No terceiro dia do CineOP uma sessão especial de curtas ocupou o Cine Vila Rica, cujo recorte fora focado nos processos artísticos ao longo das décadas no Brasil, especialmente no período do Tropicalismo e do Cinema Novo. O foco do festival majoritariamente na preservação de filmes encontrou um diálogo forte com as diferentes formas de resistência oferecida pelos artistas da época, cujo registro narrativo de performances guarda não apenas uma tradução audiovisual dos diálogos com outras artes como também são documentos de resistência em tempos de perseguição no país.
A sessão curada por Lila Foster e Francis Vogner começou com Brasil, filme de Rogério Sganzerla rodado em 1981 numa ressaca de exílio que tenta dar conta dos sentimentos contraditórios que os signos atribuídos ao nosso país carregam. A fascinação com Orson Welles em sua passagem no país para rodar seu filme inacabado parece surgir como um desafio, questionamento desse homem cujo delírio de grandeza era entender o Brasil, e que foi quebrado justamente nessa tentativa antropológica que muito carrega de sequestro cultural estrangeiro. As imagens cartão-postal do Brasil, especialmente do Rio, apresentando uma melancolia de quem procura – e encontra – verdades nessas imagens banalizadas no uso para exportação. É na segunda metade que Sganzerla encontra uma antítese ao geral, ao macro, com o foco na gravação musical com Caetano, Gil e João Gilberto. No particular, no passional, somos compositores pensando a historia e tentando reagir as dificuldades, e cuidando para representarmos politicamente com cuidado até mesmo as imagens que nos foram sequestradas através dos reducionismos de sentido.
O que ressoa é sentirmos Cristo chorar de saudade de sua casa, e um tributo aos artistas que tentam traduzir esse espírito de um país em suas expressões artísticas.
A Fila, curta de Kátia Maciel, sucedeu esse olhar de tempos de mudança mas sob o viés mais burocrático do cotidiano. O olhar ansioso da câmera de Maciel abre uma breve cápsula do tempo com a burocracia sofrida pelos artistas em tempos de retomada, buscando rostos amigos por ali, encarando com certa farsa os problemas de incentivo que o cinema sofre no país através de uma escala micro, dessa fila interminável no prédio do Ministério da Cultura, habitado por quem espera viabilizar seus olhares e deve enfrentar uma estagnação por isso.
A dimensão lúdica dos atos de exercer a criatividade permanece em Ver e Ouvir, de Antonio Carlos da Fonseca, cujo foco em três artistas sessentistas na concepção de suas artes no presente à época preserva a intuição e experimentação de mundo através desse contato artístico.
O lúdico da arte contemporânea abre o filme com um plano em um parque de diversões, para então estruturar-se a partir de intervenções audiovisuais nas obras, de fato traduzindo um confronto apenas por deslocar essas obras de seus contextos originais e abri-las à cidade, a verdadeira protagonista do filme. Abre assim para o diálogo com o Brasil em tempos de dúvida, e ocupar a cidade com as obras para conversar com os rostos do cotidiano que com a incerteza lidam diariamente surge como dever cívico.
Se Fonseca adere a uma postura política de manifestos, Arthur Omar abraça a ambiguidade. O Som (ou Tratado de Harmonia) surge dessas dúvidas para experimentar performances na tentativa de conciliação e confronto entre a revolução armada e a sexual. A câmera passeia por rostos atravessando obras plásticas cuja força se dá na representação psicológica dessa ansiedade, enquanto o texto relata dimensões mais palpáveis diante das inquietações sexuais daqueles corpos. Um confronto que encontra em velhas utopias alguns conforto, não por acaso recorrendo ao mar como certo mediador (ou elemento de arrefecimento) das pulsões revolucionárias.
Ruído e Existência, de Carlos Adriano, adere a um dispositivo de fusões e duplicidade para conceber essa cidade que tem pesadelos estruturalistas. Talvez apoiado demais em uma ideia de exposição através do texto aparentemente abstrato e de certa fórmula visual estabelecida e repetida com poucas variações acaba parecendo um filme mais despropositado dentro da sessão, dialogando fielmente com uma tradição de quebra da superfície da imagem do cinema experimental e se contentando com isso, diluindo assim a potência política do relato visual dessa cidade de mistérios – ainda que a montagem costure bem a atmosfera provocativa do filme.
O fim da sessão levou as provocações de Ruído e Existência a uma forma mais frontal, com À meia-noite com Glauber, filme de Ivan Cardoso, e sua estética de Glauber Rocha e Helio Oiticica sob o filtro dos quadrinhos pop de Ivan Cardoso, a profetização via os iconográficos de gênero tão caros a Cardoso, mas aqui estranhamente despolitizando volta e meia as imagens dos artistas documentados. É com celebração e confronto que o terrir de Cardoso se estabelece, mas as imagens fora de contexto de Rocha caem numa possível fetichização que não está diretamente no cinema do baiano. O poder da montagem sempre deixa o filme interessante, e pelas contradições exibe um tom de desafio político que o sensorial camufla. Fora um ótimo filme para fechar a sessão, tão focada nos artistas e no que eles fazem para combater o status quo, e para Cardoso talvez esse confronto esteja irônico e desapaixonado. É uma visão que representa seu tempo, mas não necessariamente traz algo além do diagnóstico.
Como traçar um passado através da referência, do gesto e do antropológico? O filme nasceu como explosivo, os mecanismos dele como indústria se confundem com a própria história americana, e em Dawson City – Tempo Congelado o efeito corrosivo do tempo é visível desde a arquitetura da cidade filmada e fotografada até as marcas de deterioração das películas ali encontradas.
O viés experimental da superfície da imagem no cinema de Bill Morrison ganha aqui uma dedicação historiográfica bem oportuna na exploração da investigação da origem dos mais de 500 rolos de filme encontrados enterrados num local onde era uma piscina. A partir disso a montagem de Morrison exibe essa paixão pela historia e informação, disposta a investigar o máximo de elementos possível nas fotos para representar visualmente historias esquecidas que foram tornadas mitos apenas nas artes, e cujas memórias são fósseis não desejados por revelar estruturas ambíguas na construção da cidade -e do país.
Nesse sentido é interessante o uso do didatismo como uma ferramenta de curiosidade historiográfica, como se a tradição oral do relato esquecido da Busca do Ouro fosse adaptado à apresentação focada em texto de Morrison – mesmo que a música constante e a ansiedade de traçar um panorama atrapalhem pontualmente. A concentração em observar a influência antropológica e as situações que se repetem nos filmes encontrados são as matrizes do manifesto da importância de salvar a memória e o potencial antropológico e emocional de influência do cinema, um diálogo de sombras palpável na película deteriorada que exibe o diálogo de um homem com uma figura irreconhecível pela corrosão completa de sua parte no quadro.
Perto do encerramento, o texto de Morrison faz questão de lembrar que as marcas de corrosão das películas encontradas na cidade são singulares, que guardam um aspecto especial pela exposição à água. É como se o tempo fosse contemplado pela forma que ele imprime sua influência, ode à mudança dos tempos em um filme tão focado justamente na preservação da memória – algo que poderia ser contraditório mas impede o filme de ser reacionário politicamente, para reforçar a fé na memória como motor de transformação. O filme nasceu como explosivo e permanece como tal, de fato.
O cinema é esotérico por natureza. Da câmara escura ao cinematógrafo, do espelhamento da realidade a sua restituição fotoquímica, existe um movimento que implica em uma crença. Mais do que um mero progresso natural, o aperfeiçoamento do cinema em um regime narrativo demanda, propriamente, uma fé. Uma ilusão que transcende a materialidade da imagem e opera como uma realidade autônoma. Uma diegese que ao mesmo tempo em que respeita regras próprias, conserva um contrato mágico com seu interlocutor. O pacto ficcional é um dogma imperativo.
Para além da perspectiva extraordinária que qualquer experiência narrativa exija (afinal, é preciso acreditar), a presente edição da Multiplot! busca explorar o místico tanto como uma temática como um método. De um cinema de personagens mágicos (o herói, a feiticeira, o viajante espacial) a uma concepção narrativa metafísica onde a dialética de causa e efeito é subvertida ou mesmo abolida. De uma realidade meramente ambígua à construção de outros mundos. O sobrenatural, o fabular, o mito. Não apenas como motes reveladores de uma composição universal e ancestral, de uma ordem esclarecedora das coisas, mas disparadores de um enigma, uma desordem, uma corrupção que não busca reiterar a tradição, mas renová-la, quiçá destruí-la.
Serge Daney, sobre o modelo ilusionista clássico hollywoodiano, afirma que a psicologia era tratada como “explicação última”. O papel do cinema moderno foi, justamente, recusar esse denominador: o místico (Rossellini), o patológico (Bergman). Quebra-se uma lógica explicativa e impõe-se uma assimilação abrangente. Muitas vezes absolutamente material (o próprio neorealismo italiano), mas reveladora de uma substância hermética. Uma essência que repousa sobre nossos pés. No fim das contas é da terra, em sua bruta e elementar fisicalidade, que brotam os mistérios mais poderosos.
Não é do caráter do místico explicar. Pelo contrário, é o momento de abandonar qualquer refúgio e se entregar a uma disposição outra. Se a nossa edição passada celebrava a morte do cinema em benefício do seu constante renascimento, aqui continuamos nos situando entre estes novos regimes narrativos e imagéticos. Nunca propondo uma interpretação final, mas abrindo portas e janelas que viabilizem uma constante mutação. Universos sensíveis que jamais são um fim em si mesmo, mas que anunciam, a cada nova proposta, uma reorganização própria.
Não é também a aleatoriedade que nos interessa. Ainda que o caos – “único monstro digno de adoração” – permaneça como singular guia confiável, é na “incessante improvisação do universo” que buscamos esclarecer nossas questões. O segredo nunca está nas respostas, mas na experiência que essas obras proporcionam. O sentido permanece na jornada, na ilusão de uma transcendência, já que o caminho continua inevitavelmente aberto. Nunca chegamos a lugar algum e nem vamos chegar.
Para nos abrigar da realidade (essa sim, sobrenatural), o cinema. O místico aliena na mesma medida que revela. Não se comunica, mas se irradia. Imantados por essa paixão e por esse revolta – a fé e a descrença sempre essencial à cinefilia – continuamos atentos a qualquer movimento.
“Adeus, terráqueos. Vocês só querem falar de verdades… Não de mitos. Bem, eu sou o mito que vos fala. Digo-lhes adeus.”, com essas palavras Sun Ra decola em sua nave tripulada quase exclusivamente por pessoas negras rumo à formação de uma colônia espacial longe da Terra (da sua violência, da sua opressão) – e, para trás, fica um planeta aos pedaços. A sequência final de Space is the place (John Coney, 1974) reforça a proposta da narrativa de se apoiar em um regime mitológico, mais do que em um veridico. O filme sustenta-se assim em uma estrutura móvel, de fantasias e sugestões, em um arranjo de cenas e sequências mais relacionadas ao jogo e à colagem (ao acaso das cartas), do que da lógica fatuística.
Space is the place é uma improvável blaxploitation de ficção científica protagonizada pelo jazzista Sun Ra. Improbabilidade que vem da junção do subgênero marcado pela ação de superfície e a figura enigmática do músico. Herman Poole Blount nasceu no Alabama (EUA), em 1914, e por volta de 1950, ele adota o nome Sun Ra e uma nova biografia: vindo diretamente de Saturno e incorporando elementos da mitologia egípcia e da ficção científica cosmológica a sua persona e a criação musical (sendo “Ra” o deus egípcio do sol). O filme narra a busca de Sun Ra e sua “Arkestra” (sua banda) para fundar um novo planeta com negros dos EUA, levando-os para longe da Terra com o poder da música.
Na trama, Ra trava uma batalha de cartas com o Overseer (uma tradução possível para o arquétipo do personagem seria mais do que um Supervisor, mas a de um Feitor) na disputa pelo destino da população negra. Os dois, Sun Ra e o Overseer, desafiam-se a provarem a inocência ou a culpabilidade dos negros estadunidenses na configuração de sua situação social. Ra aposta na possibilidade de redenção e novo começo, enquanto a figura maligna do Overseer nos vícios e fraquezas inevitáveis. O desafio se dá por um jogo de cartas de tarot, chamado de O Fim do Mundo. São as cartas que irão determinar a sequência da narrativa, dos personagens e fatores envolvidos na disputa – espelhando na estrutura de esquetes do filme os improvisos e casualidades do jogo.
Logo na primeira rodada as cartas em disputa são: “O mundo” como campo de conflito, e a carruagem e o julgamento como meios de transporte (nesse caso, respectivamente representados por um carro conversível e uma nave espacial). Nessa rodada, se dá o primeiro contato oficial de Ra e sua Arkestra com os terráqueos, contato marcado por um grande estranhamento. O uso da máquina-musical de Ra deixa desnorteado um jornalista negro e espanta os demais.
