NOTAS SOBRE O NOVO ESPECTADOR

Por Jean-Louis Comolli

(Cahiers Du Cinéma – Abril de 1966)

Traduzido por Felipe Leal

Um dos objetos da filmografia tanto quanto da ciência é o de alcançar um conhecimento científico das qualidades (acuidade, penetração, finura) da visão de um filme. Para fazê-lo, não há outro caminho que não o da submissão da existência mesma destas qualidades (coisas abstratas) às condições (que imaginamos como sendo as mais tangíveis) desta visão.

Mas se, para a maioria, esses fatores materiais são eles mesmos suscetíveis a todas as variações e adaptações (nada de mais frágil, no fundo, do que as normas técnicas), há pelo menos um que encontramos sempre e constantemente, ao ponto de assemelhar-se à uma necessidade, uma condição indispensável à toda visão, e até mesmo, ademais, ao ponto de se passar por algo natural, por ordem normativa, ontológica: é a obscuridade da sala. Eu gostaria que houvesse um número de razões técnicas para justificar e impor a visão dos filmes em salas escuras: talvez, de fato, a luz do ecrã sofresse com a luz do dia. Mas não chego a crer que, até aqui, a escuridão tenha sido regra absoluta, que motivos ópticos tenham sido suficientes para fazer do escuro o hábitat natural do cinema. Com efeito, todos os outros espetáculos – teatro, circo, ópera, concertos – se acomodam, em graus diferentes, à meia-luz (quanto isto não se faz, ao exemplo do teatro antigo, em plena luz solar). O cinema sozinho, nascido, entretanto, nas relativas penumbras dos cafés, se desenvolveu e se constituiu rigorosamente às lacunas do dia, não sofrendo de outra luz que não aquela que ele mesmo projeta. Os sociólogos e psicólogos já o remarcaram suficientemente: a escuridão da sala tem outras funções e outros efeitos que ultrapassam a facilitação de uma melhor visão do filme… se ela é feita de imperativos técnicos, ela é o lugar de fenômenos de outro modo complexos, que colocam em jogo, através e para além do filme e sua visão, dentro do espectador e através dele, o homem e a sociedade – ou seja: de uma certa maneira, a função sociológica e psicológica do cinema.

Aqui, um parêntese: que fique bem entendido que o cinema, se é arte, é também linguagem, sistema de signos que, por si sós metáforas mais ou menos amplas, significam. E precisamente aquilo que é mais marcante nele – como na literatura, ligada às palavras, linguagem das linguagens; expressão, portanto, mas talvez, nele, mais absolutamente que nela, na medida em que a imagem retorna mais brutalmente ao mundo como espírito do que as palavras, instrumentos do espírito enquanto mundo – o notável é que a arte a ele se encontra tão ligada, confundida com a vida: as imagens ao mundo, a beleza à significação. Não é, portanto, vão, considerar o cinema sobretudo sob o ângulo de suas significações e funções (fica subentendido que ambos só se elaboram e se distinguem por e através da escritura de cada cineasta – nós o chamamos de “mise-en-scène”), ou seja, mais sob o ângulo de suas formas e questões formais que aqui se colocam que sob aquele de seus temas (os temas, ao menos, que as obras propõem).

A sala escura é, então, o teatro dos mitos, ao mesmo tempo suscitados e suscitantes daqueles que a tela carrega. Nós conhecemos suficientemente os fenômenos de fascinação, de transferência, de êxtase, as projeções dos espectadores que entram em transe junto com o filme. E o cinema que nós chamamos de cinema de entretenimento (até o dia de hoje, o mais óbvio do cinema, qualquer que seja seu valor estético) não faz mais que responder a essas necessidades, que as entreter. Fazendo assim, ele continua a entreter, como também torna mais indispensável ainda, se é possível, a escuridão da ambiência. Há, portanto, entre o cinema de entretenimento e a sala escura um contrato firme e antigo, permanentemente reconduzido, um sendo para o outro, e reciprocamente, o meio de sobrevivência. E teríamos vergonha de decidir qual dos dois mais contribuiu para manutenção das convenções sobre as quais o outro se funda. Porque, nisto que chamamos de produção corrente, se é verdade que ali encontramos constantes, estereótipos, histórias, morais e personagens convencionais, se essas convenções passam mesmo aos olhos de um sem-número de espectadores como leis imutáveis, a escuridão da sala, nisto, guarda quase que inteiramente a pesada culpa. Há um condicionamento da sombra, que joga às claras, como um reflexo, dentro do espectador que entra numa sala, pendente, vê o desejo, formas por ele já reconhecidas, esquemas experimentados, de todo uma parafernália perfeitamente homologada.

Em primeiro lugar, e talvez o mais importante, o sentimento de sair do mundo dos vivos; de adentrar, numa escuridão próxima àquela do confessionário ou dos aposentos de dormir, as bordas costeiras dos sonhos. A sombra das salas incita o espectador a não considerar o cinema senão como uma maquinaria engenhosa de sonhos, mas estes, aqui, infelizmente, quase sempre os mais vulgares e fúteis; quer dizer, como se por uma negação do vivo, por uma colocação do mundo entre parênteses (mesmo se se trata de um mundo também ele grosseiro e fútil). Quaisquer que sejam para o espectador as vantagens medicinais (catarse, encarnação de frustrações, etc.) que resultem dessa utilização “negante” ou “sublimante” do cinema, ele conduz invariavelmente a um equilíbrio, a uma estabilização das necessidades e ofertas, das perguntas e respostas – as mesmas curas (posto que suas evidências estão dadas) trazidas às mesmas mazelas renascendo das mesmas e tantas feridas falsas – equilíbrio, ou talvez melhor dizendo: anulação dos efeitos às causas, estagnação total. Tal é o esquema de funcionamento da indústria cinematográfica, quando ela marcha em pleno rendimento. E se o cinema não fosse nada além dessa indústria de leis simples – dito de outro modo: se ele não tinha grandes cineastas, artistas para driblar o jogo e falsear as cartas, para desestabilizar tudo aquilo que a osmose produtor-consumidor tem de tranqüilizante para um e para o outro (tratando as convenções à maneira avessa, desapontando as ilusões primárias pela intervenção de ilusões outras), não há dúvidas de que ele se desenrolaria em circuito fechado, que repetiria ad infinitum as mesmas fórmulas (porque elas produzem os mesmos efeitos), recomeçando invariavelmente as mesmas séries, como um velho vira-lata cujos truques valeram-lhe a fama.

Em todo caso, o cinema hollywoodiano (os filmes B como “ambiciosos”, mas sempre excetuando-se os filmes de Hawks, Hitchcock, Lang, Ford, Fuller, DeMille, Sternberg, Preminger, Ray, Mankiewicz, etc., brevemente colocando os autores lado a lado porque também foram os seus esforços os de margear Hollywood, traí-la), o cinema hollywoodiano tem apresentado durante mais de 30 anos o protótipo do circuito fechado (onde a oferta e a demanda parecem perfeitas uma para a outra): uma era de ouro não do cinema, mas da indústria, era de ouro real, posto que suas necessidades são imediatamente satisfeitas, tal como um parêntese no Tempo, que se exclui da História, que permanece uma zona de sombra na história do cinema ela mesma, o volante de sua evolução. E compreendemos melhor, agora, que os nostálgicos do cinema americano assim o são, no fundo, não pela era de ouro de uma arte – todo período da arte sendo uma tragédia e se inscrevendo, desta maneira, não somente na história das artes, mas na dos homens –, mas protetores da nostalgia, como um paraíso perdido, desse estado que é de qualquer maneira pré-natal, dessas relações de ordem fetal entre o espectador-filho e a indústria-mãe: isto que os partidários absolutos do cinema americano amam no cinema não é, nem jamais foi, as belezas, as audácias ou novas formas que dispensassem os grandes franco-atiradores de Hollywood; foi, ao contrário, e ainda o é, tristemente, uma satisfação automática e despreocupada de seus desejos (se podemos chamar esses impulsos de desejos).

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Que não reiteremos à exaustão a grandeza do cinema americano, se isso que podemos chamar de ‘sua grandeza’ é a perpetuação de um estado e de rapports larvais, em que todo o perigo é banido, todo acidente impossível, breve; se é esta colocação do cinema e do espectador enquanto excluídos do mundo e excêntricos ao tempo. Não há grandeza alguma nesse mecanismo perfeito. Eu vejo a força do cinema americano mais concentrada em cineastas que são irredutíveis e que, longe de se satisfazerem sem complexos desta maravilhosa bolsa sem flutuações, tentaram (penso no Lang de Fúria (1936) e Suplício de Uma Alma (1956); no Ford de As Vinhas da Ira (1940), A Longa Viagem de Volta (1940) e Legião Invencível (1949)) deter as engrenagens por dentro. E este é um fato tão considerável que pode ser bem o sucesso de seus filmes, o espectador ali sempre tratado como adulto e como homem, e não uma besta que não cessa de delirar acordada.

