A Ponte das Artes (Eugène Green, 2004)

Por Robson Galluci

Um jovem resolve se suicidar. Nós testemunhamos os preparativos, vemos quando ele coloca uma gravação do Lamento della ninfa, de Monteverdi, como acompanhamento musical para sua morte, quando se inclina para o fogão e libera o gás. Os planos se sucedem, a porta entreaberta, a janela, o corredor, o painel do fogão, e a música preenche os espaços enquanto uma vida se esvai. Nós conhecemos as circunstâncias dolorosas e trágicas que envolvem a gravação que toca, a sensação de vazio e falta de significado que assolava a solista assim como assola o personagem desta cena. Parece que o filme se encaminha para uma nova tragédia, mas a vida que irradia da música, e sobretudo da voz de Sarah, não obstante sua tristeza atordoante, é irresistível, e o jovem Pascal desiste de sua tentativa, corre até a janela para recuperar o fôlego e, enquanto a música continua tocando, e com os olhos ainda lacrimejantes, ri.

A Ponte das Artes não é apenas o local onde ocorrem eventos centrais da trama; muito mais que isso, o título do filme expressa essa capacidade das artes — e, de forma privilegiada, da música — de estabelecer conexões entre pessoas, não importa quão perdidas estejam, não importa que de espaços e tempos cuja separação parece irremediável, de fazer visualizar, justamente através desse encontro, uma harmonia até então secreta que se configure como um sentido do mundo, da vida. Para isso a câmera invade o espaço mais íntimo que é a troca de olhares, alternando planos em que dois personagens que estão frente a frente são enquadrados frontalmente e olham diretamente para a câmera. Não se trata de uma perspectiva subjetiva, e sim de quebrar a encenação onde é necessário para inserir o espectador no próprio centro dessas linhas de força que são os olhares dos personagens de Green, linhas que transmitem um sentido possível. Quem assiste a um filme como esse ou A Religiosa Portuguesa não é convidado à identificação com um personagem, mas a ser mais um, que recebe esses olhares e, principalmente, olha. Porque, para Green, o olhar é expressivo também quando não se dirige a ninguém em particular, mas nesse caso o importante não é exatamente o que se vê — em muitos casos, tanto aqui quanto no filme seguinte do diretor, o que os personagens filmados de frente veem é alguém cantando ou executando uma música, um disco tocando na vitrola —, mas o que exprime o olhar de quem vê. Na única instância de A Ponte das Artes em que pessoas assistem a algo — um espetáculo de nô —, a informação visual é negada ao espectador, sendo substituída por intertítulos que descrevem a trama da peça e se alternam com longos travelings que passeiam pelos rostos e olhares da audiência. O que exprime o olhar do espectador enquanto ele vê A Ponte das Artes? A trama da peça ecoa a do filme, e talvez o mais próximo que se pode chegar de uma resposta seja essa cena.

O poder que Green enxerga na música de despertar essa categoria de olhar do qual emerge um sentido e, além disso, de fazer com que dois desses olhares se encontrem é absolutamente ilimitado e indomável. Guigui, um personagem mesquinho que tenta matar nos outros a música que não encontra em si mesmo, e nisso, segundo Green, acaba por abrir mão da própria humanidade (“Pensei que o chamavam de inominável porque você era excelente. Mas é porque você não tem um nome”, diz Pascal a ele quando enfim se encontram), e outros representantes de uma certa classe artística e intelectual que se caracteriza por sugar a vitalidade da arte para substituí-la por mero dogmatismo teórico, conseguem levar Sarah ao seu limite e fazê-la desistir, mas sua música segue viva e incontrolável e põe em curso a jornada de Pascal que culmina no abraço impossível na estupenda cena que toma lugar na Ponte das Artes.

Green não defende uma arte de improviso — nem poderia, dado o rigor de sua mise en scène, que evita todo tipo de manipulação —, mas sim uma arte que, evitando não só a frieza mas também o sentimentalismo barato e indigente de obras que se ancoram na pieguice, não abra mão do impacto genuíno que pode causar, uma arte que sobreviva dentro de seu destinatário, assim como a música de Sarah sobrevive em Pascal e Manuel. É através dos olhares deles dois que o Lamento della ninfa é novamente ouvido pelo espectador, num dos raros momentos de uso de música não-diegética no filme (o único outro é durante a abertura), conduzindo aos créditos finais. Pouco antes, na Ponte das Artes, quando um madrigal do século XVII une, contra a “surda Inteligência humana”, uma mulher que se matou e o homem cuja vida ela salvou através de sua voz, a música é definida como o tempo entre dois silêncios em que pessoas se encontram, e de onde flui a única realidade que importa. O filme de Eugène Green é, à sua maneira, a encenação desse encontro, de que o espectador é convidado a participar; formas feitas de luz e sombra entre uma escuridão e outra, em que se pode descobrir, como descobre Sarah, que, apesar da opacidade do mundo, o que é belo não está além de nós.

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Delírio de Loucura (Nicholas Ray, 1956)

Por Robson Galluci

Não há lugar para conforto do espectador em Delírio de Loucura. De início, ainda na escola, Ray dá a impressão de que vai gastar os primeiros minutos de filme na construção de um quadro de felicidade familiar suburbana clichê para, depois, e como esperado em se tratando dele, demoli-lo pouco a pouco. Mas não: basta James Mason atravessar a porta de casa — longe, portanto, dos olhares que o legitimam em seu papel de marido, pai, professor — para que a tensão se instale, ainda sutil a essa altura, mas ali. A imagem da família perfeita não é sequer construída, ela já dá as caras com rachaduras visíveis. E, se não existe o uso de lugares-comuns da família feliz, podemos aqui identificar alguns da família em crise: a relação com o filho não parece atravessar tempos dos mais favoráveis, e a esposa tem suspeitas de uma traição em andamento — na realidade, Ed Avery arranjou um trabalho numa companhia de táxis para complementar o salário que recebe na escola, mas mantém isso em segredo por acreditar que não contará com o apoio da esposa, que julgaria o trabalho indigno. É irrelevante se o receio de Ed é ou não justificado (não é, como se vê depois). O que importa é apenas que ele o tenha, que veja Lou se preocupando mais com a imagem social do que com a questão premente do dinheiro — e que ela, por seu lado, embora com melhores razões, ao menos com base no que é dado a conhecer ao espectador, suspeite que ele a trai.

Portanto desde o começo a família Avery se encontra com sua estrutura instável, e o vício em cortisona que Ed desenvolve a partir de um tratamento que precisa fazer, sendo que a alternativa é morrer em menos de um ano, mesmo sendo muito mais que um mero McGuffin, pode ser culpado apenas por intensificar problemas que já existiam a priori, ainda que os distorcendo gravemente, mas não por sua origem. A tensão de relações erodidas por desconfianças variadas e não ditas do começo dá lugar a uma tensão cada vez mais física conforme a dependência de Avery avança e ele vai perdendo o controle; e tensão física não diz respeito à violência física em si — que, de resto, só acontece no clímax e é controlada antes que cause algum mal duradouro —, mas ao modo como Ray a encena e comprime no espaço, seja numa ocasião tão inofensiva quanto um jantar, seja na tortura psicológica a que Ed submete o filho (sempre se preocupando, como nunca deixa de salientar, apenas com o futuro do garoto), com sua sombra se projetando gigantesca na parede, seja até mesmo na cena ensolarada em que pai e filho jogam futebol americano. Na penumbra ou com iluminação generosa, a sensação de proteção no seio da família não existe mais para os personagens e isso fica muito claro no modo como James Mason impõe uma tensão muda sempre que está em cena — não se trata da ameaça de ele atacar fisicamente quem quer que seja, mas da possibilidade de, em mais um estouro, expor ideias que possam causar ao tecido familiar danos irreversíveis.

As ideias do personagem, seus ataques verbais cuja frequência aumenta conforme o filme corre, são mais assustadores exatamente porque são eles também, da mesma maneira que os problemas familiares, apenas intensificações do que já existia antes causadas pelo abuso da cortisona. Assim como o receio de que a mulher considere o emprego na companhia de táxis indigno se transforma num desprezo aberto pelo que Ed diagnostica como nível intelectual inferior e incapacidade de distinguir o que é importante do que é supérfluo, assim como a preocupação inicial com os estudos do filho se transforma numa obsessão, as ideias absurdas expostas durante uma reunião de pais são apenas a versão extrema de ideias subjacentes a certo conceito de educação, como o personagem deixa muito claro (“como chamamos alguém que, na idade adulta, ainda tem traços infantis de comportamento?”). No primeiro dia fora do hospital, Ed também demonstra uma versão exagerada — ou talvez nem tão exagerada, o que só torna toda a sequência mais irônica e ácida — da felicidade familiar movida a um consumismo que se pode exibir — vestidos caríssimos para Lou, uma bicicleta nova e cheia de recursos para Richie.

Mesmo que Ray encerre o filme com um tradicional final feliz, o estrago feito na hora e meia anterior é grande o suficiente para que o espectador saiba que não há volta, não há como simplesmente restituir o status quo inicial — de qualquer forma, mesmo que houvesse, é preciso lembrar que o status quo inicial também não era particularmente agradável, evidenciando a decisão de Ray de não nos dar alternativas fáceis, assim como não dá a seu protagonista. Minutos antes, o médico de Ed diz que ele terá que continuar tomando a cortisona, vivendo assim sempre sob o risco de retornar à dependência. O que quer que tenha sido conquistado, Ray nos diz, e o que a cena final da família abraçada e reconciliada apenas reforça, seja a felicidade ou a mera aparência de felicidade, seguirá indefinidamente sobre o fio da navalha.

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Índice

Editorial, por Daniel Dalpizzolo

Werner Herzog e o Novo Cinema Alemão, por Vlademir Lazo

“Onde está o quadro?”, por Luis Henrique Boaventura

O martírio de Werner Herzog, por Fernando Mendonça

Curtas-metragens (1962-2001), por Daniel Dalpizzolo, Robson Galluci e Vlademir Lazo

Sinais de Vida (1968), por Fernando Mendonça

The Flying Doctors of East Africa (1969), por Robson Galluci

Também os Anões Começaram Pequenos (1970), por Vlademir Lazo

Handicapped Future (1971), por Fernando Mendonça

Fata Morgana (1971), por Daniel Dalpizzolo

Terra do Silêncio e da Escuridão (1971), por Kênia Freitas

Aguirre, a Cólera dos Deuses (1972), por Kênia Freitas

O Grande Êxtase do Escultor Steiner (1974), por Daniel Dalpizzolo

O Enigma de Kaspar Hauser (1974), por Kênia Freitas

Coração de Cristal (1976), por Fernando Mendonça

Stroszek (1977), por Vlademir Lazo

How Much Wood Would a Woodchuck Chuck (1978), por Fernanda Canofre

Nosferatu: O Vampiro da Noite (1979), por Murilo Lopes

Woyzeck (1979), por Vlademir Lazo

Fitzcarraldo (1982), por Luis Henrique Boaventura

O Sermão de Huie (1983), por Fernando Mendonça

God’s Angry Man (1983), por Fernando Mendonça

Onde Sonham as Formigas Verdes (1984), por Fernando Mendonça

Ballad of the Little Soldier (1984), por Daniel Dalpizzolo

The Dark Glow of the Mountains (1985), por Murilo Lopes

Cobra Verde (1987), por Luis Henrique Boaventura

Giovanna D’Arco (1989), por Fernando Mendonça

Ecos de um Império Sombrio (1990), por Fernanda Canofre

Jag Mandir (1991), por Filipe Chamy

No Coração da Montanha (1991), por Filipe Chamy

Lições das Trevas (1992), por Robson Galluci

Sinos do Abismo: Fé e Superstição na Rússia (1993), por Fernando Mendonça

Death for Five Voices (1995), por Fernanda Canofre

The Transformation of the World into Music (1996), por Luis Henrique Boaventura

Little Dieter Needs to Fly (1998), por Kênia Freitas

Christ and Demons in New Spain (1999), por Luis Henrique Boaventura

Meu Melhor Inimigo (1999), por Vlademir Lazo

Wings of Hope (2000), por Fernanda Canofre

Invencível (2001), por Luis Henrique Boaventura

Wheel of Time (2003), por Luis Henrique Boaventura

O Diamante Branco (2004), por Robson Galluci

O Homem Urso (2005), por Filipe Chamy

Além do Azul Selvagem (2005), por Robson Galluci

O Sobrevivente (2006), por Filipe Chamy

Encontros no Fim do Mundo (2007), por Robson Galluci

Vício Frenético (2009), por Kênia Freitas

Meu Filho, Olha o Que Fizeste! (2009), por Fernando Mendonça

Caverna dos Sonhos Esquecidos (2010), por Daniel Dalpizzolo

Ao Abismo (2011), por Filipe Chamy

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Curtas-metragens de Werner Herzog (1962-2001)