Neste primeiro contato, Ra apresenta a música como motor de explicação e movimento para a vida e a existência cosmológica no geral: “Por que a Terra não cai? Como podemos andar sobre ela? É a música. É a música da Terra, do sol, das estrelas. Sua própria música, vibrando. Sim, você é música também, somos todos instrumentos. Todos estão tocando a sua parte…Nesta vasta orquestra do Cosmos”. Se imageticamente o mito de Ra constrói-se pelo cruzamento dos elementos egípcios e tecnológicos low-tech (mais próximo a gambiarras caseiras do que ao imaginário futurista hollywoodiano dos anos 1970), a música torna-se outra estrutura fundamental no embasamento do seu regime de crença mitológico.
O filme é entrecortado pela música não só nos números musicais filmando Ra e sua Arkestra (como era de se esperar desse tipo de projeto), mas pela trilha sonora geral. A filosofia de Ra nas frases ditas/cantadas por June Tyson antecipam ou apresentam os segmentos do filme de forma profética – como o “É depois do fim do mundo” marcando o início do filme ou o “Chamando o planeta Terra!” antes da chegada da nave de Ra. As distorções do sintetizador de Sun Ra também pontuam as cenas, construindo elementos de desnaturalização permanentes (mesmo nos momentos em que o filme mergulha com mais entrega ao estilo de narrativa de ação da blaxploitation) – desnaturalização acentuada pelo figurino e demais elementos cênicos de Ra e sua trupe.
Nesta desnaturalização, os elementos e a narrativa do filme ficam em um limite do mágico com o carnavalesco, entre o sublime e o improvisado/artesanal. A imagem de Ra como mito (no filme e fora dele) funda-se não no que ela tem de super-humano (ou não-humano) e mais no que esta imagem tem de absurdamente terrena, de relacionável atrás (e apesar) de todas as camadas de coloridas e brilhosas das vestimentas. Como mito, Ra impacta não por tentar nos convencer da fabulação que sustenta, mas por trazê-la de forma inegociável como ponto de partida. A implicação do público (nesse caso do espectador) não está na crença ou descrença em Ra ou em sua mitologia, mas em sua aceitação.
E embora a utilização da estilística da blaxploitation como gênero da narrativa tente tornar a imagem mitológica de Ra mais fantástica – Ra como super-herói, o efeito não obtém muito sucesso. O filme fica então repartido entre as aparições de Ra e as outras narrativas paralelas dos demais personagens (marcadas pelo subgênero). As cenas de Ra funcionam melhor em seus monólogos solitários e/ou direto para a câmera (reforçando a encenação desnaturalizada) e as sequências de violência, nudez e sexo (incluindo uma injustificável cena de espancamento de duas personagens femininas) pouco se relacionam com a trama principal do filme.
Em Space is the place os contornos raciais negros aparecem de forma inequívoca na mitologia de Sun Ra – ao longo da trajetória de Sun Ra esse posicionamento é mais ambíguo e oscilante. Se todo o filme é construído em cima da trama de disputa pela salvação da população negra dos EUA, é o encontro de Ra com os jovens negros no centro de recreação que explicita não apenas Sun Ra como uma figura redentora, mas como homem negro em si mitológico. Sob os olhares de espanto, Ra se afirma:
Eu não sou real, assim como vocês. Vocês não existem nessa sociedade. Se existissem, não estariam buscando direitos iguais. Se fossem reais, teriam algum status entre as nações do mundo. Então somos todos mitos. Não me apresento como uma realidade, e sim como um mito. Porque é isso que os negros são. Mitos. Eu vim de um sonho, sonhado por negros há muito tempo… Sou um presente de seus antepassados.
Ao conjugar ao mesmo tempo uma mitologia cosmológica e ancestral negra, Sun Ra é apontado como um dos pilares do afrofuturismo (movimento que engloba as narrativas de ficção especulativa a partir da experiência negra) – ainda que tenha falecido antes dessa denominação existir. Space is the place marca um momento chave desta mitologia sunraniana que se transforma ao longo das décadas. No filme, a individualização de Ra como o mito em si é fortemente atravessada por uma mitologia coletiva e redentora negra. Os jovens negros, e a população negra no geral, são tão mitológicos quanto Sun Ra.
Nesta cena o que a presença de Ra parece mover de mais potente é disjunção de tempo e espaços. Um efeito semelhante ocorre em diversas outras cenas, como: enquanto ainda apenas pianista em Chicago em 1943, Sunny Ray leva o cabaret às chamas com a sua performance visceral; na chegada com sua nave espacial na Califórnia dos anos 1970, que leva um jornalista ao hospital e assusta os demais com a sua máquina de música; na agência de empregos que não oferece salários ou nenhum dinheiro e afasta com o mesmo estranhamento um cientista, um bêbado e uma hippie.
Sun Ra coloca-se assim perante a encenação do filme também como o mito que professa ser, como o “destino alternativo” encarnado. O tempo para ele está “oficialmente acabado” e a sua espacialidade é a extraterrestre. Como nos lembra June Tyson na abertura do filme: “É depois do fim do mundo, você ainda não sabe?”.
“Um homem que nasce cai num sonho como um homem que cai ao mar.”
Joseph Conrad
Em certo momento de Three Landscapes, após o primeiro segmento de paisagens, o segundo ato começa com a peregrinação de alguns trabalhadores. Eles ascendem as tubulações em cordas pouco confiáveis, a uma altura impressionante, para realizar seu trabalho provavelmente de limpeza de um letreiro. Esse segmento de dez minutos tem apenas seis planos, variações da observação à distância dos homens que ali sobem, e cuja mudança imagética é evidenciada através da distância mas principalmente da presença de um elemento da natureza no quadro. Em dois quadros, são as árvores em movimento pelo vento; nos outros quatro, as nuvens que passam sem ganhar a atenção dos escaladores. Que o filme de Hutton parta de um registro retratista de uma dimensão fantasmagórica e francamente ameaçadora do ambiente – natural ou fabricado – é fundamental no tratar dessa dimensão política da ideia do trabalho, com seus três atos sobre diferentes formas de exploração ambiental e humana do labor. As nuvens dão profundidade à altura das tubulações, a fumaça das fábricas como evidência simbólica e palpável de uma violência na imagem, o deserto queima seus habitantes através do vapor registrado pelo ângulo de Hutton.
Esses elementos de movimento presentes na natureza são recursos importantes na filmografia de Hutton porque é através deles que se configura essa dimensão mística de intuição imagética dos ambientes filmados como lugares dotados de segredos, misterios do extracampo. A natureza e suas construções, terrenas ou humanas, guardam algo do olhos de quem as encara – e é dessa negociação entre espectador e mundo que Hutton constroi filmes de extrema e basilar fé no desconhecido, uma questão quase espiritual de observação.
Em New York Portrait pt. 1, a investigação parte da cidade mais imortalizada no cinema americano para alcançar o que há de abstratos nas formas de vielas e luzes dali. Os quadros privilegiam a incidência da luz nas paredes através dos mais diferentes filtros “naturais” – as janelas, as nuvens, a neve – para construir um olhar de curiosidade quase solene diante daquela cidade. O caráter retratista dessa primeira parte é reforçado pelos fade outs característicos de Hutton que sinalizam que cada quadro que assim termina funciona como sequência dentro de si mesmo, e a falta de pessoas nessa primeira parte traz uma câmera que intui a cidade como uma das paisagens naturais que o diretor privilegia, uma procura por prédios como sombras, do movimento da água refletindo uma luz desconhecida, carros solitários a vagar, barcos na mar que parecem céu. Quando Hutton filma alguém, a potência do retrato traz uma dimensão de solidão diante da cidade mesmo com toda a beleza dos pequenos atos fugidios naturais que ali testemunhamos, e ter alguém ali brevemente para dar rosto àquele olhar traz a ambiguidade da vida em Nova York – ou em qualquer metrópole. Não por acaso Hutton não usa o fade out após filmar a mulher, cortando diretamente para os papeis ao vento, mostrando que a sequência se completa com o contra-plano de um morador, de alguém tão na janela para a cidade quanto a câmera. O tempo é um quadro à espera, e nas paisagens naturais de Hutton isso se expande.
Em Study for a River, Hutton vai para o franco retrato dos lugares bucólicos, em diários de uma vivência de movimentos e esperas. Os lugares que são filmados com a concisão de uma confiança em que um quadro apenas será suficiente para ilustrar e imaginar o que contém de historia aquele espaço. Organizado como uma pequena sinfonia de espaço (chama-se estudo de um rio, afinal) para passar essa atmosfera de isolamento e contemplação num movimento que parece contínuo, natural, quase etéreo. É novamente um retrato de um ambiente que parece impossível sem deixar de ser palpável todo o tempo. Os navios vem e vão, e podemos deles observar as montanhas como estrangeiros curiosos, nunca acessando esses lugares fisicamente com a câmera, os respeitando pelo mero fato de sermos visitantes cuidadosos da onde vagamos.
Nessa exploração essencialmente mística, observadora paciente, a paisagem não necessariamente aparenta ser física, de assimilação frontal; por vezes aparece como figurativa abstrata, e é isso que ocorre em Skagadjördur, sob o efeito do tempo e da luz, e a escala entre o que fazemos e o que já estava no mundo. Intercala entre recortes absolutamente pictóricos da Islândia como formas e texturas – e por vezes cores – para outros de contextualização espacial mais evidente, nos planos abertos de montanhas e na relação delas com a luz do sol. Observar apenas a luz cair diante do mar, da terra, ou mesmo de uma casa diminuta diante do poder irrefreável do ciclo do dia com seus ventos e nuvens. Hutton filma seus retratos de natureza como se sempre fosse o início dos tempos, e não é por acaso que os filmes se renovam a cada visita, como planetas novos a descobrir.
Desvelar o natural sob dinâmica tão particular, na fé dos astros e luzes como potência de rejuvenescimento, é parte da dinâmica de intuição de Hutton no trato religioso do ambiente, e através da descoberta do sol isso surge em In Titan’s Goblet. O espaço refém da fumaça, como se atrás dela estivessem ruínas, uma breve visitação do fim do mundo na expectativa de encontrar vida. E ela surge, primeiro através da energia exposta por trás das nuvens, depois como vigilante silencioso da Terra que descobrimos. O jogo formal de Hutton é bem direto aqui, usando da vocação da narrativa de retratos para construir esse clímax do titã sol observando a câmera e a terra arrasada na qual ela se encontra, e não tem a variação de imagens e fenômenos para criar novas camadas nessa visitação espacial, mas é um pequeno olhar pacífico e cuidadoso sobre esse mundo metafísico que busca na natureza um sentido. A pintura de Thomas Cole coloca o cálice do Titã do título entranhada na paisagem, uma estrutura gigante em meio ao vale e o mar cuja fumaça não impede completamente nossa contemplação do que há dentro dele. No filme de Hutton, somos convidados a entrar nesse cálice, e ali encontrar uma civilização que já passou, e busca reiniciar através das estrelas.
Existe o artifício nesse confronto entre luz e sombra, e ao filmar a tragédia natural de Boston Fire, Hutton encontra o que há de gravidade destruidora na luz, através do consumo das chamas em um lugar. Nada é sagrado como encarar um lugar e ser contaminado por ele, e quando Hutton fotografa a destruição de um ambiente é com um misto de pesar e encantamento anestesiante que acompanhamos a imagem projetada. Os fades trazem solenidade para aquela morte que testemunhamos, ao mesmo tempo que a fumaça confere algo extraordinário aquele cotidiano, cuja ação ritualística dos bombeiros surge como pintura abstrata de contraluzes. Somos consumidos pela imagem como os homens pela fumaça do final, porque diante do vento e do poder de experiência que o movimento naturalista dá somos apenas olhares a engolir pela imensidão encantada. É uma visão mais sombria que o normal em seus retratos de espaço, e não é pra menos que seja dado o objeto de destruição no qual o filme se baseia.
Contemplar o natural diante do construído, da obra do homem, para atentar ao que vimos e intuimos no trânsito, surge como manifesto em Time and Tide, talvez o mais frontal em discurso dos filmes do cineasta, um canal de trato mitológico na abordagem do que há de fantasioso no movimento.
Ao observar, interferimos no mundo. Do princípio do gelo que é quebrado por onde passamos até a janela circular que recorta a nossa visão, limitada justamente por estarmos em trânsito constante, as sequências giram em torno das formas sutis nas quais a paisagem é modificada pela nossa presença. Se o fugidio é uma das fundações da montagem de Hutton, aqui ele contribui também para conceber essa visita fantasmagórica onde o místico se caracteriza pela câmera não estacionar em quase lugar nenhum por onde passa. Tudo é um quadro a perdermos, e as dúvidas se enfileiram: a correnteza do rio levando para contextos diferenciados, de alteridade nos trens à vista ao longe, da geografia ameaçadora pela grandeza que não retemos por muito tempo, das pontes e cidades na noite porque não tivemos tempo de acessar aquele ambiente quando iluminado, do comentário político das transformações que as fábricas proporcionam fisica e simbolicamente como num filme de James Benning. Time and Tide é um raro filme de Hutton onde a atmosfera é construída através do que vimos e perdemos, tocando apenas pontualmente no caráter retratista do presente de acompanhar um ambiente estático em transformação – e o relato pessoal do diretor em primeira pessoa sobre um histórico de registro em movimento que passa pelos 18 quadros por segundo do 8mm em preto e branco até o 16mm colorido que encerra a jornada.