O único progresso que conheceu o cinema em circuito fechado que se exclui ele mesmo do movimento das formas cinematográficas é um progresso ainda de tipo industrial, feito de excessos visando o aumento da demanda e do consumo por exagero publicitário das necessidades e pela inflação das seduções (é o caso das superproduções, esforço último de ampliar um mercado supersaturado e bocejando de êxtase). Quanto às inovações estéticas, ousadias e invenções estilísticas, elas são bem entendidamente o feito desses rebeldes do sistema que foram em maiores e menores graus de consciência os autores; e eles se fizeram não para as salas escuras, mas, cada vez, precisamente, contra elas.

Tanto a existência quanto a novidade ampla disso que podemos chamar de “mal-entendido” não têm, elas, nada de surpreendente. Entrando no cinema, o espectador é de imediato prisioneiro da sala escura: condicionado a ela para receber certas impressões, para esperar certas séries bem tipificadas de emoções, ele deve galgar num verdadeiro esforço de resistência, empreender a decolagem, apreciar o menor filme de autor, filme que, por definição, não se conforma às normas fixadas pela tradição da sala escura. Uma vez no escuro, é preciso que o espectador permaneça acordado para compreender qualquer coisa no filme que se recuse a considerá-lo como um vigilante adormecido. (O condicionamento, o hábito, exercem, aqui, um grande papel: o espectador médio, por menos que tenha freqüentado as salas escuras, só terá curiosamente retido, de suas experiências ao estado de semi-adormecido, isso que nelas foi pura repetição, uma identidade, um conformismo: sua cultura cinematográfica apaga o extraordinário e só retém os clichês, as convenções, que passam então aos seus olhos como tendências naturais do cinema, tudo aquilo que o contraria passando, a contragolpe, por monstruoso ou por falho; e nós sabemos também que as crianças “mergulham” com rapidez nas narrativas mais complexas e menos taxadas, não se assustam diante das mais febris e breves elipses, manifestam uma abertura de espírito que uma longa prática do cinema como “diversão” tem, por efeito, de nunca encerrar.

É por isto que, sem dúvidas, o cinema de autor se limita a ser tolerado, e ainda de muito mau humor, pelo espectador. É que há um hiato entre a condição do espectador na sala escura e a condição de receptividade ou de participação lúcida que o exige todo o filme que não é de “consumação”. Por quê? Ou o filme constituiu o prolongamento natural da sala obscura, anti-câmara dos sonhos, e então o espectador, estando excluído do mundo, nega os outros e se nega a si mesmo tanto quanto o outro; ele está sozinho, segue o fio confortável e doce de um sonho que o envolve como num casulo; o mundo que ele tem sob os olhos desfila suas figuras com a bonança de um sonho; há uma hipnose, uma simpatia que tanto a infração às formas prévias quanto aos temas prometidos estilhaçaria dolorosamente – ou isto, ou bem o filme se vê, apesar e além da sala escura, prolongamento e comentário do mundo de fora; então o espectador está perdido: por um lado, ele permanece sujeito ao condicionamento da sala e se torna carregado, por ela, em direção à satisfação de suas expectativas – que o filme não pode oferecer –; por outro, ele se vê confrontado pelo filme ele mesmo (indivíduo) e os outros, incansavelmente transportado das imagens para o mundo, processo de retenção da consciência que a sala escura, por sua vez, contraria.

Podemos, então, adiantar que há uma antinomia entre o cinema responsável (que de Griffith a Renoir e de Lang a Godard nós pensamos ser o cinema moderno) e o lugar de seu exercício. O mal-entendido nasce de que o cinema moderno (que é uma afronta do mundo enquanto arte: ver Godard) deve sempre passar pelo escuro das salas. É necessário ao cinema moderno salas às claras, que não absorvem ou aniquilam, como o faz a escuridão à clareza vinda da tela; que a façam irradiar ao contrário, que coloquem um a face do outro, bem como a igualdade do personagem e do espectador, saídos todos os dois das sombras.

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O que caracteriza o cinema moderno é precisamente o fato de que o herói do filme é o espectador; que o filme constitui, para o espectador, a aprendizagem de seu papel ingrato e central. Como compreender um cinema que nos coloca em cena se não podemos saber onde estamos e quem somos? O cinéma-vérité, a enquete filmada, o testemunho, a entrevista, tudo isto em que os grandes cineastas do passado foram precursores e que teve tantas influências, diretamente ou não, nos de hoje, é a mais afiada ilustração desta necessidade de clareza, desse ato de consciência, necessário hoje ao novo cinema tanto quanto ao novo espectador. O intenso uso, por parte da televisão, dos métodos do cinéma-vérité não é acidental: o pequeno quadro é o único (se) que abre com freqüência à “sala clara”; ademais, rever na televisão grandes mestres do cinema o confirma: se não somos maníacos pela sala obscura e se não nos higienizamos ao ponto de recriar mais ou menos suficientemente as condições de visão obscura na sala de cinema; se, portanto, nós revemos estes filmes numa semi-clareza propícia à atenção, creio que os assistiríamos de outras e melhores maneiras que em sala, sobre um plano de confiança e igualdade como o são as receitas que não sustentam mais a ilusão e as belezas que não carregam mais sentido.

Pensando bem, esta sala clara é também um sonho: mas não mais o sonho de um cinema que foge: o sonho de um cinema que participaria da vida e seria, enfim, verdadeiramente nossa reflexão sobre ela (é nesse sentido que nós podemos, hoje, “viver um filme”). Como disse meu precursor Mourlet falando de seu Brigitte e Brigitte (1966): “é um filme onde entramos para reencontrar a realidade, e do qual saímos para perder o retiro e adentrar na ficção da rua”. Ninguém duvida que por muito tempo, então, o cinema novo (e, como tal, entende-se: o cinema que nos importa) suscitará esse novo espectador que virá julgar o mundo e se conhecer a ele mesmo, posto que em sua verdade o ecrã manifestará todos os dois. Este novo espectador, retomando as palavras de Sternberg, não deixará de demandar para si “mais luz”.

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AS GRAÇAS E DESGRAÇAS DO OLHO CEGO

Por Felipe Leal

Me diverti imensamente – ao contrário dos rumores! –

(João César Monteiro, 2000)

 

(À exceção de algumas fotografias de Robert Walser, autor da peça em que a obra se baseia, na clínica onde fora misteriosamente internado, e alguns breves e estáticos planos de nuvens, a grande substância do movimento do Tempo,) um filme composto só de vozes, “quintopartido” em cinco personagens, da Branca de Neve à Rainha que lhe encomenda a morte, e uma tela inteiramente preta por quase oitenta minutos: amputaram o cinema, fizeram com que pecasse o pecado último, aquele que de tão inadmissível se resguarda no imaginário das possibilidades trágicas (que violência ao espectador (ou ao consumidor) que um filme se desprograme no meio de sua exibição), acontece aqui como opção feita às gargalhadas. Castraram-lhe a imagem, pois; ainda melhor, talvez o tenham assassinado de vez, posto que não há mais nada a ser olhado.

A autoria é a do anticristo dos cineastas – talvez do Cinema, acreditando-se que suas trapaças à linguagem se estendam a outros campos e infectem a última das artes, em retorno –, o grande travesso, O Louco do Tarô, aquele que conseguiu tornar o próprio filme, a princípio um projeto “tradicional” (entende-se: com imagens, encenação, fotografia), a celeuma que coroa o cinema português com um escândalo processual, cada etapa semelhante a um círculo do inferno da cadeia produtiva, no qual várias vozes e relâmpagos financeiros e estéticos participaram, e que foi resolvido após uma refeição: narra Monteiro que, durante a manhã, havia lido diante dos produtores e equipe duas obras em voz alta, uma das quais “As Graças e Desgraças do Olho do Cu”, e assim decide rodar seu filme, depois do almoço: regido pelo ponto de vista do olho cego. Seria propício, então, pincelar os modos de ver? Re-tracejar as convulsões histórico-estético-políticas que constituíram os estatutos da nossa visão, o espetáculo em forma de quadro, a narrativa ali introjetada, a ilusão ficcional através da quarta parede invisível, etc., etc.?; Associar, assim como Roland Barthes entrelaçou A História do Olho, de Bataille, à história propriamente do olho, do objeto olho, durante a narrativa, e dizer do filme de Monteiro que ele é uma possível história ou encenação da não-visão? Pode-se decerto partir por estes dois percursos, mas por que não se ater diretamente ao óbvio paradoxo que nem sequer se encarapuça no enunciado que propõe uma estética para a obra?

