palavra com P?

Pretensiosos.

Isso. Eu acho que não é nada pretensioso. Tem muito menos pretensão aí do que ir no Catarse e pedir cinco, dez mil reais pra fazer. Ou criar um personagem e decidir que ele é assim, fala assim etc. De alguma maneira é minha forma de dizer que não sei ainda se consigo escrever um roteiro. Eu queria um dia poder fazer Mad Man, saber fazer personagem, mas nesse momento talvez eu não consiga. É também um caminho de aprendizado. Tem gente que consegue. Eu vejo os filmes do Leonardo Mouramateus e acho aquilo lindo. Não vi o último [História de uma Pena, 2015], que passou na Semana dos Realizadores, porque era no dia do meu aniversário. A Festa e os Cães é muito bom. É muito bem feito, com personagens muito bem escritos. Mas é isso: ele existe lá e faz essas coisas, eu existo aqui e faço as minhas, e tem gente fazendo outras. Talvez um dia eu faça algo mais por aí, mas nesse momento não conseguiria escrever personagens. Eu preciso encontrar outras bases, outras estruturas para conseguir criar.

A linha narrativa surge das cartas? [Andrea dança, Bráulio observa do sofá, parece haver um flerte que se estende pelo filme]

As cartas eram lindas, serviram muito bem para a preparação dos dois, mas fechavam a narrativa muito mal. Quebravam na montagem, não se encaixavam. Mas não dá pra ignorar que tem uma questão de gênero aí. Se tem homem e mulher em cena, as pessoas já tendem a achar que vai rolar um beijo, mais do que se fossem dois homens ou duas mulheres. O próximo filme que a gente rodou, logo depois do Being Boring, tem duas mulheres, justamente porque eu fiquei incomodado com esse lugar meio óbvio de uma relação de amor entre homem e mulher. Mas aqui é diferente, porque se ela está o tempo inteiro com muita energia, ele está meio acuado — não é o homem heteronormativo, e é uma mulher muito empoderada. Cai nesse lugar em que você não entende aquela relação.

É uma relação também de corpos. Ela de pé, ele sentado.

Muita gente poderia pensar que ela estava sendo meio odalisca, lap dancing, mas isso não acontece. Se você ler a sinopse, pode, eventualmente, projetar essa ideia, mas no filme não tem nada disso. Ela é muito forte, não está vulnerável em momento algum. Ele é a pessoa vulnerável. Ontem, eu fiquei muito impressionado porque as pessoas amaram o Bráulio, criaram uma relação muito legal com o fato de que ele olha pra câmera. É aí que eu acho que o filme deixa de ser só ficção e passa a ser documentário da própria feitura. Eu apareço ali também, mas não sei por que me deixar aparecer ou por que deixar a câmera aparecer. São mil referências, desde o quanto Grey Gardens foi importante pra mim, em todo o cinema que eu adoro. A narrativa sai desses dois atores, e o público é fundamental ali. Ele quebra a parede o tempo todo, ela olha às vezes. Quando se delimitam movimentos dessa forma, os atores não têm muito o que fazer.

É o que acontece quando ele olha pra cima da câmera, para quem opera a câmera?

A partir das nossas conversas, ele olha já sabendo que ele tem pouco a fazer, porque vai ficar sentado. O olhar é possível e desejado, porque cria uma relação com o espectador no futuro. E por que não? Nesse sentido é quase uma documentação da tentativa de trabalho dele enquanto ator. Se ele não pode se mexer, que merda, né.

Sobram o olhar e o corpo.

E é um pouco isso para a Andrea também. “Você só pode dançar”? Tem hora que ela não sabe mais o que fazer, mas continua. Olhar pra câmera é quase jogar com ela, tem uma ação ali. A gente viu um dos filmes aqui em que eles usam não-atores. Não é o nosso caso, porque os dois são — Andrea é performer, Bráulio é formado em teatro. De que adianta trabalhar com não-atores se você os submete totalmente ao seu roteiro? O que você está fazendo com não atores? Qual é o ponto? É preciso pensar que seu ator é uma pessoa inteligente, que pensa o próprio lugar o tempo inteiro. Você não vai dizer que a Gena Rowlands era mandada pelo Cassavetes o tempo inteiro, porque eu não acredito nisso. Então, quebrar a parede tem uma relação com o público, mas com ator e atriz também. Eles estão aqui com a gente, dando a cara a tapa, não são objeto.

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Eles olham para o público e o público olha para eles, mas o público se entreolha também, não sei se de maneira consciente.

Na Semana dos Realizadores [quando Being Boring foi exibido pela primeira vez, em uma sala de cinema convencional, com o público sentado], as pessoas tinham muita vergonha de olhar umas para as outras. Acho que em função daquela relação com cinema — você olha às vezes para ver se tem alguém fazendo alguma outra coisa. Mas mudou tudo. A Semana foi a primeira vez que eu exibi um longa na minha vida. Se tinham 120 pessoas no início, no fim tinham 60, 50. E você via que o filme ganhava pelo tédio. Você podia pensar o filme por John Cage, por uma insistência naquele tédio, para arrancar coisas que saltam daquela relação que só fica ali se repetindo. E ontem eu não senti tédio. Talvez porque em vários momentos eu olhava para a plateia e me sentia mais confortável. De alguma maneira na sala de cinema [na Semana], o boring dizia “olha, o chato pode ser bom”, e aqui ele estava dizendo “não, a gente também não quer ser chato”. É meio paradoxal.

Ver o filme de pé, como eu vi, cria uma relação de frontalidade que é muito forte. É o “eu não quero ser ele, eu quero ser ela”.

Na Semana as pessoas podiam dançar, só que isso nunca foi verbalizado, então o desejo ficava reprimido. Algumas pessoas mexeram os braços, mas se reprimiram. Ontem, quando foi liberado, as pessoas ficaram meio loucas. A minha reação inicial foi “Que porra é essa? Será que essa galera vai ser escrota com o filme, ficar fazendo pombinha [com as mãos, fazendo sombras na tela — algo que de fato ocorreu]?”. Eu não sei lidar com isso. É rasgar o lugar do autor. Durante a sessão vieram me perguntar o que eu estava achando daquilo e eu respondi que não sabia. No final eu achei incrível, não poderia ter sido melhor nessa proposta de levar o cinema para outro lugar. Eu tinha questionado o porquê de não colocar um filme assim para competir, e ontem um cara me disse que discordava, que devia acontecer à meia-noite mesmo. Eu acho o contrário, esse filme é tão filme quanto o que a gente viu antes, da vaca [Animal Político]. É abrir o espaço e dizer que, se já se tentou quebrar o esquema de produção, eticamente deveria se quebrar o espaço da sala de cinema em si.

É de novo o John Cage com a galeria vazia e o pianista que não toca piano? Aquilo era um lugar diferente para um museu, seu filme pretende algo similar para o cinema?

Sim, mas é um filme que não necessariamente quer ir para um museu. Eu não quero fazer instalação. O Peter Eisenman, arquiteto, que é o cara que fez o monumento aos judeus mortos, em Berlim. Todo mundo dizia “Pô, cara, você na verdade faz instalação, você se dá muito melhor com esses caras da minimal art do que com a arquitetura em si”, e ele dizia “Não, eu faço arquitetura”. A importância de chamar isso pelo nome de cinema é política. É dizer que esse filme, que foi aceito nesses moldes pelo festival, é cinema.

É um formato que não tinha sido aceito com o Noite, da Paula Gaitán, que estava na sessão ontem. É um filme com que você se envolveu também.

Eu ajudei a montar, no início, e a pensar certos lugares. Trabalhei com ela nos três primeiros meses, foi muito bacana. Ontem ela puxou as pessoas para a sala. Eu sou escorpiano de 18 de novembro e ela também, nós temos o mesmo ascendente. Eu sou amigo da filha dela por outros lugares, e ela também é aberta a gente jovem, então acabamos conversando sobre cinema um dia e foi isso. O ponto é: eles tiraram as cadeiras lá da frente, mas as pessoas podiam dançar no corredor. Eu não precisava ter feito alarde e dizer “Ah, podem dançar”.

Você continuou sentado o tempo todo. Não quis dirigir o filme uma segunda vez, agora na reação?

Não, quem estava dirigindo o público era o fotógrafo [que em certo momento, ainda durante a sessão, pediu que alguns espectadores se posicionassem para fotos em frente ao palco]. Foi bacana ver o cara dirigindo o público, porque as pessoas gostam de ser filmadas, fotografadas, e elas estavam muito performáticas. As meninas que apareceram no início eram lindas, colocando as mãos na tela.

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Foi o momento mais godardiano da sessão.

Eu jamais poderia imaginar isso. De novo, tem uma causa política aí. Não do conteúdo, necessariamente,  essa coisa chata e denuncista. A gente vê muito filme aqui que denuncia pelo conteúdo, mas a forma é totalmente chata. Eu vi um documentário que é isso: tem algumas questões, é bacana, o diretor é legal e fala de um assunto super importante, gravíssimo, mas o que é a forma ali? Eu não vejo diferença daquilo para certas coisas que são absolutamente chatas. E por que aquilo pode passar, por que aquilo é mais cinema do que o que a gente faz? É politizar a linguagem.

É questionar o lugar das coisas?

É. O Being Boring pode ser falho porque tem uma narrativa solta, porque tem uma montagem que às vezes se complica.

De fato.

Mas é importante que esteja passando, que as pessoas estejam lá, vendo. Ele existe por ser diferente, mas não é uma diferença que tenta capitalizar por isso, simplesmente. Vem desse incômodo. É como quando você diz que é gay pros seus pais e eles falam “Mas tem necessidade?”. Ué, tem. Qual é essa necessidade, de onde veio? Não sei. Tem necessidade de fazer esse filme? Eu acho que sim. Ele pode ser qualquer coisa, as pessoas ontem me mostraram isso. Gera interesse.