O corpo da memória através da paisagem como registros de uma natureza em transformação torna-se base de observação ao longo da progressão de sua carreira, mas Hutton fora cuidadoso ao ser literal pontualmente em filmes como Landscape (for Manon) e Florence, nos quais a natureza se manifesta prestes a acordar sob nossos olhos. É de uma calma, observadora paciente como quem está para descobrir um mundo. A capacidade de olhar transformando lugares que parecem inóspitos, parecem alienígenas, mas nunca perdem uma dimensão presente bem possível. As fusões para o preto que marcam cada uma das paisagens como se elas se contivessem entre si, luzes que incidem e nada mais. O tempo passa, a criança sonha com o mundo, uma imagem particular em sua filmografia ao dar literalmente um rosto juvenil à curiosidade, como em Florence, filme atípico de Hutton sobre memórias de infância. Uma casa recortada por reminiscências difusas como a luz que atravessa os lugares, que se modifica e morre diante dos nossos olhos, lacunas abstratas de organização de espaços por conta da falta de contexto. Encerra-se o dia, as memórias acabam, naquilo que parece ser um lembrete visual de vagos acontecimentos numa vida a esquecer.
E o que é viver no mundo sob ideias de contaminação natural da beleza desafiadora da fantasia, encantamento constante, senão uma oportunidade política de retratar o preço das nossas interferências? Logo no princípio de At Sea, um quadro mostra as vigas de um porto em profundidade. Lentamente elas se rearranjam, enganando a profundidade de campo do olhar, transe particular daquele ambiente de trabalho de repetições ilusórias. O ar alienígena desse quadro, o mistério do movimento coordenado que se confunde diante da distância focal da câmera, as profundidades que se embaralham em busca do mágico. É quando vamos ao mar que a materialidade se dissolve. Na terra firme, as pessoas lidam com o peso da escala, da diferença entre seu tamanho e dos navios ou edificações que precisam do trabalho desses homens, sob a câmera de Hutton um trabalho que parece impossível por uma questão de proporção. Os fósseis de concreto que se acumulam na praia, o prédio destruído mas ainda habitado pelos que ali fazem manutenção, uma tarefa material. Hutton filma os contêineres sob um ponto de vista apenas ao zarpar com o navio para observar as diferentes incidências das luzes ao longo do dia, o reflexo vermelho, amarelo e escuro como variações de tempo intangível interferindo na dimensão concreta do que é forjado pelo humano.
Quando está no mar a abstração aparece, destitui a materialidade dos objetos, e o olhar da câmera privilegia o pôr do sol, a água revolta, a paisagem à distância cujo caráter pictórico inexiste diante das concretudes do porto, da praia, dos lugares habitados por humanos. O mundo está liberado para imaginar e sonhar quando o trânsito aparece na vida de quem olha, e quando estamos aportados a tarefa de cuidar do que é concreto e existe parece grandiosa demais para dar conta. Tudo no porto é quase estático, com dinâmica lenta e pouco progressiva, e essa visão particular do tempo causa uma suspensão de imagem que potencializa os momentos de movimento; quando o navio é inaugurado, a explosão do balão e a revelação do título surgem como pequenos milagres, como clímaxes, porque a noção de movimento foi ressignificada. Não há elogio maior às imagens do que tornar palpável a dimensão da importância delas em movimento.
No terceiro ato, o cemitério dos navios, a destruição total de um feito gigante do homem que termina sua vida sendo despejado na praia de quem não é privilegiado economicamente. Situar esse final em uma comunidade à beira-mar em Bangladesh traz a dimensão social do impacto dos grandes símbolos do capitalismo como Hutton veio a fazer mais tarde em Three Landscapes. Um dos navios gigantes é despedaçado pela população, numa tarefa visivelmente mais hercúlea do que a dos portos – enquanto aqueles eram estruturados por máquinas e organizados como miniaturas padronizadas por Hutton, o vazio da praia em Bangladesh é diminuto comparado ao porto, e os trabalhadores dali dispõe de ferramentas evidentemente mais primitivas. No capitalismo globalizado a diferença de condições de trabalho é sobretudo uma ideia de escalas, de proporções, e se o trânsito é abstrato e fugidio a terra firme é feroz nas suas cobranças materiais. Não existe o fascínio pelo movimento ali, a tarefa parece árdua demais.
O fascínio que existe é pela imagem e pelo contato humano (e quando Hutton filma pessoas esses dois tendem a ser indissociáveis), e a interação daquelas pessoas com a câmera ao pausar sua atividade de eras revela que a suspensão do sonho do mar pode ser obtida mesmo que por um breve instante, uma sensação de pertencimento e compartilhar de possibilidades – o que certamente não resolve a questão. Os leviatãs aportam bem e enferrujam mal, e o cômodo é aos países privilegiados criar seus monstros para despejá-los nos subdesenvolvidos que trabalham para sobreviver com seus mitos não-requisitados. Os operários de Three Landscapes labutam no sal e observam os camelos como miragens impalpáveis, e os ribeirinhas de At Sea levantam suas cordas para puxar algo que parece fossilizado há séculos ali. Dimensões impossíveis do movimento que trazem uma magia própria, tão fascinante quanto implacável – para Peter Hutton o estético e o social estão entranhados na imagem, e é possível traduzir por breves minutos a ambiguidade da beleza misteriosa e sem respostas do que está por aí nas paisagens.
Após sua primeira contribuição ao cinema – o roteiro de Tortura do Desejo para Sjöberg, em 1944 – e até este Através de um Espelho, rodado em 1961, o filho de pastor luterano não cessou de lançar a mesma questão: “Deus, você está aí?”. Às vezes com ansiedade, noutras com ceticismo, por vezes com desrespeito, a provocação foi, dentro dele, a máscara mais límpida de uma grande inquietude de ordem metafísica. Para colocar esta questão, Bergman escolheu um médium e dele se serviu para bater no portão do Saber. Citemos ao acaso: os amores juvenis, o inferno conjugal, a maternidade, a velhice, a doença, a morte, etc. À questão colocada, não há jamais resposta. Os personagens felizes se inclinam voluntariamente ao paganismo, os infelizes, com ainda maior facilidade, levantam a vista ao céu, mas diante de sua própria infelicidade e da violência cruel do universo, eles dizem: “Por quê? Por que Tu permitiste isto?”. Bergman é, ao mesmo tempo, um espírito religioso e um libertino (na acepção do século XVII). Ao escolher, em Através de um Espelho, a loucura enquanto médium, ele não varia nem sua busca, nem a resposta. A heroína crê que vai chegar a ver o Senhor – e é uma enorme aranha que chega até ela. Vemos em Bergman um passo adiante (horripilante) no pessimismo e no desespero? Nada nos autorizaria a essa interpretação. Esse inseto kafkiano é talvez a morte ou a loucura. Karin está apenas a meio caminho de sua travessia ao espelho. A Divindade, de acordo com Bergman, não se deixa apanhar por caminhos assim fáceis. O verdadeiro mistério do céu é sua opacidade. Mesmo estilhaçado, o espelho só descobre um buraco negro, e aquilo que ali resta reflete, ainda, a tormenta dos homens.
Sim, eu sei, Bergman não é mais parte da moda nos Champs-Elysées. Feliz o homem, somos tentados a dizer, que não será mais julgado dentro do grande artifício das paixões, mas dentro da calmaria de sua reflexão. Ele não é um gênio natural do cinema como Murnau ou Welles, Einsenstein ou Mizoguchi, mas, queiramos ou não, apreciemo-lo ou não, sua obra grafa esse pós-guerra cinematográfico com um selo pessoal e insistente. Sua abundância não é uma facilidade, ela trai, ao contrário, um labor paciente que, de filme em filme, tenta cercar o mesmo problema. Ele pertence a esta categoria de realizadores que refazem sempre a mesma obra com maior ou menor felicidade de expressão. Mas, de ponta a ponta, as grandes passagens de alguns de seus vinte e três filmes formariam um conjunto genial. Que nos lembremos: o despertar de Marie (Maj-Britt Nilsson) na cabana de Um Verão de Amor (1951), a sequência dos “artilheiros” em Noites de Circo (1953), Anna Egerman (Ulla Jacobsson) e sua boa jovem (Harriet Andersson) nas rendas de Sorrisos de Uma Noite de Verão (1955), a procissão da peste d’O Sétimo Selo (1957), Victor Sjöström recaído como uma criança nos arbustos de Morangos Silvestres (1957), o momento em que Ingrid Thulin desvela os cabelos em O Rosto (1958) e, ao longo do filme, a insondável melancolia do ilusionista Vogler (Max von Sydow); a descoberta do cadáver da jovem Karin por seus pais, n’A Fonte da Fonzela (1960).
Há também em Através de um Espelho alguns momentos fortes que provam que a maestria de Bergman permanece intacta. A maneira com que a heroína – a estonteante Harriet Andersson – “entra” em seus primeiros momentos de transe por um chibatar de voz, fascinada por esta parede atrás da qual ela crê poder encontrar sua libertação, e o modo com que sai disto, bruscamente, sem transição, é um destes momentos. Ainda mais magistral me parece a cena na canoa, onde se afrontam o marido e o pai da heroína (von Sydow e Gunnar Björnstrand). O marido faz julgamento do pai com termos dos mais vivos e escandalosos; o pai “desconta” com humildade e, então, repentinamente, nas palavras de confissão de sua própria fraqueza, nasce, pouco a pouco, sem que sequer percebamos de onde veio, o julgamento do marido pelo pai num linguajar igualmente vivo, igualmente escandaloso. O conjunto sem um risco de voz, sobre o calmo escudo de um lago extenso esmagado de luz; e os dois homens se encontram silenciosos, reenviados de volta por uma dialética própria, um pouco mais ricos, sem dúvida, diante de suas confissões – mas mais desesperados, também.
Bergman não é Bergman por conta de sua “temática” única ou dos estampidos fulgurantes que jorram de seus diálogos. Ele é ele mesmo também pela mise en scène, pelo lirismo, aqui, contido, de suas imagens. O universo fechado de Através de um Espelho é a princípio a escolha de um ângulo, de uma iluminação, de um movimento hábil – quase imperceptível – da câmera. Este universo sobre o qual pesa um céu sempre baixo, mas que não deserta jamais o céu branco do verão sueco, é, pela economia de uma técnica perfeitamente assimilada que ele guarda, continuamente, essa luz de aquário inseparável do equilíbrio da heroína entre a razão e a loucura. E esses são os solitários prestígios da mise en scéne que permitem a esse incesto tumultuoso e alucinante se inscrever na costura da obra, sem jamais fazer um espetáculo de bravura gratuita ou partindo de um desejo de chocar.
É, ademais, o único filme de Bergman, junto da Fonte da Donzela, que me parece isento dessas inconstâncias que mancham (no detalhe) essas obras mais belas (o delírio neo-surrealista do sonho em Morangos Silvestres, a estética démodée de certas passagens do Sétimo Selo, o grande chifre aqui ou acolá, o vaudevillesco de fora, etc.). Fechado sobre si mesmo como um cravo bem temperado, redondo como o círculo infernal que o descreve, Através de um Espelho rompe sua casca grossa num único lugar: o tempo de uma pequena representação teatral cujo argumento pergunta se vale bem a pena, mesmo por amor, seguir uma morte na Morte. O convite, entretanto, veste-se com adereços requintados, com tentações gananciosas. Nosso cavaleiro de rosto entristecido foge com uma pirueta. A morte, a vida, o amor, a loucura… o canto profundo de Bergman cruza estes moinhos. E não nos cansamos dessas ofensivas.
“Você ama morangos silvestres?, eu sei onde podemos encontrá-los”, diz a Marie a Henrik, que vai morrer, em Um Verão de Amor. Para essas colheitas bergmanianas, serei sempre cliente.