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Como pode um ponto de vista advir, espatifar-se do prisma, de um olho que é, por propriedade, cego, matéria inútil numa cultura que é, sim, não se pode negá-lo, afinal de contas, excessivamente ocular? E não só cego, absolutamente desabituado do contato, porque – se ele foi mencionado como matriz de referência, é preciso mencioná-lo – o olho do cu, isolado, não só não vê, como também pouca energia troca com o ambiente. Esmagado em superfícies ou defronte o mundo, nos seus graus variados de contato e uso, dificilmente a luz lhe chega, porque o campo de visão deste olho é quase sempre interditado pela malha do vestuário que o separa do contato ou da iluminação. Pois eis que, descortinados, então, agora o olho do cu e o da câmera endiabrada de Monteiro, mas sobretudo este último, dá um passo além de Guy Debord ou Marguerite Duras, cujos trabalhos radicais, experiências quase acinemáticas, confrontavam ora o espetáculo, ora o protagonismo das imagens. Portanto, se o paradoxo existe, e o cineasta bem o sabe, porque o cinema é um paradoxo de outra qualidade (o da “falsa” reconstituição do movimento), tanto suas duas proposições não são necessariamente inverdades, se isoladas, quanto a possibilidade de que existam em conjunto não é tampouco inválida: equânime a uma possibilidade de olhar através de outros sentidos ou, agora isoladamente, dotado de uma visão que não se atrele necessariamente ao visível, a potência do olho cego se biparte a partir de uma única raiz de uma faculdade humana perdida que é tão sutil e “hoje” (praga do contemporâneo enquanto ideia tola) atrofiada que é preciso rir dela, ao mesmo tempo que se a explicita.

Antes, as duas raízes: primeiro, parecia ser movimento consensual entre a virada ontológica da filosofia, no que diz respeito aos conceitos sobre o corpo, chefiada pela desabitualização do “corpo sem órgãos”, proposta por Gilles Deleuze (o corpo que podia se remodelar a partir de práticas de si, a exemplo do yoga), e as práticas que propunham imiscuir cotidiano, subjetividade, as vidas e a arte, na verdade performances já inflamadas desde os anos 60 – um movimento consensual que possibilitou a unção de práxis e intelecto nas exibições que essas mesmas vidas atestavam – ironicamente, também através de aparelhagens, ora desejosos ou não, mas sempre conscientes disto – de que é, de fato, possível que minha orelha possa, ao ouvir o caçador questionar Branca de Neve se ela acredita que ele queria matá-la, esta entrando numa confusão lexical prolongada e que, no fim, não responde nada; que o ouvido possa, mentalmente, de alguma maneira, visualizar toda a cena, seus passos (que Monteiro nos permite ouvir), os movimentos da testa ou da boca da princesa, e até mesmo as reações exaustas ou deslumbradas (ponto de vista meu) do caçador. Aquilo que parecia sugestão mágica da antropologia vem se confirmar não mais a partir do relato, mas na prática das vidas que se tentou transpor para uma radicalização estética: retirar da imagem o seu visível para que dela se possa extrair apenas o movimento e os sons, despertando por conseguinte um ouvido-tato-olho.

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É preciso ir um passo além dos sonhos que não fazem sentido: há sonhos (e, portanto, há cinemas) sem imagens – e que fazem sentido, que significam, trazem um lampejo de conexão mental com o sonâmbulo e permitem-no entender. Só que aqui já estamos no pós-já-não-há-mais-sonâmbulos-no-cinema: se é possível pensar a imagem sem olho e se é desejável buscar suportes que o preencham em conjunto com o arriscado enunciado, não será nem mesmo salutar buscá-los nos teóricos do cinema novo ou nos supracitados, nem tampouco se debruçar sobre a possibilidade dos pré-cinemas, o sonho lindo e vigente de que os habitantes de cavernas do que hoje viemos a chamar de território francês tentavam impor movimentação aos desenhos de animais que pintavam nas paredes, através do jogo com labaredas em tochas de luz: não há rastros para explicar aquilo que a linguagem não compreende, ou ao menos na a situação impotente pela qual ela é abordada e na qual se encontra. “Nem tudo ainda foi nomeado”: o eco que fez brotar o Camp, de Sontag, ouve-se em silêncios a todo instante.

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Foi (e é) preciso que o Cinema morresse para nascer novamente (porque já havia morrido com o neorrealismo e com a câmera em movimento e com “o vídeo e com etc., etc.”…, já o sabemos). Ou, antes, que alguém, em prática, relocasse suas bordas de ontologia para um pouco mais distante da posição “final”, ainda impensável, nesse tracejar pontilhado, incoerente, retalhado que é o Qu’est-ce que c’est le Cinéma?, de Bazin, o primeiro eco irrespondível. A faculdade humana é o intelecto; as relações da câmera com nosso olho, invariavelmente intelectuais (o suprassumo do cinema permanece Hitchcock). É porque não posso atingir a natureza integralmente que crio. O submarino existe porque não se pode respirar debaixo d’água, o avião porque não posso voar, o celular porque “é urgente que fale com você agora”; é uma linha de pensamento, e de acordo com ela: não mais “o cinema se constituiu para dar movimento as imagens” (visíveis); agora é possível contentar-se com o: para possibilitar que o movimento do mundo se recrie, e como este é, por essência, invisual: “Com uma pequena perda [sobre o filme ser apenas formado por vozes], é um óptimo filme para invisuais”, afirmou alguém que pode ser Paulo Branco, João César Monteiro ou um outro qualquer, mas não menos importante.

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Encontro-Gênero

Por Felipe Leal

“Quanto mais ele gosta de você, mais malvado será”

Como terminologia inserida no campo orbitacional do Cinema, a palavra “gênero” encontra duplo entroncamento: ora seu sentido mais veloz à mente, o conjunto de certo modo protocolar de traços estético-narrativos que caracterizam um tipo de filme, uma etiqueta classificatória que admitimos como rasa, ainda que já mais que “necessária”; ora o chamativo para a divisão entre os gêneros masculino e feminino, embora esta conotação só provoque uma segunda e fácil associação devido aos atravessamentos políticos a que o cinema se acostumou desde que virou “novo” em diversos países do globo. Porque associar-se ao político parece-nos hoje ter sido feito num estalar de dedos, pensar em gênero como divisória significativa dos estudos das forças masculinas e femininas como representações dentro da grande tela foi uma possibilidade argumentativa também sempre à vista.

Curioso, pois, que ambas as significações sejam impensáveis se dissociadas (quer juntas ou separadamente) de qualquer olhar que se empreste a Howard Hawks. Da ficção científica ao horror, da aventura ao faroeste, do policial ao melodrama, da comédia ao romance, e nas dosagens mais improváveis, mas também, e provavelmente sempre, um choque de motricidade dramática canalizado pelo encontro entre Homem e Mulher – maiúsculos. Não há escândalo jornalístico, torneio nacional, rinoceronte ou missão de guerra que não passe pelo embaralhamento inevitável entre as duas forças – não necessariamente expressas num homem e uma mulher personificados, mas sempre como uma resultante desastrosa. Aliás: diz-se logo desse encontro que ele também será invariavelmente marcado por duas outras questões estruturais: a (aparente) inconciliação entre esses dois quase fenômenos – e a subseqüente trapalhada seriada –, e a subversão espontânea dos papéis tidos como “clássicos” para os gêneros.

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Explico toda a deriva teórica: se houvesse uma cena na extensa filmografia de Hawks que pudesse conter a personificação de todo seu jocoso embate (porque o entrave, aqui, sempre acabará no mais inocente dos risos) ela estaria em Hatari! (1962), num diálogo tão absurdo quanto é o seu entendimento para a personagem que o provoca. Anna (Elsa Martinelli) pergunta a Pockets (Red Burton) por que o personagem carrancudo de John Wayne não gosta de mulheres, só para receber como resposta: “porque ele acha que elas são um problema”. Anna concorda, uma vez que esse estágio de aceitação nunca foi problemático às mulheres de Hawks: diferente dos homens, o caráter explosivo do encontro já lhes é introjetado: elas só não conseguem evitá-lo, e por conseqüência fica inferido que nunca haverá escapatória ao Homem. As inevitabilidades começam a surgir. Anna pede-o, então, que lhe fale sobre Ele – todo protagonismo masculino de Hawks será sempre uma personificação de seu ideário, ao passo que os outros homens que povoam a trama serão exemplos, decerto, mas exemplos menores. Pockets pressuriza a garota um pouco mais, é preciso fazê-la entender: diz a ela que, se ele lhe trata mal, se não é gentil com ela, é bem possível que ele esteja comendo na sua mão. “Pockets, podemos falar um mesmo idioma? Se é bom, é bom, se é ruim, é ruim”.

