Cobertura – Festival de Brasília 2015 (Parte VI)

Por Virgílio Souza

O Festival de Cinema de Brasília encerrou na última terça-feira. No Multiplot, seguimos com a cobertura abordando filmes exibidos nos últimos dias do festival.

Confira os posts anteriores da cobertura: I, II, III, IV, V.

filme

O Sinaleiro (2015), de Daniel Augusto

O curta é um exercício de gênero que preza pelos seus aspectos formais acima de tudo. Os recursos que produzem suspense transitam entre o tradicional e o antiquado, e a abordagem sempre robusta, rígida, por vezes sugere que tudo não passa de um truque. Somam-se elementos que historicamente geram apreensão, como aranhas, vermes, luzes oscilantes, galhos a balançar, goteiras e água negra saindo pelos encanamentos, e o resultado se vale de uma repetição incessante que não busca a ressignificação, apenas a intensificação de um mistério sugerido desde o primeiro plano. O trabalho de som, marcado por um ruído que se estende mesmo durante os créditos finais, tem méritos técnicos, mas sua exploração exagerada acaba por desconstruir qualquer possibilidade de impacto.

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O Corpo (2015), de Lucas Cassales

Incomoda um pouco a necessidade de extrair brutalidade de todo plano, sintoma (e talvez consequência direta) da referência à obra de cineastas como Michael Haneke. Trabalhar a desgraça humana e o horror do mundo a partir de pequenos grupos sociais, isolados no interior quase (ou pré?) selvagem, oferece possibilidades narrativas interessantes, mas também algumas restrições. Essa perversão laboratorial soa mais frutífera quando o filme observa a garota estranha, o corpo do título, como propulsora de sentimentos guardados, desse mal estar generalizado, mas Cassales parece se focar nesse aspecto somente no plano final, uma espécie de saída onírica que insinua o apocalipse, abandonando de vez o foco somente no que é específico daquela comunidade tão cruel.

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Prova de Coragem (2015), de Roberto Gervitz

O escritor mexicano Octavio Paz certa vez disse que todo autor deveria morrer após concluir sua obra para evitar falar bobagens sobre ela. A afirmação carrega consigo um exagero evidente, fruto mais de uma indisposição a especular sobre o próprio trabalho do que de qualquer outra coisa. A essência da frase, porém, ganha significados muito vivos no âmbito de eventos como o Festival de Brasília, em que os debates com equipe e elenco dos filmes selecionados são práticas correntes. Digo isso em função da postura de Roberto Gervitz, realizador do último longa da mostra competitiva, nas discussões sobre seu filme. Questionado por duas mulheres sobre um plano específico que causou estranhamento pelo olhar fetichista e absolutamente despropositado sobre o corpo de uma adolescente, o diretor-roteirista não hesitou em se revelar “chocado” frente às perguntas sobre a representação feminina. Ao decidir não reconhecer tais pontos, embasados em uma série de argumentos que esbarram em outros elementos do filme, acabou por atestar sua miopia sobre a questão, comum a dois profissionais (homens de mais de quarenta anos) que prontamente o defenderam — um deles sugeriu que existem vários outros filmes piores sob estes termos, citando Love, de Gaspar Noé, como se isso o isentasse de críticas dessa natureza.

Pode até ser que Gervitz tenha tido a melhor das intenções na construção da história. As duas personagens femininas são figuras fortes no papel e em parte de suas ações, têm iniciativa e vontade próprias e tomam decisões. No frigir dos ovos, porém, servem apenas como acessórios para que o protagonista conclua seu projeto de redenção e resolva seu conflito interno, ambos essencialmente masculinos e advindos de uma ideia antiquada de “homem fragilizado”. O questionamento, de origens estéticas (no caso do plano descrito acima) e narrativas (esses últimos elementos), pode ser problematizado ou não, a depender da leitura feita sobre o que está em tela e o que isso representa. Ainda assim, o espanto do realizador e a tentativa de contrariar a observação de duas espectadoras com base em um suposto feminismo do filme, muito pela presença forte de suas atrizes em cena, segue descabido.

Isso posto, é preciso afirmar que os deméritos de Prova de Coragem vão muito além. O drama do casal é filmado no piloto automático, sem que se manifeste sombra de encenação. Os personagens entrem em cena, recitam suas falas e saem, com uma mecânica travada que anula qualquer fluidez. Armando Babaioff e Mariana Ximenes parecem voltados para performances mais naturalistas, é verdade, mas que não funcionam porque a decupagem enfileira cenas sem erguer relações mais profundas entre elas ou criar um mínimo senso de consequência. Assim, no atropelo, o filme não respira, e os diálogos ríspidos, disparados a todo momento, sequer são absorvidos pelos próprios personagens. Gervitz também parece pouco inspirado ao articular rimas visuais e temáticas (acidente de bicicleta x redenção sobre uma bicicleta, falta de reação a uma agressão na infância x falta de reação a uma agressão na fase adulta, etc) e datado ao trabalhar elementos como a vertigem e as pequenas sequências de ação (novamente, a seleção e ordenamento dos planos deixam a desejar). O aspecto novelesco, aqui, é acidental e inescapável.

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