‘’Um grande sábio cria, imagina tanto ou mais do que um artista. O artista adivinha; fazer arte é prever. É por isso que Newton e Shakespeare, se não se excedem, se igualam. ‘’
Morreu o professor Antena. Morreu… assim mesmo: erguendo as mãos ao céu, em companhia de seu pupilo, prestes a levá-lo ao grande momento-êxtase da revelação pela qual tinha se isolado por semanas, cientista enlouquecido à beira do apocalipse mental, criando campainhas e técnicas de alcance. Morreu o sábio em meio ao rugido estridente de algo. Repentino como aqui está escrito, dir-se-ia mesmo que “sem motivo”. E pronto – estatelou-se no chão, as vísceras expostas, o último suspiro, o derradeiro lampejo das pupilas ao nosso alcance – e sobre este evento falaremos em breve. Antes, incitados nós pela intrigante Busca maiúscula, a que também se lançam seu ajudante e o amigo poeta, é preciso voltar ao estágio anterior ao primeiríssimo sim. E diz-se “sim” por falta de vocábulo mais apropriado: retrocedamos ao estágio pré-linguagem, pré-ordem Pteurosauria; ainda antes da primeira célula que se bipartiu e se quadripartiu e assim por diante. O momento anterior à primeira estrela, à possibilidade, à luz. Onde se iniciou, como se iniciou o… o quê? O que havia antes que as coisas existissem?, perguntou-se o professor. A questão está no presente, parte do corpo, elabora-se no intelecto, se assim supomos que as ideias surgem do cérebro, que, afinal, é uma imagem como qualquer outra do mundo. E se é uma imagem, assim como o são as estruturas lenhosas que chamamos de árvores e os minerais que chamamos de rochas, qual a imagem primeira?
Morreu o professor Antena e a medicina questionou-se sobre a ferida triangular no ventre que expôs suas entranhas; a polícia solucionou o caso sob a marreta da inquietude: foi estranha, a passagem, e os jornais assim o grafaram em negrito. Caso encerrado, não há o que se fazer. A única testemunha tampouco saberia explicá-lo. E iniciou-se a película com a ontogênese psicanalítica, neste caso, do não-reconhecimento primordial, a extensão lacaniana subvertida com o passar dos anos: o pupilo recorda da infância perturbadora, quando via o próprio reflexo no espelho e estremecia, apavorado com o mistério que é ele mesmo. Mas é ou era? O verbo vem a colocar a questão primordial. E, retroativa, também se encabeça a narrativa, com o típico “vou contar-lhes o que aconteceu…”. Sabe-se, pela titulação e pelo início em cauda que promove a diegese, do acontecido, mas aqui não se põe em questão o suspense também típico que aguardaria até o final para acompanhar a solução, e que torna esse próprio andamento a expectativa de uma simples descoberta que estaria dissolvida numa cena – aqui está, pronto, já sei como morreu, posso desligar o filme e dobrar a tela –: o que Noémia Delgado instaura é uma espécie de peripatética transcendentalista do artista (poeta, não menos) e do tutelado, em que, adicionada à mescla aqui igualitária entre os dois grandes convocados ao ofício da imaginação, materializa-se, espectral, a “presença” do “morto”.
Morreu o professor Antena, decerto, e o que o Cinema tem a ver com isto? Por relação direta, acusamo-lo: ele, por gênio, tem culpa no Cinema – culpa em que ele exista. O que é, fundamentalmente, a arte de que falamos? Ora, é exatamente o mesmo que o homem: uma reminiscência. Explico-me, porque a culpa maior está, ainda, no Tempo: filmar é escorregar em delícias na armadilha da ilusão de que capturamos o movimento. Para além das histórias, do dito e do mostrado, bem acima das encenações e sensações, fugidio mesmo ao que é programado e ao que escapa à interpretação e à incidência em quatro arestas, está um aparelho que simula algo que nunca se pode alcançar. E porque nunca podemos apalpar o instante-já, acredita-se que é preciso acreditar na farsa. “Só podemos imaginar aquilo que vimos e de que nos lembramos; se vimos, a fantasia se chama memória”, cita o professor, e está presa numa rede, indefesa como uma borboleta, a Verdade monstruosa do mundo: porque parte das coisas é passado e a outra se dissolve no momento em que se é(-sendo), imaginamos, criamos como elã vital. Ou seja, se se diz que o homem inventou o avião para ser pássaro, para emular o voo que não lhe pertence, a câmera é a invenção suprema que solapa, ou mesmo finge solapar, uma deficiência ainda maior: porque não há lugar nenhum aonde a fantasia possa ir, enquadramo-la num sistema serial de mentiras, uma metralhadora do impossível, do já-visto mais. Mais o quê? O aditivo é não a cauda nem a cabeça da serpente mística, mas o círculo inteiro e movediço que ela cria: poética perpassada por tempos que não morrem.
Morreu o professor Antena e seu legado é a transubstanciação erigida em imagem, sequencializada num plano de temporalidades inúmeras, cruzadas: há uma cena particular em que a dupla lança ao cosmos – e aos escritos do professor –, diante de um aquário, como poderia se dar, então, a passagem de uma vida à outra, porque há muito já se fixou que à natureza só cabe a transformação. O aparato desliza, pela primeira vez num movimento duplo de direcionamento consciente, até o hábitat aquático artificial, e interpela-os a voz de Antena – mas não só a voz, eis que ele mesmo, encostado ao vidro, perpetua a verborragia da teoria-práxis, em retorno, e agora o exibicionismo é completo: peixes, enguias, pólipos e rochas dançam a própria linguagem. Sabemos, ali, que a escala evolutiva está derrocada: se está diante – surpresa! – da metamorfose adaptativa ao ambiente aquático. Não mais peixes-porque-não-homens, mas peixes porque se diferenciaram assim. As coisas, então, se transformam. Não porque deixam de sê-lo como são: o mundo se eletriza enquanto grande ensaio místico de mudanças, adaptações, estranhamentos, reconhecimentos. A orquídea se abre numa vulva; o pássaro vem à luz com a sabedoria cálida da montagem do ninho; Antena retorna à imagem não por liberdade esotérico-poética da realizadora: o Tempo já havia pedido permissão para se estilhaçar ao infinito. Tudo retorna, se é que um dia já foi. As coisas estão onde estão, e por pura arbitrariedade.
O cinema não é irreal nem real, encaixa-se, sorrateiro, na lacuna entre ambos: o imaginário. Mas a dobradura que o permite se alocar nesse meio não é da ordem do ser. É uma “outra coisa qualquer que só o indivíduo triunfante que passeou por todas as outras vidas sabe”. Está, pois, além daqueles que o compõem, da sua resultante sensível? Além mesmo daquele que o cria? Se este Indivíduo nos antecede, somos seu espelhamento, sua semelhança? É preciso perguntar mais do que responder. A pergunta abre, multiplica; a resposta encerra. Filmar é lançar questões, regurgitar o inquietante do homem que não se reconhece no reflexo de si, duvidar das palavras e das coisas como a ordem as impõe. Não há ciência onde caibam as hipóteses, não há arte onde sobrevivam os estados. Morreu o professor Antena?
Em março de 1950 Jacques Rivette redige um de seus primeiros artigos, ‘Nós não somos mais inocentes’. No parágrafo inicial, o futuro diretor já defendia como ideal uma “confusa evidência do signo, que transcende todas as interpretações e limitações”. A definição pode soar obscura, mas viria a ser bem demonstrada ao longo de sua filmografia, conforme atestam Duelo (Duelle, 76) e Noroeste (Norôit, 76), parte da série (incompleta) Cenas da VidaParalela. Podemos pensar nesses filmes sob mais de um prisma – nenhum dos quais fornecerá explicações definitivas. Resultado adequado para um artista que tratou a indeterminação como uma virtude – e não um defeito – da ficção.
Prisma 1: Crítica, cinefilia
No artigo mencionado, Rivette lamenta a perda da “densidade, plenitude de significação”, articulada por diretores como Stiller, Murnau e Griffith. De acordo com o texto, a “desajeitada sistematização de uma linguagem, de uma sintaxe que Griffith precisou elaborar para se exprimir ” havia reduzido o cinema a uma retórica na qual “tudo se deve dobrar às fórmulas habituais e polivalentes, estereotipadas para todos os usos: o universo é capturado e destruído sob uma rede de convenções formais, que correspondem cinematograficamente às convenções da razão e, portanto, de ser”. Note-se que o que está em discussão não é apenas estética: para Rivette, o perigo do convencionalismo formal é sua equivalência a modos de pensar igualmente restritos.
Mas como conciliar essa aparente aversão por uma linguagem formulada em Hollywood e o apreço que, como crítico, Rivette demonstrou por Hawks, Preminger, Lang etc., inseridos nessa tradição? Ou com o fato de que, quando concebeu Cenas da Vida Paralela, pretendia que cada filme se relacionasse a um gênero clássico (romance, policial, aventura de piratas, musical)? E, finalmente, que exaltasse o realismo e o exemplificasse a partir de um surrealista (Cocteau)?
Duelle narra o conflito entre dois entes sobrenaturais: as filhas da Lua e do Sol, manipulando um grupo de mortais para conquistar permanência no plano físico. Esse pano de fundo místico, no entanto, só se revela gradualmente. A história é contada a partir de clichês da ficção detetivesca: motivações ocultas, pessoas e objetos perdidos. O filme noir, gênero pretensamente realista, se torna sobrenatural a partir da simples exacerbação de seus elementos tradicionais. Se Rivette ainda perseguia como diretor o realismo que defendera como crítico, qual era o real que buscava capturar?
Primeiramente, a evidenciação do absurdo e do irreal inerentes a qualquer narrativa, escamoteados sob a ilusão da verossimilhança. Ainda mais, uma celebração do potencial significativo da realidade e do cinema. O que Rivette condenava na retórica era o empobrecimento do sentido, a limitação do mundo em preconcepções. Aquilo que celebrava nos melodramas de Griffith ou nos faroestes de Hawks era a sua capacidade de gerar novas camadas por meio da mise-en-scène. Duelle explora uma riqueza de sentido – na edição, nos cenários, na presença física dos atores, nos enquadramentos e nos movimentos de câmera – que não se esgota pela ausência de uma trama coerente e de resolução inequívoca.
A abordagem era estranha para os tradicionalistas da então – que desprezavam o nonsense – e talvez seja igualmente insólita para um público contemporâneo – que tende a enxergar a ficção como um quebra-cabeça à espera de solução.
Narrativa serial
Em tempos pós-internet, espera-se que as narrativas sejam completas (ou completáveis) e tracem um arco satisfatório. Cada origem deve ser contada (e periodicamente, recontada) e espera-se igualmente um fim, ou pelo menos clímax. Em décadas anteriores, entretanto, embarcar em uma história serializada implicava em aceitar que princípios e conclusões poderiam estar inacessíveis. Episódios de TV, filmes e gibis eram consumidos fora da ordem de lançamento ou da sequência diegética. Uma trama era tecida a partir da disponibilidade de seus fragmentos e as lacunas eram inevitáveis. Em contraste, se há alguns anos soaria absurdo preocupar-se com a cronologia da série 007, em 2018 os estúdios Marvel gostariam de convencer o público da necessidade de ver ou rever cerca de vinte filmes de modo a garantir a inteligibilidade de Guerra Infinita.
Nos créditos iniciais, Duelle é apresentado como Cenas da Vida Paralela: 2. Já Norôit é anunciado como a terceira parte da tetralogia, sendo que o primeiro e o quarto episódios jamais veriam a luz do dia. Caso a série tivesse sido completada, seria possível divisar um painel mais amplo, uma conexão entre cada filme?
Norôit é um conto de vingança entre facções de piratas, cujas líderes talvez tenham poderes mágicos e talvez se relacionem com o conflito sobrenatural aludido em Duelle. Indícios de uma mitologia comum? Ou pistas falsas, capazes de sugerir conexões? A própria separação entre pistas falsas e verdadeiras seria, por acaso, aplicável? Desde os seriais de Feuillade na década de 1910, até a alegada Era de Ouro da Televisão, um século mais tarde, há um forte elemento de improviso na concatenação da intriga, disfarçado sob a ilusão de um sentido maior, cuidadosamente premeditado. Rivette traz essa desordem para o primeiro plano, tornando-a objeto de reflexão e de exploração.
Em Duelle, em Norôit e nos noirs da Hollywood clássica há constantes menções a personagens e eventos anteriores à trama e que não serão necessariamente descritos ou esclarecidos. Em qualquer relato, algumas lacunas geram novas histórias enquanto outras persistem como mistérios. Elas não são um defeito a ser corrigido, pelo contrário, são parte inseparável do potencial narrativo.
3: Citações
A identificação de fontes ainda é um método bem difundido de explicação, como se cada obra ficcional fosse definida por inspirações pré-existentes (mitos, arte, fatos históricos). É uma superstição semelhante à crença de que a etimologia esgota o significado das palavras em qualquer uso posterior. Nesse raciocínio, as citações são privadas de seletividade, inversões, mal-entendidos ou qualquer outro deslocamento semântico.
Norôit possui pontos de contato com O Tesouro do Barba Ruiva (Fritz Lang, 1955) e aproveita o mesmo castelo em que Vikings, os Conquistadores (Richard Fleischer, 1958) havia sido filmado. A série Cenas da Vida Paralela tinha como título original Les Filles du Feu, o mesmo de um livro de Gérard de Nerval. Durante a gravação de Duelle, William Lubtchansky, diretor de fotografia, pensava em Delvaux enquanto preparava um determinado enquadramento. Esse emaranhado não é uma Pedra de Roseta, mas ‘apenas’ a manifestação de um fenômeno presente em qualquer ato de comunicação – muito embora o colecionismo de referências possa ser tornar um fim em si, como em Stranger Things.