E antes que ele lhe diga a máxima que tornará a Questão um cristal puro de transparência e absurdo ao mesmo tempo, Hawks torce a convenção e traz outro fato incontestável à mesa: é a mulher que, paradoxalmente, na trapalhada que adiciona, também simplifica tudo. Não lhe custa ser clara e objetiva, agir de acordo com o sentimento que brota, sua práxis corre paralela ao que sente; não: dessa vez, é Ele que a confunde, que não consegue agir com congruência. É que, ainda nas palavras do infantil Pockets, “quanto mais ele gosta de você, mais malvado será”. E daí em diante, uma vez que o homem aceita, de seu lado também, o sentimento, ou seja, quando os indícios se dão a ver e ele começa a tratar sua paixão com a crueldade hilária que atesta a provocação de uma repulsa tanto interior quanto externalizada, fica instaurado, às maneiras concebidas pelo autor, o paradoxo inescapável que é a fricção entre ambos homem e mulher: ele não consegue aceitar o terreno mnemônico do sentimento, e a falta de tato fará com que aja como uma criança: emburrado diante do objeto que lhe provoca o empecilho, tampouco consegue sair de sua órbita; olha-lhe de esgueira, não dá o braço a torcer, se necessário (ou seja: quase sempre) será áspero, pragueja contra a vida por ter lhe enviado aquilo, e no entanto está lá, diante Dela, sempre.

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E fala-se do sentimento para o homem como um espaço atrelado à memória porque entre eles, os sexos, ainda haverá uma outra diferenciação primordial: ainda que não explícita, haverá sempre uma outra mulher como evento traumático, aquela mesma que lhe servirá como prova cabal de que não pode haver acordo entre os sexos, e a partir da qual ele tomará a atitude resoluta de um touro de não mais se envolver. Novamente, bem como funcionam os sinais para um infante, o homem tomará para si suas resoluções que não conseguem se mascarar: é precisamente ao se interessar por uma mulher que ele demonstrará menos agradabilidade e doçura. E mesmo que não me pareça haver protocolos para o passado das figuras femininas, posso arriscar que, ainda que a explosividade caótica do encontro sugira que aquele pode muito ser o primeiro de suas vidas, divido-me: ou parece que há certo costume inocente em tratar com aquele tipo de força bruta, ou todo homem, por mais que aparente carregar o frescor da paixão impossível e nova, será a Ela uma experiência diante qual nunca poderá haver previsibilidade ou controle. Interessa, enfim, o seguinte: da força do atrito, nascerá uma inversão de papéis já em virtualidade, e que será causa incontornável da confusão, parte porque um dos lados não consegue assumir honestamente o que lhe surge, parte porque a outra agirá exatamente como Ele deveria agir. E os exemplos infestam as imagens de Hawks.

Em A Noiva Era Ele (1949) Ann Sheridan fará Cary Grant se travestir de mulher, peruca improvisada com o rabo de um cavalo vivo, obviamente depois de um sem-número de provações quase mortais, para concretizar seu casamento, encontrando um furo no código de união entre agentes de países diferentes e deixando curiosamente dúbia a certeza sobre os gêneros, ainda que toda a burocracia dali em diante o coloque em mais intempéries; Katharine Hepburn e Cary Grant, muito possivelmente por empurrão ininterrupto dela, perseguirão um leopardo chamado ‘Baby’, floresta adentro no interior americano, nomenclatura funcionando como prenúncio da união e símbolo de qualidade da mesma: mais uma série de encrencas. No mesmo Levada da Breca (1938), segunda comédia mais afiada do realizador em quesitos de timing, ainda outras situações em ritmo screwball envolverão confusões de cárcere e furto não-planejado, tudo provavelmente impulsionado por um osso encomendado e que embalou a narrativa em seus círculos de inconciliação.

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Numa das últimas pérolas de Hawks, O Esporte Favorito dos Homens (1964), uma prova de que através das décadas o autor manteve-se, sim, como um desbravador dos gêneros, mas que a comédia é seu campo de expertise, Paula Prentiss fará – e aqui enfatizo a incapacidade do Homem de escapar das paradoxalmente ardilosas e inocentes mãos Delas – Rock Hudson, que nunca pescou na vida, inscrever-se num torneio de pesca, quase ser atacado por um urso, quase se afogar, imprensado numa bóia salva-vidas maior que seu corpo, acidentalmente precisar consertar o vestido curto e rasgado de uma loura fatal, só para acabar em meio à chuva, num colchão improvisado, boiando num lago de pesca com a mesma figura infernal e apaixonada que o colocou ali.

E esta é bem a sacada de Hawks: sem em nenhum momento trazer qualquer juízo de valor negativo sobre as figuras femininas, sobre elas recairá, contudo, a absoluta certeza de que, uma vez atrapalhadas, serão a ignição de sucessivos obstáculos à vida masculina, e no entanto nem este lado conseguirá resistir às investidas, nem ao outro será possível se conter: uma vez apaixonadas, e sempre de seu jeito atrapalhado, elas, buscando compreensão sobre a sucedânea de mal-entendidos, atiçarão, neles, a dualidade “repulsa por auto-preservação”/”atração por impossibilidade de existir sem Elas”. Uma última observação servirá de panacéia final para a estrutura bola-de-neve: atravessando o código do happy ending, essa espécie de décimo segundo mandamento da ficção até as proximidades da época em que Hawks não mais faria filmes, se à toda conclusão de sua obra romântico-cômica o final com conjunção dos dois enamorados funcionou exemplarmente, ora com uma trapalhada final que vencerá o homem por cansaço, ora por uma objetiva e direta percepção de que não há mais como conceber uma vida sem aquela mulher, apesar de tudo aquilo, quero defender, ainda, que ali não há exatamente um final, pelo menos não enquanto término absoluto. Porque ao mesmo tempo em que a luz se apaga e seu gesto é o de um encerramento, este o é apenas por convenção. Ainda que por um segundo, arrisco que todos os olhos que emprestamos para aceitar a ficção estimularam o nervo imaginativo a um verdadeiramente último ato: pensar que, a partir dali, a história daqueles que viemos acompanhando continua, e que no caso daquelas concebidas por Hawks aquele abraço ou beijo final que aparenta solucionar todo o atrito é na verdade um entre-atos, um intermezzo falsificador: o encontro entre o masculino e o feminino é insolúvel e inevitável, fonte ininterrupta de um conflito sem o qual, entretanto, é impossível estar no mundo.

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O ENCONTRO DO CINEMA COM SEU ONIRISMO

PANDORA, OU A CHAVE DOS SONHOS

Texto traduzido da sexta edição (out-nov) dos Cahiers du Cinéma, 1951.

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Nós não podemos conter o sorriso, ainda que a voluptuosa mulher à esquerda de James Mason diga bem acima, no ecrã, tudo aquilo que já pensamos aqui embaixo: a saber, que tudo isso é de fato um pouco intenso: este piloto que precipita seu carro em direção ao mediterrâneo para provar seu amor a uma mulher, como outros o fariam comprando um buquê de rosas. Um pouco intensa, também, esta mulher que, súbito, de um minuto a outro, se lança ao mar, e logo depois, ainda completamente despida, à descoberta de um navio fantasma e sem tripulação, onde, sozinho, um jovem soturno dedica seu tempo a pintar quadros à maneira de Chirico[1]. E terá você alguma vez visto noites semelhantes, em que a escuridão passeia por todas as cores do arco-íris, com raios luminosos da lua que se arranjam, todos eles, somente para iluminar a figura radiosa de Ava Gardner?

Nós sorrimos e, depois, de assalto, experienciamos um belisco no coração: ele é tomado de vergonha repentina, e desejamos que a pessoa ao lado silencie. Que se cale de uma vez por todas: por que, se nem todos os pilotos sacrificariam seus carros em nome do amor, por que Ava Gardner resistirá ainda um pouco mais ao canto das sereias masculinas? Por que, agora, este matador que carrega a morte no rosto não penetrará na arena deserta, entregue à noite, para oferecer o sacrifício de um touro a uma espectadora única?

