Pai e Filhos (Wang Bing, 2015)

Por Marcus Martins

Pai e Filhos parte de um dispositivo e premissas tão rígidas que assume o risco de alienar o expectador durante a quase totalidade de sua duração. Pai, dois filhos e três cachorros habitam um minúsculo cômodo com uma única cama e uma infinidade de objetos espalhados por todo canto e uma televisão que está sempre ligada. Confinados em um único e dilapidado cômodo junto na maior parte do tempo vemos  um único personagem, um dos filhos, que passa as suas horas hipnotizado por um aparelho de telefone celular, tornando aquele isolamento também o de quem assiste. A passagem do tempo e o isolamento imposto estão gravados também no comportamento dos cães, os mais velhos, completamente resignados parecem entregues ao torpor enquanto o filhote ainda tenta em vão encontrar algum seu lugar.

Percebemos que os personagens pouco interagem. O pai trabalha à noite enquanto os filhos dormem na única cama, enquanto os filhos vão provavelmente à escola enquanto aquele dorme.

Curiosamente um dos filmes mais curtos de Wang Bing com apenas cerca de 90 minutos e ainda assim ele consegue imprimir a passagem do tempo em sua imobilidade. Nenhuma informação é concedida ao expectador, além de breve plano externo que sugere o motivo do isolamento e a condição dos personagens. Toda a informação, a vida mesmo, está fora do campo. Seja o que está fora do alcance das lentes e o que se faz fora daquele cômodo, seja o que lhe consome as horas na tela da televisão e do celular.

Apenas ao final da projeção um breve texto expõe aquilo que nos fora sonegado. O evento que determinou o destino do filme também termina por ser a melhor indicação de como vivem aquelas pessoas.

A pior acusação ao filme pode também ser a sua melhor explicação, um filme abortado e inconcluso, mas que se constrói justamente a partir de tal evento, vez que diante de ameaças do patrão do operário que não gostou de descobrir as filmagens não autorizadas, Wang Bing não teve como concluir o que quer que tivesse projetado e fez disso o artifício que sustenta o filme. Para quem construiu sua carreira à margem da anuência estatal, tocando em temas delicados e indesejados, mas sem em momento algum assumir a faceta de um cineasta político, isso é muito sintomático das circunstancias em que está inserido e de por que adota seus procedimentos.

Filme visto no Indie Festival

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Tangerina (Sean Baker, 2015)

Por Marcus Martins

Tangerina é a última incursão de Sean Baker nas histórias de amizades em meio a universos e situações pouco usuais. Depois do emigrante chinês trabalhando em delivery de Take Out, o vendedor de muamba na Broadway que tem sua vida desestabilizada por uma chegada inesperada em Prince of Broadway e do encontro inusitado entre uma atriz de filmes pornográficos e uma idosa solitária em Uma Estranha Amizade chegamos às perambulações de transexuais negras que se prostituem nas ruas de Tinseltown. O filme acompanha uma delas que acabou de sair de um período na prisão no dia de Natal e sua amiga que lhe ajuda na procura de seu cafetão/namorado e de uma possível rival que teria tomado seu lugar.

Os filmes de Baker são o epíteto do filme indie descompromissado, filmados em digital com poucos recursos e condições técnicas, roteiros construídos muitas vezes em colaboração com os atores e abordagem semi-documental. Tangerina ganha ainda o chamativo de ter sido filmado com câmeras de telefones móveis. Apesar disso o filme tem especial apuro técnico e foram utilizados todo tipo de suporte para estabilizar a imagem.

O título do filme deve-se provavelmente à cor alaranjada que ganha destaque em especial nas cenas externas durante o fim de tarde. O uso de celulares se justifica pelo ponto de vista documental do filme, que se pretende como registro das situações que muitas vezes parecem transcender a encenação e pleitear o status de flagrante. Dentro de toda a limitação e exaustão da tola fronteira entre o ficcional e o documental, Baker consegue transmitir dignidade e respeito a seus personagens.

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Mesmo que seja bem sucedido o uso dos celulares e que o artifício encontre alguma justificativa no que se representa, o interesse e trunfo de Tangerina é saber usar o documental como forma de dar espaço aos personagens.

As transexuais possuem uma das mais assimiladas formas de auto-ficção do mundo contemporâneo dentro de sua própria identidade, pois não apenas constroem sua identidade de gênero como no jogo das ruas encarnam suas personagens como se nada mais houvesse. Isso termina por não apenas gerar cenas cômicas e em aparentes improvisos de grande vigor como na cena culminante do filme quando do bate-boca dentro da loja de donuts, mas especialmente na cena da lavanderia. As questões de amizade nos três filmes anteriores de Baker giravam em demonstrações de amizade onde não eram esperadas e dos efeitos muitas vezes libertadores disso. Aqui ele parece seguir nesse mesmo sentido quando uma guinada inesperada traz novas possibilidades para as histórias de amizade e a mudança de tom do epílogo do filme faz imaginar que podemos esperar bastante dos próximos filmes dele.