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Hércules (Herakles, 1962)

Primeiríssima experiência de Werner Herzog como diretor, esse curta de nove minutos é recomendado quase que exclusivamente aos admiradores mais incondicionais do cineasta. Realizado quando o alemão possuía vinte anos de idade, a impressão que o filme nos deixa é de que acima de tudo o jovem realizador queria mesmo era se exercitar com uma câmera, depois de ter roubado uma de uma escola em Munique e lido sobre técnica cinematográfica em um manual. Trata-se de uma sucessão de cenas sobre halterofilistas fazendo exercícios físicos em uma academia, intercalados com algumas (poucas) seqüências que mostram guerras e a população em manifestações civis. Críticos apontam no trabalho de Herzog com esse filminho uma reflexão sobre os mitos gregos (no caso, o do herói Hercules com todos os seus músculos e forças) dentro da sociedade mais contemporânea, e a inoperância do mito diante da realidade (conceito esse realçado pelos letreiros ao longo do filme, que não possui diálogos). Sob esse prisma, Herakles ganha um pouco mais de interesse (prova de que um diretor como Herzog sempre teve algo a dizer), ainda que como cinema permaneça como um trabalho bem incipiente. (Vlademir Lazo)

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A Defesa sem Precedentes do Forte Deutschkreuz (Die beispiellose Verteidigung der Festung Deutschkreuz, 1967)

Os primeiros curtas de Herzog, embora obras de um cineasta em formação, apresentam traços nítidos do que viria a ser seu cinema após Aguirre, a Cólera dos Deuses, quando sua carreira deslancharia no cinema – e, principalmente, um desejo de expressão latente acompanhado de um olhar sarcástico e bastante crítico, com a tradicional inclinação ao risco e ao trabalho radical da linguagem cinematográfica que veríamos nas obras posteriores. A Defesa Sem Precedentes do Forte Deutschkreuz, em seus 14 minutos de duração, opera uma transformação intrigante nos quatro personagens e no narrador presente na faixa extra-diegética. Nesta operação, vão contaminando uns aos outros e ao próprio filme conforme interagem com o cenário que ocupam/observam – mais especificamente, as intermediações de um castelo austríaco tomado pelos soviéticos durante a Segunda Guerra Mundial, agora transformado em ruínas, em vestígios do conflito cujas autoridades locais não sabem a que destinar. Quatro amigos decidem usá-lo como abrigo e descobrem antigos uniformes do exército, que vestem para passar o tempo enquanto encenam uma operação de guerra. Os poucos minutos que passamos com eles são suficientes para que se convençam e convençam ao próprio narrador do quanto a guerra é fundamental, mesmo que as forças inimigas tão aguardadas por eles, avistadas ao longe na paisagem, não sejam mais do que meros trabalhadores do campo — ou um dos próprios amigos, visto agora sob desconfiança. A Herzog, o militarismo enquanto instituição parece suficiente para doutrinar o olhar de quem veste uniformes e carrega em seu peito medalhas que ostentem patentes e conquistas, construindo preceitos de aliança e inimizade entre pessoas que, possivelmente, dividem as mesmas angústias e tarefas no mundo – mas, em muitos casos, não compreendem uns aos outros apenas por não falarem a mesma língua ou vestirem a mesma cor de uniforme. “Até ser derrotado é melhor do que nada”, diz o narrador na frase que encerra o curta, momentos após lembrar que “Atacar é bom, viver é melhor, mesmo quando se vive na pobreza. Aquele que está vivo pode possuir uma vaca”, numa reflexão tão contraditória quanto a própria essência da guerra. (Daniel Dalpizzolo)

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Últimas Palavras (Letzte Worte, 1968)

Um personagem que se recusa a falar — mas não a repetir continuamente que não falará mais nada — é o centro do quarto curta-metragem de Herzog, um falso documentário; e em contraste com ele, os outros entrevistados não param absolutamente de dizer coisas, numa ladainha repetitiva, incapazes de produzir novos sentidos, de construir o que quer que seja, contaminando até mesmo o misterioso protagonista, cuja recusa também toma a forma de uma repetição incessante de que acabou de dizer suas últimas palavras. Mas essa não é absoluta, dizendo respeito apenas à sua experiência sozinho numa ilha vazia e abandonada onde funcionava uma colônia de leprosos; em sobreposição aos depoimentos dos outros, ou em silêncio, essas ruínas (desde cedo tão caras a Herzog) nos são mostradas. O homem, porém, não se recusa a tocar lira no bar local; e é, inclusive, segundo alguns, o melhor tocador de lira de Creta — o que ele é incapaz de, ou se recusa a dizer com palavras encontra seu caminho unicamente através da música, embora para a incompreensão e transtorno geral da comunidade. Ainda em começo de carreira, Herzog já delineia um dos fundamentos de seu cinema, a ideia de um cansaço geral da narrativa, da imagem, da linguagem — se seu personagem se sente satisfeito com sua forma de manifestação nós nunca sabemos, mas o diretor, embora aqui apenas esboce as dificuldades e impossibilidades que encontrará pelo caminho, construirá toda a sua obra, múltipla e incansável, em busca de imagens e narrativas novas que possam de alguma forma expressar o que há de enigmático e inescrutável no homem e no mundo. (Robson Galluci)

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Precauções contra Fanáticos (Massnahmen gegen Fanatiker, 1969)

Primeiro trabalho colorido do diretor, um falso documentário com pretensões cômicas em cima de situações de puro absurdo. Não há como ter certeza do que é real ou inventado. Um grupo de pessoas que trabalham em corridas de cavalos relata diante da câmera como protegem os cavalos em relação à proximidade de fanáticos. Só que justamente esses encarregados de cuidarem dos animais é que mais parecem os doidos. Por mais que manifestem o tempo todo o carinho e a proteção com que tratam os cavalos, impossível de levá-los muito a sério. Alguns podem encarar como uma crítica inofensiva e engraçada aos manifestantes que lutam em defesa dos animais. Só que o curta é propositalmente ambíguo ao dar margem a dúvidas de que se essas figuras são mesmo funcionários do estabelecimento, ou se estão ali de intrometidos. Um velho fica o filme inteiro por perto tentando expulsar os supostos funcionários, alegando que ele seria o único a saber lidar com os animais. O que reforça ainda mais a comicidade de tudo, pois o senhor ali parece tão louco quanto aos que quer recriminar. E o que vemos é loucuras como um dos personagens quebrando lajota com um golpe de karatê, ou outro dopando cavalo com alho. O grande Mario Adolf, de tantos filmes (entre os quais trabalhos com Zurlini, Peckinpah, Corbucci, Argento, Fernando Di Léo, Billy Wilder, Fasbinder, etc.), integra o elenco do curta. (Vlademir Lazo)

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Ninguém Quer Brincar Comigo (Mit mir will keiner spielen, 1976)

Dos curtas que tive a oportunidade de ver do diretor alemão, este me parece o mais belo (sendo que, ao contrário dos seus primeiros trabalhos na categoria, foi realizado quando Herzog já era famoso e reconhecido como cineasta). Não há critica, teses ou humor feroz: um garotinho confinado num canto de uma sala de aula lamenta que ninguém quer brincar com ele. Os motivos seriam que ele vive em um lugar muito simples, não tem tantas opções do que comer, etc. Uma garotinha de sua sala aceita sair com ele, e ser levada a casa onde ele mora, conhecendo a realidade do tal menino. É um primor de inocência e delicadeza, com o moleque saltitando com a conquista de uma amiga. E o que pensar quando esta o define da seguinte maneira: “Esse idiota é meu amigo!”? Porque o que importa é a pureza com que os sentimentos são expressos, sejam eles quais foram, e isso é o que Herzog capta com grande singeleza. Mesmo saindo da escola em alguns momentos o foco do filme retorna a sala de aula, dirigindo um olhar sobre o contexto pedagógico,de ensino e convivência entre crianças se lançando para o mundo a partir de um primeiro contato externo representado pelo colégio. (Vlademir Lazo)

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La Soufrière (1977)

Em La Soufrière, Herzog situa-se entre a projeção da catástrofe que almeja registrar e a necessidade de seu próprio fracasso na perseguição deste registro — uma vez que o desastre prenunciado, caso concretizado, vitimizaria não apenas as construções no entorno do vulcão à beira da erupção que nomeia o filme, mas também ao próprio cineasta e sua equipe de cinegrafistas, que contrariam as leis de segurança para invadirem a paisagem bucólica de uma cidade evacuada e às vésperas de ser dizimada para capturá-la em sua mais visceral condição: vã, abandonada, com ruas desertas e edifícios aos quais não resta mais ninguém para abrigar. Semelhante ao que vemos em alguns dos grandes personagens de Herzog, sejam eles verídicos ou ficcionais, desafiar a natureza terrestre e a morte são motivações primárias do diretor para a realização de La Soufrière; motivações como as que Herzog sempre buscou compreender e, na insuficiência de respostas, transformou frequentemente em lirismo — neste caso, na poesia de uma arte que se constroi às custas do próprio fracasso, que faz do passo em falso matéria-prima imprescindível de sua existência. Semelhante a Fitzcarraldo, La Soufrière também se destaca como um autorregistro criativo, fazendo da sua própria produção um organismo ativo e indissolúvel da narrativa. Cada imagem guarda em si não apenas o resultado de um processo de filmagem, mas um registro vivo deste processo —condição que em termos gerais é chave para o cinema de Herzog, mas que nestes dois filmes, ao lado do recente A Caverna dos Sonhos Esquecidos, talvez encontre seu ponto de expressão mais tangível. Colocadas lado a lado, cenas como a de Herzog avançando em direção ao vulcão relatando o risco de morte sob o qual trabalhavam ele e seus cinegrafistas não estão muito distantes da de Klaus Klinski observando o barco que, com ajuda de dezenas de índios no interior da mata amazônica do Peru, tenta arrastar montanha acima em Fitzcarraldo — quando, à frente da câmera, Klinski representa a si tanto quanto representa a Herzog, para quem também pertencia o sonho de subir o barco pelo morro. São momentos capazes de transmitir a essência da expressividade de um homem que, como poucos, faz da arte um autêntico espelho de si mesmo, um veículo para conflitar e difundir filosofias e questionamentos pertencentes à sua visão particular sobre o homem e o mundo. No vazio das imagens finais de La Soufrière, ao vermos Herzog assumindo a impossibilidade de consumação do seu próprio desejo insano, nos defrontamos com uma operação que ao mesmo tempo detém uma indesejável força anti-clímax e a confirmação de que, se La Soufrière consegue ir tão longe, é justamente por não chegar a lugar algum. (Daniel Dalpizzolo)

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Portrait Werner Herzog (1986)