Você não rejeita esse lugar, mas pleiteia um lugar ao lado desses outros?

Sim. É claro que, um dia, e isso é uma coisa que a Bárbara me diz sempre, a gente pode sentar, ganhar um dinheiro e fazer um filme com locação, com externas. Mas eu não sei se estou preparado agora. Nem uma educação cinematográfica, se a gente pode chamar assim, talvez seja o momento de tentar entender esses lugares e duvidar deles. Não que eu vá crescer e virar coxinha, mas nesse primeiro momento vale apontar também que eu não aceito tudo o que passam na academia ou nos festivais. É importante, e eu não sou o primeiro nem o último a fazer isso. É um lugar muito difícil. Ganhar dinheiro com isso, por exemplo… Por isso eu fico fazendo mestrado e doutorado, pra ganhar bolsa do CNPq.

Mas você tem envolvimento acadêmico com esse tipo de questão? Seu filme cita Rosenbaum, a Sight and Sound… E é engraçado que cite Rosenbaum, um cara que dizia que tinha alergia a vídeo arte.

Isso é engraçado. Quando eu terminei o Being Boring, mostrei as imagens do filme para um amigo que pesquisa e faz vídeo arte, falei sobre a proposta e pedi pra ele fazer um vídeo para jogar no início e no meio do filme e quebrar um pouco o que estava acontecendo. Ele fez um vídeo com essas estátuas que tentam movimento e com páginas de livros que eram dele, mesmo, daí o Rosenbaum no meio. Sobre o envolvimento acadêmico, eu terminei minha graduação na ECO [Escola de Comunicação da UFRJ], pesquisando Cassavetes, Opening Night [ou Noite de Estreia, de 1977], que é o filme da minha vida. Tem Cassavetes no meu filme? Não sei, mas é de onde vem todo o desejo. Depois fui para o mestrado em Arquitetura, pesquisando arquitetura conceitual do Eisenman, para pensar teoricamente como a gente pode procurar outros lugares de representação sem ficar só no lugar da experiência. É muito louco que o filme tenha caído nesse espaço de uma experiência cinematográfica, mas eu acho lindo também as pessoas quererem a narrativa dos dois personagens. Em nenhum momento encararam aquilo só como música. Elas se relacionavam com os personagens, vibravam quando o ator e a atriz apareciam ou faziam algo diferente. No mestrado a ideia era essa: pensar como criar várias vozes, dissonantes ou não, para pensar espaço, projetos de arquitetura etc. E agora, no doutorado, vou para Literatura. Mas também para pensar em representação, agora relacionada com música — e o Being Boring veio com tudo para eu me interessar por isso. É, por exemplo, pensar como a gente ouve um álbum do Crystal Castles e fica tentando buscar a letra e, no meio dessa busca, já vai entrando na própria música, que vai se construindo na nossa frente. Acho que, para ganhar dinheiro, vou ter que ser professor, por mais que às vezes eu dê aula e fale mal. Onde esse filme vai passar? Eu nunca vou conseguir vender pro Canal Brasil como acontece aqui, sabe? Não vou mentir. Ele existe nesse outro lugar, mas também não necessariamente está fora do que é debatido aqui.

Você já passou filme aqui antes, na extinta Mostra Sui Generis.

O filme [O espelho não é reflexo, é cintilância, de 2013] era o plano fixo de uma parede com uma narração em off escrita por esse amigo que vive em Nova York. Quando montei, pensei que a narração não estava 100%. Então pedi para ele dar play na narração que tinha gravado e narrar para mim em inglês, porque o filme fala, acima de tudo, sobre o fato de ele não morar mais no Brasil. É um pouco sobre como ele queria muito ter vivido aqui e foi embora aos cinco anos. Eu pedi para ele fazer uma espécie de tradução simultânea.

Vocês moravam em lugares diferentes, então?

Sim, eu estava aqui e ele fora. Ele morou dois anos, talvez um pouquinho mais, no Brasil. Mas é brasileiro e vive nesse lugar que não sabe muito bem onde é. É brasileiro, mas fala português com sotaque, apesar de ser a língua nativa. É um lugar colocado em questão. E no filme não existe uma dupla banda nem um áudio sobreposto, mas um áudio feito por cima de outro. Um trabalho de ator, de performance dele, de se colocar e ler de novo a partir daquilo que estava escrito.

Como foi o diálogo em Tiradentes na época?

É curioso, essa sessão teve debate. Outro filme que estava na sessão não tinha muito a ver com o meu, mas estava legal ali porque era um média-metragem, então colocaram na Sui Generis. Era do Marcelo Caetano, dos caras na casa de campo [Verona, de 2013]. É lindo. Mas tem o problema da casa de campo. No Brasil só se faz filme em casa de campo, é cansativo. Que ótimo que as pessoas possam filmar em casa de campo, mas não é lá que a gente vive. Quem você conhece que vive numa casa de campo? Aliás, quem tem casa de campo? Em termos de produção eu até entendo, coloca todo mundo dentro da casa e faz o filme, é mais fácil. Mas em termos de linguagem é muito desagradável. Na Semana eles criaram uma mostra chamada Invenções do Rio, e o Being Boring entrou lá. O filme que passou antes do nosso era na Lapa, na Glória, e as pessoas andavam por aí. Na hora de apresentar a sessão, falaram que era um filme sobre paisagens. Quando eu fui apresentar meu filme, disse “Na real, o Being Boring foi feito no Rio, mas poderia ser em qualquer lugar, porque…”.

É uma interna bem universal.

É dentro de uma sala. Podia ser aqui, como podia ser lá. Acho isso bonito também. Lida com os lugares em que a gente mora. Eu queria um dia perder o medo e fazer um filme com externas, mas que não seja em casa de campo. Mas aí onde? Eu queria algo que fosse urbano. Talvez um dia. Talvez a próxima coisa — não, a próxima coisa é sobre a Lana Del Rey. Esse mesmo amigo, o Bráulio, e eu tomamos a decisão de fazer um filme por Skype, já que ele não vem para cá e eu não tenho dinheiro pra ir para lá [Nova York]. A gente pegou o último álbum da Lana Del Rey, o Honeymoon, e fez uma interpretação pra cada música.

Interpretação?

Pensar as possibilidades narrativas das músicas. A gente elaborou uma narrativa em que ele tinha vindo para o Brasil, conhecido um cara, e estava se declarando a partir de cada uma daquelas músicas. Gravamos no Skype e estou montando agora, mas está difícil. Eu estou quase tentando pensar como um livro de poemas: música número um, música número dois, música número três, juntar tudo, exportar e dizer “É isso”. Aí vejo tudo e tento costurar daí. Como um álbum, um disco.

Fragmentário como o Being Boring? Com as mesmas idas e vindas e repetições?

Sim, mas isso não pode ser só uma defesa. Eu tenho muito medo de isso ser uma defesa de produção de narrativa. Mas é a maneira como nós fazemos. Isso me lembra uma coisa que o Cassavetes fala em uma das poucas entrevistas que ele deu: “A gente se junta, bebe um vinho e, no final, se [o filme] der errado, pelo menos a nossa imagem está para sempre ali”. Ao mesmo tempo, tem uma frase no início do Being Boring que eu acho importante: “Pra que cantar canções se nunca nem vão te ouvir?”. É um pouco isso também — por que fazer um filme se ninguém vai ver? Você tem que ser um pouco atrativo, as pessoas têm que se interessar por sua causa ou sua questão.

Existe um motivo para seus outros longas só existirem no seu computador?

Sim, porque ninguém selecionou. Eu entendo, podem ser longas piores. Mas o fato é que ninguém selecionou. Ontem, era legal ver as pessoas dançando como se fosse uma festa, mas não era uma festa. A gente pega esse espírito em princípio para ver o filme. O filme é visto, não é não-visto. Mas ele é visto com uma certa frivolidade, que pergunta “Pô, por que você tem que ser tão duro com o seu público?”. Eu fiquei muito intrigado porque em determinando momento pensei se deveria me incomodar com as pessoas fazendo o que queriam com o filme. Aceitei porque entendi que eles estavam muito mais bacanas do que qualquer coisa que eu poderia imaginar.

É algo a que você se sujeita quando entrega o filme.

Enquanto autor eu me senti muito ridículo. Sabe o filme do pessoal do Deslumbramento, Estudo em Vermelho, do Chico [Lacerda], em que ele dança Kate Bush? Ele é o diretor do filme, é quem montou e teve aquela ideia, e ele vai lá e se veste de Kate Bush e dança aquela música em vermelho. É lindo, porque de uma maneira faz você se perguntar quem são esses diretores que só pensam em fazer coisas muito brilhantes e que na verdade nem são tão brilhantes assim. É aquilo que na faculdade a gente ouve o tempo inteiro — o autor, a partilha do sensível etc — e às vezes tá lá. A gente só não pode teorizar tanto. Uma coisa que eu conversei muito com a Bárbara foi que a gente não pode citar Foucault e Deleuze, porque afasta as pessoas e nos afasta. É chato ficar citando teoria, mas às vezes você olha o que está acontecendo e alguma coisa bate. Você pode ler mil debates sobre dispositivo, mas às vezes isso pode estar ali, na sua frente. O Filipe [Furtado, crítico da Revista Cinética] fala uma coisa incrível no texto [sobre Being Boring]: é um desserviço chamar o filme de dispositivo. Afasta a causa. Pode até ser justo, não é nem uma questão de justiça, mas afasta. Se você tem uma causa política, da linguagem, e é difícil pra cacete politizar linguagem, mas fica usando teoria, quem é que vai atrás de você? Ninguém. Ainda mais com o nosso filme, que não tem debate posterior. Dá uma certa melancolia não conseguir debater no dia seguinte, e não porque eu quero ser o centro, mas porque pode ser bonito. O problema é viver nesse entre-lugar. É importante que um festival assim exista, mas ele funciona um pouco como congresso de cineastas também. É estranho, não sei dizer. Às vezes quando você vem fazer uma proposta mais experimental você não sabe se está certo de estar aqui. Mas se não estiver aqui, vai estar onde?