Há também uma peça teatral em Norôit, cujo título não é mencionado no decorrer do filme, ainda que alguns elementos sugiram Hamlet: inglês elisabetano, certas situações, a caveira. Mas o circuito da citação não se fecha: uma leitura atenta dos créditos iniciais esclarece tratar-se de A Revenger’s Tragedy¸ texto de atribuição incerta do começo do século XVII. A escolha (sugerida pelo roteirista Eduardo de Gregorio) é bem representativa do método rivettiano: a ilusão de familiaridade, o familiar tornado estranho.
Filosofia, ética.
Conforme já mencionado anteriormente, em Duelle as filhas da Lua e do Sol disputam entre si o direito de continuarem existindo no plano físico. As deusas são como duas proposições mutuamente excludentes: a realidade de uma necessariamente eliminará a da outra. Na obscura conclusão do filme, nenhuma das duas sai vencedora. É possível traçar um paralelo entre esse arco e discussões filosóficas cujas implicações ultrapassam o cinema. Deleuze, em Diferença e Repetição, comenta o conceito liebniziano de compossibilidade: para que algo exista, não basta ser possível, mas é também necessário que sua existência seja compatível com as demais coisas existentes. De acordo com essa lógica, o mundo possível é uma soma de afirmações não contraditórias.
Ao longo do tempo, partes da ciência e da filosofia complicaram consideravelmente essa imagem, ao relativizar a percepção e a descrição da realidade. Diferentes premissas podem ser simultaneamente válidas e nenhuma delas, segundo essas teorias, deve estar acima de crítica e reflexão. Tal virada compromete as pretensões a uma verdade absoluta e imutável.
Havia, desde o final do século XIX, um certo otimismo entre as vanguardas quanto ao papel da arte em difundir uma visão menos estática do mundo. Para elas, as formas de representação tradicionais estariam impregnadas pelo pensamento hegemônico e não se prestariam a um questionamento efetivo da ordem das coisas. Em contrapartida, acreditava-se que as narrativas não-lineares e autorreflexivas contribuiriam para a contestação do discurso dominante e para novas concepções filosóficas, sociais e culturais.
Em Kill All Normies: Online Culture Wars from 4chan and Tumblr to Trump and the Alt-Right, Angela Nagle defende uma hipótese sombria: a utopia das vanguardas – a contestação da cultura oficial e a proposição de um pensamento alternativo – foi concretizada pela extrema-direita, a partir de métodos e objetivos bastante diferentes. Se o argumento soa controverso, um fato parece incontornável: a despeito das melhores intenções perspectivistas, o autoritarismo e a falta de empatia permanecem entrincheirados em nossa sociedade. Nesse contexto, a que fim se prestou todo o questionamento empreendido esteticamente por Rivette e outros artistas?
Ao longo deste ensaio, utilizamos o cinema rivettiano como contraponto a uma certa estreiteza no discurso cultural contemporâneo, com sua ênfase em respostas inequívocas, explicações fáceis e na erudição autocongratulatória. São alvos aparentemente inofensivos, mas indicativos de tendências altamente regressivas. Nesse contexto, a pertinência de Rivette é justamente a sua resistência à inércia, a indicação de que a imaginação pode ir mais longe. Em tempos atuais, como em qualquer outro período, trata-se de um exercício imprescindível.
1 Rivette chegou a rodar algumas cenas da primeira parte, mas só veio a retomar o projeto anos depois – e com outros atores – em A História de Marie e Julien (2003).
2 Conforme reportado na Sight and Sound por Gilbert Adair em 1975.
3 Publicado anonimamente em 1607, atribuído a Cyril Tourneur durante séculos (e assim creditada em Norôit), atualmente considera-se mais provável que tenha sido escrito por Thomas Middleton.
4 Segue boa resenha do livro em questão: https://lareviewofbooks.org/article/dialectic-of-dark-enlightenments-the-alt-rights-place-in-the-culture-industry/#!
Agradecimentos especiais a Juliana Fausto e Marcus Martins pela imprescindível troca de ideias durante a elaboração do texto. A Victor Lopes e Eduardo Coutinho (que não é o finado cineasta) pelo interesse.
Através desse princípio, o primeiro supra-sensível, o reino tranqüilo das leis, a cópia imediata do mundo percebido, transmuda-se em seu contrário. A lei era em geral o-que-permanece-igual consigo, assim como suas diferenças. Agora o que é posto, é que lei e diferenças são, ambas, o contrário delas mesmas: o igual a si, antes se repele de si; e o desigual a si, antes se põe como igual a si. De fato, só com essa determinação a diferença é interior, ou diferença em-si-mesma, enquanto o igual é desigual a si, e o desigual é igual a si.
A Fenomenologia do Espírito, de Georg Wilhelm Friederich Hegel
Em dado momento do filme A Garota de Lugar Nenhum (2012), Michel, personagem vivido pelo próprio Brisseau, afirma que uma ponta de cigarro encontrada em sua varanda se moveu espontaneamente do local onde se encontrava. Argumenta que o vento não pode ter sido o culpado, afinal as nuvens se movimentavam para o lado contrário do trajeto percorrido pelo cigarro, além de que as pétalas de flor, que se encontravam ao lado da cuxia, permaneceram inertes, imperturbadas mesmo com o movimento do companheiro. Dora, graciosamente interpretada por Virginie Legeay, afirma que então deve ter sido obra do diabo. Mas em seguida indaga a pergunta essencial: por que o diabo se importaria em mexer uma cuxia de lugar?
Brisseau é um cineasta fundamentalmente materialista. Aborda a matéria através de uma tautologia investigativa que se estrutura em uma busca incessante pela graça, toda essa matéria sendo lapidada em uma reiteração progressiva de uma dureza naturalista, até chegar em um ponto de inflexão no qual conclui que tudo é Graça. Esse oximoro elementar é a força motriz processual de uma injunção que rege toda a sua obra: o paroxismo elucidando os predicamentos do transcendental. Como afirmado no seu filme À Aventura (2008), para o francês a matéria é composta majoritariamente de vazio. O que importa é o que se esconde entre a matéria visível, esse vazio apenas acessível quando atentamente observado: a proposta de Brisseau é tentar filmar exatamente essa lacuna.
O milagre é que tudo é lógico, menos o essencial. Alcançar o basilar, o invisível, esse ponto de quebra, no qual a transdução do material ao imaterial finalmente se fundamenta, é a grande questão. Transcender o espectro pelo tangível. Em Brisseau temos sempre o orgasmo como uma possibilidade rumo ao absoluto e um jogo de poder para orientar essa transcendência numa lógica mais próxima da fisicalidade. Brisseau é um materialista que, como Rossellini, retira da matéria a potência do místico. Há algo mais transcendental do que os procedimentos utilizados por Brisseau para filmar o corpo feminino? Pensemos em Mathilde em Boda Branca (1989), ou Élodie em Os Indigentes do Bom Deus (2000). São corpos de uma luminosidade e expressividade que vão além do simples apelo luxurioso, suplantam o desejo carnal pela realização espiritual, em um ideal próximo do perfeito. O feminino em Brisseau nunca é exatamente alcançável: talvez dentro da diegese, na narrativa, este se apresente como efetivamente tangível, mas ele sempre está como em um pedestal, imaculado, para além do visível.
Contudo, não se deve cometer o recorrente erro de que a teleologia absoluta dos filmes de Brisseau se encontra no papel feminino como uma musa, ou até mesmo que a nudez ou o orgasmo são o ponto final da sua investigação. O desejo é sempre um ponto intermediário que se dirige a um campo hermenêutico mais amplo, o feminino é uma ferramenta para atingir o absoluto. A teleologia do holismo: Brisseau busca a ideia de Deus, as estrelas, o vazio, a graça, a redenção.
Em Coisas Secretas (2002) temos um filme no qual uma dupla de jovens mulheres busca ascensão social usando como instrumentos seus corpos e suas capacidades de sedução, como uma espécie de Rastignac e Sorel erotizados. Acompanhamos as duas ingressando em um jogo sexual, político e social que desenvolve a narrativa do filme, que não se estrutura apenas nesse viés estruturalista, mas também em uma dimensão existencial e formal. Como o próprio Brisseau indica, o filme é algo como um Psicose (1960) erótico, um suspense sexual, no qual as duas moças podem a qualquer momento iniciar uma brincadeira erótica, o cotidiano é erotizado de forma que o sexo se torna algo não apenas banalizado, mas plenamente natural, que floresce espontaneamente na rotina, podendo surgir a qualquer instante.
Em breve a dimensão existencial vai se desdobrando também na figura de Christophe, herdeiro de uma empresa que busca incessantemente o gozo sem limites, personagem por qual uma das jovens se apaixona, mas é logo abandonada. Enquanto sua colega Sandrine se casa com o empresário e completa sua caminhada na ascensão social, Nathalie cai em desespero e toma decisões drásticas. No fim, quando as duas se encontram após o espetacular clímax do filme, resta apenas um vazio desolador frente a impossibilidade do prazer absoluto. Uma desilusão existencial pelos limites do sexo.
Coisas Secretas (2002) forma, juntamente com Os Anjos Exterminadores (2006) e À Aventura (2008), uma trilogia dessa busca pelo prazer como sublimação do físico. É daí que o papel do erótico se torna tão precioso para Brisseau: mais que buscar o seu valor perverso ou tentador, Brisseau examina seu papel social e existencial.
Compreender essa busca pelo absoluto, o papel do místico nos seus filmes, é essencial para se compreender Brisseau. Mesmo A Vida Como Ela É (1978), um filme que a priori não apresenta o flerte entre um naturalismo rigoroso e o místico como os futuros trabalhos do diretor, já se percebe um fluxo de eventos que beiram o onírico com todo o sensacionalismo exacerbado dos eventos e a pungência narrativa crua proposta. Pensemos também em François no fim de Boda Branca (1989), quando vai de encontro ao oceano e a presença de Mathilde se faz mais presente que nunca, cena que não necessita da fisicalidade desta para se concretizar – algo que boa parte dos materialistas buscam e raramente alcançam: o invisível como matéria.
Brisseau não é de forma alguma um cineasta sistemático, teórico, e sim um no qual seus ímpetos se desenvolvem sob um viés mais espontâneo: ele mostra aquilo que é capaz de mostrar, aquilo que conhece. Seu cinema parte da pedagogia do físico para chegar no conflito que o asceta enfrenta na matéria. Em uma abordagem essencialmente heraclitiana, deste conflito encontramos a harmonia plena, naturalmente não podendo ser descrita por discurso, afinal apresenta um paradoxo fundamental quando descrita por linguagem. Só pode ter seus predicados elucidados logicamente quando calcados no sensível.
O místico como fenomenologia, de competência empírica, como no filme Um Jogo Brutal (1983) quando a mãe de Christian percebe o quão belo é abrir os olhos no local onde se encontra. Se a vida e a morte são apenas situações particulares, o que desestabiliza essas situações é o potencial imaginativo que as permitem serem absorvidas ou transcendidas. Como o serviçal da casa que, quando inquirido por Isabelle o sentido de viver quando se é prisioneiro do próprio corpo, responde que todos têm o seu próprio destino, e se esse destino a fez nascer daquela forma, era para deixa-la mais próxima do que realmente importa. E se Isabelle vai constantemente sofrendo com subsequentes desilusões, essa dor vem sempre aliada a uma noção de educação sentimental, seu espírito sendo elevado com o martírio da experiência (exemplificado nas duas cenas geniais onde a jovem lê o poema de Prévert e o de Baudelaire).
Assim como Isabelle, Christian nasceu preso a uma condição inexorável a ele, mas distintamente da filha, sua prisão não era física, e sim psicológica: a recusa do Dasein pelo holismo do eu, uma empáfia proveniente da concepção da figura divina providenciando importância ao seu destino, aliado a uma espécie de ceticismo desromantizado, ao mesmo tempo que vê a mãe morta como uma pedra, desprovida de valor, também percebe na natureza um perfeito equilíbrio, crê no seu destino definido pela padronização arbitrária e no isolamento existencial. Enquanto ele se refugia no Eu, Isabelle se refugia na natureza – ambos possuindo como ontologia fundamental a dor, o sofrimento. Mais do que um díptico: a cena final na qual o espírito de Christian alça a mão para alcançá-la nos induz a crer que, na realidade, o absolutismo agressivo do pai e a transcendência pelo deslumbre da filha acabam se encontrando em um plano mais associativo que dissociativo. Para os filhos em que a violência floresce como um pretexto existencial, a solução é machucar o outro ou alienar-se na enganosa harmonia natural. Mas se no fim é Isabelle que é capaz, através de suas preces, de providenciar um lampejo de luz dura na narrativa, isso é devido à empatia nela induzida através da dor. Eu amo pois eu sofro, a dor me aproxima do Outro, uma concepção fundamentalmente cristã que alcança uma sofisticação singular na figura de Isabelle. Um filme absolutamente brutal, como o título indica.