Portrait Werner Herzog resume-se exatamente naquilo que seu título antecipa: um pequeno retrato de Herzog realizado pelo próprio cineasta. O curta apresenta o diretor contando parte da sua vida, como a infância vivida na zona rural de uma pequena vila alemã — onde foi filmado o curta —, e alguns fatos de produção sobre seus principais filmes e projetos que, naquele momento, estavam fervilhando em sua cabeça — como a parceria com o montanhista Reinhold Messner, que acabaria resultando no memorável documentário The Dark Glow of the Moutains. É uma maneira interessante de conhecer detalhes que influenciaram a carreira do cineasta, como o gosto adquirido pela natureza através da relação que mantinha quando criança com a floresta e as montanhas existentes ao redor da sua residência, ou o desejo de desbravar o mundo, vindo de sua adoração por caminhadas — ação que, segundo Herzog, é um grande incentivo para exercitar seus pensamentos. Também retrata o relacionamento de Herzog com algumas pessoas especiais em sua vida, como a crítica de cinema Lotte Eisner, por quem Herzog realizou a insana caminhada de Munique a Paris como uma promessa de fé para tardar sua morte — aventura que gerou o diário de bordo Caminhando no Gelo. O curta é recomendado especialmente para quem tem interesse em um conhecimento mais biográfico sobre a vida do diretor — ou queira ouví-lo falar sobre seu envolvimento com o trabalho —, por mais que, como ele mesmo afirma, Herzog seja, acima de tudo, cada um dos filmes que realizou nestes mais de 50 anos de cinema. (Daniel Dalpizzolo)

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Pilgrimage (2001)

A frase que abre Pilgrimage, inventada por Herzog e falsamente atribuída a Tomás à Kempis, afirma que os peregrinos são os únicos que nunca se perdem durante sua jornada terrena; e os dezoito minutos de filme que se seguem são uma ilustração disso, imagem após imagem de peregrinos tomadas no México, sua persistência reforçada pela imutabilidade da música de John Tavener que serve de acompanhamento. Há mais que isso: permeia Pilgrimage um sentimento de admiração, até mesmo de reverência — sobretudo na forma como os objetos de culto não aparecem nunca no enquadramento, apenas os rostos, os olhares daqueles que os cultuam — por essas pessoas e sua postura de desafio à intempérie, à dor, aos limites físicos — em suma, e como não poderia deixar de ser em se tratando do diretor, à natureza no sentido mais amplo do termo. Se há tanta estima impressa em cada plano, é porque a mão que se ergue em desafio não é animada pelos desejos megalômanos de controle e poder total que levam à queda de muitos personagens de Herzog; pelo contrário, é um desafio que se desdobra sob, como diz o texto de abertura, preces, sofrimento, fervor e aflição — e acima de tudo que tem um fim, pois a chegada ao destino é tanto um alívio quanto uma rendição, um reconhecimento da impossibilidade de ir além indefinidamente: no momento mais significativo do filme, um corte brusco transporta um dos peregrinos da rua, de joelhos, no limiar de suas forças e perto de desfalecer, para o interior da basílica, já em pé, o olhar voltado para o alto e o alívio claríssimo em sua expressão, cercado por outros homens e mulheres anônimos que, Herzog parece nos dizer, em seu desafio limitado e sua indiferença aos sonhos de poder — afinal de contas, o que fazem é uma forma de adoração ou cumprimento de promessa —, possam talvez compensar pelos incontáveis Aguirres perdidos pelo caminho. (Robson Galluci)

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Encontros no Fim do Mundo (Werner Herzog, 2007)

Por Robson Galluci

Em certo momento de Encontros no Fim do Mundo, o mar sob a camada de gelo é comparado, pelos mergulhadores que lá se aventuram, a uma catedral — e as muitas belas e impressionantes imagens que vemos captadas debaixo da água certamente corroboram a ideia, sejam acompanhadas por música sacra ou pela música peculiar das focas, com seus sons totalmente inorgânicos, na expressão de uma das cientistas que as estudam, que chegam a lembrar Pink Floyd. Durante essas cenas, é impossível não lembrar da “Catedral Azul” de Além do Azul Selvagem, o local mais sagrado do planeta moribundo abandonado pelos alienígenas que tentam, sem sucesso, colonizar a Terra, que mais tarde é visitado por humanos, imbuídos de um espírito exploratório logo convertido em impulso predatório, como de costume; também há reverberações de O Diamante Branco e do posterior Caverna dos Sonhos Esquecidos, todos lidando de alguma forma com a natureza revestida dessa carga simbólica religiosa (ou ao menos cultual). Em Azul Selvagem, há a crítica do mero ato de se escalar uma montanha (o que lhe tiraria a dignidade), mas esse esforço é colocado aqui sob uma luz muito mais positiva quando comparado com a aventura humana degenerada em prática midiática sem sentido após todo o planeta ter sido desbravado, coisa muito pouco admirável no olhar de Herzog: uma vez cruzar o Saara foi considerado uma proeza quase sobre-humana, mas hoje o deserto é atravessado de carro em marcha à ré, em busca de um recorde ridículo.

Por mais que não seja mais possível sonhar com florestas perdidas e misteriosas nos pontos em branco do mapa, como Herzog comenta a certa altura, não se priva a natureza de seus enigmas de forma tão fácil; esse conhecimento que supostamente temos de todos os lugares do mundo é apenas superficial, como o diretor vem demonstrando durante toda a sua carreira, e como descobrem, de modo impactante, as pessoas que vão para a Antártida, palco do documentário. Dessas pessoas indo até o fim do mundo emerge outra imagem de fundo religioso, pois elas são como monges vivendo em isolamento e desenvolvendo uma rede de relações e cultura próprias, à parte do mundo lá fora; e muitos dos que são entrevistados pelo diretor parecem estar ali movidos menos por razões pragmáticas ou de trabalho, como a maior parte dos pesquisadores, do que por aspirações ou questionamentos mais difíceis de definir até para si mesmos. Resulta daí que as entrevistas mais marcantes acabam sendo as dos motoristas, encanadores, técnicos de computação e outros cuja passagem pelo continente gelado é menos focada, menos direcionada a um objetivo claro: muitos sequer explicam como foram parar ali, parecendo encarar o fato como um desenvolvimento perfeitamente natural da jornada de cada um — uma mais incrível que a outra, envolvendo trabalho voluntário na Guatemala, viagens de caminhão pela África ou fuga de um campo de prisioneiros da União Soviética. O homem que passou por essa última experiência, que sequer consegue verbalizar (e a empatia que ele desperta em Herzog é notável), passa sua vida sempre com uma mala pronta — de fato pronta, incluindo até mesmo um bote inflável e um remo montável — para viajar assim que a oportunidade surgir, numa ilustração certeira do tipo de espírito que interessa ao filme captar.

Outras ilustrações surgem, porém, nem todas tão claramente otimistas quanto essa, remetendo às indagações mais antigas e persistentes de Herzog. Um dos biólogos fala eloquentemente sobre os horrores da vida marinha microscópica, uma imagem que o diretor visivelmente considera relevante também para o mundo macro, mesmo que a conversa caminhe no sentido de a vida humana ser uma fuga desse inferno em miniatura. Outro biólogo, este estudioso dos pinguins, fala sobre como alguns deles simplesmente se desgarram do grupo principal sem motivo aparente, perdendo-se para sempre na imensidão do continente; e Herzog chega a captar um deles, já muito longe de onde deveria estar, rumando para o coração da Antártida e sem dúvida alguma para a morte por inanição. Como os humanos não são autorizados a interferir de forma alguma no comportamento dos pinguins, ninguém tenta impedi-lo, mas o biólogo esclarece que, mesmo que ele fosse apanhado e levado de volta ao seu grupo, mais cedo ou mais tarde o abandonaria novamente para seguir sua jornada inexplicável. Herzog se pergunta por quê, sem encontrar, é claro, resposta alguma, e nos deixa apenas com a imagem do pinguim se afastando em direção a montanhas longínquas por uma vasta planície — e com a identificação que isso pode ter com a jornada humana, que, apesar de muito mais movimentada e mais dada ao espetáculo, talvez seja tão inexplicável e obscura quanto a do animal, e talvez caminhe para o mesmíssimo destino.

Não é surpresa, portanto, que o tema da morte, não a morte como experiência íntima e individual, mas a morte como fato coletivo, extinção da humanidade, seja o tema que aflore aos poucos e passe a dominar completamente Encontros no Fim do Mundo, trazendo inclusive novos sentidos ao título do filme, sendo o fim do mundo não apenas um local geográfico, mas também uma demarcação temporal, os encontros improváveis que se dão na Antártida e durante o que já podem ser nossos momentos derradeiros como espécie habitante do planeta. Quem primeiro traz a questão à tona é um linguista, que fala sobre como a preocupação com a extinção não deveria se concentrar apenas em formas de vida, mas também em línguas, que desaparecem a todo momento — o diretor pensa consigo mesmo que talvez três ou quatro tenham sumido enquanto ambos conversavam — quando o último de seus falantes morre, levando culturas inteiras consigo; e logo Herzog já está colocando a extinção da humanidade no centro das preocupações do filme, fazendo questão de enfatizar, por exemplo, como nenhum dos cientistas presentes acredita na nossa permanência a longo prazo no planeta; a natureza, segundo eles, se livrará de nós mais cedo ou mais tarde (antes, pelo jeito, que desenvolvamos de forma plena a simbiose destrutiva entrevista em Lições das Trevas).

Encontros no Fim do Mundo possui muitas sequências que lidam, de uma forma ou de outra, com a consciência do fim, e duas se destacam: a representação do que seria uma expedição arqueológica alienígena e o que ela encontraria no planeta séculos depois do desaparecimento da humanidade (com ecos evidentes do destino dos astronautas em Além do Azul Selvagem), quem sabe até mesmo uma cápsula do tempo deliberadamente construída sob o gelo; a visita a uma base científica que estuda um vulcão, um emblema bastante adequado dos prenúncios apocalípticos que dominam os momentos finais do filme (embora menos gloriosamente apocalípticos que os que Herzog já vislumbrou; se em Lições das Trevas temos o colapso do universo como um espetáculo majestoso, em Encontros no Fim do Mundo encontramos uma antevisão do apocalipse num suspiro de que nos fala Eliot).

A imagística de ressonâncias religiosas volta com toda a força no final, quando um físico fala de forma quase devota sobre suas experiências com neutrinos e como eles são, de certa maneira, um desafio à compreensão imediata, como a descrição do que são soa como algo de teor místico ou espiritual. A seguir, um dos entrevistados do início retorna, citando um filósofo que diz que somos os instrumentos através dos quais o universo percebe a si mesmo e escuta sua harmonia cósmica, fazendo-nos testemunhas de sua magnificência; a música, a mesma que não somos capaz de ouvir em O Diamante Branco, volta como símbolo primordial de nossa condição, mas sob uma compreensão nova. Nas imagens belíssimas da vida submarina que encerram Encontros no Fim do Mundo, Herzog — cineasta notável por muitas coisas, mas sobretudo por não ter opiniões definitivas e imutáveis, por sua obra sempre em construção, sempre em busca de novas respostas para questionamentos antigos, sempre em busca inclusive de novas formulações desses questionamentos que talvez revelem inquietações até então ignoradas — parece se perguntar se no fim das contas o que nos define não é nossa incapacidade de escutar a música do mundo, mas de perceber que a estivemos escutando ininterruptamente.

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Além do Azul Selvagem (Werner Herzog, 2005)

Por Robson Galluci

Perto do final de Além do Azul Selvagem, um dos entrevistados fala — e, em se tratando de Werner Herzog, é difícil saber se é uma manifestação voluntária de uma opinião ou se o monólogo foi ditado pelo próprio diretor — sobre um futuro em que a Terra se transforma em uma espécie de parque ecológico protegido e os humanos moram em outros planetas ou em estações espaciais; logo se descobre que a ideia não é exatamente de um parque ecológico, mas sim um destino turístico aonde você iria durante suas férias, se, é claro — como o entrevistado/personagem enfatiza —,tiver dinheiro suficiente. A princípio, pode parecer uma crítica que Herzog coloca (mesmo quando se resolve preservar o meio ambiente, é com intenções mercadológicas), mas sabemos que nada é tão simples assim: não há como imaginar uma Terra que seja preservada como santuário, enquanto os homens partem para viver em outro lugar, no mesmo universo cinematográfico em que vivem Aguirre e Fitzcarraldo. O homem é inelutavelmente parte da natureza, não podendo escapar disso nunca, e a relação violenta que com ela mantém é decisiva naquilo que ele é e faz.