Se fizéssemos uma crítica séria de Pandora, seria conveniente lamentar que seu diretor Albert Lewin acreditou ser necessário se vestir da responsabilidade de garantia sobre a veracidade das lendas, na ocorrência de identificar categoricamente na figura do jovem pintor da embarcação fantasma um capitão de navio que havia sido condenado, há não menos que três séculos, a não morrer por ter assassinado sua mulher – e que vagaria eternamente pelos oceanos caso não encontrasse, diante de qualquer ancoramento, uma outra mulher que aceitasse morrer por ele. Albert Lewin nos faz assistir em comprimento, largura e cores o processo do capitão, crente, sem a menor dúvida, de que, uma vez que as coisas são inscritas na película, não há como duvidar de que sejam verdadeiras. Como se, caso contrário, as lendas não tomassem toda sua força de persuasão no equívoco e no possível. E como preferimos que se deixe entender que o pintor pode muito bem ser o famoso holandês voador, não há nada que nos impeça de pensar, além disso, que ele também pode ser – por que não? – um misantropo ocioso.

Mas Pandora não é um filme que se empresta ao desejo de uma crítica austera. Ele vale menos e mais que isto. Ele faz sorrir, e ao mesmo tempo sonhar com um cinema que fosse desembaraçado de seus gângsteres e policiais, mães-solteiras e irmãs caçulas de famílias pobres, com um cinema cujos heróis fossem gloriosos como a morte e as heroínas lindas como a noite.

Cinema involuntário, como dizemos da “poesia involuntária[2]”. As agruras de Pandora são tão comoventes quanto suas qualidades, e em seu próprio excesso, suas falhas de gosto a ligam à grande tradição barroca. É tão frívola quanto à capa de uma revista, mas quando viramos a página de súbito somos imersos em pensamentos sobre as noites de Julien Cracq, todas fartas em perambulações e encontros secretos, no meio de dunas prateadas pela luz da lua. Sim, por que não existiriam elas, estas noites violetas e minerais, violentas e petrificadas, que sempre findam à beira-mar, sobre a areia ensopada pela luz da alvorada recém-iluminada, embaladas pelos últimos ruídos do jazz, debaixo de uma antiga estátua mutilada, ao som dos gritos felizes de uma jovem embriagada cujo vestido de baile se vira repentinamente, porque ela acaba de desejar bom dia ao mar que passa sobre suas mãos?

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Jean-Pierre Vivet

[1] Giorgio di Chirico, pintor italiano precursor do surrealismo.

[2] Terminologia usada pelo poeta francês Paul Éluard para teorizar uma poesia que surgisse do “acaso”, ao contrário de uma escrita que seguisse os desejos voluntários de seu autor.

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Um salto para o homem: Mission to Mars e a jornada científica do herói

Por Felipe Leal

É comum ao meio crítico e cinefílico apontar a Odisséia no Espaço (2001: A Space Odyssey, 1968) de Kubrick como a gênese estético-operacional da ficção científica para o cinema, relegando à obra seminal de Meliès um lugar de reserva, um conjunto localizável no pré-linguagem, lugar onde as funções narrativas mais convencionais ainda não estavam cristalizadas e o artifício teatral podia pulular livre. De certa forma, então, narrativa das origens do homem e ao mesmo tempo originária, ou ao menos realizadora primeira, dos códigos visuais do gênero, 2001 é a matéria ”original” dos riscos e sobre-escrituras que gerariam o palimpsesto dentro do qual se inscreve Missão: Marte (Mission to Mars, 2000) . Mas é preciso deixar De Palma para depois. Aprofundemo-nos na ficção científica para chegar na sua apropriação. O que ela nos diz? Seu primeiro termo parece significar, a princípio, duas coisas: uma dupla consciência do caráter ficcional da obra (já sabemos estar diante de uma mentira, mas parece ser preciso reforçá-la em nomenclatura, como que para sobrecarregar, impregnar o trabalho de artifícios), e um abraço da ciência enquanto matéria-prima a servir de propulsão e engendrar a trama sob os efeitos (especiais, sim, mas também consequências) de algum cientificismo – e sabemos que este é quase sempre a tecnologia – que a faça respirar, ganhar vida.

Mas este primeiro significado parece concentrar ainda uma outra inferência: a reiteração pelo nome e o suposto artificialismo extra que propomos aqui têm a imagem perfeita numa breve cena de Kubrick: de sua cabine pessoal, o astronauta-chefe liga para a filha na Terra. Não há nenhum arroubo estilístico para o plano, composto numa distância mediana entre o televisor e o pai sentado; mas da janela vemos a lua em proporções anormais, vizinha à nave como se aquela fosse uma visita rotineira e disposta através do vidro do quadro de maneira nunca vista antes em imagens de qualquer tipo. 32 anos antes de De Palma e 48 antes de nosso presente, o que o plano dá a ver é que a aceitação daquela lua gigantesca devia ser plena no instante em que surge. A possibilidade de que se podia conceber uma nave de decoração ”moderna” daquela forma, própria para a virada do segundo milênio, e de que numa breve cena uma superlua, magnífica em sua presença, se entregasse ao prazer visual do fascínio megalômano da ficção – esta possibilidade só é possível em si mesma se pensada de mãos dadas com a naturalidade que a origina e a segue. E de fato, dentre todos os gêneros que o cinema consolidou para si, aquele que mais demanda organicidade, que o que se vê faça parte de um sonho que agora eu compartilho como pulsão liberta, é a ficção científica.

Ora, se há uma aproximação na verdade bastante concebível entre o monolito negro de 2001 e o próprio cinema, é porque de certa forma ambos funcionam como expansores – o primeiro responde ao toque do macaco ao entregar-lhe a percepção do osso, possível primeiro gesto de consciência que anuncia a alvorada do homem; o segundo é fruto deste, e de uma forma indireta, ”também do monolito”, e serve-lhe na medida em que possibilita o impossível. Cria um mundo com certa aderência ao real, mas que não corresponde às suas vontades ao mesmo tempo. Retira-nos algo para entregar uma outra coisa exta-ordinária. Por que se diz, então, que Missão: Marte é uma obra de mau gosto mastigada do filme de Kubrick? E mesmo que nunca o tivessem dito, por que associar, aqui, os dois filmes? O mais velho parece dizer coisas sobre a origem do homem e até onde ele pôde chegar, mas só para que o acidente daquilo que ele criou o faça retornar a sua própria gênese; o mais novo invariavelmente chega, também, até as origens da humanidade, da vida na Terra, mas toma, ou como há de se defender aqui, aparenta tomar o caminho grosseiro dos clichês do gênero, é acusado de abuso, vulgaridade. A ideia não é defender De Palma e apontá-lo como injustiçado, buscando ferramentas para defender um conjunto de na verdades. Tampouco revisitar a obra e surrupiar dela aquilo que ainda não tinha sido visto, para que o novo olhar se renove e dê valor ao seu conjunto. A súplica é para que se enxergue Missão: Marte pelo que De Palma, como autor, é.

E não se pode discutir a obra sem seu início, espécie de prólogo e praticamente única cena concebida para a Terra. A leveza dos planos situacionais e de apresentação, os movimentos serpenteantes de De Palma, câmera sempre arma gerenciadora de afetos, em que cada dobradura traz um pequeno núcleo distinto daqueles que sabemos serem os astronautas da missão – todo aspecto introdutório, a princípio, guarda mais do que um simples começo. O pai que acalenta o filho diante da separação, o piloto que convive com o espectro da esposa morta, o casal enamorado e excitado com as aventuras da grande viagem; todos são exatamente o que parecem, mas são também o dispositivo dos excessos de sentimentalismo que irá explodir a partir de todo acidente da trama. E como parece ser regra da ficção científica que a tecnologia falhe, que o desconhecido, num primeiro contato, seja hostil, a catástrofe estará sempre à espreita. A questão é que, a bem da verdade, se há algo vulgar em Missão: Marte, esse elemento vexatório não é tanto a obviedade das flexões da trama, mas o tratamento afetado que se empresta às resultantes de tais eventos. Eleva-se o drama da mulher que está prestes a perder o marido, ambos flutuando entre a nave e marte num plano absurdo, diante de um entrave de separação e morte que dura demais, vai e volta, arrisca mais um salvamento, faz com que gritem e chorem; mais além, o extraterrestre que vem lhes dizer sobre a origem da Terra chora uma lágrima ”desnecessária”, antropomorfiza-se em um rosto triste; o reencontro com o astronauta perdido em Marte tem seu grau de emocionalismo distorcido pelas pressas em explicar tudo e dar conta das baixas dos tripulantes da primeira missão.