Esse contato com a natureza, essa ambientação cósmica como panaceia para a redenção, essa reconciliação com o mundo, é muito presente na obra de Brisseau: além de Isabelle, temos também Nathalie na cena final de Sombras (1982) e principalmente Céline, em Céline (1992), um dos mais belos filmes da história do cinema, no qual essa reconciliação se dá por um viés litúrgico, panteísta de harmonia. Se a jovem Céline estava prestes a se suicidar após a tragédia com o pai e a perda do amante, é com a figura de Geneviève que reencontra seu lugar no mundo, a meditação sendo a chave para perceber que tudo é harmonia. Ao confrontar sua imagem com a de uma pessoa que passou por um trauma semelhante, Céline é capaz de começar seu processo de elevação espiritual.
Existe em Céline uma espécie de sublimação do corpo para o espírito através do yoga e da meditação, atividades que são essencialmente corporais, mas que apresentam uma sutil transdução estrutural para o campo do espírito, no sentido que ali temos o espírito curando o corpo para em seguida termos o visível como cura, com o espírito de Céline tornando-se aparência para Geneviève, salvando assim sua vida também. Como Camille Nevers indica, essa dialética, entre Geneviève e Céline, chega na conclusão de que além de uma vida após a morte também há uma morte após a morte. Como aponta Bazin, essa fixação do imaterial no visível, essa manutenção do espírito pelo tangível, é salvar o ser pela aparência. Céline é, acima de tudo, uma história de amor. Do meu encontro ao rosto dela para o infinito. É como encontrar o mundo dentro de si mesmo.
Já no filme Os Indigentes do Bom Deus (2000), filme essencial na obra de Brisseau, temos uma recusa dessa busca pelo infinito, uma tentativa mais ingênua de seguir em frente apesar de toda a injustiça que nos circunda. A revolta de Fred com a perda de Élodie traz à luz uma revolta mais fundamental deste com a conjuntura em que se encontra, revolta que é bem exemplificada no roubo do banco e na subsequente redistribuição dos bens adquiridos aos transeuntes e vizinhos de Fred. Não é à toa também que Élodie é logo associada à ideia de riqueza com o seu novo namorado milionário.
Os jovens, chamados jocosamente de Indigentes do Bom Deus por Maguette (que também constantemente aponta o quão pouco estes compreendem da vida), são representados assim como são: inocentes, alienados. Eventualmente o filme aparenta chegar na conclusão de que essa alienação, quando aliada à generosidade, pode servir como uma estabilização para o jovem, sendo a aceitação do absoluto algo muito duro para o inocente. Fred encontra Sandrine e ela o faz reencontrar a beleza na vida, na natureza, no vento, na linguagem, sobretudo no sol. Mas basta um lapso da imagem de Élodie para tudo voltar ao que realmente é: o desvario, o desalento, uma perna quebrada. Se Fred consegue seguir em frente, é pela segurança material que lhe foi permitida e o alívio que Sandrine trouxe para a sua vida. A fugacidade do prazer, ater-se ao pragmático, simplificar o que vê. Até que a imagem de Élodie se confunda com a de Sandrine e a vida possa seguir.
A busca de Brisseau não deixa de ser uma busca pelo simples, simplificar o que vê para assim ser capaz de curar. Encontrar no rosto do Outro a imagem do infinito. Em O Som e a Fúria (1988), filme no qual a diegese sonora é trabalhada como ferramenta propriamente narrativa (não é à toa que no clímax do filme escutamos com tanta clareza os sons da fogueira, os tiros, os passos), quando Bruno se suicida com a vontade de reencontrar a avó e o pássaro Superman, isso indica a crença e a fé como escapismo de uma realidade, rumo às estrelas, com a esperança de um futuro melhor, o suicídio como gesto de redenção. Quando o avô de Jean-Roger morre e diz que vive no outro e o outro nele, que todos são irmãos, essa dimensão mística de fraternidade próxima do Dasein heideggeriano se consolida mais uma vez como discurso.
Se é pelo martírio que se chega ao infinito, se é da tormenta que se encontra o absoluto, do devir hegeliano que o paradoxo do ser e não ser se harmonizam, não havia como se alcançar uma conclusão diferente: só através do amor que se pode obter qualquer tipo de alívio. Este permitindo a perenidade da dor, não superando, e sim justificando toda a violência e toda a irracionalidade, a reparação da rasgadura pelo rompimento completo desta. É martirizando meu encontro com a face do Outro que posso me aniquilar integralmente e assim finalmente pertencer. O amor puro, absoluto, integral: quando o rosto dela me aproxima da ideia de morte, a única transcendência efetiva que essa existência permite.
Sonhei que estava assistindo a um filme e ele me envelhecia. O próprio filme me infectava, me adoecia, que era a essência desta velhice. Então a tela virava um espelho e eu me via envelhecer. Eu acordei aterrorizado. É disso que eu falo, é mais forte que qualquer vírus. – David Cronenberg em “Cronenberg on Cronenberg”, 1992.
Um filme sobre efeitos. Essa é a essência de Like Me, debut diretorial de Robert Mockler e projeto de longos anos até o mesmo sair do papel. Usar os dispositivos modernos como chancela do horror é uma saída que poucos filmes usam, como Unfriended de Levan Gabriadze, horror todo passado no Skype, e o thriller Proxy Reverso de Roberto Wrinter, que se passa todo no desktop de um técnico de informática. O que difere Like Me de filmes como esses citados é a ruptura entre o meio e a imagem. Há a nítida preocupação de manter-se como narrativa e inflá-la com aspectos visuais que hoje fazem parte da rotina de quem está preso a celulares, tablets e afins. São proto-interlúdios dentro de uma violenta saga através de egos inflamados à procura de aprovação na internet. Glitches, vídeo-arte, efeitos de VHS e tutoriais do YouTube: um mundo sobre o valor da imagem ironicamente feito com deleite visual. O contraponto necessário para este mundo puído das redes sociais.
O mundo colorido mezzo-infantil e mezzo-aterrorizante mantém a fé na corrida das barras de rolagem e cliques. Os vídeos de Kiya, que sempre está atrás da câmera de seu celular, fazem da escória as grandes estrelas. Nesse processo, a violência é o que permeia essa suposta grandiosidade e generosidade da protagonista. Uma bastarda ainda maior que as vítimas que encontra pelo caminho, pronta para confeccionar suas arenas de luta com cores, luzes e adereços. O mundo colorido de Kiya é pura alienação – o espelho citado por Cronenberg na abertura desse texto cabe aqui.
Like Me é, substancialmente, um filme sobre como as imagens distorcem nossas personalidades. Como a ilusão de curtidas e compartilhamentos eleva, aliena e adormece a alma de YouTubers, Instagrammers e afins. Um Videodrome dos tempos atuais. É preciso dizer que Mockler não está interessado em pistas, tampouco num discurso sobre como a internet é nociva ao homem ou algo do tipo. Este discurso está moldado e impregnado em qualquer lugar que se olhe neste filme, ainda que nunca esteja em primeiro plano. Uma farsa bem funcional e interessante sobre como a imagem exige concessões ante a palavra.
À priori, Like Me é um slasher de aura lisérgica, uma brincadeira sobre a infantilidade nas atitudes de sua protagonista, mas toma perspectivas diversas conforme esses “assassinatos” acontecem. Esse diálogo entre cores e trama remete ao fetichismo de momentos da carreira de Dario Argento (Suspiria a destacar) e David Cronenberg. Ainda que tudo em Like Me esteja em função da modernidade, Mockler usa a mesma frontalidade visual que diretores da década de 70 e 80 fizeram e distante de retrocessos; é a forma mais pungente de usar referências como síntese de todo filme. Fora o que o próprio Cronenberg chama de “critério da realidade”, referindo-se ao corpo humano, sua efemeridade e caminho de compreensão do real (e assim criando elos entre Naked Lunch, Videodrome e Gêmeos: Mórbida Semelhança), que Mockler deposita em Kiya como reação aos mesmos estímulos.
O que Jean Epstein chamava de “estética de sucessão”, como um atropelo de detalhes em um filme, Like Me arrisca como atualização da fusão imagem-palavra, onde existe a necessidade da imagem se sobrepor à narrativa. Na confiança de que ela será suficiente para que o filme tenha suas justificativas suficientes. E tem. É, mesmo, um filme de sucessões imediatas. Que corre contra o tempo, tão urgente quanto seus personagens que não querem perder uma informação vinda de seus aparelhos; que elimina maiores detalhes para se aproximar de um choque estritamente estético (vide still acima) e que extrai um bom resultado nesta sugestão.
A possibilidade de a câmera descortinar a perspectiva dos sonhos fantásticos citado por Hugo Münsterberg não afeta somente a Cronenberg; ao filme de Mockler, ele é puro elemento. Um bloco racional sobre quão onírico Like Me é. Ou melhor, um pesadelo vestido de sonho, mais um exemplar de fluxo de consciência amplificado por cortes, fusões e glitches; como se a tal world wide web fosse um trem desgovernado e que a melhor forma de conversar com os passageiros é pela mistificação, ou seja, pela imagem.
Se Like Me também é um filme sobre maneiras de expressão, vide o uso de câmeras VHS, o próprio dispositivo a filmar (uma câmera HD) e o celular – a câmera da protagonista – o lado inverossímil ganha forças. É o encontro de épocas a favor do gênero, não só pelas referências a Argento, Cronenberg, Terry Gilliam, etc. Nossos superegos possuem censuras e elas tomam forma de vilania, como se até em tempos de desmoralização houvesse a pausa do niilismo para saber onde se pisa. Portanto, é um filme que te leva ao extremo e te joga para que sinta a pausa depois de tanta velocidade como um recuo necessário. Talvez seja esse o único senão do filme de Mockler. Como Mark Neveldine e Brian Taylor, Robert Mockler usou do artifício e da possibilidade de compreensão pelo caos, porém escolhe o respiro como momento de recognição entre personagens e público.
Deixa de ser um filme cronometrado para fazer algumas considerações que a essa altura já não importam mais. Se confundir com o cinema e a modernidade é o bastante para Like Me e nisso é um filme muito forte; recorrer a respiros e ao drama, superficialmente, é colocar em cheque todo o resto.
Como êxito, logo Like Me desemboca num desfecho cínico e violento; de perturbação bem próxima a de Funny Games de Michael Haneke. Encaixa-se então o hiper-realismo de um mundo cruel com todo artifício do filme que invariavelmente questiona a suspensão da vida regida por aparatos tecnológicos. Mockler dirige à função representacional a cada instante e o embalando a diversos motivos, destacando a pura e simples necessidade de ilusão. E se hoje vivemos entre o delírio e a utopia, eis um filme necessário, incluindo sua transparência para quem e sobre quem é o filme, com proporções que resvalam em toda sociedade, que passa por mutação silenciosa, enquanto nos condicionamos a ter extensões artificiais, apêndices com funções que oscilam, sendo evolucionistas e apocalípticas. Basta sabermos para qual lado seguir.
Dentro do cinema, a porta pode ser pensada como ferramenta de mise-en-scène que permite o recorte do olhar e o enquadramento do campo de visão. No entanto, ela é capaz de reconfigurar uma espécie de entre-lugar que torna possível o acesso a mundos imprevisíveis e desconhecidos. Em dois longas-metragens brasileiros, A Misteriosa Morte de Pérola (2014), de Guto Parente, e O Sol nos Meus Olhos (2012), de Flora Dias e Juruna Mallon, a porta é o elemento visual que perturba o olhar, ao mesmo tempo, em que se arquiteta como limiar para mergulhar em uma dimensão misteriosa e fantasmagórica.
Após se mudar para um casarão antigo e sombrio, uma mulher é tomada pelo medo e pela solidão, em A Misteriosa Morte de Pérola. Na primeira sequência, o olho fechado de Pérola é filmado com o zoom de uma câmera de vídeo. Suas pálpebras estão cerradas (Fig. 1) e ela está adormecida e deitada na cama. Quase ao final do filme, o rosto de Pérola é novamente filmado por uma câmera de vídeo. Mas o zoom agora produz um plano fechado do olho aberto de Pérola (Fig. 2). Ela encontra-se morta com o corpo estirado no piso de madeira de seu casarão fúnebre. Entre um olho adormecido e um olho morto, o filme lança ao espectador uma experiência cambiante, nebulosa, difusa, entre o onírico e a morte.
