Editorial – O Rito de sentar-se à mesa

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Senta-se à mesa.

Ao comentar a análise de Giuseppe Lo Duca sobre erotismo e cinema em L’Érotisme au cinéma, André Bazin conclui que o olhar do autor enxerga a fonte do erotismo cinematográfico nos traços comuns ao espetáculo cinematográfico e ao sonho pela passagem: “O cinema está próximo do sonho, cujas imagens acromáticas são como as do filme, o que em parte explica a menor intensidade erótica do cinema em cores, que de algum modo escapa às regras do mundo onírico”.

Abre-se o cardápio.

O texto de Bazin, de 1957, parece incompatível com o ideal dos desejos da carne no cinema contemporâneo. O sonho, hoje, é de cores saturadas, não pela certeza do cinema a cores e variá-lo parece um caminho justificável, mas levado às dúvidas de uma afirmação mambembe no qual o sentido e a sugestão são mais importantes que a imagem. Ela parte de uma afirmação, de uma força insolúvel na qual filmes como Cam e Apesar da Noite carregam – ambos comentados nesta edição.

Faz-se o pedido.

Dois exemplos muito atuais da função da carne na tela: Em Sedução da Carne (2018), Julio Bressane exibe o básico do cinema: luz e sombra. Num simbolismo rasteiro considerando o tema da edição, digamos que seja o feijão com arroz do processo. Mas, ao lado, a carne, literalmente –  industrializada, em estado de putrefação, que nos persegue e nos domina. O reducionismo de Bressane sobre a indústria, a morte, os cineastas, o dispositivo e as funções do corpo como símbolo vão de encontro com a proposta desta edição da Multiplot! Em Climax (2018), Gaspar Noé em sua metodologia perfumada e artificial, coloca o sistema – corpo – e seu funcionamento em constantes tropeços em entidades morais – família, religião, drogas, etc. O corpo, aquele que é vítima infecções, que possibilita o gozo e aceita a morte – resumindo, o de Cronenberg – nunca pareceu tão em voga nos tempos em que o voyeurismo é tão popular.

A sexta edição da Multiplot! no formato de revista parte de uma noção contrária à associação do discurso da carne: o corpo como bacia dos desejos no cinema de Todd Haynes – poderia ser o córrego para a discussão do cinema de Catherine Breillat e Jean-Claude Brisseau e seu lado sensorial, mas o que se discute é o coração. O corpo e a cidade que poderia passar pela noção nefasta de Jia Zhang-Ke ou Brillante Mendoza decorre para Walker, o personagem andarilho de Tsai-Ming Liang, uma visão mais intimista e que está em paralelo à análise de Peeping Tom (1960) de Michael Powell no pesadelo do homem urbano, aquele que acopla suas fantasias ao horror – e a câmera como extensão deste homem, concomitante às teorias de Marshall McLuhan. Este que tem em David Cronenberg o seu grande representante e em Crash (1996) o seu apogeu. O  personagem andarilho de Tsai-Ming Liang  leva ao diretor a questionar as assimetrias da carne, sobre corpos que ocupam o espaço urbano e exercem funções primordiais e que são impedidas de seguir o fluxo natural por questões cruéis, próximas ao canibalismo. O texto sobre Bush Mama é mais evidente sobre como o homem ainda é, no fim das contas, irracional.

Se Crash, um dos grandes filmes de gênero a intuir o corpo a partir de outro extremo, vale lembrar de Stuart Gordon, um grande amante das vísceras e sangue que vai além do fetiche e a carne, além do desejo, consome a vida, à espera da morte como prato principal indesejado. Abel Ferrara e Stan Brakhage, cada um à sua maneira, discutem a congruência do palpável e o sobrenatural. Vale lembrar que Ferrara sempre conta com a arma como extensão. Esta edição traz textos sobre o cyberpunk e a máquina (Tetsuo, 1989), corpos em colisão (Crash), a webcam como arma de prazer e horror (o já citado Cam), a câmera como arma  mortal em Peeping Tom e o sexo e violência surrealista discutido por Adrian Martin, que vai de Franju e Buñuel a Lynch e os filmes de horror.

Sentar-se à mesa, portanto, é uma questão que engloba grandes conflitos filosóficos sobre o que e quando se consome.

Vira-se a página. Agora é degustar.

Bon appetit.

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