CineBH: Mata Negra (Rodrigo Aragão, 2018)

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Mad Max: “Black” Forest?

Por Felipe Leal

Nota: o texto pode conter spoilers sobre a trama.

Muito se fala de uma safra do horror em nosso cinema, um temporal de um dos gêneros dos mais codificados e de cujos códigos nos apropriamos com particularidades ainda não mensuráveis. Há estudos de caso em restaurantes microcósmicos e com uma heterogeneidade de variáveis que fariam Buñuel estranhar, lobisomens sob luas pálidas e fabulares na metrópole e que cintilam debaixo daquele perolado gigantesco. Beleza e breguice dançam em trocas expressivas. E os espécimes vêm, eles continuam mascando a goma de nossa espiritualidade extensa; nessa historiografia ainda verdejante, nem mesmo o Diabo, literalmente o demo, o capiroto, ficaria ausente. Ele tem chifres e ruge, nasce de um caderno rabiscado de esferográfica. Para nossa surpresa, é claro, como todo texto puxa seu alvo até as bordas, e todo alvo de um texto deve conter algum (sub)texto-limite, um algo para tornar problema, o problema foi longe demais, mas tão demais que os advérbios de nossa língua não podem contê-lo. Dos males, o tinhoso só atinge o malefício de um cacarejo: Mata Negra (2018) é o conto assustador da prolífica impossibilidade de impor limites ao místico. É mais do que qualquer um possa encontrar em seções bibliotecárias. É tão meticuloso em sua carnificina que só precisa apelar ao susto uma única vez, e portanto um susto ele mesmo: qual a espinha de seu horror?, melhor perguntado, porque ele não para de ser horroroso, no sentido mais atuante do termo.

Há uma garota, um amor, por mais relampejante que seja, e uma série mortífera, e poderíamos pular suas pontuações inicias, se essa vila d’um lugar qualquer (os arredores de um horror sempre lhe são mais que preciosos) não fosse um laboratório apressado em que todo gotejar em solução tem o efeito desejado. Nada respira. Tudo morre, e deve fazê-lo logo, em nome da intensificação e andamento do desfecho. Suas criaturas são aparições, mas, diferente da maioria destas, ao menos das sobreviventes, em que o relato das visões, sedimentado e recontado, garante a pujança de sua imagem/imaginário, os zumbis, amaldiçoados e paladinos do Bem são, aqui, meros momentos, protocolos, protelações. Eles não são “parte de”, mas peões, explícitos utensílios que valem pela historiografia pobre que os dota de superfícies e resoluções à tensão mesma que os faz brotar. Os nomes de sua própria sacralidade, que nunca deixa de ser solo, pronunciados como uma criança que lembrará, do arcabouço mágico, o abracadabra e o coelho da cartola. Envolvida com magia negra por inocência e por desespero circunstanciais, a garota lê o livro de feitiços como se em suas páginas estivesse escrito com sangue um power point de palavras-chave da teosofia e mitologia universais: Cipriano!, Hécate!, Amon! (Chriss Angel chega a fazer falta), e os mortos viverão e os vivos estarão marcados daquelas palavras em diante.

Não é inteiramente um problema de mítica. É comum ao cinema genérico, a grande parte de todo ele, na verdade, que obstáculos atravessem jornadas. Não porque o herói precisa superar a si mesmo – é uma outra questão. Ao horror, este fato do heterológico que replica as situações em fantasmas de sua raiz será precioso. Talvez por inevitável interposição daquilo que é estranho, talvez por naturalidade adversativa do mundo, o bom narrador saberá o fazer. Quiçá até jogue junto, embora a este gênero seja quase certeiro que grande parte da turbulência se dê de maneira a surpreender seu herói. E de surpresas a garota tem mãos cheias, sua face é um quadro de bocas e sobrancelhas – isso quando o rosto não está insuportável de tanto sangue, o que acontece com, digamos, frequência excessiva. Devemos, enfim, ultrapassar os códigos, e bem o discutiríamos, mas Aragão é um gênio do fôlego. “Esfrega” o livro e repentinamente lhe saem mais três percalços. Será trabalho voluntarioso e hercúleo do espectador procurar e se acalentar com uma cena que não seja imediatamente seguida ou borrada, ainda nesta interioridade nuclear, por uma desgraça recaída. Literalmente, não há paz. O que devia ser uma significação pluralizada do plano inicial se ramifica tanto que não é preciso chegar à metade do filme para se encontrar perdido. Qual era o impulso primordial? O desatar de que sortilégio traria redenção àquela errância juvenil? “A terra castiga quem tem sentimentos”, diz o amado, sem saber que a tradução de seu ditado seria um desvario camaleônico.