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Cobertura – 19ª Mostra de Cinema de Tiradentes | Mostra Foco

Composta de nove curta-metragens, a mostra Foco se divide em três trios no interior dos quais é possível enxergar, em maior ou menor medida, aproximações e distanciamentos de estilos, temáticas e discursos. Diante das evidências de que o número reduzido de obras gera restrições em termos de agrupamento, o exercício, aqui, é de buscar possíveis leituras de cada um desses conjuntos, mapeando diferentes formas de encarar a programação individual e coletivamente.

série 1 - O Rosto da Mulher Endividada

SÉRIE 1
Ainda Me Sobra Eu, de Taciano Valério
O Rosto da Mulher Endividada (foto), de Renato Sircilli e Rodrigo Batista
Lightrapping, de Marcio Miranda Perez

No primeiro segmento, destaca-se a exploração das possibilidades do corpo. Ainda Me Sobra Eu se constrói em torno da figura de Tavinho Teixeira (de Batguano), cuja performance consiste não apenas em uma verborragia intensa e repleta de poesia, mas de uma energia física notável. Descontrolado e sem pudor, ele desvenda seu refúgio em busca de vida através de uma movimentação constante, dançando ou cavando incessantemente na areia da praia. A câmera captura essa demonstração de fôlego com atenção e relativa proximidade, mas perde intensidade porque desvia o foco dos jogos de palavras para o uso da música — mais do que reforçá-los, ela os abafa. A expansão do ator em relação ao espaço nesse processo, porém, recupera o ritmo a instantes do fim, quando os choques entre ele e o universo ao seu redor parecem mais decisivos.

Curta mais fascinante de toda a programação, O Rosto da Mulher Endividada recolhe os rastros da história de uma figura feminina no período entre a redemocratização e a primeira eleição de Dilma Rousseff. A protagonista, Helena, é interpretada pelas mães dos realizadores, mudando seu rosto e corpo em cada segmento dessa trajetória, em transições que se beneficiam da estética de vídeo de décadas anteriores. Fragmentário, o filme atordoa pela capacidade de articular de maneira vibrante uma gama de elementos muito complicados. A personagem em queda livre é ridicularizada por um homem, em um discurso que o filme jamais assume. Ao contrário, o que se vê é contestação a essa dominação masculina, em especial no momento em que, com imagem cristalina, ele se vira para a câmera e revela sua aparência patética — novamente, a compleição física é usada para revelar dados íntimos e subjetivos. Seguidas desgraças levam a mulher à ruína e acabam por transformá-la em um vulto, um fantasma numa fita de vídeo, e a ela, movida pela obsessão em salvar o que resta, cabe apenas uma saída frente à ruína da perda do próprio corpo: a afirmação por seu nome (antes, nome sujo), aquilo que homem nenhum pode tirar.

Libertação é também o tema de Lightrapping, inspirado no projeto fotográfico de mesmo nome de Shaffer. O esquema segue a lógica de um coming of age que toma a luz como símbolo de liberdade. Na narrativa, o registro de corpos masculinos pela câmera (associado ao uso de lanternas durante a madrugada) envolve o protagonista, Pedro, num esquema de sedução até então inédito para o garoto. Ele, inicialmente visto somente na penumbra, tem seu corpo iluminado/libertado pela primeira vez através de sua relação com o fotógrafo, na frente ou atrás da lente. Despir-se, para ele, parece menos ato político consciente e mais rito de passagem, o que soa otimista em uma São Paulo que usualmente não parece tão acolhedora.

série 2 - Eclipse Solar

SÉRIE 2
Noite Escura de São Nunca, de Samuel Lobo
Encontro dos Rios, de Renata Spitz
Eclipse Solar (foto), de Rodrigo de Oliveira

Nem mesmo o gato preto avistado no caminho da sessão poderia me preparar para a abundância de figuras sobrenaturais dos curtas selecionados. Há mais em comum do que isso, porém: aspectos como o peso do passado, o modo como os traumas pairam sobre os personagens, a sensação de incerteza dentro de ambientes familiares e a dramaturgia plena saltam aos olhos, muitos deles tendo sido elencados em questões no debate com os realizadores no dia seguinte. De toda maneira, cabe à presença do diabólico/fantasmagórico a função primordial de conduzir a série em uma linha mais ou menos constante.

Em Noite Escura de São Nunca e Eclipse Solar, o diabo ganha corpo. No primeiro, materializa as sombras da ditadura, responsável pela morte da irmã da protagonista. É, acima de tudo, a comprovação física da tormenta causada por um conjunto de não-soluções, o que abre margem para os paralelos com a atuação repressiva da polícia militar — o processo conciliador e covarde de redemocratização, incapaz ou desinteressado em encarar seus demônios, possui impacto nefasto ainda hoje. O próprio confinamento das mulheres à vila em que vivem no Centro do Rio de Janeiro, marcante na sequência do manicuro, deriva dessa relação de não enfrentamento com pendências prévias, sendo ponto de partida para um imaginário particular.

No segundo, o inferno tem fundações mais antigas. A imagem do casarão em que funciona o museu por onde transitam os personagens possui forte carga histórica, tem a senzala como representação do inferno e as salas e corredores como espaços assombrados. Um pacto com o diabo é a tentativa derradeira de acertar as contas com o passado, mas o preço pelos erros de outrora parece caro demais, inegociável. É particularmente interessante como o desfecho, apresentado em um letreiro final, atira as figuras para fora dali sem, de fato, resolver tais dívidas, ciente da impossibilidade de contornar os antigos erros.

Já em Encontro dos Rios, a formatação é mais convencional e menos inspirada. Uma garota avista um corpo no rio, enfrenta a descrença dos adultos e recebe da irmã uma lenda sobre um menino-fantasma que, afogado no mesmo local, faz aparições para as crianças que por ali passam. O sobrenatural fica no campo da sugestão e se torna dependente da atmosfera para se manifestar. O medo, contudo, é tratado de maneira burocrática, insuflado por uma trilha sonora que é guia de sensações e um conjunto de sequências que brincam com o imaginário a partir de elementos do gênero. Os planos da água corrente funcionam melhor sob esse aspecto, criando a impressão de que, como para as personagens, uma forma humana surgirá a qualquer momento — mas ela não surge, a saída se dá pela tangente e tudo se torna bastante esquecível.

série 3 - A Vez de Matar, a Vez de Morrer

SÉRIE 3
Levante, de Jader Chahine e João Paulo Bocchi
Entre Imagens – Intervalos, de Andre Fratti Costa e Reinaldo Cardenuto
A Vez de Matar, a Vez de Morrer (foto), de Giovani Barros

O terceiro e último programa da mostra reúne um grupo bem diverso em termos de temáticas e poéticas, mas que pode ser enxergado conjuntamente no que diz respeito ao olhar empregado pelos autores com relação a seus objetos e personagens. Em Levante, a câmera oprime; em Entre Imagens, preenche lacunas; em A Vez de Matar, A Vez de Morrer, deseja.

No filme de Chahine e Bocchi, passado quase integralmente em vídeos de segurança de um colégio de São Paulo, há um sistema de controle claro e presente. Todo ação dos personagens é orientada para subverter essa ordem: a garota que tira uma foto da lente espiã busca retomar o controle sobre ela, os estudantes que trocam o equipamento pretendem operar a sala de comando, o funcionário que mostra seu dedo médio tenta manifestar sua insatisfação. A opressão da câmera domina os corpos, cuja movimentação, fluida ou hesitante, determina não apenas personalidades e objetivos, mas os rumos da trama de insurgência versus reação agressiva.

Também de origem paulista, o documentário de Costa e Cardenutto toma como ponto de partida as únicas imagens em movimento do artista Antonio Benetazzo, morto pela ditadura militar brasileira. São os 17 segundos de uma participação como figurante em um longa-metragem que baseiam toda a estrutura. Para reconstituir a história e conferir memória a uma figura apagada pelo autoritarismo, os autores inserem pequenos ensaios no formato de analogias, que não parecem tão frutíferos quanto aqueles mais objetivamente focados na vida do artista-militante. O tom monótono na narração incomoda um pouco quando articula didaticamente as relações entre as dimensões metafórica, com referências a cinema e supernovas, e biográfica, sobre suas artes e a atuação na luta política — essa última, sim, interessante.

Por último, um dos curtas mais fortes da mostra. Desde o passeio pelos corpos durante uma partida de futebol, logo na primeira cena, até a sequência em que um casal se beija e se agride no banheiro, a câmera parece incorporar o desejo manifestado entre seus personagens. Em meio a tantas formas de lidar com essa pulsão sexual, o filme também parece definir seu tom enquanto avança, ainda que a tensão do ato final tenha raízes fundadas no princípio (o golpe e o xingamento surgem, depois retornam). O drama crescente aparece ainda em dois momentos que rimam: tanto o banho do rapaz, nu no campo, quanto seu encontro no banheiro são interrompidos violentamente. Parece um sinal de que, numa terra em que a morte acontece às claras e a paixão às escuras, o destino trágico é inescapável, como sinalizado pela evocação ao faroeste, que finaliza bem esse ciclo.