O trânsito entre o sonho e a morte faz proliferar imagens espectrais, que procuram romper a temporalidade linear por meio de repetições. O close no olho de Pérola é repetido, mas cada plano é produzido em tempos diferentes que produzem inversões: o olhar instável entre o sonho e a vigília e o olhar petrificado da morte. Pérola transita pelas dependências do casarão, guiada pelos movimentos de abrir e fechar seus olhos, instigada pelo que deseja e consegue ver e pelo que não é capaz de ver ou não quer ver, proporcionando diferentes qualidades afetivas do olhar. O cenário noturno na maior parte das sequências abre o olhar para a perda, porque nos coloca diante de uma experiência de privação do visível. A experiência da noite desencadeia uma dialética entre o que ainda é possível ver e o que já se tornou invisível.
O gesto de abrir e fechar os olhos – tornar visível ou invisível ao olhar – é também pensado como dispositivo de composição espacial do filme, que já é apresentado no prólogo com uma sequência de vários planos em que Pérola entra no casarão e percorre todo o espaço doméstico com sucessivos atos de abrir e fechar portas e janelas. Boa parte dos enquadramentos do filme apresenta outros enquadramentos internos: frestas de cortinas (Fig. 3), algumas aberturas em mise en abyme, como janelas vistas dentro de janelas, portas a dar acesso a outras portas ou janela no fundo da sala com uma porta aberta (Fig. 4). Pelo abrir e fechar de uma porta ou de uma janela, A Misteriosa Morte de Pérola potencializa a relação necessária entre luz e sombra no cinema.
Portas e janelas são também entradas e saídas que desorientam a experiência de um espaço. Por onde se entra? Por onde se sai? Há uma sequência em que Pérola acaba de fechar a janela de uma sala, dá alguns passos para trás e o plano seguinte mostra a personagem saindo do interior do armário de seu quarto, na continuidade do movimento, por entre portas abertas. O percurso que o filme deseja provocar é o da vertigem labiríntica, de perturbar a noção entre dentro e fora, de trabalhar uma ambivalência entre o passar e o não passar, o aparecer e o desaparecer.
A porta como abertura para o mistério ou algo ameaçador é explorada talvez de forma mais evidente na sequência em que Pérola tranca as portas do casarão e se esconde no próprio quarto, após uma longa sequência de pesadelo. Ela se senta na cama com respiração ofegante, olha para a porta fechada do armário. A porta é aberta e o plano é invadido pela escuridão total do interior do armário, durante cinco segundos de silêncio que são interrompidos por um efeito sonoro, construído por diversas notas de cordas orquestrais, que acompanham a aparição repentina de uma figura masculina mascarada, em penumbra que envolve seu volume. Há um corte brusco para Pérola acordando subitamente, como se estivesse em um pesadelo. Ao longo do filme, os sucessivos despertares de Pérola evocam uma narrativa arquitetada como um mise en abyme, em que sonhos estão dentro de outros sonhos.
Abrir e fechar portas e janelas também modulam a dinâmica entre luz e sombra em A Misteriosa Morte de Pérola. Diferentes formas de jogo entre claro e escuro, entre branco e negro, buscam a ampliação do desaparecimento da figura humana, apenas pelo modo como a luz entra no espaço e incide sobre os corpos. Na cena em que Pérola abre pela primeira vez a janela de uma das salas do casarão (Fig. 5), o plano frontal é invadido por uma luz forte esbranquiçada que faz desaparecer os contornos da figura de Pérola, que se encontra ao centro da imagem. O uso da luz aqui neste plano proporciona o desaparecimento momentâneo e pontual do volume, da solidez, a favor do embranquecimento do quadro dentro da imagem por onde a personagem parece mergulhar. Em outra cena, Pérola entra pela primeira vez no casarão com o interior da sala imerso na escuridão (Fig. 6). A composição da sombra com a luz enfatiza a volumetria do corpo de Pérola, no entanto o contraluz não torna possível uma repartição das partes escuras e das partes claras de seu corpo que poderiam tornar visíveis seus contornos, a roupa, a cor e a textura da pele.
O contraluz apenas modela e esculpe o volume de Pérola, mas faz desaparecer sua fisionomia pela sobrevalorização da figura apenas como sombra. Ao colocar o espectador dentro da experiência de adentrar um casarão envolto na escuridão, A Misteriosa Morte de Pérola trata a sombra como uma qualidade própria do espaço de encenação. As internas noturnas na casa provocam a sensação de habitar a sombra, que é em si o próprio meio em que os acontecimentos se dão. O espaço do casarão é explorado com alternância entre a quase ausência de luz – a criar planos com densos tons negros e iluminação indireta – e paredes em penumbras ou sombras – com diferentes escalas e zonas entre a opacidade e a transparência. O filme é seduzido pelo movimento das imagens, por aquilo que é da natureza do próprio cinema. A própria ambientação escura do casarão produz uma ressonância com a noção de uma sala escura do cinema, onde se projetam imagens em movimento. Mundo de sombras, volumes que aparecem e desaparecem, figuras que surgem e se escondem, o ver transfigurado no perder.
Em O Sol nos Meus Olhos (2012), de Flora Dias e Juruna Mallon, a morte da mulher é tanto a questão central da narrativa, quanto o ponto de partida para a possibilidade de se conectar a outros lugares, tempos e modos de vida, por meio da travessia e do encontro. A dramaturgia alinha-se ao gênero road movie, mas há diferenças notórias no modo como articula o desejo de seguir a estrada. Por mais que a jornada do protagonista abarque diferentes cidades onde ele passa, não existe qualquer tentativa de fuga das normas sociais opressoras. A cartela inicial do filme traz a frase: “coração põe na mala. coração põe na mala. põe na mala”. Ao colocar o corpo da mulher morta na mala e seguir viagem junto com ela, o protagonista encontra uma possibilidade de despedida de quem ele amava, sem cair na imobilidade do luto e propondo uma abertura à leveza da travessia por outros territórios.
O filme começa com o plano de uma cozinha, por onde entra um homem, carregando compras. A este homem que adentra a cena, jamais será dado um nome, ao longo de todo o filme. Ele olha para fora de campo e chama por Cris. Não há resposta. Ele caminha até sair de quadro. O plano seguinte (Fig. 7) coloca em evidência a sombra do homem em contraluz, diante da porta aberta de um quarto. O homem permanece ali parado por um tempo até começar lentamente a adentrar no quarto, deixando aparecer uma mulher deitada no chão (Fig. 8). Flores vermelhas estão espalhadas ali perto. O homem permanece imóvel olhando para baixo onde jaz o corpo da mulher.
Se a porta aparece em A Misteriosa Morte de Pérola como limiar difícil de atravessar por sua inquietante estranheza, a porta ainda é o elemento que instaura uma abertura, uma cisão, plena de mistério, em O Sol nos Meus Olhos. Do lado de cá, a penumbra. Do lado de lá, a luz. Diante de uma porta aberta, há a relutância em atravessá-la. O homem olha para o corpo da mulher e uma ferida se abre em seu coração. A porta aberta e o encontro com o corpo da mulher morta fazem parte de uma encenação do desaparecimento: a imagem do protagonista é desde já uma silhueta em contraluz; a luz branca do sol invade a janela do quarto; não é possível ver o rosto da mulher. A sequência é envolta pelo silêncio: o homem está sozinho e o que se escuta é o som ambiente da casa. É um silêncio que não encontra equivalência na palavra, porque o acontecimento da perda é inominável.
O discurso prova-se incapaz diante do imprevisível dos acontecimentos. A relação com o mundo é o enigma em atravessar um umbral, em que se duvida se é possível continuar ou não. O corpo do homem se encurva ao ver o corpo da mulher amada no chão e declina o olhar diante de uma porta aberta. O protagonista é engolido pelo vazio, devassado pela morte da mulher. Será preciso a coragem para prosseguir sozinho e o tempo de percorrer a estrada para se recompor. Sem cair aos prantos ou gritar em desespero, o homem coloca o corpo da mulher dentro de uma mala grande, arrasta o objeto pela cozinha até fora de casa e coloca a bagagem na poltrona traseira do carro.
O gesto é brusco, violento, súbito, repentino. É uma ação que envolve um esforço corporal, com o peso de carregar uma mala e, aliado ao silêncio, parece configurar paradoxalmente a impotência do protagonista em apreender a mulher amada, mais ainda em compreender racionalmente sua morte. Colocar o corpo da mulher na mala pode apontar a princípio para uma vontade violenta de posse. No entanto, a mulher já está morta e existe aí na própria ação uma diluição concreta da posse. O que resta ao protagonista é elaborar a perda. Esconder o corpo da mulher na mala é enterrar sua imagem, mas ao mesmo tempo tal ação produz uma imagem: procura-se dar forma ao que resta, trabalhar o desaparecimento.
A mala permanece dentro do carro, por dias e noites. Mas a passagem do tempo não conduz à certeza de que ali, no interior da bagagem, há um cadáver em processo de decomposição ou putrefação. Esta dedução por uma interpretação realista dos acontecimentos não é colocada como um problema ao longo da narrativa do filme. A mala não é o corpo da mulher. Ela é o túmulo. Ela é volume e vazio. É imagem da perda. Como túmulo, a imagem da mala é pontuada no filme, seja em um plano de detalhe (Fig. 9), seja em meio a outros objetos de uma cena (Fig. 10).
A presença pontual da mala em O Sol nos Meus Olhos forja sempre um prenúncio das sequências em que o espectro de Cris emerge. A figura fantasmática é a aparição de uma mulher bela, de tez saudável, com olhar sereno e voz mansa. Não é uma espectralidade evanescente, esmaecida ou borrada; pouco corresponde ao imaginário tradicional dos fantasmas construídos pelo cinema. A manifestação idealizada do espectro da mulher morta aponta algo da subjetividade do protagonista, a partir de uma imagem de fascínio, de preservação da beleza, de bálsamo para a angústia, de fuga em relação ao olhar cotidiano.
Na primeira cena em que o fantasma de Cris aparece, já é de noite. No quarto do hotel, o protagonista se senta no chão, de frente para a cama vazia. A mala está logo ali, no outro canto. A porta fechada ocupa o espaço da parede entre o homem e a mala. A porta novamente aparece aqui como limiar de inquietante estranheza; ela é o entre, quando ver é perder. Quando o homem já está em sono profundo, o fantasma da mulher se manifesta, posiciona-se nas costas dele e o abraça (Fig. 11). Não é possível ver a face dela, que fica encoberta pelo rosto dele. Os dois repousam juntos. Eles coabitam o mesmo plano.
Na sequência seguinte, o silêncio da noite cede lugar ao rumor da manhã. Rastros de paisagem unem-se a uma mistura de sons, entre cantos de pássaros, gritos de criança e ruídos de carros passando. Um pássaro repousa no galho de uma árvore. Parece ser o plano ponto de vista de Cris, que olha para fora de campo no plano seguinte (Fig. 12). É a segunda vez que o fantasma de Cris aparece no filme. Ela está sentada no centro do quadro, em curioso estado de imobilidade, como se fosse aquele pássaro, ou tão estática quanto as duas árvores que a cercam. Ela olha para o canto abaixo. No contracampo (Fig. 13), o protagonista está dormindo, deitado no tronco de outra árvore. Ele abre os olhos lentamente, levanta-se e sai do parque.
Nas duas sequências, o personagem está dormindo quando o fantasma de Cris aparece. Ao fechar os olhos, é possível ver novamente a mulher amada. O entorpecimento do corpo pelo adormecer leva à aparição fantasmática de Cris. Quanto tempo o protagonista dormiu? O espectro de Cris invade os sonhos dele? Por que ela desaparece quando ele acorda? Não existe despertar sem sonho. Estar de olhos abertos não é suficiente para convocar a imagem da perda, mas é no despertar que o sonho é retrabalhado sobre os vestígios, os rastros no visível, sob o risco deles desaparecerem. O fantasma de Cris terá sua última aparição em um momento de vigília do protagonista. O homem acende uma fogueira no meio da escuridão. Seu corpo é iluminado pelas chamas do fogo, que ele observa com olhos sonolentos. Um barulho faz com que ele vire o rosto para ver. O fantasma de Cris se aproxima com passos lentos, até se ajoelhar diante dele (Fig. 14). Os dois passam alguns segundos se observando, em silêncio.
Nos planos mais fechados nos rostos dele e de Cris, as chamas da fogueira permanecem em evidência, como se os corpos estivessem envoltos pelo fogo. As chamas estão desfocadas, mas parecem emoldurar o enquadramento. O fantasma de Cris é potencializado pela verticalidade das chamas, que despertam imagens a burlar a percepção do olhar. É a imagem da mulher amada que fala: “Você sabe que, quando a gente se desloca e deixa as coisas pra trás, as coisas vêm atrás da gente. E aí esse lugar tá sempre onde a gente nunca sabe”. De qual deslocamento, ela está falando? Da passagem da vida para a morte? Da jornada do companheiro ao pôr o corpo em trânsito? Colocar-se em travessia mediante a viagem por territórios desconhecidos não desfaz a imagem da mulher amada, quando o visível é tocado pela perda. O que se tenta é suturar os rasgos, amenizar a angústia, preencher o vazio. Ao mesmo tempo em que se busca a proximidade com as coisas visíveis, os desaparecimentos e ausências produzem as distâncias que perturbam o olhar e o envolvem no mistério.
