Trágicas (Aida Marques, 2019)

trágicas

Por Gabriel Papaléo

As primeiras cenas de Trágicas são bem reveladoras: um palco, com a luz estilizada teatral, e a interpretação grandiloquente da atriz que interpreta as três deusas gregas, seguidas de depoimentos de mulheres que perderam seus filhos na ditadura. Uma tentativa de interpretação metafórica entre duas questões díspares demais, a dor das tragédias gregas em consonância com mortes cujos rastros revelam um problema essencialmente social e estrutural. O letreiro com a palavra “Trágicas” em diversas línguas dá uma ideia da proposta por uma universalidade que a diretora parece buscar pelo filme, decisão delicada dado os temas.

O explicitar da metáfora através dos cortes entre os rostos das mulheres entrevistadas com a atriz performando no palco se repete pelos 70 minutos sem que exista uma progressão na reflexão do filme, apenas a repetição dos cacoetes de montagem colocando o off de uma mulher para comentar a da outra, aproximando perdas sem quaisquer parâmetro além da associação de morte, uma tese acadêmica filmada com mão pesada, e closes que recortam as bocas e olhos chorosos das mulheres em falas de impacto – o que só me faz lembrar dos planos abertos e médios de Chantal Akerman, que não queria “cortar as mulheres ao meio” para propósitos dramáticos explícitos demais.

Quando o foco vai para as entrevistadas que perderam seus filhos para a milícia ou para a polícia, uma miopia social e especialmente de classe tremenda em nivelar problemas de origens distintas aparece. A violência dos relatos é coberta sob olhos simbólicos e previsíveis da câmera, e a montagem entrecortada tira o impacto e só aumenta o desconforto de algo que poderia estar num programa jornalístico sensacionalista, e não num documentário cuja ética social passa pelo cuidado com quem está exposto na frente da câmera.

A tendência à exploração desconfortável das dores das mães que perderam seus filhos por suas etnias, descrevendo com riqueza de detalhes atos atrozes e que em nada se associam às dores de Medeia ou Electra, dizima qualquer contato emocional com um filme que parece cínico em suas associações, academicista ao triturar fatos sob a venda do bom gosto plástico. Colocar a mulher que matou seus filhos por vingança e fazer qualquer comparação com os mortos da ditadura, do genocídio negro ou étnico me parece condenável especialmente em 2019. No debate, o roteirista disse que os depoimentos foram filmados em close para se assemelhar com as máscaras do teatro grego, o tipo de relação ofensiva que privilegia a metáfora acerca do peso social da tradição oral do relato.

A estrutura investe nessa interminável associação entre ficção e realidade, entre palco e depoimentos, entre poéticas da metáfora e do relato oral, e não só subestima o espectador ao exaurir a já óbvia relação academicista e cansada como passa por cima de responsabilidades sociais através de uma suposta dialética do afeto que me parece tirar o protagonismo das palavras dessas mulheres vítimas da brutalidade estrutural da sociedade e do estado. O palco sempre parece ser o carro chefe do filme, e enquanto ambos estiverem na mesma narrativa e a interpretação mitológica embasada nas teorias mais superficiais se sobrepor às questões urgentes dos relatos brutais que precisam ser ouvidos além das páginas policiais exploratórias, haverá uma discrepância enorme nessa dialética que antes de tudo é um dever cívico.

Visto na 22ª Mostra de Cinema de Tiradentes

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