A cidade foi feita para caminhar – o Andarilho de Tsai Ming-Liang

Por Gabriel Papaléo

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Qual a reação possível de indivíduos em um espaço social de metrópole cuja arquitetura e disposição econômica não foram pensadas para a existência deles? Nos filmes do diretor Tsai Ming-Liang, especialmente a partir de Adeus, Dragon Inn (2003), os personagens andam muito por espaços vazios, por ambientes que parecem apocalípticos devido ao abandono, mas sem que percam uma localização evidente de cidade, como dejetos espaciais de um projeto de metrópole que se renova esquecendo dos seus passados. O corpo em manifestação social quase anestesiada seja pelo excesso, pela culpa, pelo peso da memória – isso varia dentro da filmografia do malaio radicado em Taiwan. O ritmo do presente em Hong Kong, Tóquio e Marselha não parece combinar com o ritmo do corpo, e ao passo que o diretor sabe da problemática nesse conflito Tsai também sabe que andar é importante, sempre, porque é um sinal em harmonia com a ideia de que o mundo está em movimento. O convite é a repensar a lentidão, porque a velocidade está na perspectiva, e de cidade em cidade encontramos a exaustão tanto do corpo quanto do ambiente que ele está inserido.

O movimento cênico inicial de Walker e Jornada ao Oeste é um recado visual das origens imateriais do Andarilho vivido por Lee Kang-Sheng, inclusa no zen-budismo no qual a tradição do monge está inscrita: a saída de ambientes similares à cavernas, com cores terrosas, remetendo quase a um primitivismo histórico das moradas humanas, recusando não apenas estímulos visuais contemporâneos como também sonoros, cujo som da cidade abafado em Walker e o silêncio de Jornada ao Oeste se comportam como prenúncios estéticos de um excesso. A saída psicológica e física do lugar cujos costumes e tradições imateriais têm mais signos evidentes no quadro para a metrópole, lugar onde esses costumes e tradições estão enterrados, por vezes até visíveis mas ainda tímidos e em minoria, pela passagem do tempo. E se existe uma certa lamentação pela perda dessa ideia por vezes abstrata da plenitude no que não vemos mas sentimos, nunca está associada a um signo de estagnação, ou de fatalismo na passagem material do tempo. O que interessa ao Andarilho é a resistência do flanar porque não é uma antítese da cidade, mas sim uma ressignificação do espaço. A importância da cidade ser ambiente pensado para pessoas interessadas na mudança dos tempos, no fluxo – estudado pelo zen-budismo – contínuo da vida, no qual o progresso seja uma ideia espiritual ao invés de materialista do capital. O choque da violência entre corpo e cidade, da cidade hostil com o corpo habitante de outro ambiente e outro tempo – não-cronológico, mas relativo.

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E por um conflito de corpos não apenas vemos o Andarilho de Tsai em choque com o urbano, mas os próprios transeuntes que por ele passam. A câmera surge como um dispositivo fílmico de observação escancarado, desvelado diante dos habitantes das cidades filmadas, e interferindo nas suas vidas mesmo apenas colocada num tripé à média distância, raramente privilegiando closes, sempre expondo a distância cênica entre ela e os sujeitos – e entre os sujeitos e a cidade. Na Marselha de Jornada ao Oeste talvez seja a relação mais agressiva dentre os três filmes do Andarilho abordados aqui, talvez por ser a única dessas cidades situadas fora da Ásia; porque para Tsai existe um movimento político no flanar, uma ocupação espacial que outrora, e sob outra via, não seria possível. A estranheza dos pedestres com aquela ação em tela é por conta do movimento extremamente lento do Andarilho e do personagem de Denis Lavant em proporção ao ritmo da cidade, mas também por uma interação entre continentes distintos, entre culturas por vezes em choque, e até por ideais religiosos: o monge budista que enfrenta a cidade esgotando seu corpo pelo oposto do hiperestímulo em uma França majoritariamente ateia.

