Carol (Todd Haynes, 2015)

Por Arthur Tuoto

Carol é, acima de tudo, uma obra de reverência. Um filme que poderia soar como um simples exercício de mediação (a atualização sirkiana de Far from Heaven via uma atualização formal de Brief Encounter), mas que se transforma em um ritual de renovação, um ritual de gestos, sons e imagens que invoca uma força encantatória implícita em toda uma tradição cinematográfica. Tal como um místico da forma, Haynes, aqui, não só reverencia seus ancestrais mais poderosos, mas de fato renova toda uma alquimia do aparato nessa apropriação.

Mesmo partindo desse mote do culto, desse mote da reverência como uma força motriz do drama e da mise-en-scène, os elementos mais básicos de Carol não deixam de ser assumidamente contemporâneos. Seja a fotografia de Ed Lachman, que abusa da distância focal, seja a trilha sonora ultra evocativa de Carter Burwell, sempre complexa em suas camadas instrumentais, seja nas incríveis fusões da montagem de Affonso Gonçalves, beirando o abstrato em diversos momentos.

Carol (2015) e Brief Encounter (1945): Renovações formais em prol de uma mitologia dos gestos.
Brief Encounter (1945) e Carol (2015): Renovações formais em prol de uma mitologia dos gestos.

O filme pode até partir dessa sentença inicial de Brief Encounter, especialmente dessa mitologia de gestos e toques que o filme de David Lean venera (a sugestão implícita no mais mínimo contato), mas, desde seus primeiros minutos, fica muito claro que Carol está interessado em construir toda uma nova dimensão de texturas visuais e sonoras: o nascimento de um sentimento que gera uma dissonância sempre evidente ao aparato. Um pouco como se a impalpabilidade dessa paixão entre as duas protagonistas refletisse no espaço entre aqueles corpos. E, nisso, toda a variação focal da fotografia, os closes instáveis, as texturas manchadas e a luz estourada, surgem quase como um processo de desfiguração desse espaço em prol desse sentimento motriz. Como se, em prol desse encontro, todo o resto fosse aos poucos se desfazendo: a luz de um túnel, as mãos que dirigem um automóvel, o reflexo em um retrovisor.

A variação focal que evidencia a impalpabilidade de um encontro.
A variação focal que evidencia a impalpabilidade de um encontro.

Nesse sentido, o filme não deixa de colocar à prova a teoria do personagem que assiste ao mesmo filme de Billy Wilder diversas vezes, mapeando a relação ambígua entre o que os personagens de Sunset Boulevard falam e como eles realmente se sentem. Nesse jogo de aproximação entre percepção sentimental e percepção cognitiva de Carol, o poder da ideia não é simples sugestão, mas ele de fato transborda na tela. Aquilo que se sente não é apenas implícito, mas fica evidente na textura cromática e sonora da obra. O próprio uso de fusões no filme evidencia essa desfiguração do espaço, esse encontro que inaugura uma nova dimensão que precisa ser evidenciada cinematograficamente. Ou seja, o que em Brief Encounter era implícito em uma decupagem polida, ainda que se arriscando em algumas trucagens, em “Carol” rebenta diante dos olhos, reluz em seus objetos e em seu espaço de cena sem muitas concessões.

Talvez o grande desafio de Haynes tenha sido manter essa abertura estilizada, essa vocação assumidamente maneirista e, ainda assim, preservar uma elegância que é da natureza dessa proposta. A atuação de Cate Blanchett e Rooney Mara foi mais do que indispensável nesse trajeto, já que as duas atrizes intuem muito bem esse jogo de forças entre um sentimento épico e um contanto aparente. Uma dinâmica que se faz perceber através do mais prudente dos gestos, da mais cautelosa das expressões,  ao mesmo tempo que preserva um charme implícito, um encanto constante, manifesta um magnetismo, uma dimensão quase mística entre corpo, matéria e luz. Existe, portanto, toda uma coreografia entre ato e intenção, ação e sugestão, que só reitera essa ambiguidade entre a efemeridade do encontro e seu consequente efeito imponente.

A fusão que supera o poder da sugestão: o aparato a serviço de uma nova dimensão cinematográfica.
A fusão que supera o poder da sugestão: o aparato a serviço de uma nova dimensão cinematográfica.

Carol é, no fim, das contas, um belo exemplo onde a autoconsciência cinematográfica não está ali apenas para se exibir ou desfilar suas proezas acadêmicas, mas de fato funciona a serviço de um franco projeto de atualização. Até porque mesmo assumindo esse formalismo maneirista, o filme nunca se fecha nessa abordagem. A última cena talvez seja a prova final dessa renovação tanto no sentido de trair a tragédia iminente de Brief Encounter (se lá o encontro era uma utopia, um ideal inalcançável, aqui ele é a possibilidade concreta de uma realização) como de trair um formalismo reverenciado até ali. Quando Therese começa a procurar por Carol no restaurante, e o registro formal se transforma nesse mundo flutuante da câmera na mão, deambulando sobre aqueles corpos e sobre aquele espaço, é um pouco como se Haynes se abrisse não só para um outro cinema, livre de um possível formalismo acadêmico, mas para uma outra perspectiva de mundo político onde não só existe a possibilidade de uma liberdade da forma, mas de um amor incondicional entre duas mulheres.

 

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