Podemos perdoar a solenidade daquele que, por aparência inicial de um desenrolar mágico das costuras dos eventos, desejava ser fiel ao ar longinquamente familiar dos contos de fada – “Ah, minha fia…”, “Ah, painho…” multiplicados por mil: o mundo nasceu emperrado? –, podemos saltar a percepção estagnante de que a garota oscila entre tão corajosa bruxa e tão indefesa virgem. Podemos, até, vendar os olhos diante das caricaturas ressecadas do bom moço, do bandido, do evangélico, do casal infeliz de roça. Mas, “de repente”, um nervo subcutâneo escapa ao previsto, ao natural do corpo (fílmico). A pele inteira treme, a superfície mais palpável, a do decurso, do cena-após-cena, é estuprada por reviravoltas dignas de um único apelido: mágicas. De repente, aquele livro, dos fundos de uma mata sub-explorada, é o antiquíssimo grimório buscado por gerações de sedentos e gananciosos; aquele ovo, que serviu de jura amarrada numa cena de épicas proporções de inutilidade do obstacular, é tanto uma licença para lançar um galo ao ar e fazê-lo simplesmente interromper, gratuitamente, e jorrar mais sangue, sangue, sangue, quanto é o desenlace futuro de um monstro cuja única função é, também, produzir o cômico e sujar. Afiada direção de arte, esta que fez do filme cinquenta-variações-para-ensanguentar-corpos.

É comum aos filmes de horror que acabem por ser hilários pelo verniz esfregado de sua feitura? É uma liberdade ou um acontecimento “involuntário” e peculiar, quando tal acontece?  Um momento previsto e mais ou menos ensaiado ou um derrape? A questão, que parece irrelevante e propícia à cada qual que dela participa, ou seja, assiste, se torna uma de todos, ou seja, novamente de código, e geral porque à medida que cada intensificação desse feitiço inicial vem tanto afastar o desfecho quanto propor-lhe uma vereda infernal, também o espectador tem de lidar com o cesto quente lançado ao colo. Ele – o “assistinte” – é, particularmente no terror, misturado ao jogo de saberes e surpresas que a trama cospe.

E o que temos é (reitera-se o caráter “repentino” com que tudo irrompe), tão logo: um amante a ser ressuscitado, dois bandidos, um dos quais precisa de um certo despacho, um fazendeiro em encruzilhada biológico-matrimonial, uma cabeça (para quê, não se sabe mais, e não somos culpados), um saco de ouro, uma manada icônica e paupérrima de religiosos de alcance vocal adequado a uma centena de aleluias e obediência canil, zumbis, aliás vários deles, como árvores ilustrativas numa peça campestre, a própria morte, travada como um boneco, o Diabo ele mesmo, invocado num passe de palavras de automatismo característico de quem lê uma bula em meio a um acesso de raiva. E uma garota. No meio de tudo, a garota contra as forças do mal, que não são nada menos que cada passo dado. Não há instante de tranquilidade, pulmões, felicidade que não sirva de catapulta ao trágico – não que precisem existir, mas porque a ideia de Aragão de horror deve ser uma de distopia descendendo ininterruptamente.

E ela entra numa espiral tão possessa que o futuro inteiro a solapa. Era uma missão subterrânea da história falar de um encaminhamento distópico e selvagem do mundo, daquele mundo erigido de tantos, para não dizer exclusivamente, perigos e tormentas de quem brincou com fogo? Tornar uma protagonista um redutível ao zero e subserviente ao ideal de viagem. E nós reconhecemos aqueles personagens, eles são os rostos familiares dos sortudos sobreviventes (será?), e algo a mais, um bônus referencial inesperado. Este aditivo é o nome de um outro filme, título de duas palavras, e está incrustado naquela fenda desértica que um plano se distanciando vem revelar ser um castelo em meio ao fogo em meio ao fim do mundo em meio à desesperança. Rostos pintados, lanças antiquadas, vestimentas de pano e um linguajar típico do caçador cada-um-por-si. É Mad Max! E com licença para franquia renovada e breve. Não por muito tempo, claro, porque a virgem deve continuar escrava da trama, a trama que só faz ampliar seus círculos até que o futuro pareça, dos impossíveis, o menos preocupante.

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