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Cobertura – 19ª Mostra de Cinema de Tiradentes (Parte I)

Por Virgílio Souza

A 19ª edição da Mostra de Cinema de Tiradentes apresenta, ao longo dos seus nove dias de programação, 35 longas e 81 curtas de realização nacional, divididos em diferentes mostras temáticas. Deste grande número de produções, direcionaremos nosso olhar nesta cobertura às mostras Aurora (competitiva de longas), Transições, Foco (competitiva de curtas), além da retrospectiva do homenageado Andrea Tonacci – e eventuais deslocamentos a filmes projetados em outras mostras. A cobertura segue nos próximos dias.

Tonacci 02

Homenagem a Andrea Tonacci

Andrea Tonacci é uma das figuras mais interessantes do cinema brasileiro. A postura serena em debates e entrevistas, conversando sobre as mais variadas questões de sua vida e obra, contrasta com o tom de seus filmes, que partem de uma inquietação fundamental e se configuram como discursos políticos sempre muito intensos. Homenageado pela 19a edição da Mostra, o cineasta apresentou o retorno de Serras da Desordem a Tiradentes uma década após sua estreia — além de Blá Blá Blá e Bang Bang. Na tela grande, o longa de 2006 segue impressionando pela vibração de suas imagens e sons, que provocam, a cada nova visita, uma sensação de ineditismo e frescor raras. Inquieta, também em um movimento essencialmente cinematográfico, a maneira como o trem, elemento fundador dos Lumiére, atravessa a história da tribo sob o falso pretexto do progresso. Se “a homenagem é oportunidade para refletir sobre o que tem feito”, como afirmou o próprio em mais um momento de auto-avaliação muito consciente, cabe ao público encaminhar reflexões de natureza semelhante e retomar esse discurso fundamental de um cinema que encontra poucos pares mundo afora.

Índios Zoró

MOSTRA AURORA
Índios Zoró – Antes, Agora e Depois?, de Luiz Paulino dos Santos

Luiz Paulino dos Santos tem 83 anos de idade. Até este filme, eram vinte longe da realização. Desde Ikatema, seu registro primeiro da tribo Zoró, eram três décadas de relativo afastamento daquela realidade. Mais que simples informações extra-filme, quase anedóticas dada sua presença em uma mostra para estreantes em longas, os dados indicam o aspecto fundamental que o tempo possui para o cineasta e seu objeto. Antes, agora, e depois? parte da chegada dos europeus ao Brasil (em resgate de Humberto Mauro, outro mito fundador dessa concepção de país) em direção a uma espécie de não-futuro marcado pelo extermínio das populações indígenas em nosso território. Do canonizado Padre Anchieta à recente expansão predatória das igrejas evangélicas, a repetição da história é sinal dessa permanência perversa, que condena tais povos a espaços cada vez menores e mais violentos.

Algumas coisas chamam a atenção nesse processo. A primeira delas é a variedade de recursos empreendidos pela narrativa: cenas de arquivo, foto grafias, quadros congelados, entrevistas, encenações, vozes em off e sobreposições de imagens compõem o painel do reencontro entre o realizador e os personagens de trinta anos atrás. A evocação de cenas icônicas daquele filme (os rituais, o riacho, as borboletas), ladeadas aos seus hábitos atuais, revela tanto a manutenção das tradições quanto os câmbios, forçados ou não. O expediente é de síntese a partir de elementos simples: as formigas, por exemplo, que aparecem em momentos distintos na mata e na tela de um computador, são ressignificadas como representações, respectivamente, de ancestralidade e modernidade.

Em segundo lugar, também vinculada à simplicidade marcante de Paulino, impressiona a maneira como a natureza é representada. Não há espaço para a pornografia visual típica do documental antropológico mais didático construído pelo homem branco, muito em função da postura que trata a terra como mãe — e, em contraponto, quem administra tal espaço, a Funai, como madrasta infiel. Parte daí, ainda, uma série de proposições de origem fundamentalmente espiritual. Afirma-se, sem hesitação, que “a casa do pai tem muitas moradas”, expressão de uma universalidade de princípios e valores que se mantém capaz de respeitar as especificidades de cada matriz religiosa.

Finalmente, há um componente cinematográfico relacionado ao retorno do filme embrionário à aldeia, quando o tempo histórico e o tempo do cinema se entrelaçam para configurar um movimento de devolução que é, mais que concessão de cima para baixo, um gesto de compreensão de uma tragédia compartilhada. A fala derradeira sintetiza uma visão desoladora dos fatos, mas que busca nessa cosmologia muito própria do filme a possibilidade de alguma esperança, mesmo que em outra galáxia.

Jonas

MOSTRA TRANSIÇÕES
Jonas, de Lô Politi

Muito em função da performance de Jesuíta Barbosa, Jonas tem um ato introdutório eficiente para estabelecer algumas de suas questões primordiais. Seguindo o personagem de um canto para o outro em deslocamentos ágeis, a narrativa se inicia de maneira econômica, construindo um pano de fundo social dotado de possibilidades com certo valor. A partir do momento em que se encaminha para uma trama de sequestro, porém, o filme parece se tornar refém das próprias decisões, traído pela própria estrutura e incapaz de avançar com solidez. Protagonista e filme sofrem do mesmo mal: o encadeamento de cada nova complicação nessa tragédia de erros carece de lógica, em uma dinâmica que avança aos trancos e barrancos por meio de situações que se repetem à exaustão (as idas e vindas até a baleia, as interações entre o rapaz e a garota, todo o núcleo dos traficantes). Na condição de espectador, o efeito também se aproxima de uma espécie de Síndrome de Estocolmo, na qual a implausibilidade do roteiro afasta e gera rejeição, mas a progressão em direção ao desfecho acaba por prender — não necessariamente por méritos de construção, mas porque parece não haver saída para tantos desacertos.

Urutau

MOSTRA TRANSIÇÕES
Urutau, de Bernardo Cancella Nabuco

Concebido em pouco mais de duas dúzias de planos, quase em sua totalidade estáticos, Urutau adota a lentidão como recurso criador de desconforto. Ao prolongar as ações, dilatando o tempo fílmico para além da própria relação com a duração entre cortes, Nabuco estrutura uma relação com o público que é de ânsia por libertação (do protagonista e do espectador), mais que de cumplicidade. É no momento em que o rapaz mantido em cativeiro por sete anos alcança uma ilusão de soltura que a câmera se põe em movimento, respira pela primeira vez para longe do enclausuramento absoluto, mas logo retorna para aquele universo de total desumanidade. O horror surge, ademais, da maneira de enquadrar, que em momentos mantém o abuso fora de campo — um dispositivo que exige que as reações se originem no imaginário do receptor, diante de um contraste entre uma relação de poder construída entre dois sujeitos, de um lado, e de uma combinação entre uma imagem sem corpos e de sons que sugerem a pior das perversões, de outro.

Futuro Junho

MOSTRA AUTORIAS
Futuro Junho, de Maria Augusta Ramos

O documentário de Maria Augusta Ramos funciona melhor como cápsula do tempo do que como panorama sócio-político, quer dizer, há precisão em capturar o estado de exaltação de ânimos do pré-Copa na cidade de São Paulo, mas parece faltar uma avaliação crítica mais apurada dos acontecimentos, como se o tal junho futuro ainda estivesse por vir ou fosse apenas dado do passado. Embora as temáticas centrais tenham caráter cíclico e tais pautas retornem com força ainda hoje, a observação de fatores como a alta do dólar, por exemplo, agora ainda mais agressiva, perde impacto quando vista em retrospectiva. Por outro lado, é marcante o modo como o registro das passeatas realizadas durante aquela greve dos metroviários e a repressão policial promovida em reação ganham força quando ocupam a tela grande, com som e imagem potencializados.

De todo modo, na construção dramática o foco são os personagens: como um Frederick Wiseman às avessas, o filme parte deles em direção às instituições. As figuras em cena não são tipos pré-definidos e unidimensionais, ainda que representem fatias bem definidas da sociedade. Assim, é natural que o enfoque econômico, sobretudo aquele preso à abstração dos números, seja menos interessante do que seus desdobramentos humanos, especialmente quando o recuo histórico indica que as coisas viriam a se deteriorar posteriormente. A relação entre crise e consumo ganha destaque sob esse aspecto, porque seus reflexos são palpáveis — o funcionário da Volkswagen sofre pela redução nas vendas da fábrica, o economista busca explicações sem sucesso, o sindicalista tem de lidar com o tratamento do transporte público como mercadoria e o motociclista conduzido à nova classe média, em um momento de particular lucidez, diz não mais possuir os recursos para ir aos jogos, beber Coca-Cola ou mesmo comprar um jazigo. A progressão contínua desses riscos, de demissão ou de morte, é o que dá ao filme sua maior força.

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A Academia das Musas (José Luis Guerín, 2015)

Por Felipe Leal

Uma câmera que se torna invisível para filmar um experimento pedagógico. Embebe-se dos artifícios de uma experiência cuidadosamente acompanhada para, a partir da naturalidade, apagar os rastros da própria enunciação. E não seria curioso que, num filme-projeto em constante flerte com o documental, cuja força motriz é o embate passional e ideológico entre professor e alunas, o próprio espectador seja acometido de perturbadora sensação de que ele, também, é instruído e incitado? Por um momento, quase que suspenso do próprio assento da câmara escura e imiscuído no campo minado de opiniões daquele espaço que é quase uma eclésia grega. Sobre a literatura do período clássico, o sábio diz: ”reconhecíamos, no texto, a própria vida”. Eis que A Academia das Musas (2015), de José Luis Guerín, é a paráfrase dessa máxima – reconhecemos, neste cinema, a própria vida.