Essa relação tensa, porém inevitável, recebe em Além do Azul Selvagem um retrato abrangente como nunca antes na obra do diretor, porque dessa vez o objetivo não é encontrar Eldorado ou construir um teatro de ópera na selva, mas colonizar outro planeta, e despertar um sentimento de domínio sobre o universo ao se vencer as distâncias quase inimagináveis que separam as estrelas e galáxias. É um passo natural na filmografia de Herzog, em que a natureza incontrolável e intraduzível começa sendo meramente uma ilha abandonada para se tornar mais totalizante a cada obra. E, se já tivemos os arroubos de loucura ou heroísmo, ou híbridos de ambos, de personagens singulares, agora é tudo um empreendimento institucional, ou humano, limpo e impessoal (nos termos que o alienígena interpretado por Brad Dourif usa para descrever o estudo que se faz durante a narrativa dos destroços recuperados em Roswell). O resultado, porém, não é muito diferente: logo o espaço mostra sua face hostil, que os astronautas desconheciam, causando toda sorte de problemas na missão; e, mais tarde, quando chegam ao Azul Selvagem, a tensão volta com toda a força, na maneira como exploram o lugar e interagem com as criaturas que lá vivem.

Que são, é claro, criaturas do nosso próprio planeta: a viagem espacial e a exploração do Azul Selvagem usam imagens captadas, respectivamente, pela NASA e por mergulhadores, imagens nas quais são injetados novos significados. Filmar o familiar — o que consideramos familiar — como se fosse irremediavelmente estranho e desconhecido é um método que Herzog usa há muito tempo, tendo sua realização mais radical em filmes como Fata Morgana e Lições das Trevas, mas há mais em jogo dessa vez: trabalhando dentro de um gênero (a ficção científica) em que a criação de paisagens alienígenas é comum, usar imagens a priori tão banais e corriqueiras (embora mesmo nelas possa se achar poesia, como se destaca nos créditos finais) é um gesto, não propriamente de resistência, mas de demonstração de que aqui há ainda matéria de estranhamento, por mais que se diagnostique um entorpecimento geral motivado pela exaustão das imagens, como o diretor caracteriza, e de que o maior exemplo seriam as “fotos tediosas do Grand Canyon”. Personagens sem conta na obra herzoguiana nunca perdem de vista esse potencial obscuro do mundo que os rodeia (tanto que muitos de seus esforços são no sentido de sufocá-lo), mas os astronautas e até mesmo os alienígenas de Além do Azul Selvagem precisam passar por esse despertar, e com eles, o espectador. Até mesmo a longa cena em que um físico descreve os fenômenos que tornariam possíveis as viagens intergalácticas está lá essencialmente para reforçar como a natureza, aqui englobando todo o universo, é muito mais estranha do que pode parecer à primeira vista (e o título italiano do filme, L’ignoto spazio profondo, é especialmente feliz nesse sentido).

Oito séculos depois, é uma Terra desabitada e de volta à sua glória pré-civilização que os astronautas encontram ao retornar, mas não há indicação alguma se o que vemos é a concretização do futuro predito cenas antes — porque, após a experiência primordial de hostilidade, tensão, reconhecimento e estranheza do universo lá fora o homem expande o que é a natureza onde habita e com a qual se digladia para definir o próprio ser — ou um mundo que renasce depois da extinção da humanidade. A falta de respostas claras é proposital, porque importa menos o que aconteceu, do ponto de vista narrativo, do que o que acaba sendo, significativamente, o fim da jornada: seja na Terra ou no Azul Selvagem ou no espaço profundo, a mesma natureza esmagadora e terrível (e, exatamente por isso, bela) com que se defrontam os homens, e acima de tudo os homens que interessam a Herzog, desde sempre e para sempre.

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O Diamante Branco (Werner Herzog, 2004)

Por Robson Galluci

Toda a obra de Herzog é permeada pela tensão entre as aspirações humanas e a natureza indomável, um conflito que não raro termina em loucura e destruição diante de um universo impassível. No entanto, depois do réquiem irreversível que é Lições das Trevas e a simbiose apocalíptica que ele encerra, os bombeiros que não podem mais conceber a existência sem o fogo e que por esse motivo reacendem as chamas, dando continuidade ao “colapso do universo em esplendor” como forma de justificar a si próprios, Herzog vem tentando encontrar encarnações mais saudáveis, menos caóticas e descontroladas desse choque primordial. Novos Aguirres e Fitzcarraldos, depois da palavra final de Lições das Trevas, tornaram-se desnecessários e agora dão lugar aos peregrinos e seu díptico de enfrentamento e submissão, aos assombrosos sobreviventes Dieter Dengler e Juliane Koepcke, os cientistas de Encontros no Fim do Mundo e O Diamante Branco. Mas Herzog não pode deixar de ser o que é, de modo que é também o tempo de Timothy Treadwell e do alerta de que a violência indiferente do mundo é inegavelmente real e presente; de que qualquer agenda humana que ignore esse fato está tão fadada à ruína quanto os projetos de seus personagens dos anos 70 e 80.

É claro que sugerir um corte brusco e categoricamente delimitado numa obra tão inquieta e viva quanto a herzoguiana é um exercício infrutífero — ao longo das décadas, há temas que submergem e são aparentemente esquecidos, apenas para voltarem à tona com toda a força quando não se espera; como os homens que decoraram as paredes da caverna de Chauvet, desde então perseguidos pela hostilidade inexplicável da natureza, em nada diminuída por milênios de evolução científica e técnica, e sua incapturabilidade essencial a fazer naufragar qualquer tentativa séria de representação. Essas linhas de força que retornam parecem em O Diamante Branco vir de O Grande Êxtase do Escultor Steiner, de quem Graham Dorrington bem poderia ser um herdeiro. O sonho de Dorrington é, desde a infância, voar, e a isso ele dedica sua vida, transformando-se em engenheiro e pesquisador, projetando dirigíveis pensados para o uso em expedições científicas. O foco principal do filme — o que se anuncia como tal — é o teste de um novo projeto de Dorrington na floresta tropical da Guiana, e os fantasmas do passado que o assombram durante os dias que passam na selva. Porque, por mais que seu sonho seja retratado de forma quase infantil por Herzog, no sentido de que começa e termina em si mesmo e não está tão contaminado pelo desejo de conquista, ele também deixou sua parcela de traumas e escombros ao longo do caminho, e especialmente o corpo de Dieter Dengler, morto num acidente envolvendo um dos dirigíveis de Dorrington dez anos antes das filmagens de O Diamante Branco. O cientista tenta não se culpar pelo que aconteceu, e racionalmente sabe que de fato não é diretamente responsável, mas se questiona se a mera existência de seu desejo de voar não está por trás das engrenagens que culminam na morte de Dieter. A cena em que Dorrington relembra o dia do acidente é dos momentos mais poderosos de todo o filme, a luta entre o sentimento de culpa e as demandas dos sonhos que transparece em seu olhar, a lenta consciência de que só o sucesso do “diamante branco” (como os habitantes locais passam a se referir ao dirigível) pode proporcionar o alívio buscado.

Mas nem mesmo as dúvidas e a luta interna de Dorrington são suficientes para Herzog, que logo começa a expandir e transitar entre diversos focos de interesse, todos tendo vida e ímpeto próprios, sonhos e aspirações que no entanto ainda orbitam em torno do esforço conjunto de colocar o dirigível no ar com sucesso, para os quais o diamante branco passa a ter um significado simbólico. Até mesmo para Herzog, que discute com Dorrington para que este o autorize a participar do primeiro voo de teste, sabendo que pode ficar sem um filme caso algo dê errado. Através de Mark Anthony Yhap, um dos carregadores contratados pela equipe, que não vê há muitos anos a família, emigrada para a Espanha, e brinca com a ideia de atravessar o Atlântico com o dirigível e pousar no telhado da casa, fazendo uma visita surpresa, a rede de relações movimentadas e agitadas pelo sonho de um único homem se estende para além do que está materialmente impresso no filme. Yhap é outro achado em O Diamante Branco, ainda que a espontaneidade de muitas de suas declarações seja questionável: é o completo oposto do homem herzoguiano — coloca-se diante da natureza com assombro respeitoso, sabe retirar dela aquilo de que precisa sem procurar impor um domínio, parece viver em relativa paz de espírito —, mas a ele também encanta a ideia de voar, de pairar no dirigível em meio à neblina, como descreve Dorrington, de vivenciar o naturalmente impossível.

Em outro dos desvios do filme, um dos membros da equipe desce pelas cataratas de Kaieteur, levando consigo uma câmera, para ver e registrar imagens da caverna inacessível que fica por trás da cachoeira, onde as aves fazem seus ninhos. Mais tarde, mais um sonho se junta à rede construída ao longo da projeção quando o líder de um dos grupos indígenas da região confessa que, se tivesse asas, a primeira coisa que faria seria justamente ir para a caverna e descobrir o que há ali. Contraditoriamente, porém, ele resolve não ver as imagens e pede a Herzog para não divulgá-las, pois toda a essência de sua cultura está na inacessibilidade do local, na ignorância do que ele encerra. O diretor atende à requisição, talvez percebendo que o que existe no coração da atitude do outro é ainda outra maneira de vínculo com o imponderável na natureza que busca uma forma de reconciliação: a cultura se funda na aceitação de que a caverna deve permanecer desconhecida. O homem que desceu e a viu, no entanto, não é condenado ou repreendido, mas aconselhado a guardar o que viu para si, porque é, em sentidos talvez inalcançáveis para nós, espectadores, dele — provavelmente da mesma forma que Dorrington e Yhap, após os voos bem-sucedidos do diamante branco, sentem-se ainda voando, ainda cercados pela neblina.

Evidentemente, porém, não há como Herzog terminar O Diamante Branco com tal ideia de reconciliação possível sem trair a si mesmo e suas convicções, sua crença erigida filme a filme de que a contenda com essa imponderabilidade, a insurgência contra a profunda indiferença do universo é uma característica fundamental do homem e determina sua busca incessante por um sentido último: nos instantes finais Dorrington conta a Yhap como os nativos da Nova Zelândia não puderam enxergar os navios que estavam à frente deles por estarem tão distante de seu mundo de ideias; e depois dá-se conta de como isso se repete com todos nós: comenta com espanto como os pássaros movem-se todos juntos, mudam de direção de organizadamente, como se uma música os controlasse. Uma música com tamanho poder, mas parecemos incapazes de ouvi-la — e segundo Herzog a luta para superar essa incapacidade, para até mesmo acreditar que essa música exista, é o que faz de nós o que somos.

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Lições das Trevas (Werner Herzog, 1992)

Por Robson Galluci

A vida sem fogo torna-se insuportável para os bombeiros ao final de Lições das Trevas, para grande surpresa e consternação do espectador, depois de o filme investir tempo considerável retratando os esforços necessários para apagar as chamas em um único poço de petróleo — e, como vários planos impressionantes filmados de helicóptero nos mostraram, há muitos deles, muitíssimos, centenas ou até milhares: em um gesto que o narrador consegue conceber apenas como loucura, vários grupos se asseguram de que terão de novo “algo para extinguir”. O público sabe que os poços de petróleo estavam em chamas em primeiro lugar também como resultado de agência humana, por mais que a faceta documental nunca seja assumida explicitamente e o filme se desenrole como um híbrido de narrativa e ensaio de ficção científica (num procedimento não muito diferente do que rege Fata Morgana, e com a mesma carga de radicalismo estético); Herzog se utiliza dessa camada de conhecimento que o espectador acrescenta ao texto da obra para, nesses movimentos de incêndios criados, contidos e recriados pelo homem orquestrar sua sinfonia da destruição — porque, no fim das contas, é isso que Lições das Trevas representa, tanto em si próprio quanto como um certo ponto de chegada de vários temas e procedimentos cultivados pelo diretor ao longo de sua carreira.

