Cemitério de Esplendor (Apichatpong Weerasethakul, 2015)

Por Marcus Martins

Soldados com uma misteriosa doença do sono, um hospital improvisado em uma escola que foi construída sobre um antigo cemitério, mas que logo deve ser derrubada por uma nova construção. Uma jovem que se comunica com os mortos tenta ajudar as famílias dos soldados a se comunicar com seus entes, uma voluntária com dismetria nas pernas, deuses, médicos, representantes do exército, galinhas e árvores.

Cemitério do Esplendor parece ser o filme mais leve de Apichatpong Weerasethakul desde Eternamente Sua. Os diálogos contêm uma comicidade que termina por anular qualquer barreira entre banal e profundo. Assim como os seres vivos (humanos ou animais), os lugares têm suas diversas encarnações e carregam sua bagagem espiritual – o conceito de reencarnação ali é amplo e irrestrito e o fato de reencarnar não impede que as mais diversas iterações convivam de forma orgânica, não são apenas sucessivas, mas essencialmente concomitantes. Assim o fato de que em breve a escola-hospital será derrubada para dar lugar a outra construção não é visto com mais surpresa que a médium que conversa com os espíritos.

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A possível sinopse de soldados que dormem misteriosamente em uma escola transformada em hospital que se encontra sobre um cemitério de reis guerreiros consegue apenas conter uma fração do que aparece na tela. A facilidade de Apichatpong em contar histórias e dar voz às narrativas de seus personagens, aliada à quase completa ausência de lógica narrativa deve ser o maior motivo de confusão para quem assiste o filme esperando entender por que os soldados dormem ou se a comunicação com os espíritos é verídica.

Parece existir uma grande dificuldade em assimilar esse tratamento direto onde a abolição da alteridade e do conflito se instala e a presença dos espíritos e do divino é tão natural quanto inexorável. Apenas isso é muito diferente de afirmar que o filme  afasta a sensação de morte e seria mesmo tolo afirmar que ela está ausente do filme quando todo o filme é tanto sobre morte como vida e se a abordagem não satisfaz a noção cristão-ocidental de dualidade ou se adequa ao estereótipo da tragicidade grego-romana.

A mise-en-scène reflete a ausência de transição entre o natural e o religioso, a experiência espiritual que se cria através da sabedoria do relato, a sensualidade da natureza e a fantasmagoria das máquinas. Quando as deusas aparecem para a Jenjira, o espanto maior se deve ao privilégio recebido que pelo contato sobrenatural. E mesmo assim o acontecimento não recebem importância maior que filmar as aves passeando pela enfermaria ou o vento nas árvores.

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Tudo isso apenas aprofunda a dificuldade em escrever sobre um filme que não se explica, que não se define, muito menos se conclui. O filme não esconde seu sub-texto político, sem precisar fazer uso de alegorias, mas também não facilita a leitura para quem não conhece a história e o quadro político tailandês. A cena do cinema é das representações políticas mais elusivas e ainda assim forte de 2015. Logo após o vertiginoso trailer de Iron Coffin Killers, os espectadores têm que se levantar e em silêncio permanecem. O filme não nos conta que esse é o procedimento em sessões públicas quando se executa o hino real. A cena corta para o soldado sendo carregado enquanto dorme mais uma vez. Voltando à imagem do soldado, representante da força estatal que é posto a dormir. Da mesma forma o discurso de Jenjira enquanto passeia com a médium pelos habitados pelo soldado enquanto dorme não fogem à relação com o mundo dos soldados enquanto estiveram acordados, até mesmo por que tudo se insere em um mesmo processo. Toda essa sequência é magnifica por ser filmada como a encenação teatral de uma experiência religiosa sem em momento algum dar qualquer piscadela ao espectador. Sem qualquer efeito especial as personagens transitam por duas dimensões.

O filme retorna à dança, à aparente cura de Jenjira, ao desaparecimento do soldado, às crianças que jogam bola na terra revolvida da construção e à certeza de que nada acabou, apenas continua. É o cinema de fruição que não atende à codificação do bom cinema, com sua simplicidade sensual em meio à natureza e danças que reafirmam que junto ao tenebroso se encontra o júbilo, que morrer e viver seriam uma separação arbitrária e que tudo é fluxo, inclusive o cinema.

 Filme visto no Indie Festival

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