Quando conceituou, ele mesmo, o que viria a chamar de ”cinema de poesia”, Pasolini decerto reconheceu aquilo que precisava para o seu cinema. Uniu práxis e poiésis para tratar o fílmico como semiologia da realidade, cuja expressão de sentido brotaria somente através do próprio autor. Mas essa conceituação linguística do cinema funciona apenas como um germe. Ao passo em que Guerín e Pasolini concordariam numa classificação de ”morto-vivo” para um mundo sem poesia, aquele busca, nas origens da literatura, o ponto em que a condição humana é debitária da linguagem em si. O projeto: modificar o mundo através da poesia. O mundo, em posição de corpus: dependente da inspiração. Quem são as musas? Ou seria melhor demandar: como tornar-se tal entidade mitológica?; onde buscar por tal fonte de inspiração?

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Quase sempre em aparições através de vidros, Guerín não parece permitir que suas afrodites jamais possam ser vistas em totalidade de clareza. Como um gênio que ainda não pode ser assim chamado por circunstâncias de desconhecimento, sempre reféns e assombradas pelas palavras do erudito que as provoca, somente o que ele diz pode dar-lhes sentido. ”As palavras dele te tornam mais bonita que as minhas”, confessa o amante de uma das alunas. Pois a musa aqui é antes um ideal do que um ser. Nenhuma delas aparenta tornar-se musa por tarefa pessoal, por mais verborrágicas e reflexivas que se apresentem em suas encruzilhadas. Procuram a elevação em brechas derrapantes, já que apenas musas podem reconhecer a si mesmas.

Como projeto diegético e como texto, A Academia das Musas é o reconhecimento de que somos reféns da linguagem. Não basta estar presente. Recusar participação no mundo é dar dois passos para trás. Se a poesia – muitos já o atestaram – tem função, ela é a de iluminar este mundo. Quando não atravessado pela musa, o desejo de tocá-lo torna-se eros esvaziado, vontade solipsista. Toda a afetação e previsibilidade do amor como tópico parecem fazer sentido na contestação de Guerín.  Ainda nos anos sessenta, Susan Sontag diria, ao definir o Camp, que muitas das coisas que nos circundam ainda não foram nomeadas. Teria sido então por amor àqueles objetos, constituintes de uma sensibilidade, que ela os emprestou nome? Numa cadeia de fortuitas dependências, amor, desejo, inspiração, literatura e cinema se entrelaçam. E quem poderia promover tais tessituras, senão a musa?

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Festival do Rio 2015 – Comentários (Parte I)

Por Virgílio Souza

Em breve passagem pelo Festival do Rio, que segue até esta quarta-feira (14), deixamos impressões a respeito de filmes vistos no festival.

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Right Now, Wrong Then (2015), de Hong Sang-soo

Sang-soo é um artesão da forma a serviço do olhar e da imprevisibilidade narrativa que parte de esquemas muito simples. Aqui, ele não se vale da mesma manipulação temporal de Hill of Freedom, um filme muito mais entrecortado, mas trabalha diferentes perspectivas sobre o mesmo conjunto de eventos — ou ao menos o mesmo evento central, o encontro de um cineasta e uma aprendiz de pintora na cidade de Suwon, que ele visita pela primeira vez na carreira. Alterando a ordem das cenas, até repetindo uma porção delas, o filme produz sentidos diferentes, compilados em dois títulos, Right Then, Wrong Now e Right Now, Wrong Then. A forma como as distintas perspectivas são abordadas, porém, não estabelece um embate claro entre elas, apenas a ideia de que a mesma encenação pode indicar múltiplos olhares. É ainda interessante como o diretor segue enquadrando e reenquadrando planos na própria câmera, que se aproxima dos atores pelo zoom e sem cortes, não por capricho, mas porque se trata de uma forma de aproximar a lente, literal e figurativamente. A figura masculina, um sujeito beberrão e sem muitos filtros sociais, adepto fiel e incorrigível da sinceridade ilimitada, talvez seja o melhor sinal de que Sang-soo segue trabalhando os mesmos temas, explorando novas possibilidades estruturais. O naturalismo das interpretações e a relação construída entre o casal de personagens, neste contexto formal e de extremo apuro estético, é o que aproxima o filme da realidade, mas parece evitar tocá-la.

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11 Minutos (2015), de Jerzy Skolimowski

É inevitável pensar que o título poderia muito bem ser a duração do filme — e que ainda assim a fonte de tédio não se esgotaria. Como se buscasse criar uma versão mais cafona da trilogia de Iñárritu (Amores Brutos, 21 Gramas e Babel), Skolimowski aposta na não-linearidade de roteiro e na mão pesada que controla a câmera para narrar, em fragmentos, as histórias de pessoas conectadas pelo acaso (ou por qualquer outra coisa do tipo). Trata-se de um exercício fútil, sustentado em truques como repetir o som escandaloso da passagem de um avião para pontuar o tempo, decisões absurdas e injustificáveis como adotar o ponto de vista de um cachorro, e caricaturas como o cineasta que grava suas relações com potenciais atrizes e que prefere ser chamado de “Dick”. A tensão é enganosa, sobretudo porque o desfecho catastrófico, explosivo e inexplicável é completamente deslocado do restante do filme, que se leva tão a sério.

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Maravilhoso Boccaccio (2015), de Paolo e Vittorio Taviani

A adaptação livre dos irmãos Taviani parte de um interesse bastante específico no registro oral de histórias. O refúgio de um grupo de amigos e casais em um casarão às margens de uma Florença tomada pela peste é o espaço para que sejam apresentados pequenos contos, relacionados ou não com a realidade vivida pelos contadores. Contudo, o filme se perde no limbo entre a literatura originária, a teatralidade das performances dos atores e seus aspectos cinematográficos. O que há de cinema, para além da estilização dos figurinos e cenários, é a música impositiva, que tenta guiar sensações pela via do humor leve, mais do que pela sexualização ou o romance, frequentes em outras versões da obra de Boccaccio. Ainda, o elo que liga os relatos parece desimportante e gera a sensação de que uma estrutura estritamente episódica poderia ser mais frutífera do que a tentativa de amarrar tantas partes em uma só linha.

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Em Jackson Heights (2015), de Frederick Wiseman

É curioso o movimento de Wiseman cada vez mais em direção à ideia de Anders Petersen, que vê a câmera como instrumento para que se chegue ao que interessa: pessoas e coisas. Em um panorama cheio de cineastas que abraçam a fotografia como último e único recurso e que sofrem aversão a museus, ele havia realizado National Gallery e Em Berkeley, um par de filmes sem medo de (outra) arte e da academia. Agora, seu olhar se volta para o multiculturalismo de uma das áreas mais diversas do planeta. O leque amplo gera trechos mais e menos interessantes, mas o retrato completo depende também desses últimos, porque o diretor é capaz de registrar tudo com admiração por aquelas lutas diárias sem jamais evitar o conflito.

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Mon Roi
(2015), de Maïween

O filme parte de uma boa ideia, fundamentada no acidente sofrido pela personagem de Emmanuelle Bercot, que a leva a uma lesão grave no joelho. Em recuperação, ela escuta de uma psicóloga que aquela é uma parte do corpo que só se movimenta para trás, sugerindo uma relação entre o problema físico e questões emocionais e transportando o espectador a uma segunda linha do tempo, focada no exaustivo drama de casal que a levou a tais complicações. De algum modo, é como se Maïween tivesse em mãos uma premissa razoável, mas que é interessante por si só, não como ponto de partida para o que aqui concentra as atenções. Das duas tramas, uma ascendente, de recuperação, outra de declínio em queda livre, apenas a primeira possui impacto — e a segunda, que deveria erguê-la, funciona mais como âncora. A diretora também não possui qualquer retração, pintando tudo com cores muito fortes, tentando extrair drama de absolutamente todo plano. As presenças da protagonista e de Vincent Cassel até levam a trama adiante, mas os recursos da diretora parecem muito limitados. O joelho se recupera e a personagem principal volta à vida. O caso do filme parece ser mais sério.

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Que horas ela volta? (Anna Muylaert, 2015)

Por Vlademir Lazo

Assistir Que Horas ela Volta? traz à tona a lembrança da Vera Cruz a rondar como um espectro o cinema brasileiro décadas depois de sua precoce extinção.  A Vera Cruz, na verdade, nunca deixou de existir, com os nossos filmes que se pretendem neo-realistas, mas conseguem ser pouco mais que um melodrama barato com pano de fundo social. Assim foi com a maioria dos que conciliaram sucesso popular e de crítica e êxito internacional que tivemos desde O Cangaceiro (que espelhava uma realidade relativamente recente à época, a do terror do banditismo do sertão envolto em lendas), passando por O Pagador de Promessas, Pixote, Central do Brasil, Cidade de Deus, O Som ao Redor até chegar ao filme de Anna Muylaert.

Um sucesso condenado a se repetir a cada dez ou vinte anos (e, pelo visto, com um intervalo cada vez menor), assimilando as modas estéticas de seu tempo e refletindo na tela as contradições sociais de um país, ganhando prêmios e colhendo elogios aqui e no exterior.  Filmes que não ajudaram na evolução de uma cinematografia, mas na sua estagnação; pois nenhum deles rendeu frutos na influência de obras relevantes feitas posteriormente (o movimento do Cinema Novo, por exemplo, seria muito mais uma reação a filmes como O Cangaceiro e O Pagador, ainda que parcialmente incorporado depois ao cinema oficialesco), tampouco a carreira de seus realizadores (com a exceção de Babenco, que mantém uma filmografia mais ou menos consistente). Pode-se dizer que ainda é cedo para se prever o legado de um O Som ao Redor e Que Horas Ela Volta?, mas não é um pecado, e sim um dever, pensar no que ficará de uma obra daqui a dez ou cinquenta anos.