O choque de realidade que a presença da natureza causou em tantos personagens e em nós é aqui amplificado, de modo que não é apenas uma natureza ameaçadora, indiferente e desconhecida que se coloca diante da câmera, mas todo um mundo cuja familiaridade desaparece sob um olhar peculiar, uma sensação de estarmos contemplando uma paisagem totalmente alienígena e no limite inapreensível; o narrador tem tantos problemas para estabelecê-la e entendê-la com clareza quanto nós, e tudo se dá por aproximações e metáforas, até que uma direção histórica geral — o fim — se torna evidente, e com ela um padrão de comportamento apareça entre seus habitantes: eles estão nesse planeta desolado sem que isso lhes gere algum tipo de conflito do qual os sonhadores e loucos de Herzog não escapariam sob nenhuma hipótese. Estão, diferente da maioria dos protagonistas da obra do diretor, em paz, ou harmonia, com o mundo que os cerca, mas, ironicamente, essa harmonia se concretiza nos termos apocalípticos e destrutivos que dominam todo o filme: a harmonia, quando enfim dá as caras no universo herzoguiano, vem como caminho para a aniquilação e para o colapso.

Colapso este que a epígrafe faz notar que se dará, como a criação, em grandioso esplendor, e é sem dúvida de forma majestosa que Herzog retrata os poços incendiados, o que levou-o a ser acusado de estetizar o horror da guerra. O horror que Lições das Trevas busca, porém, é muito mais vasto e fundamental (embora não deixe de se contaminar por terrores mais próximos e concretos, como a história de uma mulher e seu filho, que invade a narrativa de forma inesperada, e, significativamente, imediatamente antes de testemunharmos toda a quase inacreditável extensão das chamas, do desastre de proporções cósmicas que Herzog já mencionou ao falar sobre o filme), embora, como a obra pregressa do diretor se encarregou de mostrar vez após outra, esse horror primordial não venha sem seu lado inegável e terrivelmente belo; e o texto recitado pelo narrador, com reverberações apocalípticas (e em muitos momentos com paráfrases ou citações diretas do Apocalipse), não deixa dúvida de que o que nos está sendo mostrado é, de maneira poética mas também literal, o fim desse mundo, ou uma imagem possível dele. O homem herzoguiano finalmente encontra uma síntese para resolver seu embate milenar com a natureza, mas é na forma de uma simbiose destrutiva. Quando os fogos se apagam, há que acendê-los de novo para continuar, uma dança da morte que se estende para todo o universo.

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The Flying Doctors of East Africa (Werner Herzog, 1969)

Por Robson Galluci 

Nos créditos iniciais, The Flying Doctors of East Africa se apresenta como “um relatório de Werner Herzog”, e é de fato um dos documentários formalmente mais convencionais da carreira do diretor. Não encontramos aqui as imagens surreais e pouco familiares da natureza, a narração impressionista e dada a evitar quaisquer referências históricas concretas, a sensação de que o que nos pareceria tão comum e banal há minutos atrás agora exibe diante de nosso olhar uma face desconhecida e talvez mesmo incompreensível. Pelo contrário: o filme é muito econômico o tempo todo, direto, sem os desvios de foco e arroubos poéticos habituais em outras não-ficções de Herzog, sempre buscando a imagem exata, o corte preciso onde necessário para que o autodenominado relatório seja vítima do mínimo ruído possível, para que haja ambiguidades apenas onde isso é inevitável, em suma, para que a situação muito concreta retratada — os esforços do Flying Doctors Service of East Africa (existente até hoje, com o nome de African Medical and Research Foundation) para levar tratamento médico adequado a regiões remotas do leste africano — seja apreendida pelo espectador da maneira mais “pura” e menos mediada que se conseguir.

O ruído que Herzog busca evitar na forma do filme acaba sendo, no entanto, o grande tema de The Flying Doctors of East Africa, ainda que ele tente dar um tratamento mais generalizado ao material de que dispõe. Assim, embora pontuadas por depoimentos impressionantes a respeito do tipo de trabalho médico que pode se mostrar necessário (e a entrevista com um cirurgião plástico a respeito da operação feita em uma mulher atacada por uma hiena é particularmente marcante), ou momentos de estranhamento cultural mais tipicamente herzoguiano como a recusa dos massai a subir escadas, as cenas que sobressaem e formam o núcleo do filme envolvem justamente os problemas sérios de comunicação entre os médicos (em sua maioria europeus) e os africanos, problemas que podem decidir a vida ou a morte dos pacientes — Herzog chega a presenciar duas mortes causadas pelo fato de as famílias fornecerem alimentos ou água a feridos, com a crença de que isso é necessário para que se fortaleçam.

Mas os percalços de comunicação não se restringem ao anedótico, como pode parecer que ocorrerá após alguns depoimentos e comentários de Herzog a respeito da dificuldade do trabalho. Não demora muito e vemos um garoto que, rejeitado pelos pais por ter sido levado para uma área urbana onde recebeu tratamento médico (o motivo para a rejeição desconhecido), foi entregue para a adoção e se recusa a falar, e brinca apenas com as crianças surdas-mudas do abrigo para onde foi levado (lembremos que em breve o diretor filmaria Terra do Silêncio e da Escuridão), trazendo à questão outras camadas, inclusive a da identidade. É quando a faceta de relatório começa a ceder ao Herzog que surgiria em Fata Morgana (1971), já perseguido pelas mesmas dúvidas e inquietações, dando-se conta de que o que desconhecemos vai muito além do que podemos pensar; desconhecemos o próprio mundo.

Essa tomada de consciência acontece quando se descobre que nem mesmo desenhos figurativos são ferramentas universais de comunicação: a ilustração de um olho não é entendida por todos como um olho — alguns identificam um peixe ou um sol. Numa tomada de posição súbita (diante dos quarenta minutos de reportagem razoavelmente desapaixonada que a antecederam), Herzog comenta como nossa inépcia é tão grande que não alcançamos sequer uma comunicação básica depois de séculos de domínio colonial. Grande parte de sua obra subsequente terá um ponto de partida nessa inépcia, que pode mesmo ser estendida à falsa sensação de familiaridade construída após séculos de exploração e conquista da natureza, sensação essa que Herzog destrói filme após filme; e investigará em que circunstâncias, se elas existem, os homens podem conhecer verdadeiramente a si mesmos e o universo.

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O Espião Que Sabia Demais (Tomas Alfredson, 2011)

O Espião Que Sabia Demais é um thriller de espionagem da mesma forma e na mesma medida em que Deixe Ela Entrar era um filme de terror: os códigos de gênero são usados para erguer um universo que vai erodir sob o peso das relações e aspirações pessoais que não se ajustam às suas necessidades. A cena dos créditos já dá o tom: Control e Smiley saem do Circus para nunca mais voltar, descendo escadas e atravessando corredores sob o olhar aturdido dos colegas e funcionários, em silêncio, sem trilha incidental, sem gesto em direção ao espetáculo. O filme já começa cansado, exausto, um sistema de espionagem e informações que parece a essa altura se mover apenas por inércia, monótono e, ao que tudo indica, longe da relevância que pode ter tido durante a guerra e no período imediatamente após. Smiley está oficialmente “fora da família” e é justamente essa a razão que leva um membro da alta hierarquia do governo a chamá-lo para realizar uma investigação quando a história sobre o agente duplo transpira. Mas não se abandona a família nunca, Smiley não demora muito a descobrir, e quaisquer que sejam os problemas correntes, é preciso buscar a resposta no que aconteceu antes, de modo que a investigação se concentra primordialmente no passado, e muitíssimo menos nos esquemas de espionagem do passado do que nas tensões e relações conforme se delinearam antes e deram origem ao que se vê no presente.

De forma que o que se esperaria ser o conflito central de O Espião Que Sabia Demais é de um pragmatismo desencantado — é preciso descobrir quem é o espião infiltrado simplesmente porque, afinal, é um espião infiltrado e assim as coisas são feitas, e não por ser um ato torpe ou desprezível (coisa que o filme não tenta sugerir por nenhuma vez — como diz o próprio agente depois de ser desmascarado, “Era preciso escolher um lado e foi o que eu fiz”), ou pela natureza ou relevância das informações que ele passa a Moscou (que nunca sabemos com clareza — nenhuma conspiração maquiavélica, nenhuma ameaça iminente de guerra nuclear a ser encontrada aqui). Não que as informações sejam banais ou o a traição ao Circus seja aceitável; a questão é que nada disso importa realmente ao diretor, o que faz com que a trama central seja inusitadamente desvalorizada e receba pouquíssima ênfase, inclusive formal. Exemplo claro é como as reviravoltas propriamente ditas não recebem tratamento especial algum, enquanto cenas em que o que está em jogo são os vínculos entre os personagens — Smiley e seu estratagema para conseguir o endereço da casa em Londres, a execução no final — são aquelas que Alfredson mobiliza montagem e trilha para enfatizar, carregar de tensão e significado.

A cena-chave de O Espião Que Sabia Demais é uma festa, mostrada aos poucos ao longo de toda a projeção, em que com pouquíssimas palavras Alfredson nos transmite muito do que precisamos saber e, mais que isso, nos coloca no mesmo estado emocional dos personagens, ao ver como as coisas eram e compará-las a como elas são no presente do filme. Nesse sentido, temos o oposto de Deixe Ela Entrar: lá, dois marginalizados que se encontram e se aceitam; aqui, toda uma comunidade à sua maneira excluída do convívio social normal (mesmo os relacionamentos amorosos são parcialmente vividos dentro do grupo, e as exceções — como o próprio Smiley ou Peter Guillam — acabam por se mostrar pontos fracos) que se desintegra diante de nossos olhos. Enquanto a identidade do espião não é descoberta, esse grupo pode se manter, mesmo que só na aparência, pode oferecer um conforto; mas após a revelação não restará mais nada, nem mesmo as ilusões, e o próprio processo de investigação envolve o esfacelamento voluntário dos vínculos que ainda resistem: até mesmo Smiley precisa cometer uma traição (“Nós temos muito em comum”, frase que ele dirige a Karla, seu duplo soviético e idealizador da operação do agente duplo, quando os dois se encontram, sendo muito mais verdadeira do que pode parecer a princípio), fazendo uma promessa cujo cumprimento ele sabe ser impossível para obter a colaboração de Ricki Tarr na armadilha que montam no clímax. O clima de paranoia aos poucos cede espaço a um clima de resignação, à medida que o fim se aproxima inexoravelmente e as máscaras caem, colocando um ponto final a uma identidade comum partilhada por todos. Não por acaso, o último flashback do filme, reservado a Jim Prideaux, apenas confirma qual foi a maior das traições, já implícita anteriormente. E a montagem que encerra O Espião Que Sabia Demais não poderia ser mais certeira, um desfile dos últimos filhos daquele grupo, agora órfãos de todo — e mesmo que Smiley aparentemente se reconcilie com a esposa, é preciso notar que, no último plano do filme, ele está sozinho na sala em que antes se reuniam vários.