Mas é preciso alcançar a moldura, as formas, aquilo que dá espaço e movimento a toda a narrativa que na verdade poderia ser dividida em três. Há, primeiro, uma espécie de apelo tipicamente americano ao avanço do colonizador, ao encontro de possível vida no planeta vermelho e que vai se travestindo com o sentimentalismo nobre do ”encontro de uma conexão com outras formas de vida”, não por acaso estabelecido num vídeo caseiro e alegre e dito pela esposa morta. E há também a clara operação de resgate, que vai se desdobrando através das catástrofes e culminando, enfim, numa terceira ramificação da narrativa, que é o encontro com a ameaça do novo mundo. O que sustentaria essa tríade senão um autor, este que alarga o deslumbre do Cinema provocando as suas formas? Como negar a aproximação entre o balé de sinfonias de Kubrick e o abuso magnânimo da gravidade que De Palma emula? Aliás, é bem aí que pode residir uma das marcas de sua autoria: seu cinema é a eclosão de um espetáculo, a junção de forças narrativo-estéticas para criar acontecimentos, durações e blocos de excitação de que o olho sensível (câmera-espectador) partilha como voyeur presente.

E que prazer visual, aquele causado pela fresta intimista dos enamorados que trocam carícias flutuando na gravidade espacial, num vai-vém dançante de corpos, só para depois tentarem salvar um ao outro em meio à imensidão do universo que a câmera enquadra, recorta para constituir uma ideia da amplitude incalculável do infinito, literalmente dois organismos minúsculos no espaço sideral, defronte o vermelho destrutivo de Marte, este que é destino, vilão e ponto de gênese daqueles mesmos corpos. De Palma dá sua narrativa das origens do homem na medida em que só o cinema poderia mediá-la. O salão de puro branco em que os sobreviventes entram, seguido do escuro absoluto que vem a materializar o extraterrestre-mãe, encantado pelo pano de fundo dos planetas, como numa instalação que infiltrou o filme para torná-lo quase tátil: é a denúncia velada do cinema como puro maquinário, sortilégio farsante de uma arte que é fruto do homem e serve para ludibriá-lo. O limite daqueles astronautas foi Marte, e de Marte retornam para a imagem do embrião de si mesmos, como o bebê que encerra a Odisseia no Espaço. Início toca fim. Espectador é levado às beiras da excitação e da emotividade pela própria recriação do olhar total que é o cinema – o paradoxo do organismo científico que ele ainda não conseguiu superar. Criamos a tecnologia para ir até onde o corpo, organismo perfeito mas restrito, não chega, e ela nos devolve o sonho que é toda a possibilidade do impossível.

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Loft (Kiyoshi Kurosawa, 2005)

Por Felipe Leal

De uma forma ou de outra, pode-se dizer que todo o cinema japonês circunda questões que rebatem, como numa mesa de pingue-pongue, entre a sociedade e o indivíduo. Semelhante a uma projeção de dramas interiores, os problemas se ampliam e tomam forma, no ecrã, através da massa do todo, encontrando vazão pela menor quantidade de pressão, como se a bolha de sabão já estivesse ali, esperando para ser estourada, a despeito de sua quase invisibilidade. Curiosamente, no país, as expressões públicas de sentimentalidade são praticamente interditas, servindo ao cinema o papel de médium, de ente que fala por. Pois nesse duelo de forças há quem jogue há 40 anos, apropriando-se precisamente do sentimento mais forte para quem a expressão da individualidade foi tomada – o horror -, transmutando-o em gênero, inscrevendo este em outros, e ainda abrindo espaço para reflexões delicadas sobre o próprio cinema. Este homem é Kiyoshi Kurosawa.

O horror de Kurosawa priva-se de sustos e assombrações histéricas, como ditam as leis de seu país. Tudo se resolve, a princípio, em movimentos de câmera. No caso de Loft (Rofuto, 2005), uma escritora com problemas vai até o campo para retomar a fluência da história de seu novo romance e, de uma noite para outra, vê-se envolvida no misterioso caso de um arqueólogo e sua múmia milenar. Ou melhor, de um movimento para outro: a câmera sobe em um discreto tilt, revelando o homem e um corpo dentro de um saco, quase como um espectador plantado bem atrás dela, que permite-se enxergar também. Mas não há acaso algum em tal ato. A partir daí, como o é em toda a filmografia do diretor, o filme se revela como um crescendo de descobrimentos, micro-revelações – porque o horror, na verdade nunca antes tão interiorizado, custa a se exibir – sensíveis das coisas pelas lentes prosopopeicas da câmera.

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E aí os eventos se sucedem em camadas de contiguidade analógica. O tempo se arrasta e os detalhes vão surgindo como peças soltas; o que era um filme sobre múmias acaba vestindo a roupagem de um drama psicológico sobre assassinato e memória, para pouco depois tomar elementos de um romance cheio de complicações. Nada é avisado, tudo se exibe sorrateiramente, por meio de trocas energéticas em que os tons narrativos implodem e explodem como bem desejam. Ao assistir a filmagem em time-lapse de uma múmia em observação no final dos anos 20, a protagonista pergunta ao assistente de cinema o que é aquilo, ao que ele a responde ser uma técnica utilizada para observar as coisas no decorrer do tempo, já que a técnica reduz a quantidade de frames vistos por segundo. Ora, não é exatamente o que acontece diante de nós, com o cinema? Alterar o tempo para ver melhor, para enxergar as coisas de maneira mais apropriada, ou da maneira que se quer? Se a narrativa não sabe ela mesmo o que é, que a câmera nos faça, pelo ato de ver, participar da indiscernibilidade.

A questão aqui parece retornar à maneira de articular, então, o horror. É claro que o gênero só funciona para Kurosawa quando intimamente atrelado àquilo que não pôde ser posto para fora e permanece a ruminar, eventualmente tornando-se uma aparição. É essa manifestação do assombro que tem ignição no particular e parte para o social, maculando a normalidade da vida que não pode mais se sustentar como antes, já que ela naturalmente não se perturbaria sozinha. Mas o movimento não começou ali, ele já é uma devolução, regorgita da boca do todo, da sociedade adoecida, e penetra, lamacento como o vômito da escritora, na intimidade dos indivíduos. A natureza do horror precisa desse círculo para se entender como verdadeiramente assombrosa.

Se o gênero em questão comumente não deixa ver a destruição do indivíduo por aquilo que é monstruoso, Kurosawa entende que sequer é necessário esconder: o ato daquilo que corrói não precisa ser velado precisamente porque, a nível psicológico, ele ataca muito mais profundamente. Não é à toa que a psicologia, o espiritismo e a metafísica sejam temas recorrentes em sua filmografia. Assim como a personificação da múmia ameaçou estilhaçar a crença do arqueólogo, homem da ciência, o cinema não é menos cruel por possibilitar que nós vejamos o mundo de outras maneiras. As coisas mais horríveis da arte de Kurosawa se introduzem de maneira sutil, em sua simplicidade daquilo que é natural – por termos nós mesmos as invocado- e não o é – por fazer parte de um outro plano – ao mesmo tempo. Talvez assim também se preserve a natureza das imagens que vemos. Talvez por isso precisamos do horror.

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A Academia das Musas (José Luis Guerín, 2015)

Por Felipe Leal

Uma câmera que se torna invisível para filmar um experimento pedagógico. Embebe-se dos artifícios de uma experiência cuidadosamente acompanhada para, a partir da naturalidade, apagar os rastros da própria enunciação. E não seria curioso que, num filme-projeto em constante flerte com o documental, cuja força motriz é o embate passional e ideológico entre professor e alunas, o próprio espectador seja acometido de perturbadora sensação de que ele, também, é instruído e incitado? Por um momento, quase que suspenso do próprio assento da câmara escura e imiscuído no campo minado de opiniões daquele espaço que é quase uma eclésia grega. Sobre a literatura do período clássico, o sábio diz: ”reconhecíamos, no texto, a própria vida”. Eis que A Academia das Musas (2015), de José Luis Guerín, é a paráfrase dessa máxima – reconhecemos, neste cinema, a própria vida.

Quando conceituou, ele mesmo, o que viria a chamar de ”cinema de poesia”, Pasolini decerto reconheceu aquilo que precisava para o seu cinema. Uniu práxis e poiésis para tratar o fílmico como semiologia da realidade, cuja expressão de sentido brotaria somente através do próprio autor. Mas essa conceituação linguística do cinema funciona apenas como um germe. Ao passo em que Guerín e Pasolini concordariam numa classificação de ”morto-vivo” para um mundo sem poesia, aquele busca, nas origens da literatura, o ponto em que a condição humana é debitária da linguagem em si. O projeto: modificar o mundo através da poesia. O mundo, em posição de corpus: dependente da inspiração. Quem são as musas? Ou seria melhor demandar: como tornar-se tal entidade mitológica?; onde buscar por tal fonte de inspiração?