Um dos desafios de Que Horas ela Volta? é o de convencer que Regina Casé pode estrelar um melodrama, acostumado que estamos a vê-la em comédias escrachadas e programas de auditório na TV. Encaixa-se, então, o seu tipo um tanto exótico, fora dos padrões de beleza, no papel da empregada doméstica, uma das obsessões temáticas do novo cinema brasileiro, que permite tornar o cinema um campo para debates sociológicos e empatia fácil. O que Muylaert se esmera em conseguir através de uma dramaturgia mal-ajambrada, especialmente por uma série de vinhetas no começo apresentando a personagem em meio à casa dos patrões, onde ela mora, de forma a provocar comiseração e constrangimento em torno de sua figura.

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O que deflagra uma arejada na narrativa é a entrada em cena da filha Jéssica (Camila Márdila), que de Pernambuco chega em São Paulo para prestar vestibular, e provoca um curto a desestabilizar um ambiente carregado por demais de estereótipos. Em que muito é sublinhado em excesso, explicitado desde cedo, de modo que a maioria dos espectadores pode adivinhar facilmente que é Jéssica, e não o filho do patrão, que vai passar no vestibular, e despertar o desejo tanto do filho quanto do homem mais velho da casa, e o ódio da esposa, simbolizado com muitas caras e bocas. O filme dada a sua previsibilidade faz com que estas revelações passem longe de serem spoilers.

Estivéssemos num Pasolini dos anos sessenta um elemento intruso como Jéssica deflagraria a destruição da família devorando um por um de seus membros. Não se trata de defender como o filme deveria ser feito ou não, porém o de mostrar o quanto Que Horas ela Volta? é conformista e com um olhar a partir da Casa Grande. O filho mimado terá a compensação da viagem para a Austrália, e o patrão ao ser rejeitado pela menina, na patética cena do pedido de casamento (que se levada a sério só o poderá com, mais do que cumplicidade, a condescendência do público), se safa da situação dizendo, com gaguejos, que só estava de brincadeira. O que é uma entre outras resoluções de roteiro simplistas demais, que inclui facilidades como o gesto final de libertação da protagonista-empregada, cuja atitude não se desenvolve paulatinamente desde um certo ponto da narrativa, e sem preparação nenhuma irrompe como catarse no desfecho. De resto, ideias ficam pela metade, precisando serem preenchidas na mente do espectador, não por uma ambiguidade ou mistério estimulados pelo filme, mas pela incompletude de seus alicerces.

O filme de Muylaert é a representação de uma nação conservadora, mas não há espírito crítico, apenas uma aceitação por os mais pobres romperem barreiras como a falta de inclusão na universidade (em O Som ao Redor era a inclusão pelo consumo, sintetizada pela compra dos modernos e grandes aparelhos de TV). Se não há secura existencial em sua escolha pelo melodrama, tampouco existe subversão na suposta crítica social pelo qual tem sido louvado, e que serviu para alimentar debates, pois nas assimilações de costume, concretizadas de tempos em tempos numa sociedade, nem sempre mudanças acontecem para impedir que as coisas continuem como sempre foram. Que Horas Ela Volta?, nos seus riscos calculados, funciona como um exercício para a consciência culpada do espectador frente ao país em que nos encontramos, enquanto é entretido num melodrama beirando o novelesco e supostamente bem-filmado. Se depender dos filmes, de Central do Brasil até Que Horas Ela Volta?, em termos cinematográficos o país não mudou muito.

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Chantal Akerman e o cinema das vacas magras

Por Fabio Ramalho

No episódio da série Cinéma de notre temps: Chantal Akerman par Chantal Akerman (1997), a diretora recorre a uma anedota para articular a sua relação com o cinema. Um homem, conta-nos Akerman, passava por sérias dificuldades financeiras e resolve vender sua última vaca. Ele a leva para uma feira livre onde a deixa exposta e começa a anunciar de maneira muito simples, “aqui está minha vaca; minha vaca é uma vaca é uma vaca é uma vaca”.[i] Mas todos estão oferecendo suas vacas com muito entusiasmo e ressaltando suas muitas qualidades, de modo que ao fim do dia todas já foram vendidas, exceto a sua. Um dos vendedores então se aproxima e observa, “mas você não vendeu ainda sua vaca?”, ao que o homem responde: “minha vaca não é lá grande coisa, ela é muito magra”. O vendedor então toma para si a tarefa e se coloca a anunciar: “vejam esta vaca, ela é muito boa, ela faz filmes, ela não tem medo de nada etc.” O vendedor atribui tantas e tão variadas qualidades à vaca, com o objetivo de seduzir os passantes, que o dono por fim hesita: se ela é tão boa assim, por que ele deveria vendê-la? Por sorte, diz Akerman, a essa altura o negócio já havia sido fechado.

Akerman diz que ama o cinema quando são os outros que falam. Resulta-lhe difícil interessar-se por si mesma, daí a dificuldade que encontra, ela nos diz, em cumprir a tarefa que lhe foi designada pelos produtores da série: a de fazer o seu autorretrato. Mais que isso, é em grande parte pelas pessoas amigas, parceiros, colaboradoras e críticos, através daqueles e daquelas que depositam um olhar sobre a obra, que ela ama seus filmes. A semelhança com o processo de constituição de si como sujeito através de um outro que nos devolve nossa imagem como num espelho não é, evidentemente, casual. Aqueles que falam sobre o seu cinema seriam como o vendedor que lhe acrescenta múltiplos atributos. Esse olhar que retorna, que dá forma e consistência ao corpo da obra, é o que renova a convicção no seu ofício. Temos aí uma bela inflexão da compreensão do cinema como exercício coletivo. Ele é coletivo também porque depende do gesto de abertura que permite que uma juntura se forme entre obra e espectador/a. O que se estabelece é, então, uma relação de cumplicidade.

É por isso que, afinal, Akerman pode dizer que gosta de sua vaca mesmo que ela seja magra, ou melhor, sobretudo porque ela é magra. Temos aí, talvez, uma das maneiras mais eficazes de sintetizar o seu “cinema menor”, como foi algumas vezes definido, em referência ao conceito de literatura menor de Gilles Deleuze e Félix Guattari. Um cinema de vagas magras, que se constitui na precariedade, austero – num possível desdobramento da austeridade que a realizadora afirmou ter desde sempre vivenciado e conhecido no seio de sua família judia, atravessada pelo trauma histórico da perseguição e dos campos de concentração.

Durante algum tempo eu me interroguei sobre os motivos pelos quais esse depoimento de Akerman para Cinéma de notre temps me comove cada vez que o revejo. Em primeiro lugar, sem dúvida, está o lugar que a voz da cineasta ocupa nos seus filmes. A voz atua como veículo para expressar as afecções daquela que fala e também para criar um vínculo com as pessoas que a ouvem. O cinema de Akerman explorou essa potência da fala intensamente. E ainda semana passada, quando lia uma entrevista dada a Nicole Brenez para a revista Lola,[ii] eu pensava em como poderia passar horas ouvindo-a falar, e como ler suas entrevistas era quase como escutá-la.

Chantal Akerman foi uma cineasta que muitas vezes me fez ignorar as salutares suspeitas pós-estruturalistas e me lançar ao exercício (sempre falho) de tentar traçar os liames entre corpo em cena, autoria e sujeito biográfico. Talvez porque seu passado e o de sua família sejam tão fortemente figurados nos filmes; talvez porque sua trajetória entre Bruxelas, Nova York e Paris seja tão fascinante. É mesmo difícil não cair no risco de correlacionar vida e obra; não acabar sucumbindo, vez por outra, à atração do anedótico: os relatos se espelham e se multiplicam entre filmes, textos e entrevistas. Um exemplo dentre muitos possíveis: a leitura do diário da avó, com as passagens sobre a solidão decorrente de sua condição de mulher que apenas encontra conforto na escrita íntima, é figurada numa cena tocante de Demain on déménage (2004), quando Sylvie Testud e Aurore Clément lêem o que parece ser uma transcrição quase literal do texto do diário real e permanecem um tempo paradas, fumando, partilhando esse momento de enlace entre gerações, gestado no silêncio da madrugada.

Outro vínculo incontornável: a relação obsessiva entre mãe e filha, que desponta na sua filmografia com toda força em News from home (1977) – as cartas da mãe lidas naquele tom monocórdio e meio debochado de filha insolente – e encontra sua variação mais bem-humorada em Tout une nuit (1982). Neste, há um breve plano em que uma senhora sai à frente de sua residência para fumar, absorta, e uma voz vinda do interior da casa a interpela insistentemente, perturbando o momento furtivo de pausa para o cigarro – momento este, como sabemos todos que alguma vez cultivamos esse hábito, de valioso recolhimento e introspecção. A mulher é a mãe de Akerman, e a voz que a chama uma e outra vez é a da própria diretora.

De fato, sua voz se multiplica por toda a sua filmografia: é a inscrição derradeira e mais contundente de seu corpo e de sua singularidade. É dela a voz da vizinha que aparece à porta, mas que não podemos ver, e pede à protagonista em Jeanne Dielman, 23, quai du commerce,1080 Bruxelles (1975) que cuide de seu filho, entre comentários banais sobre o cotidiano. É dela também a voz da madre superiora em La folie Almayer (2011). Sempre fora de campo, como que atravessando cada filme e, gosto também de pensar, lançando uma piscadela em direção a nós: eu estou aqui.