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Meek’s Cutoff (Kelly Reichardt, 2010)

Um personagem lê em voz alta a história da expulsão do Éden: é essa a primeira fala que ouvimos em Meek’s Cutoff, um movimento que logo de início trata de relembrar o tipo de narrativa que animou os pioneiros durante a colonização da América, que lhes forneceu uma identidade segundo a qual buscavam reconquistar o paraíso na Terra. Mas a caravana guiada por Stephen Meek, depois de tomar um atalho que os levou para uma região hostil, não está na melhor das situações, com pouca água restando e sem boas perspectivas de chegar tão logo ao seu destino. Conforme a necessidade de água se torna mais urgente, os personagens têm menos oportunidade de se dar ao luxo de fazer longas pausas — a jornada precisa seguir, a qualquer custo, inclusive o de abandonar pelo caminho o peso desnecessário trazido por velhos objetos da família. Isso também define a estrutura narrativa adotada por Kelly Reichardt: vários pontos de partida típicos de faroestes são levantados, mas todos ficam pelo caminho, todos são abortados, seja o ataque indígena, a corrida do ouro, a traição cometida por um membro do grupo que pode levar à morte dos demais, até mesmo um duelo que se ensaia mas termina sem que tiros sejam disparados — todas essas situações são sugeridas, sobretudo a que envolve a possível fuga de Stephen Meek, receio que os personagens carregam durante toda a primeira metade do filme, mas nenhuma se concretiza, porque é preciso seguir em frente, encontrar água, chegar ao destino, ao Éden redescoberto, o mais rápido possível.

A jornada, em Meek’s Cutoff, é inexorável, mas o é apenas para seus personagens, que só admitem como objetivo, como ponto final, a ideia de paraíso que carregam consigo, e que certamente não corresponde ao lugar árido em que estão presos. A escolha da diretora pelo formato de tela de 1,33:1 acentua, na imagem quase quadrada, a distância inimaginável do horizonte, a paisagem que os pioneiros não compreendem, pela qual não nutrem sentimento algum de pertencimento, da qual querem se afastar o quanto antes, mas que parece se estender ao infinito em todas as direções. Porém, se no começo do filme vemos os atores em primeiro plano com a terra se estendendo por quilômetros para além deles, logo vemos também tomadas em que eles aparecem mais distantes, mais integrados à paisagem — é como Reichardt nos ensina que, por mais que não tenha ainda essa percepção, a caravana já faz, a seu modo, parte do ambiente. O uso do som é outro indício: os ruídos do cascalho, do vento, das rodas das carruagens, o crepitar das fogueiras são pervasivos, fortes, nunca discretos, sempre reclamando seu lugar e por vezes até mesmo encobrindo as vozes; e estas também têm suas particularidades, são dotadas de uma materialidade e presença incomum, roucas, ásperas, dissonantes. Uma materialidade que engloba e integra a paisagem, as pessoas, os objetos, tudo que está em cena, numa unidade. Não se trata mais de um não-lugar entre o ponto de partida e o ponto de chegada, a ser atravessado e esquecido, sem deixar qualquer marca naquelas pessoas: elas, mesmo que contra a própria vontade, encontraram algum tipo de identificação com a terra, são parte dela agora.

Nada disso elimina a seriedade e urgência da luta que eles engendram para encontrar água e sobreviver, nem estabelece a possibilidade de uma convivência “pacífica” com a natureza ou qualquer coisa do gênero; mas exige dos personagens o reconhecimento da concretude da situação que vivem para além do passageiro, de um interlúdio particularmente difícil — mas interlúdio — da jornada, ao fim da qual aguarda o paraíso terrestre. É preciso, talvez, abandonar a ideia de jornada, ainda que temporariamente, em mais uma virada narrativa nesse filme em que tantas coisas são deixadas pelo caminho à medida que os personagens entendem mais o lugar, a conjuntura, a si mesmos. Assim como na narrativa do Éden, é uma mulher que toma a iniciativa dessa mudança, Emily, que, com seu “sangue índio” real ou metafórico, é a primeira a perceber que seguir com uma mentalidade que coloque o mundo — porque o lugar onde se encontram, nas circunstâncias limítrofes em que se encontram, é agora para eles o mundo em sua totalidade — em uma esfera e eles em outra não levará a nada. A personagem é o maior trunfo de Meek’s Cutoff: o espectador do século XXI está preparado para lançar-lhe um olhar condescendente por conta de sua posição numa sociedade patriarcal etc., mas ela repele esse olhar, mantendo uma relação de igual para igual com o marido e, mais tarde, assumindo muito literalmente o comando da situação — e mais, mantendo-o, primeiramente através da ameaça de força (uma atitude que Stephen Meek definiria como muito masculina, em sua teoria que estabelece as mulheres como agente do caos e da criação e os homens, da destruição), mas depois ganhando a confiança dos demais (ainda que por não lhes restar escolha àquela altura).

Essa aceitação da terra se materializa na aceitação de um novo integrante na caravana, o índio capturado por Meek e pelo marido de Emily, Soloman, e que pode tanto levá-los a onde há água quanto a uma emboscada armada pelos outros de seu grupo. Uma aliança é improvisada, mas não há concessões por parte de Reichardt: assim como não entendem a terra mas precisam aceitá-la, não entendem — e nós também não — o que o indígena fala, e não têm como saber se ele, por sua vez, os compreendeu. A tensão central de Meek’s Cutoff — que também, é claro, criou e abandonou outras tensões e conflitos ao longo da projeção — se mostra: não é propriamente se a aliança incerta entre os que chegam à terra e um dos que correm o risco de ser expulsos dela se manterá até o fim, ou se os protagonistas estão sendo levados à água ou à morte, mas quão profundos e duradouros são esses gestos de identificação que levam (ou que não levam, pois, apesar de sugerir o contrário, o filme não toma uma posição definitiva) à formação de um grupo como o que temos na segunda metade, e gradualmente à distensão das relações — mesmo que pela exaustão — e a um aumento da confiança — que no entanto segue incerta, pois não existe um esforço em se criar uma circunstância utópica ou necessariamente bem sucedida (Meek’s Cutoff termina antes de descobrirmos como, afinal, as coisas se desenrolaram), e sim em examinar a pequena comunidade formada e lançar questões. Se o filme de Reichardt é, em muitos aspectos, principalmente formais, um western revisionista, em espírito ele se mantém fiel a um tema caro ao gênero, a identificação de pessoas com o espaço em que vivem, hostil ou não, e entre si mesmas, e as tensões subjacentes, na gênese de uma comunidade. É o que dá força ao potente campo-contracampo que encerra o filme, um olhar que carrega toda essa rede de confianças, tensões e expectativas, trocado por entre os ramos de uma árvore que pode ser o sinal em que os personagens depositam suas últimas esperanças.

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O Enigma de Outro Mundo (Matthijs van Heijningen Jr., 2011)

A princípio, O Enigma de Outro Mundo de 2011 não é um remake do filme de John Carpenter, e sim uma prequel, centrada nos acontecimentos da base norueguesa e que se conecta ao início do original, em que os dois sobreviventes, perseguindo um cão que se revela mais uma réplica criada pelo monstro alienígena que desenterraram, se encontram com o time de Kurt Russell. Partindo dessa abordagem, o que mais se destaca é o aspecto lúdico que Matthijs van Heijningen dá ao filme: trata-se de um jogo entre ele e os fãs da obra original, em que as peças vão sendo movidas pelo tabuleiro e posicionadas até que tudo esteja no lugar para o encaixe entre as duas histórias; assim, temos o encontro da nave, a retirada do bloco de gelo onde se encontra a criatura, uma longa sequência que serve para dar origem ao cadáver queimado grotesco que os americanos levam para a própria base, pequenas inserções aqui e ali que preparam o cenário da visita de MacReady ao local destruído.

Nesse sentido, Van Heijningen acaba realizando algo próximo ao que Martin Campbell fez em Cassino Royale: ambos partem da premissa de um status quo partilhado com o público e encenam a sua construção a partir de uma situação significativamente diferente, ainda que apenas na aparência. Isso, porém, já aponta uma das fraquezas do filme de Van Heijningen: se a informação compartilhada de Campbell é um personagem de status já mitológico que ele irá lapidar, através dos acontecimentos, tendo como matéria-prima um James Bond muito distante daquele com que estamos acostumados, no caso do filme de Carpenter não há nada nesse sentido, e o jogo proposto começa a perder a graça quando fica evidente que não se pode esperar fazer nada além de meramente preparar o cenário que os personagens da “continuação” visitam — a lista ali em cima não é casual. Fora isso, o novo O Enigma de Outro Mundo parece um filme feito apenas para preencher os 100 minutos antes das cenas dos créditos finais que conduzem ao original, e nesses 100 minutos não há nada que já não tivesse ficado evidente a partir das poucas cenas que Carpenter dedicou aos noruegueses; Van Heijningen não tem dimensões a acrescentar, e sua prequel acaba sendo pouco mais que uma brincadeira de fã.

Mas, ao mesmo tempo, e por mais que sob muitos aspectos não seja, O Enigma de Outro Mundo de 2011 também é um remake do filme original. De certa forma, não é nenhuma surpresa: temos a mesma criatura, a mesma situação de isolamento, no mesmo lugar, com poucas semanas de diferença — é claro que a coisa toda vai se desenrolar de forma semelhante. É um remake genuíno, porém, indo muito além de uma estrutura geral parecida: temos a clássica cena do teste para ver quem está infectado — e crédito às boas ideias: dessa vez, a prova de humanidade está nas obturações, já que o monstro não consegue replicar material inorgânico —, o clímax na nave, a cena em que um personagem finalmente entende o que está acontecendo, e até mesmo o lança-chamas falhando num momento crucial. Sendo um filme claramente feito por um fã do original, também funciona como homenagem, e Van Heijningen se aguenta bem nesse quesito, embora não se livre de fazer diversas concessões ao tipo de cinema comercial de terror praticado hoje em dia — o exemplo maior é que, por mais que haja uma tentativa séria de estabelecer a paranoia e a erosão da confiança do grupo que assombravam a versão de Carpenter, ela logo é sabotada pelo excesso de aparições da criatura, que a todo momento surta e destrói seu disfarce lançando tentáculos para todos os lados, aqui com muito menos paciência e, pelo jeito, ainda menos consciência de qual é, afinal, a vantagem de conseguir criar réplicas quase perfeitas de suas vítimas. E também estranhamente submetida a certos maniqueísmos e que-tais, que a levam a escolher como clone para o clímax justamente o personagem construído como uma espécie de vilão humano do filme, o cientista arrogante, irresponsável etc.

Por um lado, esse tipo de comparação não é dos melhores critérios — é preciso ver o filme pelo que ele é independentemente do de Carpenter —, mas o problema central é que, diferente de um Planeta dos Macacos: A Origem, O Enigma de Outro Mundo de Van Heijningen não assume nunca uma postura com relação a si próprio que não seja uma função do de Carpenter; o filme de Wyatt é tanto uma prequel do de Schaffner quanto de uma eventual continuação que se estabeleça por si mesma, assumindo o original de maneiras indiretas — tendo, por assim dizer, diante de si um horizonte em que o filme de 1968 pode ter sua existência ignorada. O horizonte de Van Hejningen nunca prescinde do original, e cria um elo concreto com O Enigma de Outro Mundo de John Carpenter, mas o situa justamente no entrelaçamento entre um remake que não faz mais que apontar para sua inspiração — é quase uma performance, apresentando o clássico de 1982 para a geração atual —, mas que nunca alcança o mesmo nível, e uma prequel que nunca se afasta do óbvio.

Temos, portanto, um filme que até é, em muitos aspectos, eficiente, mas exatamente no que não se propõe, pois seus méritos terminam ofuscados pela insistência em não deixar que o de Carpenter saia da vista ou da memória. Resta a questão de como uma obra tão dependente de outra se apresenta a um público que não tenha assistido ao original (o filme acabou sendo um fracasso de bilheteria, o que é sintomático, não de uma estética provocativa ou de timing ruim, mas de seu encapsulamento e horizonte referencial mínimo). Poderia ter sido diferente, porque não se deve negar que a ideia e a intenção — um remake que não é bem um remake e ainda por cima tenta levar os espectadores a assistir ao filme que o inspirou — são boas, e o próprio Carpenter já tinha dado, em Assalto à 13ª DP, a lição de como fazer uma refilmagem que não é bem uma refilmagem (e de um filme de um grande cineasta). Não se pode negar também que temos aqui algo acima da média quando se trata de remakes de filmes do diretor, mas isso não quer dizer muita coisa. Nem é suficiente.