Por razões variadas, muitas delas associadas ao pensamento condescendente e misógino que imputa um certo mistério em relação a mulher e aos elementos biológicos ditos femininos, a feminilidade vem sendo relacionada em muitas obras cinematográficas como algo místico, através dos mais diversos elementos linguísticos, bem como na construção comportamental das personagens desde o roteiro, passando pela linguagem visual e técnica cinematográfica para estruturar esses tipos de narrativas. Em um sentido saussuriano e lacaniano, seria a linguagem uma estrutura de signos e significantes que através de práticas associativas produzem sentidos no sujeito, ou seja, toda a estrutura da linguagem, incluindo no cinema, passa por sistema inerentemente produtor de significados que marcam sujeitos (personagens) através de metáforas e figuras de linguagem visuais, sonoras textuais¹. Dessa forma, através da linguagem, são formados arquétipos de uma feminilidade marcada por estereótipos morais e religiosos que aplicam um sentido de compaixão, sabedoria e canonização nas mulheres². A mulher quando mantida pura, isto é, com a sua sexualidade devidamente controlada patriarcalmente, é uma mulher que detém esses atributos criados religiosamente. No budismo, religião oficial do Japão, existe também o arquétipo do feminino como algo tentador. Há um paradoxo presente entre o sagrado contido na virgindade da mulher preservada e uma vontade em potencial de ter contato com o proibido, irrompendo a virgindade e esse sagrado contido nas mulheres. Essa é uma das marcas misóginas mais fortes do budismo que reflete em toda a estrutura social japonesa.
O cinema japonês abriga muitas dessas misticidades tipicamente femininas ao longo de sua história, mas isso nada mais é do que um reflexo cultural nipônico que hospeda em sua cultura popular muitos mitos sobrenaturais. As obras de Masahiro Shinoda, Kaneto Shindô e Yoshishige Yoshida apresentam características interessantes sobre essa história da feminilidade mística no Japão. Os traços mais primitivos do místico atribuído à feminilidade são passíveis de serem observados no cinema de Masahiro Shinoda, mais precisamente em sua obra com maior teor místico explícito: o subversivo Himiko, de 1974.
Himiko apresenta o mito da Deusa do Sol, fundadora do Japão, que leva o mesmo nome da obra. Himiko é uma xamã poderosa que guia alguns povoados japoneses. Quando ela se apaixona por seu meio-irmão cultuador do Deus da Terra, Takehiko, sua sexualidade se torna motivo de preocupação para os homens do povoado que julgam de forma moralista o sexo como um fator que atrapalha Himiko a exercer sua conexão com o místico.
Shinoda utiliza uma misticidade puramente sexual e um forte aparato estético, dado pelo diretor de arte Kiyoshi Awazu, em parceria com Tatsuo Suzukiara, para contar a história da fundação do Japão. O matriarcado aparente na liderança de Himiko, na verdade é desmascarado como fantoche das intenções e olhares masculinos. A representação da criação do Japão através de um dos primeiros planos em que Himiko é estuprada por vários homens, demonstra uma preocupação de Shinoda em denunciar como a sociedade japonesa tem se estruturado até então. Ao mesmo tempo em que o místico feminino é colocado em lugar sagrado, esse sagrado é objeto de posse de um patriarcado, que a princípio, não se mostra muito aparente no contexto do filme.
Quando Takehiko se apaixona pelo xamã da Deusa da Terra, Himiko se vinga de Takehiko, arrancando os olhos dele e o banindo do vilarejo. As ações são supostamente justificadas pela própria Deusa do Sol, sob a alegação de que era inaceitável a existência de um herege adorador da Deusa da Terra. Por consequência de suas decisões, Himiko se torna alvo dos homens guardiões da religião local, que percebem que sua sexualidade não pode mais ser controlada, então só lhe resta a morte. Aqui, Masahiro Shinoda, representa outra extensão do moralismo na sexualidade feminina. Quando se desconfigura a sexualidade feminina sagrada, intocável e imaculada perde-se seu poder sacro e místico que possuía originalmente. O místico feminino é criado e passa pela manutenção do próprio patriarcado que pode deliberadamente renega-lo e realoca-lo conforme as mulheres e mantém submissas a essa moral.
O místico feminino vingando a si mesmo
Em Sob as Cerejeiras em Flor (1975), Shinoda dessa vez apresenta a sexualidade mística feminina como força maligna de vingança e sangue. A história de um ladrão que encontra a mulher mais linda que já viu na vida, durante um de seus roubos, e decide matar o marido para levar a esposa como prêmio, à primeira vista coloca a feminilidade mais uma vez em um lugar abaixo na hierarquia. Mas a esposa usa deliberadamente do poder que seu sexo exerce sobre os homens para subverter a hierarquia, manipulando constantemente seu novo marido, até um ponto em que a face do místico em sua sexualidade aparece sob a forma de um mal tão intenso e sanguinário que não pode ser controlado. Antes fatalmente castrado em Himiko, o místico feminino da sexualidade em Sob as Cerejeiras em Flor toma uma dimensão de subversão da castração feminina para então castrar o poder da masculinidade.
O caráter vingativo como extensão da misticidade feminina é explorado até as últimas consequências em Kuroneko (1968) de Kaneto Shindô. O diretor se propõe a inserir outro elemento místico da cultura japonesa para evidenciar as práticas castradoras do patriarcado sobre as mulheres. Quando mãe e filha são estupradas e mortas por samurais em uma floresta, o local se torna palco de diversos assassinatos de vários samurais que passam por lá posteriormente. É interessante como Shindô incorpora elementos culturais tão fortes do Japão, como os samurais, que são exemplos de masculinidade, nobreza e força, para aniquilar sistematicamente essa masculinidade castradora que ronda como uma sombra sobre a feminilidade. Há uma lógica muito bem estruturada em mostrar o místico retratado por fantasmas assassinos e gatos que tomam forma feminina. Essa forma se mostra como a mais compreensível e palpável de destruir a masculinidade.
Em um momento durante o filme, um dos samurais se pergunta: “que tipo de fantasma ousaria nos odiar?” O questionamento demonstra a prepotência do patriarcado que se recusa a enxergar sua leviandade e tem a concepção de ser algo extremamente necessário e bom. A vingança da violência do sexo através do próprio sexo desmantela as amarras hierárquicas que o estruturam e evidencia como é possível reverter os efeitos do moralismo que coloca a feminilidade mística em uma posição de passividade. Citando Tsuno Kaitaro, no artigo The Tradition of Modern Theathre in Japan, é possível ter ideia da dimensão do que significa a subversão da cultura japonesa através da arte: “Nossa esperança é que através do aproveitamento da energia da imaginação popular japonesa, nós possamos transcender de uma vez os clichês enervantes do drama moderno e revolucionar o que significa ser japonês”.
A potencialidade de castração
A castração moral da sexualidade feminina através do místico e do mito é tema central do terror clássico de Kaneto Shindô, Onibaba (1964). Assim como Kwaidan (1964), de Masaki Kobayashi, Onibaba é originário do próprio folclore japonês. Há um interesse cultural da Nuberu Bagu em se apropriar da cultura pré-moderna e das formas tradicionais de fazer cinema para desconstruir a própria cultura e os moldes clássicos cinematográficos, ressignificando e dando novo caráter ao mito e ao místico. É o que o pesquisador David Desser chama de “um regresso dialético a um passado pré-moderno”, em Eros plus Massacre: An Introduction to the Japanese New Wave Cinema (1988)³. Essa subversão cultural é característica central de Onibaba, que mostra a obsessão pela castração através de uma mulher que repudia os atos sexuais de sua nora, em extremismo tão forte que a torna um verdadeiro monstro.
O filme se passa em uma época em que o Japão sofria com os efeitos devastadores de guerras civis. Duas mulheres, uma nora que perdeu o marido na guerra e sua sogra, lutam para sobreviver matando samurais para vender seus pertences. Quando um samurai chega a aldeia onde elas vivem, a nora desenvolve forte interesse sexual por ele. Em um ato de repúdio às atitudes da nora, a sogra decide assombrar os amantes com uma máscara para impedir seus encontros amorosos. Inspirado no conto budista yome-odoshi-no men4, a máscara diabólica que a sogra coloca não sai mais de seu rosto, tendo então que arrancá-la junto com a pele.
Esse conto moral de Shindô mostra que os efeitos da guerra e as relações de interesse para sobrevivência podem trazer um caráter castrador sexualmente vindo da própria misticidade feminina. A moralidade que a cria é a mesma que a limita em um nível de auto-vigilância compulsória. Não há espaço para humanização e respeito durante a guerra, e em nenhum outro tempo durante a história japonesa, houve espaço para humanizar mulheres e suas sexualidades.
A decadência do místico feminino
Quando a Nuberu Bagu surgiu no final dos anos 50, os cineastas que faziam parte do movimento tinham como objetivo questionar os efeitos da guerra, a chegada violenta do american way of life, a cultura japonesa e a sexualidade de modo geral. O fato é que a sexualidade feminina retratada na Nuberu Bagu nem sempre a colocou no mesmo patamar de subversão das outras questões abordadas pelo movimento. Muitas das vezes, a sexualidade feminina era vista sob um escopo meramente estético, repleta de clichês eróticos e de uma misoginia poética.
Na última cena de Himiko, um ancião desolado vagando pela floresta se assusta ao olhar para cima e ver um helicóptero sobrevoando sua cabeça. A cena apesar de similar à obra prima onírica A Montanha Sagrada (1973), possui finalidade bastante diferente do clássico de Alejandro Jodorowsky. Em um ato puramente nuberu baguniano, Masahiro Shinoda introduz violentamente o choque da modernidade com a pré-modernidade, do cinema clássico com o cinema moderno. Efeitos muito importantes surgem desse encontro e impactam diretamente na decadência do místico feminino dentro do cinema.
Yoshishige Yoshida, além de precursor da Nuberu Bagu, também é o diretor que melhor consegue elucidar a questão do místico feminino, ao o colocar em uma materialidade dada através do corpo. O corpo em Yoshida é elemento de transgressão em que percorrem todas as principais questões da modernidade: a liberdade sexual e política. Não há ação que não aconteça nos limites do corpo e não há qualquer tipo de redenção envolvendo isso.
A feminilidade no cinema de Yoshida vai abandonando o lugar condescendente de elemento místico e sacro, ao longo da sua evolução cinematográfica. Em As Termas de Akitsu (1962), o diretor mostra pela última vez a feminilidade retratada dessa forma, para então transformá-la nos filmes seguinte. A modernidade não encontra espaço para lugares sagrados diante da ideologia, da política e do corpo. Em História Escrita com Água (1965), começam a aparecer os primeiros traços da decadência do místico feminino e das formas técnicas clássicas de fazer cinema, como o enquadramento totalmente descentralizado dos elementos de ação das cenas.
Na trilogia de amor e anarquismo constituída por Eros + Massacre (1969), Purgatório Heróica (1970) e Golpe de Estado (1973), Yoshida começa então um processo definitivo de mostrar o místico feminino como algo ultrapassado. Agora o místico não mais existe e a feminilidade reside em um corpo político de ação subversiva. As relações amorosas monogâmicas cedem lugar para a não-monogamia, e consequentemente, a instituição do amor como um todo é questionada. A temporalidade é desconstruída, o passado encontra o presente sem medo de se conflitarem. Com a aplicação de uma dialética desconstrutivista de extrema desconfiança moral e ideológica, a misticidade feminina é aniquilada, mostrando a urgência em continuar um processo incansável de obliteração.
A história do místico feminino no cinema japonês passou por um longo processo de representação linguística, até se tornar um conceito obsoleto a ser destruído pela própria linguagem que a significou. Pode-se dizer que a misticidade é destruída pelas próprias necessidades políticas e ideológicas de aniquilação, mostrando que esse é o único elemento a ser tolerado no cinema nipônico moderno.
Notas:
[1] Ver LACAN, Jacques. O Seminário, livro 3, As psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988. 380 p. e SAUSSURE, Ferdinand. Curso de Lingüística Geral. 25 ed. São Paulo: Cultrix, 1996. 279 p.
[2] PAUL, Diana Y. Women in Buddhism: Images of the Feminine in the Mahayana Tradition, Asian Humanities Press, Berkeley, California, 1979
[3] DESSER, David. Eros plus Massacre: An Introduction to The Japanese New Wave Cinema. Bloomington: Indiana University Press. 1988.
[4] O mito conta a história de uma mãe que assustava a filha com uma máscara demoníaca para impedi-la de ir ao templo budista. Até que a máscara não sai mais de seu rosto e ela tem que arrancar máscara junto com a sua própria pele para se livrar da maldição.