É nesse diálogo com as narrativas mais fragmentadas que Tsai começou a explorar em seus filmes rodados em digital – culminando na duração maior dos planos que a película dificultava (ou até impossibilitava) – que o Andarilho existe nesses filmes, na alta definição das câmeras expondo o desafio de um corpo ao extremo de suas possibilidades, as pequenas expressões que vazam no rosto quase impávido de Lee Kang-Sheng na sua meditação de tempos suspensos, no tecido que parece se mover numa velocidade diferente do homem que o traja. Parece que a cidade está toda cristalina quando filmada em planos abertos, iluminada e com todos os seus pequenos movimentos em foco, e no meio desse frenesi visual banalizado pelas experiências do cotidiano a figura do Andarilho entra como um dispositivo cênico que nos convida a olhar e experimentar uma nova dimensão do que é visto como banal para quem vive em metrópoles, quadros rigorosos que expõe a escala quase operática da cidade como também explicita o esforço cru de um corpo em movimento deslocado ao meio. Não à toa Tsai expõe esses filmes mundo afora em museus, ambientes cuja natureza é mais volátil, cujas possibilidades visuais são mais diversas que a unidade da tela escura projetando uma única perspectiva – e portanto mais similares ao jogo imagético que as metrópoles que filma propõe.

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A distância corpórea dos homens na sauna em Wu Wu Mian, em ritual de resistência à cidade à suas próprias maneiras, parece guardar um canal metafísico que a urgência dos planos noturnos da Tóquio lotada dos pedestres em Shinjuku e do metrô em movimento brusco a observar uma cidade cujas luzes estão se desfazendo sob nossos olhos em registro digital não chama para si. É como se fosse o chavão da cidade que nunca dorme versus os homens que dormem como enfrentamento a ela, mediada pelo monge em seu tempo próprio, encontrando ambientes que procuram essa mesma dinâmica – talvez a exclusividade de noturnas aqui seja um sinal de que é o horário do dia que mais se pensa o absurdo do fluxo irrestrito da cidade, o momento diária e também ritualístico da ansiedade da privação do sono, da dificuldade de conciliar o ritmo acelerado com a desaceleração proposta pelo corpo ao pedir repouso. É a jornada mais abstrata dos três filmes, por partir de um choque de sentimentos, de exaustão política refletida no ciclo corporal, cuja geopolítica está em segundo plano mas tão relevante e mapeada quanto nos outros.

Em Walker, o Andarilho passa por anúncios múltiplos e coloridos, por mercados ao ar livre, e filmado como silhueta em meio aos habitantes passando por uma ponte provavelmente de algum transporte coletivo, e nunca deixa de estar solitário nos quadros; não parece haver distinção tão grande entre os planos abertos afastados do monge na cidade noturna e vazia para os planos mais ocupados pelo fluxo de pedestres, porque o que o enclausura diante de Hong Kong é uma solidão que não interpreta multidões e vazios sob diferentes óticas, a impessoalidade surgindo equivalente em ambas as dimensões. O momento de maior impacto, quando este é filmado frontalmente em meia distância ocupando uma rua lotada, é reconhecido por transeuntes que param ao seu redor, o filmam, no maior diálogo que uma interação assim pode proporcionar. Se em Hong Kong e Tóquio os obstáculos são íngremes, de proporções diferentes, ambientes fechados e vazios com os mesmos estímulos visuais caóticos, em Marselha os entraves são em planície, mais turísticos, com corpos que parecem mais interessados em uma investigação/contemplação do que está ao redor, mas também aparentemente desconectados para com o outro.

Em Hong Kong o monge termina sua jornada comendo algo após ser negado o seu acesso a um lugar, em Tóquio é através de um sono em uma cápsula que lhe aliena do ambiente – ambos rituais solitários de sobrevivência, mas também de autoconhecimento dada a metafísica tão convidativa desses filmes. Mas em Marselha a jornada termina na cidade literalmente de cabeça para baixo, com o monge e seu seguidor ocidental em meio aos transeuntes, todos dispersos no ritual do flanar, sem apreensão individual, sem conciliação entre o pessoal e o público. A metrópole na França está fadada ao peso do turístico, da cidade-museu, do urbano não funcional ao humano, do ambiente cujas motivações não são de um trânsito de acasos mas a um ritual muito marcado e formulado, assimilado pelo status que o flanar com viés cultural traz.

O esforço corporal deixa de ser do monge para ser de todos os outros corpos anônimos na cidade, impessoais, diante de um ritmo imposto a eles por uma dinâmica de sociedade ao redor do trabalho, quase oposta a ideia do Andarilho a dançar no urbano. No início dos três filmes o extremo e o cansaço podem ser características associadas ao monge protagonista, mas ao final a impressão que fica é que exaustos estão os corpos em movimento desordenado e perdido que testemunhamos com frequência ao redor dele.

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