Mas se a própria diretora tantas vezes sugeriu, ela mesma, linhas capazes de inscrever certas contingências e fazer aderir algo de seus trajetos pessoais à materialidade das imagens que criava, ela deixou claro também que a fratura é incontornável e que os esforços de reconstituição dos percursos de uma vida se deparam numa proliferação de pontos cegos. Ela não apenas desautorizava qualquer transposição ingênua, mas desafiava a fixação de qualquer dado factual. Veja-se a esse respeito De l’autre côté (2002), seu documentário sobre os latinos – mexicanos e centro-americanos – que cruzam a fronteira para os Estados Unidos, o qual termina com o belo relato sobre os rastros de uma mulher, mãe e migrante que desaparece. O relato nos fala dessa figura evanescente cujos traços de gestos e hábitos efêmeros conduzem afinal a uma interrogação sem resposta: onde estará? A busca dos vestígios termina na apreensão de uma fantasmagoria. A voz da cineasta – uma vez mais sua voz – nos diz, concluindo: “deve ter sido uma alucinação”.

Temos aí uma variação insuspeita de Albertine/Ariane, a mulher desaparecida em La captive (2000), adaptação da obra de Proust realizada dois anos antes. Chama a atenção, aliás, que a cineasta tenha decidido terminar o documentário sobre o problema político da fronteira com uma mudança tão acentuada de tonalidade, centrando os últimos minutos do longa-metragem em palavras que assumem um teor tão fortemente elaborado, como uma espécie de requinte que escolhe dotar aquela vida migrante de um registro marcado pelo afastamento de qualquer resquício de abordagem sociologizante.

Mesmo nos casos em que a presença em cena remonta à própria realizadora, a visibilidade do corpo não se presta ao estabelecimento confortável de um fio capaz de unir realidade e ficção. O corpo se encontra sempre, pelo contrário, mobilizado como recurso expressivo mediante um borramento de fronteiras: é e não é. Como observou Ivone Margulies[iii], o seu modo de filmar favorece uma oscilação constante entre figuração e literalidade, entre a materialidade do corpo da performer e a personagem da representação. Esse “registro dual” se estende ainda à disjunção entre roteiro e fala, ou seja, ao estatuto da voz, objeto da minha própria obsessão.

Há ponto de ancoragem possível? É justamente esse problema que a demanda do autorretrato postula. A esse respeito, torna-se especialmente eloqüente o final do seu depoimento em Cinéma de notre temps. Se no inicio a cineasta havia alertado que era uma “narradora pouco confiável” e chamado a atenção para o fato de que, afinal, “a sinceridade é um artifício”, depois de muitas tentativas, bem como de uma longa sequência de planos de filmes reeditados em conjunto, ela volta ao centro da câmera e os termos do seu autorretrato são enfim estabelecidos: “Eu me chamo Chantal Akerman e nasci em Bruxelas. E isso é verdade. Isso é verdade.” Depois de tantas hesitações e incertezas, a realizadora se reencontra no retorno aos dados mais simples: seu nome e sua designação de origem.

E não é isso que o seu cinema sempre fez? Da mulher deitada na cama de seu quarto no curta-metragem La chambre (1972), à mulher reclusa no espaço de outro quarto com apenas um colchão, algumas folhas de papel rabiscadas e um saco de açúcar, em Je tu il elle (1976), passando pela mulher entrincheirada num quarto repleto de móveis e objetos amontoados em L’homme à la valise (1983) – e uma variação dessa mesma imagem, décadas depois, com Sylvie Testud tentando escrever em meio ao caos em Demain on déménage –, chegando à mulher que observa Israel da janela em Là-bas (2006), Akerman refez sempre o mesmo movimento de voltar ao mínimo, aos elementos mais básicos da realidade e a partir daí tentar delinear um território próprio onde seria possível existir.

Neste dia que marca a notícia de sua própria desaparição, o ímpeto de retornar à sua imagem, à sua fala e aos seus vestígios se mostra um exercício de certo modo inescapável. Volto ao depoimento pelo qual tenho especial apreço: “Eu gosto da minha vaca sobretudo porque ela é magra”. Dentre tudo aquilo que já li e ouvi sobre imagem e cinema, essa é sem dúvida uma das declarações mais enternecedoras.

[i] Há várias referências ao verso de Gertrude Stein em filmes e entrevistas de Akerman.

[ii] Chantal Akerman: The Pajama Interview (2011), por Nicole Brenez, disponível em http://www.lolajournal.com/2/pajama.html.

[iii] Ivone Margulies, Nothing happens: Chantal Akerman’s Hyperrealist Everyday. Duke University Press: Durham and London, 1996.

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Pai e Filhos (Wang Bing, 2015)

Por Marcus Martins

Pai e Filhos parte de um dispositivo e premissas tão rígidas que assume o risco de alienar o expectador durante a quase totalidade de sua duração. Pai, dois filhos e três cachorros habitam um minúsculo cômodo com uma única cama e uma infinidade de objetos espalhados por todo canto e uma televisão que está sempre ligada. Confinados em um único e dilapidado cômodo junto na maior parte do tempo vemos  um único personagem, um dos filhos, que passa as suas horas hipnotizado por um aparelho de telefone celular, tornando aquele isolamento também o de quem assiste. A passagem do tempo e o isolamento imposto estão gravados também no comportamento dos cães, os mais velhos, completamente resignados parecem entregues ao torpor enquanto o filhote ainda tenta em vão encontrar algum seu lugar.

Percebemos que os personagens pouco interagem. O pai trabalha à noite enquanto os filhos dormem na única cama, enquanto os filhos vão provavelmente à escola enquanto aquele dorme.

Curiosamente um dos filmes mais curtos de Wang Bing com apenas cerca de 90 minutos e ainda assim ele consegue imprimir a passagem do tempo em sua imobilidade. Nenhuma informação é concedida ao expectador, além de breve plano externo que sugere o motivo do isolamento e a condição dos personagens. Toda a informação, a vida mesmo, está fora do campo. Seja o que está fora do alcance das lentes e o que se faz fora daquele cômodo, seja o que lhe consome as horas na tela da televisão e do celular.

Apenas ao final da projeção um breve texto expõe aquilo que nos fora sonegado. O evento que determinou o destino do filme também termina por ser a melhor indicação de como vivem aquelas pessoas.

A pior acusação ao filme pode também ser a sua melhor explicação, um filme abortado e inconcluso, mas que se constrói justamente a partir de tal evento, vez que diante de ameaças do patrão do operário que não gostou de descobrir as filmagens não autorizadas, Wang Bing não teve como concluir o que quer que tivesse projetado e fez disso o artifício que sustenta o filme. Para quem construiu sua carreira à margem da anuência estatal, tocando em temas delicados e indesejados, mas sem em momento algum assumir a faceta de um cineasta político, isso é muito sintomático das circunstancias em que está inserido e de por que adota seus procedimentos.

Filme visto no Indie Festival

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Tangerina (Sean Baker, 2015)

Por Marcus Martins

Tangerina é a última incursão de Sean Baker nas histórias de amizades em meio a universos e situações pouco usuais. Depois do emigrante chinês trabalhando em delivery de Take Out, o vendedor de muamba na Broadway que tem sua vida desestabilizada por uma chegada inesperada em Prince of Broadway e do encontro inusitado entre uma atriz de filmes pornográficos e uma idosa solitária em Uma Estranha Amizade chegamos às perambulações de transexuais negras que se prostituem nas ruas de Tinseltown. O filme acompanha uma delas que acabou de sair de um período na prisão no dia de Natal e sua amiga que lhe ajuda na procura de seu cafetão/namorado e de uma possível rival que teria tomado seu lugar.

Os filmes de Baker são o epíteto do filme indie descompromissado, filmados em digital com poucos recursos e condições técnicas, roteiros construídos muitas vezes em colaboração com os atores e abordagem semi-documental. Tangerina ganha ainda o chamativo de ter sido filmado com câmeras de telefones móveis. Apesar disso o filme tem especial apuro técnico e foram utilizados todo tipo de suporte para estabilizar a imagem.

O título do filme deve-se provavelmente à cor alaranjada que ganha destaque em especial nas cenas externas durante o fim de tarde. O uso de celulares se justifica pelo ponto de vista documental do filme, que se pretende como registro das situações que muitas vezes parecem transcender a encenação e pleitear o status de flagrante. Dentro de toda a limitação e exaustão da tola fronteira entre o ficcional e o documental, Baker consegue transmitir dignidade e respeito a seus personagens.

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Mesmo que seja bem sucedido o uso dos celulares e que o artifício encontre alguma justificativa no que se representa, o interesse e trunfo de Tangerina é saber usar o documental como forma de dar espaço aos personagens.

As transexuais possuem uma das mais assimiladas formas de auto-ficção do mundo contemporâneo dentro de sua própria identidade, pois não apenas constroem sua identidade de gênero como no jogo das ruas encarnam suas personagens como se nada mais houvesse. Isso termina por não apenas gerar cenas cômicas e em aparentes improvisos de grande vigor como na cena culminante do filme quando do bate-boca dentro da loja de donuts, mas especialmente na cena da lavanderia. As questões de amizade nos três filmes anteriores de Baker giravam em demonstrações de amizade onde não eram esperadas e dos efeitos muitas vezes libertadores disso. Aqui ele parece seguir nesse mesmo sentido quando uma guinada inesperada traz novas possibilidades para as histórias de amizade e a mudança de tom do epílogo do filme faz imaginar que podemos esperar bastante dos próximos filmes dele.