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Quase sempre em aparições através de vidros, Guerín não parece permitir que suas afrodites jamais possam ser vistas em totalidade de clareza. Como um gênio que ainda não pode ser assim chamado por circunstâncias de desconhecimento, sempre reféns e assombradas pelas palavras do erudito que as provoca, somente o que ele diz pode dar-lhes sentido. ”As palavras dele te tornam mais bonita que as minhas”, confessa o amante de uma das alunas. Pois a musa aqui é antes um ideal do que um ser. Nenhuma delas aparenta tornar-se musa por tarefa pessoal, por mais verborrágicas e reflexivas que se apresentem em suas encruzilhadas. Procuram a elevação em brechas derrapantes, já que apenas musas podem reconhecer a si mesmas.

Como projeto diegético e como texto, A Academia das Musas é o reconhecimento de que somos reféns da linguagem. Não basta estar presente. Recusar participação no mundo é dar dois passos para trás. Se a poesia – muitos já o atestaram – tem função, ela é a de iluminar este mundo. Quando não atravessado pela musa, o desejo de tocá-lo torna-se eros esvaziado, vontade solipsista. Toda a afetação e previsibilidade do amor como tópico parecem fazer sentido na contestação de Guerín.  Ainda nos anos sessenta, Susan Sontag diria, ao definir o Camp, que muitas das coisas que nos circundam ainda não foram nomeadas. Teria sido então por amor àqueles objetos, constituintes de uma sensibilidade, que ela os emprestou nome? Numa cadeia de fortuitas dependências, amor, desejo, inspiração, literatura e cinema se entrelaçam. E quem poderia promover tais tessituras, senão a musa?

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A Casa (Sharunas Bartas, 1997)

Por Felipe Leal

Na sua relação essencialmente dupla, todo filme é, assumidamente ou não, um convite, e como todo convite, o mínimo de participação é requerimento básico, como se, ao assumirmos o desenrolar daquele mundo, devêssemos, também, observá-lo, tomar a imagem como algo que faz sentido de existência. Longe, se preferir, do que nossas percepções do real alcançam, porém devendo a este um mínimo de colamento, de obediência às suas leis. Tudo é uma suposição. Mas para Sharunas Bartas, sobretudo em seu A Casa (1997), o ato de participação é diferente de e não pressupõe de forma alguma o entendimento. Primeiro porque suas imagens parecem pertencer ora ao domínio do onírico, ora impulsionadas por brechas de subjetividade, não estabelecendo, portanto, qualquer relação que implique em uma lógica narrativa aos moldes de nossas percepções mais instantâneas; segundo, o motif de Bartas é puro em material e em conteúdo – só há luz, rostos, movimentos e sentimentos.

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Abre-se o filme com a mansão, a luz e a voz de um homem que denuncia, amargurado e sereno, o distanciamento emocional que teve com a mãe (também a pátria?), em carta direcionada à mesma. Ironicamente, após um desfile de pombos burgueses banhados em luz quase sobrenatural e divina, o primeiro ato humano em cena é acordar. Acordar para onde, quando tudo o que se segue está mais próximo de uma emulsão de líquidos inconscientes? Mas não seria este o verdadeiro despertar? A questão é que as assombrações que percorrem os cômodos da casa nunca foram tão humanas, por mais ausentes que pareçam. Aliás, talvez a própria ausência constitua os fios que as colocam em movimento. Como o homem cuja jaqueta está revestida de jornais velhos e que seleciona páginas de livros a serem queimadas, é o horror da história lituana que queria ser esquecida.

Se, em entrevista, Sharunas assume que aquilo que mais busca é o simples, embora este agora requeira força moral, tempo e esforço, por que não assumir que a casa de seu filme seja antes o invólucro, a jornada em que somos lançados, a despeito de nossa vontade, para enfrentar as quimeras do simples – o tempo, a memória, a família, o desejo -, e que  os barulhos que a casa provoca à distância estão ali para lembrar que existe algo além daquilo que vemos e ouvimos (que nos permitimos ver e ouvir, na verdade), preso em quartos, atravessando corredores e empurrando caminho através das janelas de nossas subdesenvolvidas sensações e percepções.

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A trajetória de Bartas está mais próxima, ou tangencia tanto quanto, do cinema de Marguerite Duras do que aquele realizado por Tarkovsky ou Béla Tarr. É certo que a filosofia quase marasmática possa estar impregnada na imagem e que, diferente da experiência da francesa, exacerbadamente verbal, os passeios pela  casa tenham o silêncio como força motriz, mas há algo ali que remete constantemente ao peso do tempo, maçante e invencível, como testemunha a mulher que, ajoelhada e nua ao lado de uma porta, parece perseguida pela imagem da criança correndo, quem sabe o doce símbolo da sua infância feliz. O protagonista se deita em meio a jovens nuas, hespérides guardiãs de um jardim que só floresceu ao final e cujos frutos de ouro são a própria passagem desse tempo – ou pelo menos seriam, não houvesse tanto pessimismo n’A Casa. E os idosos que a povoam tem rostos marcados, olhos calejados porém vivos em excesso. Seriam mesmo assombrações? Duras escreveu: ”muito cedo na minha vida ficou tarde demais.” Sua herança, como a de Bartas, é esse espaço de vida cristalizado.

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História Escrita com Água (Yoshishige Yoshida, 1965)

Por Felipe Leal

Quase toda a implicância dos gestos políticos depende de um referencial muito delicado. Dizer que uma das erupções que o movimento das novas ondas no cinema provocou foi o desvelamento, ou antes um novo tratamento, de conteúdos tão particulares quanto do domínio geral, anteriormente impronunciáveis, pode ser superficial, mas aí, também, encontramos certos resíduos de uma verdade. É que o peso de tratar o sexo, a política e as instituições mais tradicionais da forma que os japoneses o fizeram me parece cair no infeliz paradoxo do conjunto de uma obra cuja significância foi tão monumental quanto (ainda) pouco compreendida – e sequer conhecida. Não é que ela possua maior pujança pelos atributos revolucionários que experimentou perante uma sociedade tradicional e complexa, mas é inegável a aliança entre a provocação pelo agenciamento conteudístico e o absurdo rigor estético a que toda uma geração de cineastas se entregou. Quer simpatizem com uma terminologia – Nuberu Bagu – imposta exteriormente ou não, o impacto da proximidade existiu, e seu emaranhado de conexões resultou numa das filmografias mais importantes para o cinema.

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Como cidadãos políticos, como seres imersos em uma cultura intricada ou como alvos, eles mesmos, das sexualidades sobre as quais discursam – tudo parece emprestar propriedade a cineastas como Teshighara, Oshima, Suzuki e Imamura, mas até que ponto a figura da mulher tem validade nesses cinemas, considerando que o olhar sobre elas parte de uma particularidade que, ainda que investigativa, é masculina? Escrita e filmada, a resposta de Yoshishige Yoshida foi: ”não é possível que as mulheres pensem que o sexo é um indicativo de sua força; que transar, para elas, é um veículo de expressar esse poder”. Quando se desvencilha, em 65, dos estúdios da Shochiku para conceber História Escrita com Água (Mizu de Kakatera Monogatari), Yoshida foi além do passo inicial transgressor e forneceu à figura mais simbólica e enigmática de uma cultura o espaço de se construir – utilizando-se ostensivamente, aliás, de Mariko Okada, a própria esposa.

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Quando no mesmo espaço de tempo temos um filho desafiando a mãe a confirmar-lhe um caso extraconjugal que data da época em que seu pai padecia de tuberculose, e ela, num elaborado jogo de cena, ajoelha-se contra a luz e deixa criar, atrás de si, uma fantasmática sombra, há aí toda a síntese imagética da obra. Obra esta ancorada inteiramente no gesto: antes do Bergman de Sonata de Outono, temos a mãe que presenteia o filho com o próprio cordão umbilical que os uniu; antes de Greenaway, a água como metáfora para o terreno fluído, profundo e simbólico do amor e da maternidade (no Japão, cenas de amor também são traduzidas como ”cenas molhadas”). Se para Camille Paglia a independência da mãe é a primeira e mais importante conquista para o homem, o filme de Yoshida é também a representação deste ensaio. Em fluxos sensíveis de consciência e tempo, reconstruímos a experiência de Shizuo a partir da infância. Na abundância de ângulos em que a mãe é capturada, por extensão, assim fragmentado também se dá o vínculo entre mãe e filho. Yoshida parece beber do cálice de Nicholas Ray e aferra-se ao signo como recurso.

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Imersos nas coreografias de uma gestualidade que encontra ânimo na sutileza e na sensualidade dos corpos – sempre modificados, claro, pela luz -, eros e thanatos se entrelaçam nos abraços e impossibilidades do toque. Shizuo parece não poder consumar o amor com a esposa até que algo seja sacrificado entre mãe e filho. Em um instante impenetrável e quase sagrado, semelhante ao acolhimento de Bibi Andersson por Liv Ullmann em Persona, ele propõe que os dois morram ingerindo comprimidos, ao que se deita na barriga da mãe e a imagem então assume movimentos pendulares. Como significar, então, essas oscilações? O espaço do cinema é um de referências e implementações inconscientes. Por mais escorregadia que possa se tornar a tarefa da atribuição, também seria quase criminoso não perceber os movimentos que constituem um legado fílmico, dentro de e a partir das costuras em que todo o campo cinetográfico vem tomando forma. Felizmente, haverá algo de maneirista e de inaugural na genialidade.