Se Tangerina não alcança a mesma força narrativa de Uma Estranha Amizade, as atuações de Kitana Kiki Rodriguez e Mya Taylor como verdadeiras co-autoras do filme eleva o filme ao emprestar vida a suas personagens com uma riqueza que nenhum roteiro poderia. Não é apenas o fato de dar voz a personagens transexuais, mas a não lhe negar dignidade e um rosto. O que pode parecer pouco em termos de ficção, mas que seria impossível alcançar esse nível de naturalidade documental com atores profissionais encenando transexuais.

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Cemitério de Esplendor (Apichatpong Weerasethakul, 2015)

Por Marcus Martins

Soldados com uma misteriosa doença do sono, um hospital improvisado em uma escola que foi construída sobre um antigo cemitério, mas que logo deve ser derrubada por uma nova construção. Uma jovem que se comunica com os mortos tenta ajudar as famílias dos soldados a se comunicar com seus entes, uma voluntária com dismetria nas pernas, deuses, médicos, representantes do exército, galinhas e árvores.

Cemitério do Esplendor parece ser o filme mais leve de Apichatpong Weerasethakul desde Eternamente Sua. Os diálogos contêm uma comicidade que termina por anular qualquer barreira entre banal e profundo. Assim como os seres vivos (humanos ou animais), os lugares têm suas diversas encarnações e carregam sua bagagem espiritual – o conceito de reencarnação ali é amplo e irrestrito e o fato de reencarnar não impede que as mais diversas iterações convivam de forma orgânica, não são apenas sucessivas, mas essencialmente concomitantes. Assim o fato de que em breve a escola-hospital será derrubada para dar lugar a outra construção não é visto com mais surpresa que a médium que conversa com os espíritos.

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A possível sinopse de soldados que dormem misteriosamente em uma escola transformada em hospital que se encontra sobre um cemitério de reis guerreiros consegue apenas conter uma fração do que aparece na tela. A facilidade de Apichatpong em contar histórias e dar voz às narrativas de seus personagens, aliada à quase completa ausência de lógica narrativa deve ser o maior motivo de confusão para quem assiste o filme esperando entender por que os soldados dormem ou se a comunicação com os espíritos é verídica.

Parece existir uma grande dificuldade em assimilar esse tratamento direto onde a abolição da alteridade e do conflito se instala e a presença dos espíritos e do divino é tão natural quanto inexorável. Apenas isso é muito diferente de afirmar que o filme  afasta a sensação de morte e seria mesmo tolo afirmar que ela está ausente do filme quando todo o filme é tanto sobre morte como vida e se a abordagem não satisfaz a noção cristão-ocidental de dualidade ou se adequa ao estereótipo da tragicidade grego-romana.

A mise-en-scène reflete a ausência de transição entre o natural e o religioso, a experiência espiritual que se cria através da sabedoria do relato, a sensualidade da natureza e a fantasmagoria das máquinas. Quando as deusas aparecem para a Jenjira, o espanto maior se deve ao privilégio recebido que pelo contato sobrenatural. E mesmo assim o acontecimento não recebem importância maior que filmar as aves passeando pela enfermaria ou o vento nas árvores.

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Tudo isso apenas aprofunda a dificuldade em escrever sobre um filme que não se explica, que não se define, muito menos se conclui. O filme não esconde seu sub-texto político, sem precisar fazer uso de alegorias, mas também não facilita a leitura para quem não conhece a história e o quadro político tailandês. A cena do cinema é das representações políticas mais elusivas e ainda assim forte de 2015. Logo após o vertiginoso trailer de Iron Coffin Killers, os espectadores têm que se levantar e em silêncio permanecem. O filme não nos conta que esse é o procedimento em sessões públicas quando se executa o hino real. A cena corta para o soldado sendo carregado enquanto dorme mais uma vez. Voltando à imagem do soldado, representante da força estatal que é posto a dormir. Da mesma forma o discurso de Jenjira enquanto passeia com a médium pelos habitados pelo soldado enquanto dorme não fogem à relação com o mundo dos soldados enquanto estiveram acordados, até mesmo por que tudo se insere em um mesmo processo. Toda essa sequência é magnifica por ser filmada como a encenação teatral de uma experiência religiosa sem em momento algum dar qualquer piscadela ao espectador. Sem qualquer efeito especial as personagens transitam por duas dimensões.

O filme retorna à dança, à aparente cura de Jenjira, ao desaparecimento do soldado, às crianças que jogam bola na terra revolvida da construção e à certeza de que nada acabou, apenas continua. É o cinema de fruição que não atende à codificação do bom cinema, com sua simplicidade sensual em meio à natureza e danças que reafirmam que junto ao tenebroso se encontra o júbilo, que morrer e viver seriam uma separação arbitrária e que tudo é fluxo, inclusive o cinema.

 Filme visto no Indie Festival

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