 

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O cinema de Artavazd Peleshian

Os filmes de Artavazd Peleshian, cineasta armênio nascido em 1938, são geralmente classificados como documentários, mas meramente por conta do impulso desnecessário de se encaixar tudo dentro de um gênero. Peleshian usa de fato imagens documentais em seus trabalhos — sejam capturadas por ele próprio ou por outros —, mas o que move sua obra não é o desejo de registrar um dado aspecto da realidade. Capturar de alguma forma a realidade é sem dúvida a preocupação central do cinema de Peleshian, porém uma realidade humana mais fundamental e universal, embora não se ignorem suas particularidades históricas. Essa busca pelo universal é de praxe associada à ficção, e se poderia aqui falar sobre como o diretor confunde os limites que separam o ficcional do documental etc., discurso hoje em dia aplicado a praticamente qualquer filme que não se coloque univocamente de um lado ou de outro. Esse discurso é problemático porque ignora outras formas de se fazer cinema que comportem outros registros e objetivos, formas ensaísticas ou poéticas — que são exatamente as que interessam a Peleshian. O objetivo dele não é, novamente, como em algumas instâncias da ficção, buscar o universal no particular; mas buscar o universal com a consciência de que se está sempre no fio da navalha, que um elemento mínimo pode acabar com qualquer pretensão de se falar de outra coisa que não a própria experiência. O uso de imagens documentais se deve, acima de tudo, ao seu status mais do que evidente: imagens ficcionais são classificadas por tais e tais particularidades, mas a seu status ficcional, embora definidor, raramente se alude de forma explícita; mas qualquer discussão sobre uma imagem documental passa por problematizar o próprio fato de ela ser documental. E esse status evidente estabelece o desafio básico que Peleshian faz a si mesmo, porque cada filme seu só adquire significado como todo, como unidade, e portanto é preciso destruir o que quer que cada imagem diga — ou pareça dizer — por si mesma, sendo que a própria forma do filme passa a refletir, dessa maneira, a busca por significados universais, sempre à beira do fracasso por conta das particularidades.

Assim, em Começo, primeiro filme profissional do diretor, de 1967, temos imagens de opressão seguidas por imagens de multidões insurretas, enquanto a trilha sonora é invadida por disparos tão ruidosos que poderiam estar em um spaghetti western, tudo isso iniciando um filme que parece ser sobre a Revolução Russa e seus desdobramentos — subentendendo-se (tanto pelo título quanto pelo contexto da produção) que foi apenas o início de uma sublevação em escala global que trará o fim da opressão etc. Mas os sentidos que vemos nessas imagens de abertura logo estarão sendo colocados em questão, pela trilha sonora ambígua — não se sabe se a música que acompanha as diversas instâncias de multidões ou grupos de pessoas correndo as tenta enobrecer ou satirizar; em outros casos, a equivalência entre o ritmo da música e o da montagem adquire um caráter inegavelmente jocoso —, pelo fato de que muitas vezes não vemos, afinal, para onde correm. Em alguns casos, simplesmente perseguem um trem, o que passa longe de qualquer subtexto “revolucionário”, uma vez que o destino já está dado e é inevitável. Também não demora muito para que multidões sejam vistas acompanhando paradas nazistas e imagens de catástrofes passem a fazer parte da composição. E, nos momentos mais radicais, Peleshian resolve não apenas colocar o sentido em tensão através da montagem e da relação com outros elementos como o som, mas sim remover todo o sentido literal da imagem, através de congelamentos, cenas que rodam de trás para a frente, depois invertem, depois invertem novamente e assim por diante muitas vezes, de slow motions ou acelerações, até não restar nada senão um arranjo visual que beira o abstrato. Ao final, não é fácil estabelecer textualmente qual seria o sentido do filme — como o próprio diretor enfatiza em uma entrevista —, mas fica muito claro que Peleshian quer colocar em tela uma tensão que não se resolve; a última imagem — uma criança cujo futuro será em grande parte definido pelos movimentos coletivos que vimos — deixa apenas uma pergunta: afinal, começo de quê?

Nós, segundo filme de Peleshian, se coloca como um desafio mais complexo. Diferente de Começo, feito quase inteiramente com imagens de arquivo, Nós foi na sua maior parte filmado pelo próprio diretor, e sua escolha por imagens menos “anônimas” que as que usou anteriormente é ao mesmo tempo ousada e perigosa: em Nós vemos paisagens, rituais religiosos, a câmera se aproxima muito mais das pessoas, dos rostos marcadamente étnicos — e até mesmo na trilha há um exemplo de algo que soa bastante como música regional da Armênia. As particularidades se impõem aqui com muito mais força do que em Começo, e pode-se argumentar que Peleshian faz exatamente o movimento de tentar extrair o universal do particular; no entanto, trata-se novamente de amplificar o status de registro das imagens (e a música étnica, que acompanha por sua vez o grupo mais étnico de cenas, faz parte dessa amplificação) para reduzi-lo com o uso da montagem e de manipulações da velocidade e da direção de projeção. O aspecto que se destaca é que, apesar de a matéria-prima ter mudado de imagens captadas por terceiros a imagens captadas com um propósito, a performance de Começo segue intacta em Nós, e é nesse ponto que emerge outra marca típica do cinema de Peleshian (talvez sua marca determinante, que irá encontrar sua plena expressão em Nosso Século):trata-se de um processo de curadoria — ou, como se disse, a performance desse processo, nos filmes posteriores a Começo —, de uma antologia de imagens juntas para expor algum sentido. Uma antologia feita, no caso do primeiro filme, a partir de um arquivo provavelmente muito grande; e, no caso dos demais, de um arquivo virtualmente infinito de imagens, sem existência concreta, mas com uma existência virtual, formado por todas as imagens que o diretor não utilizou e, sobretudo, pelas que não chegou a filmar. Daí se extrai a máxima que rege o cinema de Peleshian: as imagens estão aí, basta saber selecioná-las e organizá-las de forma a descobrir algo, de forma a extrair algum sentido do ruído generalizado. O sentido que Nós busca é ainda menos textual e mais fugidio que o de Começo: afastando-se das pretensões ensaísticas do filme anterior, o filme, como o título sugere, se apresenta como um painel poético do ser humano, seus movimentos vitais — funerais, partidas, retornos, intempéries —, suas relações com o que o cerca — o espaço, as máquinas. Nesse sentido, Nós é muito próximo de Nosso Século, possivelmente a obra-prima do diretor; mas também lança as bases para as duas obras seguintes e suas reflexões sobre a relação do homem com a natureza na formação da identidade, Habitantes e As Estações.

Em Habitantes, isso não fica muito evidente, já que os animais dominam o filme e os humanos aparecem em uma única cena, e como meras silhuetas, que em poucos segundos perdem seu significado para dar forma a mais uma das composições abstratas típicas do diretor. Acompanhada por sons de disparos como os de Começo e colapsada entre cenas de migrações em massa e debandadas de animais, é uma cena que se pode julgar como uma afirmação mais niilista a respeito de nós do que as ambíguas, porém esperançosas, vistas anteriormente — mas é preciso lembrar que anteriormente também estavam presentes multidões em movimento, às vezes com propósito, às vezes não, e na maior parte do tempo difícil ou impossível saber, e os papéis são intercambiáveis, acrescentando mais camadas de ambiguidade e tensão quanto ao significado último do filme. É outra característica marcante de Peleshian: se os filmes se constituem como unidades dotadas de sentido (ambíguo, por certo, mas ainda assim sentido), que não se realizam nas imagens por si próprias, sua obra como um todo também pode ser vista dessa forma; é uma abordagem que tem suas limitações, dado que não se pode negar aos filmes seus sentidos particulares como se nega às imagens, e que dizer que a obra como um todo é “uma reflexão sobre o ser humano” ou coisa parecida é o mesmo que não dizer nada, mas há linhas de tensão que reaparecem filme a filme, algumas em todos, atravessando a totalidade da produção do diretor de modo contínuo.

No filme seguinte, As Estações, a questão da natureza como definidora da identidade é determinante. A cena inicial, de um camponês tentando atravessar um rio levando consigo uma ovelha e resistindo à correnteza, se presta a todo tipo de metáfora, inclusive as mais óbvias, sobre a relação do homem com a natureza impessoal etc., mas devemos nos lembrar de que é um filme de Peleshian e é preciso ver o todo (não que essa observação não esteja presente, mas há mais e ela não é estabelecida unicamente pela imagem inicial); é preciso passar pelas cenas que se seguem, por pastores de ovelhas, por montes de feno, por um casamento, pelas chuvas, pela neve, pela passagem das estações que define de forma expressiva a vida dos camponeses retratados. As Estações e Nosso Século são filmes que fazem um uso notavelmente menor de música que os anteriores, e aqui isso parece se alinhar à irredutibilidade da natureza como tema central. É, por assim dizer, o filme “falho” do diretor, não no sentido qualitativo, mas no sentido de ter essa natureza irredutível como objeto, de ser o momento em que o cinema de Peleshian busca o impossível dentro de seu método. Que tipo de seleção, de montagem e manipulação de imagens pode extrair uma verdade — ou sentido — fundamental da natureza? Werner Herzog, um diretor de estilo e métodos completamente distintos dos de Peleshian, e que também busca uma espécie de “verdade estática”, como ele mesmo define, é outro a admitir a irredutibilidade da natureza: a resposta, para ele, é exacerbar essa característica, é filmá-la como um mundo alienígena e desconhecido.

Peleshian não vai tão longe, mas o olhar para o desconhecido entra em sua obra no filme seguinte, provavelmente o seu melhor, Nosso Século, crônica da era espacial e de nossa época (outra tradução possível do título) de maneira geral, do homem diante do que é incógnito. Há imagens de experimentos primitivos de aviação, de lançamentos de foguetes, de treinamento de astronautas, mas também de explosões atômicas: como de hábito, nada vem sem sua contrapartida, nenhum avanço vem sem seus desastres, e a era espacial que o filme parece a princípio festejar também é a era nuclear, a ponto de as imagens se intercalarem de tal forma que chegam a se confundir, nesse que é o mais longo dos filmes do diretor, e o primeiro a se construir como algo próximo a uma narrativa, com o treinamento dos astronautas e o lançamento da nave espacial ordenados cronologicamente. Essas construções quase-narrativas estarão presentes também em Fim e Vida, os dois filmes seguintes e últimos de Peleshian, em que a passagem do tempo se torna uma das questões centrais (embora se possa dizer que As Estações tivesse uma construção próxima a essa, não se deve esquecer que há uma organização cronológica que aponta para um ciclo, diferente dos outros três, em que o passar do tempo leva a um momento de consumação); no caso de Nosso Século, há tanto a micronarrativa dos astronautas quanto uma narrativa global que se debruça sobre a solidão, o anseio pelo desconhecido, a tentativa humana de se transcender a si mesmo e a natureza (outro tema caro a Herzog), numa oscilação entre fracasso e êxito que atravessa todo o filme, e numa completa dúvida sobre quando é melhor o fracasso e quando é melhor o êxito, até seu final ambíguo em que não se distingue um de outro.