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The Connection (Shirley Clarke, 1962)

Por Felipe Leal

Duas coisas precisam ser registradas antes que se fale propriamente sobre The Connection. A primeira diz respeito a uma surpresa perante o quase completo desconhecimento da obra de Shirley Clarke, quando esta se localiza precisamente dentro de um contexto de intensa produtividade e efervescência cultural – os Estados Unidos dos anos 60; a segunda, uma espécie de apelo e constatação, é que acredito que toda essa obra, um amálgama de elementos sociais e teóricos sobre a arte, merece uma série de cuidadosos estudos, por seu caráter qualitativo, desafiador e de precioso documento histórico.

O filme (também) é aberto com duas constatações, através de um letreiro: as imagens que veremos foram abandonadas pelo diretor e entregues ao seu cameraman, que as uniu com com a maior honestidade possível. O conteúdo delas é o de uma falsa espera. A espera pela conexão que dá título ao filme: alguém nomeado Cowboy deve fornecer, a um apartamento cheio de junkies, um suplemento de heroína. Fala-se em ”falso” porque o filme em si é uma mentira, um documentário mais do que conscientemente inventado e que consegue unir um jogo de suspeitas sobre o próprio cinema, a criação de um microcosmo antropológico-laboratorial, um registro sobre o cenário da contracultura norte-americana e um dos mais inventivos e radicais dispositivos de diálogo com a figura do espectador (conosco), para dizer o mínimo.

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Embebida de prévios experimentos com a dança e a coreografia, é tão assombroso quanto lógico que Clarke tenha extraído tamanha espontaneidade e uma quase selvageria da orquestração precisa dos movimentos que os junkies, entre eles desocupados e músicos de jazz, realizam dentro do apartamento, cuja semelhança com o espaço cenográfico de um teatro não é ocasional: se foi exatamente nos arredores dos anos 60 que a arte teatral conseguiu estilhaçar a quarta parede que separava a diegese do público, The Connection foi o inteligente escape que o cinema encontrou para testar a si mesmo. Quando Jim Dunn, diretor diegético, pula pra frente da câmera e tenta coordenar a animosidade que tomava conta dos junkies, pedindo a eles que ”ajam naturalmente”, há aí uma ruptura, ou melhor, uma delicada transição: o que aproxima aqueles corpos da perfomance? O que esperar quando é exigido da atuação que ela seja a mais natural e mundana possível?

O problema (ou, no caso do filme, solução?) é que, uma vez que se iniciam suas interferências, para melhor dar forma a tais ”atuações”, o estímulo, o pecado original já foi desvelado. Como admitido no próprio filme, uma mão, quando atravessada pelas lentes da câmera, ”deixa de ser uma mão e se torna um assunto de seleção cinematográfica”. Num contexto em que os delírios do cinema verité proliferavam crenças na verdade absoluta das imagens, a própria vertente observacional do cinema direto americano estando infectada, encontramos aqui escape para um outro arroubo de genialidade. A questão é: ao mesmo tempo em que Clarke se monta de um dispositivo de mobilização de crença que só encontraria equidade precisos 10 anos depois, com o Punishment Park de Peter Watkins, ela se utiliza de um diretor diegético para promover uma reflexão sobre o próprio fazer fílmico. Jim Dunn não é somente Shirley Clarke, mas todo e qualquer diretor, na medida em que o cinema nunca conseguiu e nunca conseguirá escapar da modelação do enquadramento e daquilo que nele se desenrola, não importa o quão honestamente se tente fazê-lo.

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Pior: quando Jim é questionado sobre essa honestidade do filme que está tentando realizar, por não ser ele mesmo um junkie, descemos ainda mais um nível na espiral montada por Clarke. Qual a validade do regime de autoridade que se coloca sobre o diretor, quando quase sempre há um destacamento entre ele e a realidade que tenta articular? Por mais que este pareça ser um filme anti-cinema e que questione com violência as proposições mais básicas do documentário, em última instância, nós somos o alvo principal, na medida em que o cinema não existe sozinho. Para que a experiência seja completa, necessita-se de um pedido involuntário cuja única exigência é a crença do espectador, por mais que o olho fique comumente restrito ao limites do que é visivelmente estruturado.

Mas também não é por acaso que Eiseinstein fica creditado como uma das propostas estéticas de Jim Dunn. Naquilo que possui de raro registro – lendas do jazz como Freddie Redd e Jackie McLean tocam incessantemente durante o filme -, The Connection atravessa quase 55 anos para ecoar o que a Nouvelle Vague, talvez o movimento mais apaixonado do cinema, sustentou: uma câmera e uma ideia podem não ser as garantias para fazer nascer um bom filme, mas é a maneira de montar, de orquestrar a vida que torna o mundo o material mais inesgotável e potente que conhecemos; ou seja, para bem ou para mal, o mais poderoso instrumento de que o cinema dispõe, e, por extensão, nós, é o olhar.

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Hill of Freedom (Hong Sang-Soo, 2014)

Por Felipe Leal

Duas palavras parecem ”encantar” o cinema de Sang-Soo Hong, no sentido mais amplo de tornar vivo, emprestar magia: olhar e prazer. A primeira, como condição mais básica da arte cinematográfica; a segunda, como força motriz que movimenta e encadeia todos os seus personagens e narrativas. Duas palavras que, no entanto, são escorregadias, na medida em que podem simplificar algo que já toma para si uma aparência de informalidade, de pouco polimento. Sou de opinião contrária: poucos se vestiram com trajes tão enganosos, pois tal cinema não poderia ser mais calculado ou referencial.

Com Hill of Freedom (2014), Hong prova estar mais próximo de nomes como Shohei Imamura – ”Pergunto-me se outros cineastas são tão interessados nas pessoas como eu” – e Eric Rohmer do que apresenta traços tarantinescos. Os zooms incisivos que o caracterizam pedem nada mais que olhemos mais de perto; mais de perto para o que cimenta nossas relações, assim como para aquilo que as norteia. Com planos de reencontrar Kwon, coreana com quem teve um caso, Mori (um japonês) acaba passando por e causando pequenas provações morais nas pessoas que habitam a pousada onde se hospeda e o café que frequenta – cujo nome dá título ao filme.

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A partir das cartas que deixou a Kwon, que, com o passar das tentativas, não tinha mais esperanças de encontrar, revivemos – nós e ele – seus pequenos encontros, aparentemente seguindo uma ordem narrativa que pertence a dois. Mas não é por acaso que Hong parece questionar a quem pertencem aquelas histórias. Parte do que vemos teve vida a partir das cartas, decerto, mas quem pode conferir confiabilidade ao resto? Ou seja, tudo o que aqui é proposto parece pertencer a uma retomada. Voltamos, então, à pergunta basilar: é possível, ou mesmo necessário, conferir confiabilidade ao cinema em si? Que porção de mentira ou ocultamento há nas narrativas que contamos?

Mas o movimento de retorno ao início, buscando eixos de ação, também vibra no interior dos personagens. ”Você tem um cheiro tão gostoso”, diz Mori, ao que sua amante responde ”Você é tão, tão bonito”, e isto parece definidir sua aproximação. Não são simplesmente homens e mulheres adorando aspectos superficiais um do outro: aqui, Hong parece mais dotar seus personagens de um arquético infantilizado – gesto arriscado e consciente, num país onde pensar o coletivo e refrear os impulsos está acima de tudo. Pois se é raro que encontremos crianças em seus filmes, apresenta-se aqui um segundo ardil. Elas estão lá, mas intrinsecamente, sempre guiadas pelas satisfações do corpo.

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Três vezes é perguntado ao protagonista se a sua viagem à Coréia tem fins de negócios ou prazer, três vezes ele não sabe respondê-la. Retomamos, então, o prazer. Ao passo em que o álcool está sempre presente, incitando afetos sexuais e discordâncias emocionais, é somente em Hill of Freedom que é possível trazer à luz o núcleo que faz pulsar o cinema de Hong. Aquilo que gostamos, que nos faz buscar prazer no outro e no mundo é a bússola desses encontros, assim como da nossa relação com o cinema. Prazer visual, do olhar, se afinal juntamos as duas palavras-chave. Não seria esse o fim do cinema? Como nos filmes de Sang-Soo, talvez não caiba a nós responder.

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