Se Tangerina não alcança a mesma força narrativa de Uma Estranha Amizade, as atuações de Kitana Kiki Rodriguez e Mya Taylor como verdadeiras co-autoras do filme eleva o filme ao emprestar vida a suas personagens com uma riqueza que nenhum roteiro poderia. Não é apenas o fato de dar voz a personagens transexuais, mas a não lhe negar dignidade e um rosto. O que pode parecer pouco em termos de ficção, mas que seria impossível alcançar esse nível de naturalidade documental com atores profissionais encenando transexuais.

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Cemitério de Esplendor (Apichatpong Weerasethakul, 2015)

Por Marcus Martins

Soldados com uma misteriosa doença do sono, um hospital improvisado em uma escola que foi construída sobre um antigo cemitério, mas que logo deve ser derrubada por uma nova construção. Uma jovem que se comunica com os mortos tenta ajudar as famílias dos soldados a se comunicar com seus entes, uma voluntária com dismetria nas pernas, deuses, médicos, representantes do exército, galinhas e árvores.

Cemitério do Esplendor parece ser o filme mais leve de Apichatpong Weerasethakul desde Eternamente Sua. Os diálogos contêm uma comicidade que termina por anular qualquer barreira entre banal e profundo. Assim como os seres vivos (humanos ou animais), os lugares têm suas diversas encarnações e carregam sua bagagem espiritual – o conceito de reencarnação ali é amplo e irrestrito e o fato de reencarnar não impede que as mais diversas iterações convivam de forma orgânica, não são apenas sucessivas, mas essencialmente concomitantes. Assim o fato de que em breve a escola-hospital será derrubada para dar lugar a outra construção não é visto com mais surpresa que a médium que conversa com os espíritos.

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A possível sinopse de soldados que dormem misteriosamente em uma escola transformada em hospital que se encontra sobre um cemitério de reis guerreiros consegue apenas conter uma fração do que aparece na tela. A facilidade de Apichatpong em contar histórias e dar voz às narrativas de seus personagens, aliada à quase completa ausência de lógica narrativa deve ser o maior motivo de confusão para quem assiste o filme esperando entender por que os soldados dormem ou se a comunicação com os espíritos é verídica.

Parece existir uma grande dificuldade em assimilar esse tratamento direto onde a abolição da alteridade e do conflito se instala e a presença dos espíritos e do divino é tão natural quanto inexorável. Apenas isso é muito diferente de afirmar que o filme  afasta a sensação de morte e seria mesmo tolo afirmar que ela está ausente do filme quando todo o filme é tanto sobre morte como vida e se a abordagem não satisfaz a noção cristão-ocidental de dualidade ou se adequa ao estereótipo da tragicidade grego-romana.

A mise-en-scène reflete a ausência de transição entre o natural e o religioso, a experiência espiritual que se cria através da sabedoria do relato, a sensualidade da natureza e a fantasmagoria das máquinas. Quando as deusas aparecem para a Jenjira, o espanto maior se deve ao privilégio recebido que pelo contato sobrenatural. E mesmo assim o acontecimento não recebem importância maior que filmar as aves passeando pela enfermaria ou o vento nas árvores.

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Tudo isso apenas aprofunda a dificuldade em escrever sobre um filme que não se explica, que não se define, muito menos se conclui. O filme não esconde seu sub-texto político, sem precisar fazer uso de alegorias, mas também não facilita a leitura para quem não conhece a história e o quadro político tailandês. A cena do cinema é das representações políticas mais elusivas e ainda assim forte de 2015. Logo após o vertiginoso trailer de Iron Coffin Killers, os espectadores têm que se levantar e em silêncio permanecem. O filme não nos conta que esse é o procedimento em sessões públicas quando se executa o hino real. A cena corta para o soldado sendo carregado enquanto dorme mais uma vez. Voltando à imagem do soldado, representante da força estatal que é posto a dormir. Da mesma forma o discurso de Jenjira enquanto passeia com a médium pelos habitados pelo soldado enquanto dorme não fogem à relação com o mundo dos soldados enquanto estiveram acordados, até mesmo por que tudo se insere em um mesmo processo. Toda essa sequência é magnifica por ser filmada como a encenação teatral de uma experiência religiosa sem em momento algum dar qualquer piscadela ao espectador. Sem qualquer efeito especial as personagens transitam por duas dimensões.

O filme retorna à dança, à aparente cura de Jenjira, ao desaparecimento do soldado, às crianças que jogam bola na terra revolvida da construção e à certeza de que nada acabou, apenas continua. É o cinema de fruição que não atende à codificação do bom cinema, com sua simplicidade sensual em meio à natureza e danças que reafirmam que junto ao tenebroso se encontra o júbilo, que morrer e viver seriam uma separação arbitrária e que tudo é fluxo, inclusive o cinema.

 Filme visto no Indie Festival

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Cobertura – Festival de Brasília 2015 (Parte VI)

Por Virgílio Souza

O Festival de Cinema de Brasília encerrou na última terça-feira. No Multiplot, seguimos com a cobertura abordando filmes exibidos nos últimos dias do festival.

Confira os posts anteriores da cobertura: I, II, III, IV, V.

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O Sinaleiro (2015), de Daniel Augusto

O curta é um exercício de gênero que preza pelos seus aspectos formais acima de tudo. Os recursos que produzem suspense transitam entre o tradicional e o antiquado, e a abordagem sempre robusta, rígida, por vezes sugere que tudo não passa de um truque. Somam-se elementos que historicamente geram apreensão, como aranhas, vermes, luzes oscilantes, galhos a balançar, goteiras e água negra saindo pelos encanamentos, e o resultado se vale de uma repetição incessante que não busca a ressignificação, apenas a intensificação de um mistério sugerido desde o primeiro plano. O trabalho de som, marcado por um ruído que se estende mesmo durante os créditos finais, tem méritos técnicos, mas sua exploração exagerada acaba por desconstruir qualquer possibilidade de impacto.

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O Corpo (2015), de Lucas Cassales

Incomoda um pouco a necessidade de extrair brutalidade de todo plano, sintoma (e talvez consequência direta) da referência à obra de cineastas como Michael Haneke. Trabalhar a desgraça humana e o horror do mundo a partir de pequenos grupos sociais, isolados no interior quase (ou pré?) selvagem, oferece possibilidades narrativas interessantes, mas também algumas restrições. Essa perversão laboratorial soa mais frutífera quando o filme observa a garota estranha, o corpo do título, como propulsora de sentimentos guardados, desse mal estar generalizado, mas Cassales parece se focar nesse aspecto somente no plano final, uma espécie de saída onírica que insinua o apocalipse, abandonando de vez o foco somente no que é específico daquela comunidade tão cruel.

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Prova de Coragem (2015), de Roberto Gervitz

O escritor mexicano Octavio Paz certa vez disse que todo autor deveria morrer após concluir sua obra para evitar falar bobagens sobre ela. A afirmação carrega consigo um exagero evidente, fruto mais de uma indisposição a especular sobre o próprio trabalho do que de qualquer outra coisa. A essência da frase, porém, ganha significados muito vivos no âmbito de eventos como o Festival de Brasília, em que os debates com equipe e elenco dos filmes selecionados são práticas correntes. Digo isso em função da postura de Roberto Gervitz, realizador do último longa da mostra competitiva, nas discussões sobre seu filme. Questionado por duas mulheres sobre um plano específico que causou estranhamento pelo olhar fetichista e absolutamente despropositado sobre o corpo de uma adolescente, o diretor-roteirista não hesitou em se revelar “chocado” frente às perguntas sobre a representação feminina. Ao decidir não reconhecer tais pontos, embasados em uma série de argumentos que esbarram em outros elementos do filme, acabou por atestar sua miopia sobre a questão, comum a dois profissionais (homens de mais de quarenta anos) que prontamente o defenderam — um deles sugeriu que existem vários outros filmes piores sob estes termos, citando Love, de Gaspar Noé, como se isso o isentasse de críticas dessa natureza.

Pode até ser que Gervitz tenha tido a melhor das intenções na construção da história. As duas personagens femininas são figuras fortes no papel e em parte de suas ações, têm iniciativa e vontade próprias e tomam decisões. No frigir dos ovos, porém, servem apenas como acessórios para que o protagonista conclua seu projeto de redenção e resolva seu conflito interno, ambos essencialmente masculinos e advindos de uma ideia antiquada de “homem fragilizado”. O questionamento, de origens estéticas (no caso do plano descrito acima) e narrativas (esses últimos elementos), pode ser problematizado ou não, a depender da leitura feita sobre o que está em tela e o que isso representa. Ainda assim, o espanto do realizador e a tentativa de contrariar a observação de duas espectadoras com base em um suposto feminismo do filme, muito pela presença forte de suas atrizes em cena, segue descabido.

Isso posto, é preciso afirmar que os deméritos de Prova de Coragem vão muito além. O drama do casal é filmado no piloto automático, sem que se manifeste sombra de encenação. Os personagens entrem em cena, recitam suas falas e saem, com uma mecânica travada que anula qualquer fluidez. Armando Babaioff e Mariana Ximenes parecem voltados para performances mais naturalistas, é verdade, mas que não funcionam porque a decupagem enfileira cenas sem erguer relações mais profundas entre elas ou criar um mínimo senso de consequência. Assim, no atropelo, o filme não respira, e os diálogos ríspidos, disparados a todo momento, sequer são absorvidos pelos próprios personagens. Gervitz também parece pouco inspirado ao articular rimas visuais e temáticas (acidente de bicicleta x redenção sobre uma bicicleta, falta de reação a uma agressão na infância x falta de reação a uma agressão na fase adulta, etc) e datado ao trabalhar elementos como a vertigem e as pequenas sequências de ação (novamente, a seleção e ordenamento dos planos deixam a desejar). O aspecto novelesco, aqui, é acidental e inescapável.

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