Fim e Vida, que encerram a carreira de Peleshian, foram idealizados para exibição em conjunto e nessa ordem, sugerindo uma volta ao tema cíclico de As Estações, mas não é bem o caso. Em Fim, como que espelhando o primeiro filme, a imagem do trem retorna, mas dessa vez ninguém corre atrás dele; todos embarcaram no trem, incluindo a própria câmera, todos novamente vão na mesma direção, e o uso de música é mais uma vez mínimo, deixando o ruído do trem dominar a trilha. Haverá alguma diferença de status entre a situação nesse filme e a em Começo? Peleshian não procura responder, nem mesmo insinua se há ou não uma resposta: a câmera se limita a observar os passageiros, a paisagem pela janela, culminando numa longa cena em que o trem atravessa um túnel e o clarão ao final encerra o filme e nos joga para Vida, o último e mais curto filme de Peleshian, em que um parto é filmado com closes do rosto da mulher que dá à luz, enquanto soam batidas de coração. A imagem final, com a mãe e a criança fitando a câmera, faz um paralelo com o encerramento de Começo: novamente, olha-se para o futuro à espera do que pode vir pela frente. Como já dito, a sequência de projeção definida por Peleshian pode sugerir uma interpretação cíclica aos filmes; após a representação da morte em Fim, há de novo o nascimento, e a vida continua. À luz dos trabalhos anteriores do diretor, porém, é difícil atribuir um sentido unívoco: Fim e Vida juntos representam a tensão existente em todos os outros, apenas na chave mais declaradamente poética de toda a filmografia de Peleshian, entre vida e morte, entre um destino ainda em aberto e um já definido e inexorável.

É possível extrair um sentido da desordem geral, mas ele será ambíguo, ou fugidio; talvez seja essa a lição deixada por Artavazd Peleshian, e é bom lembrar novamente que ele insistia que os filmes — e sobretudo os dele — não podiam ser reduzidos a palavras, do contrário não haveria necessidade de serem filmes. Se há um sentido, ele nunca será textual, sempre beirará o incompreensível e por isso mesmo está sempre disperso, precisa ser forçado a aparecer de alguma forma, ainda que imprecisa, ainda que breve; os filmes de Peleshian são construções em que podemos contemplar o que pode ser uma verdade fundamental sobre nós mesmos por algum tempo, antes que ela se disperse novamente quando a projeção termina. Nós não a compreendemos completamente, nem conseguimos expressá-la — mas também não a esquecemos.

Filmografia

Começo [Skizbe; URSS, 1967]. 10 min.

Nós [Menq; URSS, 1969]. 24 min.

Habitantes [Obilateli; URSS, 1970]. 9 min.

As Estações [Vremena goda; URSS, 1975]. 28 min.

Nosso Século [Mer dare; URSS, 1983]. 50 min.

Fim [Verj; Armênia, 1992]. 10 min.

Vida [Kyanq; Armênia, 1993]. 7 min.

Há ainda Lernayin parek (1964) e Mardkants yerkire (1966), feitos por Peleshian enquanto estudava no instituto VGIK, em Moscou, e Zvyozdnaya minuta (1972), de Lev Kulidzhanov, em que Peleshian colaborou.

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Sob o Sol de Satã (Maurice Pialat, 1987)

Sob o Sol de Satã, baseado no romance de Georges Bernanos, trata da história de um padre em conflito, que duvida de sua própria vocação e da possibilidade de que ela faça alguma diferença num mundo que ele vê mergulhado no Mal, mas em momento nenhum a imagem sugere ou busca qualquer espécie de transcendência de si mesma. Para falar do conflito espiritual do padre Donissan a imagem precisa se bastar, o que é o mesmo que dizer que tudo o que há de concreto na imagem precisa se bastar; ou ainda, que tudo está na imagem. Se em Robert Bresson (que também adaptou Bernanos) as lacunas propositais — sobretudo na encenação, mas também na construção dos espaços — sugerem o que não pode ser captado pela câmera, em Sob o Sol de Satã a abordagem talvez seja ainda mais radical: o que não pode ser captado pela câmera é excluído do próprio campo semântico do filme.

Tal escolha se reflete até mesmo na seleção dos atores, em especial Gérard Depardieu e o próprio Pialat, ambos com forte presença em cena. E se estende para o uso do som, como demonstram os muitos diálogos e monólogos que parecem ter sido transportados diretamente do livro para a tela, vários deles longe de qualquer pretensão de naturalismo e assumidamente expositivos, sobretudo nos casos em que personagens falam sobre si mesmos. Não se trata de literalidade excessiva na adaptação ou de amor pela linguagem, tampouco de falta de sutileza no trato dos personagens, mas antes outro aspecto da proposta de concretude e não-sugestão de Pialat.

Essa concretude, porém, não se basta, e é exatamente a ineficácia de sua própria forma o material básico que compõe Sob o Sol de Satã. O filme é dividido em duas seções, separadas entre si pela peregrinação de Donissan por uma estrada rural e seu encontro com Satã, em carne e osso, em que o padre descobre que lhe será concedida a graça de olhar para alguém e enxergá-lo da forma mais absoluta, assim como ele enxerga a si mesmo. Mas a questão que emerge desse encontro é até que ponto alguém pode conhecer a si mesmo: antes disso, o que acompanhamos são os conflitos de Donissan consigo próprio enquanto tenta achar um propósito para sua existência e alguma esperança de que o mundo não esteja irremediavelmente destruído, de que o Mal não seja nossa essência mais fundamental. Enquanto ele se considera indigno ou incapaz para o sacerdócio por conta de suas dúvidas, muitos fiéis o veem como um santo, e seu tutor se espanta pela forma como consegue cativá-los sem sequer se esforçar para tal.

Assim, quando, na manhã seguinte à sua conversa com Satã, Donissan se encontra com a jovem Mouchette, sua visão absoluta do que ela é e fez na primeira parte do filme pode ser factualmente certeira — a única concessão possível da abordagem de Pialat —, mas sua interpretação e reação a isso são outra história; o discurso que oscila entre um pessimismo profundo e a graça redentora que ele faz à moça tem consequências imprevistas, e novamente Donissan se vê às voltas com suas questões sobre o sentido de sua vida e a possibilidade de fazer alguma diferença quando mesmo a comunicação parece tão inelutavelmente fraturada. Pode-se dizer que o maior ponto da estética de Pialat, de tentar, em grande parte do tempo com sucesso, confinar todos os sentidos e significados possíveis dentro da imagem, é encenar justamente essa fratura, em que cada frame morre imediatamente após ser projetado, cada elemento físico, cada palavra, não consegue transmitir nada além de sua literalidade mais óbvia.

De modo que o único milagre possível em Sob o Sol de Satã é uma ressurreição, menos por seu efeito sobre os personagens que por seu efeito na forma do filme. Um corpo que morre, como o de Mouchette, é só mais um elemento que não pode comunicar nada além de si mesmo, mas um corpo que volta à vida não pode significar senão mais do que si mesmo: o milagre ao fim abre uma fenda no tecido construído até ali, faz desabar a estética cuidadosa de Pialat. Isso é evidentemente o desejado desde o início, o momento em que o filme destrói a si mesmo numa tentativa última de significado ou sentido, muito como o próprio Donissan na mesma cena. É daí em diante que o diretor se liberta das amarras autoimpostas e ousa cenas de maior poder sugestivo e metafórico, como a nuvem que se afasta, permitindo que a luz do sol ilumine Donissan. Ou na cena final, em que o padre morre dentro do confessionário em um momento indeterminado, mas os fiéis, inconscientes disso, seguem fazendo suas confissões — se a chance de ver os outros como a nós mesmos pode ser traiçoeira, resta ouvir como esses outros veem a si mesmos, na esperança de que alguma comunicação se torne, algum dia, possível.

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Planeta dos Macacos: A Origem (Rupert Wyatt, 2011)

Talvez o maior problema na recepção das duas incursões recentes na série Planeta dos Macacos (a refilmagem de 2001, feita por Tim Burton, e este Planeta dos Macacos: A Origem, mais um fruto da corrente onda de reboots) seja a tendência a avaliar os dois filmes a partir de critérios estabelecidos pela versão original de Schaffner, realizada durante a luta por direitos civis, e que, assim como o restante da série clássica, era um questionamento das relações raciais na América. Parece existir uma visão solidificada que exige não só um subtexto político, mas precisamente o mesmo subtexto político de cada exemplar novo da franquia, independente de seu status como reimaginação da mitologia. O filme de Burton, embora muito claramente politizado (pouco importa, no caso, se bem sucedido nisso ou não), foi massacrado em grande parte porque tentava ser politizado de forma relevante no contexto de 2001, e não no contexto dos Estados Unidos em fins dos anos 60; já este está sendo recebido de maneira mais calorosa, muito por, segundo parcela considerável dos que o elogiam, retomar a veia de crítica social característica da série. Mas o filme de Wyatt me parece o único da franquia que não só não está nem aí para qualquer tipo de alegoria, como faz questão de fugir delas.

Planeta dos Macacos: A Origem é sobre macacos adquirindo inteligência e se revoltando contra humanos e não tem absolutamente nenhuma intenção de agregar significados adicionais a quaisquer desses elementos. Eles são o que são e o filme não parece duvidar por um único instante que isso seja suficiente, o que por si só já é um fato a se comemorar: evidentemente passa longe de ser uma obra-prima, mas oferece um tipo de experiência atípica numa época em que muitos blockbusters almejam e fingem ser mais do que são de fato, geralmente através de estruturas narrativas supostamente complexas e acúmulo (overdose?) de símbolos e metáforas pedestres. Wyatt não se preocupa em parecer esperto nem em tentar justificar sua obra baseado em fatores extrínsecos. É o filme mais genuinamente B a se infiltrar em toda a estrutura de produção, marketing e distribuição de blockbusters em anos.

E entenda-se genuinamente B de forma literal. Outra concessão que Planeta dos Macacos: A Origem se recusa a fazer é assumir uma autoconsciência/ironia formal, hoje em dia a alternativa mais comum aberta a quem não quer investir na falsa complexidade. Não: em momento algum Wyatt sente a necessidade de dizer ao espectador “isso tudo é camp, mas eu sei, não estou fazendo ingenuamente”. Pelo contrário. O filme encena, impassível, o diálogo via sinais entre César e um orangotango de circo; ou as lições que César passa a dar aos outros macacos. E, exemplo definitivo, elege as agruras do vizinho chato de Will como gag recorrente com a cara mais limpa possível, sem um único aceno ou piscada de olho. O cara é só azarado mesmo, parece dizer.

É claro que nada disso exime o filme de seus defeitos e há uma sensação de desleixo em muitos momentos. Tudo é construído tendo em vista o clímax. O que vem antes é meramente um arranjar de peças, um colocar de tudo no lugar para a longa perseguição aos macacos e o confronto na ponte Golden Gate, e Wyatt não se esforça nem um pouco em ir além do estritamente necessário — do ponto de vista narrativo — nas cenas que antecedem a fuga dos macacos: uma vez que cada uma tenha servido ao seu propósito de, da forma que seja, contribuir na arquitetura do final, passa-se para a próxima. A exceção são as cenas que envolvem os próprios macacos, executadas com muito mais cuidado e interesse — e beneficiadas sobretudo pela atuação de Andy Serkis, no papel de César —, e que felizmente se tornam dominantes a partir do segundo terço. Antes disso, Planeta dos Macacos: A Origem resvala na chatice com frequência. Depois, só quando os humanos passam muito tempo em foco, sendo evidente o zelo dedicado à concepção de César e dos demais símios e ainda mais evidente a negligência com todos os outros personagens. E, por mais que humanos melhor desenvolvidos façam falta, não se pode dizer que haja inconsistência com relação à proposta, pois o filme é dos macacos e é o lado deles que se espera que a plateia tome. Novamente, buscar essa identificação do público com os macacos e sua revolta não trai intenção política alguma do diretor: é a opção mais conveniente se o objetivo é o investimento emocional da plateia. Aliás, os únicos humanos que sobressaem um pouco são os vilões, e isso porque Wyatt também não se furta ao maniqueísmo e à manipulação mais barata e deslavada — e por isso mesmo quase irrepreensível, dado que funciona: basta ver as reações à já muito elogiada cena do “No!”.

É praticamente certo que virão sequências, e resta torcer para que mantenham o mesmo espírito. Talvez, junto com Super 8, Planeta dos Macacos: A Origem mostre que estamos voltando a uma época com blockbusters mais focados na experiência que podem proporcionar, e menos movidos a impostura. Ou talvez não, como parecem indicar as críticas que tentam a todo custo legitimar o filme pelo que ele não é, enquanto ignoram onde se concentram suas forças.

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