A ONTOLOGIA DA IMAGEM PARTINDO DA HEURÍSTICA DO RECONHECIMENTO NO CINEMA DE LISANDRO ALONSO

Por Diogo Serafim

Os dois dialogantes não haviam percebido a solidão que os rodeava. As salas de aula tinham ficado vazias, pelos corredores o silêncio se estendia como uma serpente. Sentado num banco, numa solidão que se tornava inoportuna por seu realce, Foción observava os gestos, as modulações da voz no desenvolvimento, a intensidade do olhar que viajava com as palavras. Ouvia como um espectador ocupado apenas com a reconstrução de uma imagem interior?

José Lezama Lima, Paradiso

 

    Não há como abrir-se para um filme como Jauja (2014) fora do escopo da heurística do reconhecimento, a matéria fílmica sendo absorvida e amalgamada em minhas memórias, um processo de anamnese sensível, perdendo-se entre a realidade e a mitologia, o cinema como potência desestabilizadora não apenas metalinguística, mas também psicossomática, um fluxo de imagens que aos poucos me apodera fisiologicamente, uma matéria que resiste para além da morte, em um campo idealista que se estrutura por um viés materialista até atingir seu potencial transcendental. Há poucas palavras melhores para definir o cinema de Lisandro Alonso além desta: transcendental, a transposição de fronteiras, seja do retrato à fábula, do estático ao dinâmico, da matéria ao espírito, da imagem à vida.

    O que associa a odisseia do engenheiro em busca de sua filha nos sertões da Patagônia no século XIX à derradeira sequência da jovem dinamarquesa retomando certos elementos anteriormente apontados no filme? Como esse conflito temporal por sua vez se associa ao subtexto colonialista do massacre indígena na Patagônia? No filme Carta Para Serra (2011), como o lenhador Misael se encontra com os outros personagens e como esse encontro metatemporal dialoga com sua metalinguagem constituinte? A mitologia do cinema de Alonso é oblíqua, rigorosa em sua execução, mas sempre nos escapa, permitindo lacunas, interstícios hermenêuticos que se encontram em constante expansão.

    Ao ser indagado acerca da origem do título de seu filme Liverpool (2008), Alonso afirma que foi devido a uma mulher que ele viu pedindo dinheiro durante o concerto de uma banda cover dos Beatles chamada Sounds of Liverpool. Nas palavras do diretor, as imagens dessas duas coisas vieram juntas e se recusavam a ir embora. Ele fez assim uma associação entre Liverpool como uma cidade portuária e cidades portuárias na Argentina, chegando finalmente em Ushuaia, que possui um histórico com imigrantes ingleses. Conclui o comentário afirmando categoricamente que o cinema é sobre essas associações ilusórias. Seriam apenas associações no processo de confecção ou estas associações poderiam de alguma forma exercer uma influência definitiva na matéria? A transposição de um estado de espírito para um fluxo de imagens por um terceiro permite a apreensão de um intruso na torrente emocional e pessoal embutida em uma matéria particular?

    É assim estabelecida uma dúvida salutar sobre o estatuto da imagem, esta existe simplesmente como representação do que retrata (seja na sua ontologia ou no seu valor narrativo) ou possui na sua constituição alguma propriedade que lhe confere esse potencial ascético, o deslumbre que ela provoca pode ser originado de uma simples abstração ou este vem de uma impressão da imagem no meu espírito? Essa dúvida pode até soar excessivamente metafísica, mas ela se mostra pertinente devido a uma característica facilmente percebida no cinema de Alonso: o deslumbre que este provoca não é proveniente pura e simplesmente de uma proeza estética (por mais que seus planos sejam cuidadosamente construídos e desenvolvidos) nem de um processo de identificação propriamente, tendo que o seu cinema se estrutura em uma lógica de distanciamento, existindo por si próprio, alheio a mim, em um regime epistemológico absoluto que parece ter um funcionamento fora da minha consciência. Se esse deslumbre não tem uma ontologia própria definida pelos predicamentos essenciais da nossa apreensão empírica na nossa constituição neurológica, como pode este apresentar-se de forma tão potente para mim? Como se dá essa transcendência de espectro senão pelas faculdades fisiológicas que os limites de minha mente estabelecem?

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    O cinema de Alonso se estabelece aí, nesse ponto de inflexão analítico, onde o que compreendo do que está sendo mostrado é subvertido em prol da sensibilização que essa matéria provoca. Se a ascese não é originada por meios convencionais, não aparentando ser sequer consequência daquele fluxo de imagens, ela deve surgir de algum outro lugar: de mim mesmo. A matéria do cinema em perpétuo devir, pois ela se altera conforme minha própria psicologia se transforma, partindo de uma ontologia muito particular que fundamenta a imagem como uma confluência do meu espírito com o espírito de quem a decupou além do evento que está efetivamente sendo mostrado. Daí surge a natureza conflitante do cinema, entre o real e o psicológico, este segundo partindo de duas origens distintas. Entre o racional e o empírico, uma estrutura aberta como um sintoma de rasgadura, onde algo me provoca arrebatamento não apenas pelo que me é apreendido de forma mais ou menos definida, mas também por aquilo que me escapa.

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    Filmes como Os Mortos (2004) e Liverpool (2008) partem de uma ambiência narrativa simples – a história de um homem fazendo uma jornada de volta para casa – para se estabelecerem como espetaculares romagens espirituais. Através do aspecto contemplativo das imagens, o cinema de Alonso se traduz como puro movimento, seja da câmera ou dos elementos efetivamente apresentados em cena. Dado o caráter conflitante das imagens de Alonso (entre o perfeitamente retratista e o arrebatamento fabulista), traduz-se uma aporia entre o incontestável e o transcendental. No ínterim da matéria, um sintoma fleumático de desestabilização, quando tudo que me é inicialmente tomado como banal ou puramente contemplativo se traduz como instável, fabular, despertando infinitas associações possíveis.

Se A Liberdade (2001) aparenta enganosamente partir de um viés documental, emulando a lógica baziniana de salvar o ser pela aparência através de um retrato fiel do seu cotidiano, a famosa cena final é aqui contestar o que há de objetivo na imagem. O que é realidade e o que é fabulação? O que me é proposto como garantia, o que pode ser definido como alicerce da imagem?

A Liberdade (2001) talvez seja o filme de Alonso em que essa investigação acerca da ontologia da imagem mais fortemente se associa com uma ontologia natural. O filme não aparenta intentar nenhuma mediação mais objetiva com relação às suas possibilidades temáticas, tudo é subordinado à fenomenologia. As possibilidades vão se acumulando, contradizem-se e se complementam, em um eterno percurso de elevação espiritual que vai se assimilando e se recontextualizando conforme progride.

O argumento para Jauja (2014) partiu da morte de uma amiga do diretor nas Filipinas. Alonso afirma que a provável maneira que ele encontrará para lidar com a perda de alguém querido é reimaginar esse alguém no tempo e espaço ao seu redor, preservando de alguma forma a sua existência. Partir da matéria para o infinito, com a fé de que o gesto persiste para além da sua fisicalidade.

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